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1 Psicologia Jurídica Introdução A iniciativa de publicação de um livro jurídico centrado nas denominadas disciplinas propedêuticas possui inestimável importância. Entre tantos motivos, alguns merecem destaque. O primeiro, de cunho epistemológico, permite uma discussão da Ciência Jurídica para além das vaidades. Sim, a ciência é permeada por vaidades. Muitas vezes, no afã de valorização pessoal, a discussão científica restringe-se à superficialidade, em uma luta periférica de conteúdo, com o escopo tão-só de valorizar a área de conhecimento escolhida pelos que se pretendem cientistas. Assim, defende- se aguerridamente a autonomia do Direito, mas só pelo status de ser autônomo, sem o rigor necessário a uma compreensão total do fenômeno jurídico e sua real atuação no campo social. No mundo moderno, com particular importância nas ciências sociais, torna-se muito difícil explicar a vida a partir de uma única área de conhecimento. Por isto, a interdisciplinaridade, ou seja, o estudo de um objeto a partir de várias disciplinas ou conhecimentos, não de forma estanque, mas permeada, se apresenta como a melhor e mais rigorosa forma de se estudarem e se compreenderem os fenômenos humanos, aí incluídos, por certo, os jurídicos. Cada ramo da ciência oferece à sociedade uma série de promessas, e todo o discurso epistemológico é construído para comprovar a capacidade científica de cumpri-las. O Direito promete Justiça, segurança, garantir a paz social, regular a sociedade e outras coisas mais. Qualquer estudo empírico do cotidiano demonstra

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Psicologia Jurídica

Introdução

A iniciativa de publicação de um livro jurídico centrado nas denominadas

disciplinas propedêuticas possui inestimável importância. Entre tantos motivos, alguns

merecem destaque.

O primeiro, de cunho epistemológico, permite uma discussão da Ciência

Jurídica para além das vaidades. Sim, a ciência é permeada por vaidades. Muitas

vezes, no afã de valorização pessoal, a discussão científica restringe-se à

superficialidade, em uma luta periférica de conteúdo, com o escopo tão-só de valorizar

a área de conhecimento escolhida pelos que se pretendem cientistas. Assim, defende-

se aguerridamente a autonomia do Direito, mas só pelo status de ser autônomo, sem o

rigor necessário a uma compreensão total do fenômeno jurídico e sua real atuação no

campo social.

No mundo moderno, com particular importância nas ciências sociais,

torna-se muito difícil explicar a vida a partir de uma única área de conhecimento. Por

isto, a interdisciplinaridade, ou seja, o estudo de um objeto a partir de várias disciplinas

ou conhecimentos, não de forma estanque, mas permeada, se apresenta como a

melhor e mais rigorosa forma de se estudarem e se compreenderem os fenômenos

humanos, aí incluídos, por certo, os jurídicos.

Cada ramo da ciência oferece à sociedade uma série de promessas, e

todo o discurso epistemológico é construído para comprovar a capacidade científica de

cumpri-las. O Direito promete Justiça, segurança, garantir a paz social, regular a

sociedade e outras coisas mais. Qualquer estudo empírico do cotidiano demonstra

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injustiças, conflitos, guerras e desregulamentação. Mesmo diante desses paradoxos, o

Direito insiste em sua autonomia (sustentada pela dogmática jurídica) e mantém as

promessas descumpridas. A compreensão deste fenômeno exige não só uma reflexão

crítica, mas, necessariamente, uma análise para além do jurídico, consubstanciada em

vários saberes, como o filosófico, o sociológico, o econômico, o histórico, o

antropológico, o político, o metodológico, o literário e, também, o psicológico.

O segundo motivo é de cunho ideológico. A ideologia jurídica construiu a

certeza (muito tênue) de que o Direito tem capacidade de, por si só, regular

satisfatoriamente a sociedade, a partir de sua técnica. Dentro desta premissa, surgem

os juristas dogmáticos, com suas psicodélicas teorias (penais, civis, processuais, etc),

a falar de um mundo irreal, totalmente distanciado do dia-a-dia das pessoas. O mundo

jurídico desconecta do mundo concreto. E a autonomia do Direito, de fato, o torna uma

realidade à parte ou, quando menos, tão-só a regulamentação de determinada

estrutura de poder. Mas o manto ideológico obscurece esta verdade, enaltecendo

ideais, símbolos, valores, desejos e, com isto, produz a cegueira sobre os fatos da

vida, gerando também a tiflose epistemológica.

