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, ACONSELHAMENTO' o significado da psicologia humanista, posicionamentos filosóficos implfcitos* MAURO MARTINS AMATUZZI** Pode-se fazer uma diferenciação entre uma abordagem do homem como resulta- do e uma abordagem dele em sua atualidade e presença,criadora de sentido. Os usos mais comuns do termo "humanismo", tal como associado à psicologia apon- tam para isso. A partir daí o sentido de uma psicologia humanista é descrito em tomo de quatro pontos: 1. A busca de um contexto mais abrangente para a psi- cologia. 2. O questionamento dos limites do método científico. 3. Uma atitude fenomenológica. 4. Uma consideração da pessoa como totalidade em movimento. Penso que o essencial do que quero dizer a respeito desse assunto pode ser colo- cado em algumas poucas proposições. E a primeira é a seguinte: o homem não é um "bicho que fala", mas ele é a própria palavra, ou melhor, ele é palavra. Reen- contro aqui uma colocação que é tanto de Heidegger como de Buber: não é a lin- guagem que se encontra no homem, mas o homem que se encontra na linguagem. A segunda proposição é de que isso não é "poesia" ou jogo de palavras, como talvez possa parecer. Trata-se de uma af'mnação muito precisa, que nos coloca num outro âmbito de considerações, ou seja, que implica mudança radical de pon- tos de vista. E a terceira é justamente que essa mudança radical de ponto de vista é o que mais caracteriza a psicologia humanista; o sentido do humanismo (no nos- so caso enquanto aplicado à Psicologia) é essa mudança de perspectiva. Não se trata, com efeito, nem de uma mudança de objeto, nem de uma mudança de méto- do, e nem mesmo, quem sabe, de uma mudança te6rica. Trata-se na realidade de uma mudança TUl relação com o objeto. Essa mudança é capaz de assumir em de- terminados momentos o mesmo método, s6 que num contexto onde o sentido glo- bal é outro, o que faz com que a visão resultante (a teoria, nesse sentido) seja ou- tra, mais abrangente, capaz de conter as visões anteriores s6 que como parciais, e reconhecidas como parciais. Nessa nova visão, a teoria, aliás, se toma ela mesma relativa: não se trata mais de teorizar, como um fim. A teoria passa a ser ela também um momento de algo mais amplo, que é o que af'mal importa. E esse algo mais amplo é antes um compromisso que uma teoria. Uma das coisas que subjaz a essas proposições é que a consideração do sentido é fundamental. Para compreender o ser humano, tenho que lidar com qúestões de sentido. A consideração do ser humano em termos de causa e efeito, antecedente e * Artigo apresentado à redação em 20.3.89. Elaborado a partir de uma conferência proferida na IV Jornada de Psicologia Humanista, promovida pelo Centro de Psicologia da Pessoa e pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, em agosto de 1988. ** Docente no Instituto de Psicologia da USP, Doutor em Filosofia da Educação pela Unicamp. Arq. bras. Psic., Rio de Janeiro, 41(4)88-95, set./nov. 1989

Psicologia Humanista

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  • , ACONSELHAMENTO'

    o significado da psicologia humanista, posicionamentos filosficos implfcitos*

    MAURO MARTINS AMATUZZI**

    Pode-se fazer uma diferenciao entre uma abordagem do homem como resulta-do e uma abordagem dele em sua atualidade e presena,criadora de sentido. Os usos mais comuns do termo "humanismo", tal como associado psicologia apon-tam para isso. A partir da o sentido de uma psicologia humanista descrito em tomo de quatro pontos: 1. A busca de um contexto mais abrangente para a psi-cologia. 2. O questionamento dos limites do mtodo cientfico. 3. Uma atitude fenomenolgica. 4. Uma considerao da pessoa como totalidade em movimento.

    Penso que o essencial do que quero dizer a respeito desse assunto pode ser colo-cado em algumas poucas proposies. E a primeira a seguinte: o homem no um "bicho que fala", mas ele a prpria palavra, ou melhor, ele palavra. Reen-contro aqui uma colocao que tanto de Heidegger como de Buber: no a lin-guagem que se encontra no homem, mas o homem que se encontra na linguagem. A segunda proposio de que isso no "poesia" ou jogo de palavras, como talvez possa parecer. Trata-se de uma af'mnao muito precisa, que nos coloca num outro mbito de consideraes, ou seja, que implica mudana radical de pon-tos de vista. E a terceira justamente que essa mudana radical de ponto de vista o que mais caracteriza a psicologia humanista; o sentido do humanismo (no nos-so caso enquanto aplicado Psicologia) essa mudana de perspectiva. No se trata, com efeito, nem de uma mudana de objeto, nem de uma mudana de mto-do, e nem mesmo, quem sabe, de uma mudana te6rica. Trata-se na realidade de uma mudana TUl relao com o objeto. Essa mudana capaz de assumir em de-terminados momentos o mesmo mtodo, s6 que num contexto onde o sentido glo-bal outro, o que faz com que a viso resultante (a teoria, nesse sentido) seja ou-tra, mais abrangente, capaz de conter as vises anteriores s6 que como parciais, e reconhecidas como parciais. Nessa nova viso, a teoria, alis, se toma ela mesma relativa: no se trata mais de teorizar, como um fim. A teoria passa a ser ela tambm um momento de algo mais amplo, que o que af'mal importa. E esse algo mais amplo antes um compromisso que uma teoria.

    Uma das coisas que subjaz a essas proposies que a considerao do sentido fundamental. Para compreender o ser humano, tenho que lidar com qestes de sentido. A considerao do ser humano em termos de causa e efeito, antecedente e

    * Artigo apresentado redao em 20.3.89. Elaborado a partir de uma conferncia proferida na IV Jornada de Psicologia Humanista, promovida pelo Centro de Psicologia da Pessoa e pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, em agosto de 1988. ** Docente no Instituto de Psicologia da USP, Doutor em Filosofia da Educao pela Unicamp.

    Arq. bras. Psic., Rio de Janeiro, 41(4)88-95, set./nov. 1989

  • conseqente, parte e todo, por mais cabvel, correta ou verdadeira que possa ser, no d conta do que seja o ser humano como totalidade em movimento. Em outras palavras: posso explicar certas ocorrncias humanas ou comportamentos a partir de "causas" internas ou externas (motivaes inconscientes ou configuraes de estnulo, por exemplo), posso analisar relaes de antecedente-conseqente (como por exemplo o efeito de uma recompensa), ou posso explicar certas coisas em funo das relaes parte-todo (como por exemplo quando digo que o modo de ser de uma pessoa a repercusso individual de problemas ou situaes coletivas bem caracterizveis). Posso ainda descrever como que tudo isso se articula numa espcie de histria geral de conflitos e fantasias, e que se aplicaria a todas as pes-soas ou maioria (psicologia do desenvolvimento). Cada uma dessas coisas v-lida e possvel, e de fato feita, com muitas pesquisas, certamente. Mas nenhuma delas, em separado, e nem todas somadas do conta do ser humano como totalida-de em movimento. Algo fica faltando, e no algo que possa ser cumprido dentro de cada um daqueles enfoques. No tanto que essas explicaes estejam incom-pletas. Sim, at esto, e haver sempre mais a pesquisar nessa linha. Mas a incom-pletude a que me retrO de outra ordem. Talvez "explicaes" dessa natureza. no bastem, e por mais que somemos explicaes no estaremos atendendo ainda ao principal desafio que se coloca para ns face ao nosso viver: o que vamos fazer com nossa vida? Que sentido vamos dar a ela, e de tal forma que no nos isole de um sentido mais global?

    Sob esse enfoque, o ser humano nos aparece no como resultante de uma srie de coisas, mas como, fundamentalmente, o iniciante de uma srie de coisas, e os desafios daquilo que ele deve criar no so respondveis com explicaes daquele tipo. O homem s aparece naquilo que ele tem de mais prprio, na questo do sen-tido, no na questo da causa explicativa. A relao explicativa se refere ao ho-mem como res~tado, como repertrio, ou como recebido, e, portanto, .em defini-tivo, ao homem como passado. No se refere ao homem atual, ao homem desafia-do, ao homem tendo que responder e posicionar-se, ao homem presente (face a um futuro). Este homem atual, presente, desafiado, interpelado, em movimento, o que se encontra face s questes de sentido: estas so as questes presentes, que surpreendem o homem como existente (no apenas como natureza, como diria Merleau-Ponty).