A leitura dos manuais jurídicos evidencia rapidamente a superficialidade

de seus conteúdos, quando se trata de compreender as complexidades da vida social.

Mas não só a produção doutrinária jurídica mantém-se distanciada dos fatos concretos

do cotidiano. Esta prática estende-se à jurisprudência e, sobremaneira, às atitudes

pessoais dos juristas. Olhem-se os corredores dos Palácios de Justiça, escutem-se as

falas dos magistrados, promotores de justiça, advogados e demais operadores do

Direito, analisem-se os resultados da prestação jurisdicional, e, com raciocínio crítico,

compare-se tudo com a vida da população, e o paradoxo se evidencia.

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Os estudantes de graduação, as maiores vítimas desta alienação, soem

reclamar, nos primeiros anos de curso, que perdem tempo estudando disciplinas não

relacionadas com o Direito. Exatamente, as disciplinas propedêuticas. Não sabem eles

que são justamente elas as únicas com capacidade de lhes permitir uma compreensão

global (holística, para usar um termo em moda) não só do fenômeno jurídico, mas da

vida social como um todo, quando, então, a técnica jurídica passa a ter algum sentido.

Estes conhecimentos para além do Direito podem torná-los grandes juristas.

Para tentar seduzir os leitores, a redação deste texto abandonará o estilo

acadêmico, típico das dissertações de mestrado e teses de doutorado, com suas

cansativas notas e transcrições, mas isto não significa o relaxamento no rigor científico

e na seriedade dos argumentos. Por certo, não poderá transitar pelas profundidades

do tema, restringindo-se seu objeto a demonstrar a importância da psicologia jurídica

para a Ciência do Direito.

Como esclarecimento introdutório, é de ser frisado que o título psicologia

jurídica, utilizado normalmente para nominar esta disciplina propedêutica, não é de

todo correto. Isto porque, apesar do termo psicologia ser usado em sentido amplo, não

se pode olvidar existir diferenças concretas entre os conceitos de psicologia, psiquiatria

e psicanálise, todos envolvidos na disciplina. Estas três áreas do conhecimento têm

como objeto a psique humana, mas as abordagens sobre o mesmo objeto são

bastante diferentes.

De forma perfunctória, pode-se dizer que psiquiatria pertence ao

conhecimento médico, embute o conceito de doença para os conflitos anímicos e

utiliza, quase sempre, medicação química no tratamento. Já a psicologia e a

psicanálise não são conhecimentos da área médica e tampouco utilizam medicação no

tratamento. Estas diferem na concepção ontológica do sujeito, pois a psicologia

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mantém-se dentro dos parâmetros da racionalidade e as psicoterapias pretendem

atuar no consciente dos pacientes, enquanto que a psicanálise (Freud, que era

médico, separou-a da medicina, dando início a uma nova área do conhecimento, que,

inclusive, permitiu o nascimento posterior da própria psicologia como ciência

autônoma) trabalha a partir de uma crítica à racionalidade humana, realçando a

irracionalidade inconsciente como determinante de grande parte das ações do sujeito,

aí se incluindo as neuroses e outros conflitos psíquicos. O tratamento dá-se em

análise, quando se trabalha o inconsciente.

Este estudo é elaborado com fundamento no marco teórico psicanalítico.