    Dizer que o homem um "bicho que fala" (o que equivale a dizer que um "animal racional") ficar no mbito das explicaes, e portanto, do homem como resultado. Mas isso no ainda o homem atual. S poderemos chegar a ele mu-dando o ponto de vista e assumindo as questes de sentido que definem sua atua-lidade. O homem atual, presente, existente, constitudo pelas questes de senti-do. Ora, a palavra exatamente a questo de sentido. Por isso o homem atual se encontra na palavra, e no o contrrio. na decifrao de suas questes de senti-do que o homem pode se instaurar em sua atualidade, mas preciso tomar cuida-do: essa decifrao pode ser vivida como uma reduo ao esquema explicativo onde apenas encontraremos o homem-resultado, e no o homem em su atualida-de. Isso, para Merleau-Ponty, seria permanecer ao nvel da palavra secundria, da fala inautntica, do falar sobre, da fala sobre falas. A fala sobre falas ainda um discurso no passado. A decifrao do sentido s ser um discurso no presente se for vivencial, experiencial, uma vivncia do prprio sentido criando novos senti-dos. enfrentando os desafios que vou decifrando os sentidos e criando novos sentidos. A decifrao dos sentidos que permanece no atual, identifica-se com o enfrentamento dos desafios, e no apenas um estado deles.

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  • o homem atual, portanto, encontra-se no assumir as questes de sentido, e por isso significa uma reviravolta completa de perspectivas (do homem-resultado, para o homem-atual). E exatamente essa reviravolta que faz o sentido da psicologia humanista.

    Antes de passarmos para um outro ponto, gostaria de trazer aqui uma conside-rao paralela que pode nos ajudar a compreender esta questo que acabo de for-mular. A diferena que existe entre essas duas perspectivas a mesma que existe na considerao da cultura como resultado (ou como produto), e da cultura como ato cultural. Uma coisa estudar os produtos culturais (objetos, mquinas, obras de arte, utenslios, ou outros produtos como a cincia, a religio, ou as estruturas de parentesco ou estruturas de relaes de trabalho, etc.) de algum grupo social ou sociedade. Aqui estamos estudando a cultura de um povo como algo dado, e, por-tanto, enquanto acabado. Outra coisa completamente diferente (embora possa in-cluir a primeira) ser agente cultural, produzir cultura, inserir-se num movimento vivo de produo cultural. A diferena entre essas duas coisas clara. Ora, acon-tece que o termo "cultura" pode ser demido em uma dessas duas direes, origi-nando-se da muita confuso. A cultura que estudada pelo estudioso no tem na-da a ver com a cultura que praticada pelo agente cultural. No primeiro caso te-mos um produto acabado e mais ou menos esttico: a cultura como produto cul-tural. No segundo, temos a cultura como contedo de um movimento incessante, algo em constante mutao. No primeiro caso fazemos hist6ria no sentido de retra-tar um passado (ou algo acabado), no segundo fazemos hist6ria no sentido de construir a hist6ria em curso. E a hist6ria que fazemos retratando s6 tem sentido em funo da hist6ria que estamos construindo. A cultura de um povo no algo feito, mas algo que se faz, e reduzir uma coisa outra , na realidade, esmagar o potencial criativo de um povo, e tentar estagnar um movimento, impedindo que esse povo enfrente seus verdadeiros desafios. A cultura h que ser demida como um processo vivo e no como um conjunto de produtos acabados. O ser humano tem que ser captado em seu movimento, e isso s6 pode ser feito movimentando-se, inserindo-se num processo. O homem como resultado, ou a cultura como produto, no so ainda o homem atual ou a cultura que se faz.

    Acredito que o sentido do humanismo hoje exatamente o de nos colocarmos na postura do atual, do presente, do atuante, do em curso; e todas as explicaes s6 tero valor enquanto instrumentos para isso, mesmo que, enquanto instrumen-tos, permaneam aqum dessa atualidade.

    Voltemo-nos para o humanismo, e vejamos o que esta palavra nos sugere. Po-demos encontr-la usada de quatro modos diferentes, pelo menos. 1. No sentido estrito, o Humanismo um movimento cultural, europeu, surgido no sculo XIV, e intimamente ligado Renascena. Mas talvez dali que o termo te-nha se generalizado, podendo ser aplicado a qualquer fIlosofia que coloque o ho-mem no centro de suas preocupaes, ou enquanto um adjetivo aplicvel a outros movimentos, como o caso da psicologia humanista.

    O movimento cultural da Renascena precisa ser entendido em funo de seu contexto. De algum modo ele aparece como uma espcie de reao contra um so-brenaturalismo medieval que naquela poca significava um desprezo pelo que humano: nada das coisas dessa vida importante a no ser aquilo que aqui uma aquisio de mritos para a vida futura, eterna, ap6s a morte. A vida presente, nesse sentido, no levada a srio em sua consistncia pr6pria, no tem valor .ne-nhum em si mesma. O prprio homem, em si, em seu corpo, no precise. er culti-vado, uma vez que SI. u destino a monc;

  • As coisas do mundo so transit6rias e um cenrio passageiro para as coisas eter-nas, que so as que importam. A arte, a cincia, a poltica, a beleza, a flexibilida-de corporal no so coisas que devam deter o interesse do sbio, mas sim, as coi-sas eternas, sobrenaturais, as virtudes da alma. A sade do corpo, a maturidade psicol6gica; no so importantes a no ser como substrato mnimo para as virtudes que nos preparam para a vida eterna. O humano, o temporal, este mundo, so as-sim altamente desvalorizados em favor do espiritual, do eterno, do sobrenatural. A cultura antiga, representante desse humano, era, assim, mais ou menos desprezada, ou ento era lida como um smbolo ou apelo de algo outro, maior. - No que isso tivesse caracterizado a Idade Mdia toda. Mas era a forma como uma face do pen-samento medieval foi lida a partir do ponto de vista da Renascena e do humanis-mo. Uma nova necessidade nos faz freqentemente caricaturar a viso anterior. Seja l como for, esse humanismo nasceu sob a bandeira da revalorizao do hu-mano, o que significava na prtica um retomo dos clssicos, e cultura pag gre-co-roJIlalla. O que humano tem um valor em si mesmo, e no como mero suporte ao sobrenatural; este mundo no apenas um cenrio provis6rio e sem importn-cia para algo-que no tem nada a ver com ele; o tempo, o que se constr6i paulati-namente, o crescimento humano, so importantes (o tempo, e no a etenlidade, onde se constroem as coisas, e estas coisas que construmos). O homem corpo tanto quanto alma, e como um todo que ele tem que ser cuidado. Virtude o de-senvolvimento das potencialidades humanas, e no algo acrescentado de fora. Para alguns isso representou uma rejeio da viso teol6gica das coisas, e no sculo XX isso representado pelo humanismo ateu (cujo exemplo mais contundente Sartre). Para outros essa revalorizao do humano, do mundo, do tempo, no se define por um posicionamento anti-religioso ou ateu. Existe todo um humanismo cristo segundo o qual na trama deste mundo que realidades definitivas esto sendo construdas (e um exemplo eminente desse humanismo em nosso sculo Teilhard de Chardin). De qualquer forma essa revalorizao do homem, das coisas do homem, da hist6ria humana, daquilo que aqui efetivamente se faz, da atualida-de do humano, no se relaciona necessariamente com uma posio religiosa ou an-ti-religiosa. O que polariza esse movimento justamente uma volta atualidade do humano, e um acreditar que este o caminho. 2. Erich Fromm fala do humanismo no enquanto um movimento localizado na Europa do sculo XIV. Ele fala de uma tradio da tica humanista que encontra representantes praticamente em todas as pocas do pensamento ocidental. Ele pr6-prio pretende ser um pensador que se insere nessa tradio. "Na tradio da tica humanista", diz ele, "predomina a opinio de que o conhecimento do homem a base para o estabelecimento de normas e valores" (1947, p. 31). "Normas e valo-res", aqui, referem-se questo do caminho, por onde vamos, que a questo do sentido. Na tradio humanista essa questo se responde a partir de um conheci-mento do homem. E Fromm continua: "Os tratados de tica de Arist6teles, Spino-za e Dewey ( ... ) so por isso, ao mesmo tempo, tratados de Psicologia" (Id. ibid.). O equacionamento e o encaminhamento desses problemas so ao mesmo tempo tica e psicologia. tica, porque seu contexto a questo do sentido, do por-on-de-vamos; e psicologia, porque para isso nos debruamos sobre o homem buscan-do um conhecimento de sua natureza. Um pouco antes, Erich Fromm havia dito: "Na tica humanista o bem a af"mnao da vida, o desenvolvimento das capaci-dades do homem. A virtude consiste em assumir-se a responsabilidade por sua prpria existncia. O mal constitui a mutilao das capacidades do homem; o vcio reside na irresponsabilidade perante si mesmo" (ld. ibid. p. 27-8). Rogers e Mas-

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  • low aproximam-se bastante de semelhantes colocaes. No fundo existe uma cren-a no homem, uma confiana no que nele se manifesta. A expresso te6rica disso a tendncia atualizante de Rogers, ou o conceito de auto-atualizao de Maslow.

    O que est na raiz do humanismo no , pois, apenas um postulado te6rico, ou uma hip6tese, mas uma atitude concreta em favor do homem. Isso mais funda-mental que as teorias que a partir da se constr6em. Teorias diferentes sobre o ho-mem podem ser consideradas humanistas. O que as une no tanto que todas acei-tem determinadas afIrmaes, mas uma atitude. Por isso Fromm fala de uma tra-dio tica: h valores envolvidos, mais que afrrmaes abstratas. H posiciona-mentos e compromissos, e no apenas teses cognitivas. (Isso no quer dizer, cla-ro, que esses posicionamentos devam ser ingnuos: existe toda uma elaborao crtica posterior que tende a confIrm-los, e isso no pr6prio Erich Fromm). 3. Andr Amar, numa viso de conjunto da hist6ria da psicologia publicada num dicionrio de psicologia francs, situa quatro momentos dessa hist6ria. O da psi-cologia humanista, que, na sua considerao, o que vem da Idade Mdia ou mesmo da Antiguidade grega, e vai at o comeo da psicologia cientfica; caracte-riza-se basicamente por um posicionamento tico, isto , por uma no-dissociao entre uma pesquisa objetiva, digamos, e um posicionamento de valores: a psico-logia brotando do contexto de uma tica, de uma viso do sentido da existncia. O segundo momento o da psicologia cientlfica onde exatamente se d essa ruptura entre a objetividade cientfica e a tica. Ele situa, depois, como terceiro e quarto momentos, a psicanlise e a psicologia fenomenolgica, e neste ltimo, princi-palmente, comeam a reaparecer coisas do primeiro momento. curioso notar que esse autor, sendo europeu, no fala da psicologia humanista tal como esse concei-to aparece nos Estados Unidos, como algo bem especfico, mais do que no sentido de Erich Fromm, inclusive. Sua classificao sugere tambm que alm de um po-sicionamento tico indissocivel, uma psicologia humanista implicaria uma crtica atitude cientfica. Retomaremos a esse ponto.

    Vemos que esses trs sentidos de humanismo convergem em seu denominador comum, apontam para um mesmo ponto, tm o mesmo "sentido". 4. Mas concentremo-nos agora, ento, na psicologia humanista no sentido restrito e contemporneo do termo. E aqui dois livros que se tomaram clssicos, por exemplo: Psicologia existencial humanista, de Thomas Greening, e A psicologia do ser, de Abraham Maslow - e o tempo e a dcada de 60 nos Estados Unidos. Tempo de guerra do Vietn; crise moral, de valores. O pas envolvido por uma guerra considerada absurda pelo povo americano. E esse questionamento no era apenas te6rico: teve inumerveis manifestaes pessoais e coletivas, as quais cer-tamente tiveram uma importncia para a retirada das tropas americanas do Vietn. Tudo isso representou um grande questionamento coletivo do sentido da presena americana no mundo. Uma crise tica.

    Esta psicologia humanista surgiu como uma reao, a partir da insatisfao sen-tida face aos dois conjuntos te6ricos mais importantes em psicologia: o behavio-rismo e a psicanlise; bem como face a uma descrena nas possibilidades da filo-sofia. No se tratava de negar as descobertas feitas no behaviorismo e na psican-lise, mas de um sentimento de que eles, permanecendo em suas perspectivas origi-nais, no traziam as respostas de que se precisava: o ser humano com seus ques-tionamentos atuais no estava l, por mais vlidas que fossem as explicaes a dadas. Poderamos dizer que essa psicologia, permanecendo nos quadros de sua ortodoxia, podia nos dizer como treinar um soldado, ou porque um soldado ficava perturbado voltando da guerra, mas no era esse o problema do povo americano.

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  • o problema era qual o sentido da guerra, e qual o sentido da vida e da morte (ou da minha vida e morte, ou de meu filho ou de meu marido). E aqi a psicologia tradicional no ajudava muito. E tudo isso era urgente: os jovens estavam morren-do, e o holocausto j estava no horizonte. Quanto filosofia, para Maslow pelo menos, ela aparecia como um conjunto de palavras apenas, sem nada de mais con-creto.

    A designao de psicologia humanista no se refere, pois, a uma teoria espec-fica, ou mesmo a uma escola, mas sim ao lugar comum onde se encontram (ainda que com pensamentos diferentes) todos aqueles psic610gos insatisfeitos com a viso de homem implcita nas psicologias oficiais disponveis. A meu ver ela re-presenta um encontro das motivaes dos psic610gos com a tradio humanista, face s exigncias de nosso tempo. O rotulo especfico de psicologia humanista apenas um episdio, diria momentneo, de algo que tem um sentido maior.

    Penso que posso colocar esse sentido maior da psicologia humanista em quatro pontos: 1. A primeira parte do livro de Maslow tem por ttulo exatamente Uma jurisdio mais ampla para a psicologia, e os dois captulos que compem essa parte so: Pa-ra uma psicologia da sade, e O que a psicologia pode aprender com os existen-cialistas. Trata-se no fundo de admitir que a psicologia possa trabalhar a questo dos fins, da sade, da auto-atualizao, e no apenas dos meios, da doena ou do ajustamento mnimo. Mas isso tudo a questo do "para onde vamos". A psicolo-gia no pode ser apenas um conjunto de conhecimentos tcnicos a servio de qualquer fmalidade; enquanto se pronuncia sobre o caminho que ela cincia do homem, ou melhor, enquanto toma para si tambm essa questo que ela se faz afinal uma cincia do homem, e no antes.

    Isso tem a ver com a neutralidade tica da cincia como alguma coisa a ser re-dimensionada (e acredito que essa questo no se aplique apenas s cincias hu-manas). A cincia s6 eticamente neutra formalmente, abstratamente. O ato cientfico concreto nunca neutro: ele se insere num contexto de sentido e serve a alguma direo do caminhar humano. Para nos convencermos disso, basta que consideremos os critrios de financiamento de pesquisa. Mas essa no-neutralidade vai mais longe e toca na prpria questo do alcance do saber: aquilo que eu vejo depende do ponto de vista a partir do qual me coloco para olhar. s6 dentro de um posicionamento de compromisso com o ser humano como um todo (coisa que no nada abstrata, mas carreia at posies polticas) que meus olhos se abrem para determinados aspectos do ser humano, ou que me disponho a pesquisar de-terminados problemas e de um determinado modo. 2. Husserl foi um dos que iniciou um questionamento da aplicao do mtodo cientfico realidade humana. No se nega a validade das concluses. Mas se dis-cute o alcance delas. Aquilo que elas afirmam caracteriza o ser humano? Para Husserl, a originalidade da conscincia fica fora do alcance do mtodo das cin-cias naturais exatamente por sua realidade intencional (que s6 captada atravs da questo do sentido).

    A atitude cientfica defme um tipo de relao (a relao objetificante) que no capta a pessoa atual mas apenas o ser humano como resultado. Para Buber, o cen-tro da pessoa s6 se revela no ato da relao. As afirmaes cientficas podem ser verdadeiras mas no caracterizam aquilo que especificamente humano.

    A maneira como costuma ser tratado o processo de comunicao dentro de uma abordagem cientfica seria um exemplo interessante. O processo pode ser dividido em seis momentos: 1. O da mensagem intencional a ser comunicada. 2. O da codi-

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  • ficao dessa mensagem. 3. A comunicao ou expresso propriamente dita. 4. A recepo da comunicao atravs das janelas sensoriais. 5. A decodificao a n-vel central. 6. A compreenso da mensagem. Tenho seis coisas diferentes e bem especficas (e um distrbio de comunicao pode ser situado em um desses seis estgios da comunicao). Por mais til que possa ser tal esquema, em termos de compreenso do que vem a ser a con:unicao ou mesmo o ato expressivo, nada de mais falso do que esse retrato. Para no falar seno de um aspecto, a pr6pria mensagem depende dos passos seguintes, neles se transforma, no est plenamente constituda independentemente deles. Ela s6 se torna o que quando j no mais pura mensagem intencional (mas j comunicao, por exemplo). A cincia tradi-cional no tem como lidar com isso.

    Um outro exemplo o do gesto significativo: o dedo que aponta para a lua, por exemplo. "Idiota aquele que, quando aponta para a Lua, olha para o meu dedo". A essncia do meu gesto s6 dada fora dele. Olhando para o dedo, por mais que o analise e disseque "cientificamente", no chegarei Lua, e portanto, nem mesmo realidade de minha mo como gesto, como presena. Ora, o homem essencial-mente um gesto, em sua presena, ou em sua existncia. Ele um atribuidor de sentido, e assim que ele constitui um mundo, e se constitui a si mesmo nesse mundo, ou nessa relao com ele. Se separarmos as coisas, compartimentalizan-do-as, no mais veremos a realidade significativa, o atual, o presente (Nada mliis diferente de um movimento que um retrato; nada mais diferente de um ser vivo que um cadver).

    A diferena entre a pesquisa objetiva e a participante tambm ilustra a mesma questo. No se trata apenas de uma diferena de mtodo para se conseguir o mesmo resultado. O saber produzido concretamente outro, o assunto pesquisado outro, o possuidor do saber outro. Trata-se de uma diferena na forma de con-ceber a relao humana e o conhecimento. 3. Gosto de entender a atitude fenomeno16gica por comparao com a atitude ingnua e a crtica. Segundo a atitude ingnua, existe um mundo independente, constitudo por si mesmo, e como tal cognoscvel (e Maslow fica ainda nessa ati-tude, ao que me parece; o preo que ele paga por no ter sido um pouco mais fU.6sofo). J na atitude crtica, sabemos que o que percebemos desse mundo de-pende de nossos referenciais. Costuma-se referir a Kant, com sua crtica ao co-nhecimento, para o nascimento mais forte dessa atitude; preciso relativizar o co-nhecimento e estudar os referenciais atravs dos quais ele se d. Creio que a atitu-de fenomeno16gica vai alm da crtica, e eu a formularia assim: s6 na interao que teremos o verdadeiro conhecimento. O conhecimento compe a interao com o mundo, um aspecto dela (Uma interao sem conhecimento pobre ou de um nvel diferente; e um conhecimento sem interao tambm pobre e de um nvel inferior, e ilude se no nos dermos conta disso). A psicologia humanista aponta para uma atitude fenomeno16gica. 4. s6 nessa postura totalmente diferente que se revela o homem no que ele tem de pr6prio. Aquilo que se revela a uma totalidade em movimento, uma criativi-dade, e no completamente isolvel de totalidades mais abrangentes. O homem como pessoa atual o homem como palavra, isto , como abertura para algo outro, onde corpo e alma so indissociveis (no podendo ser compreendidos um sem o outro); ato e no resultado (isto , existe na interao com o mundo e com os ou-tros homens); busca de sentido, atribuio e comunicao de sentido, criao de mais sentido. No fundo, a meu ver, o sentido da Psicologia Humanista uma sau-dade do homem atual.

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  • Abstract

    A distinction must be made between the study of the man as a result and as a pre-sence in bis actuality or creative meaning processo lhe most common uses of the label humanistic point to the importance of making such a distinction. A meaning for the humanistic psychology is here discribed in terms of 1. The search for a more encompassing context to Psychology. 2. lhe discussion about the limit of the scientific method. 3. A phenomenological attitude. 4. lhe consideration of the person as a dynamic whole.

    Bibliografia sumria

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