1. Autonomia do Direito

Antes de adentrar nos temas da mente humana, torna-se necessário

explicitar como o Direito se apresenta à sociedade. Isto é crucial para permitir apontar

suas contradições e, principalmente, sua falha em negligenciar a importância da

subjetividade (entendida como as questões particulares de cada indivíduo, unilaterais

na formação de seu juízo, não concernentes diretamente à consciência, mas

fundamentais na determinação do seu pensamento e das suas ações) humana em

todos os momentos jurídicos. Tanto na elaboração da norma (no caso dos sistemas

jurídicos romano/germânico), como na sua interpretação (doutrinária e jurisprudencial),

bem como na elaboração da verdade jurídica, através do processo (destacando-se a

coleta das provas) fatores subjetivos, não considerados pelo Direito dogmático, são

fundamentais. Ou seja, não há legiferação, interpretação ou produção de prova sem

interferência axiológica, e os valores são subjetivos e, no mais das vezes,

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inconscientes. Estas afirmações serão defendidas mais adiante, depois de ficar

demonstrada a estrutura jurídica de nosso tempo.

A partir de todas as transformações no mundo social (e mental)

produzidas pelo iluminismo (sendo historicamente emblemática a Revolução

Francesa), saindo deus da posição de grande legitimador do poder e ingressando em

seu lugar a racionalidade e o governo de leis e não, de homens, o Direito passou a ter

uma destacada função na regulamentação da vida comunitária (hoje está sendo

substituído, cada vez mais, pela lex mercatoria, ou lei o mercado). E esta função deu-

se a partir dos pressupostos a seguir.

Sendo o ser humano portador de racionalidade, possui capacidade de

chegar à verdade a partir dela, bem como de estruturar a sociedade de forma

harmoniosa, direcionada à paz e ao progresso. Quer dizer, a estrutura social passou a

ser entendida como uma estrutura geral sem conflito, sedimentada na razão.

Entretanto, apesar da harmonia estrutural (macro), no seio da comunidade poderiam

surgir microconflitos, com capacidade de perturbar a ordem geral. Portanto, resolvidos

esses microconflitos, restabelecer-se-ia o todo ordenado e simétrico.

Com base nesta concepção de sociedade, o Direito foi construído com a

função precípua de resolver exatamente estes conflitos individualizados, ou setoriais.

Não se pode esquecer que o Estado absolutista foi substituído pelo estado mínimo,

não intervencionista, com base capitalista, liberal e utilitária, o que retira do Direito a

função de promover o bem-estar social. Sendo assim, as normas jurídicas eram

elaboradas visando a dar solução aos possíveis conflitos entre partes (uma pessoa ou

várias, não importa), pois na sociedade como um todo, a sua ordem era estrutural,

mantida pela razão humana.

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Se a ordem e a harmonia eram a regra, as exceções (microconflitos)

seriam resolvidas pelo Direito e este necessitava de uma estrutura jurídica capaz de

dar suporte à efetivação desta função e garanti-la. Esta estrutura, então, foi montada a

partir das normas jurídicas (independentemente do sistema jurídico ou o tipo de fonte

do Direito) e da criação de uma hierarquia jurídico-funcional, ou seja, de funcionários

aptos ao exercício da função de julgar, ou de uma hierarquia de tribunais (da mais alta

corte ao juiz comum). Mas esses funcionários especializados não poderiam ser

qualquer pessoa, mas, sim, técnicos em Direito.

Mas onde estes técnicos seriam formados? Nas universidades, ou

faculdades de Direito, por óbvio. Nestas, os estudantes receberiam o devido

conhecimento dogmático, aprenderiam a Ciência Jurídica, seu método racional, formal,

técnico, dedutivo, e se tornariam eficientes operadores jurídicos. Desde o início, com a

elaboração das normas, passando pela construção da verdade jurídica por intermédio

do processo, e chegando ao julgamento, tudo se passa, segundo a dogmática jurídica,

sob o manto da racionalidade, da neutralidade e do apolitismo. Como se verá, nada

mais falaz.

Assim o círculo jurídico social estava fechado. Parte-se da ordem ou

harmonia geral. Esta pode ser abalada por pequenos conflitos entre partes. Estes são

resolvidos pelo Direito, por intermédio de seus tribunais e funcionários técnicos,

formados nas universidades. Decididos estes microconflitos, restará restabelecida ou

mantida a paz geral.

Ainda hoje, com raras exceções (quase todas em nível de pós-

graduação), as universidades ainda se prestam a este serviço: formar técnicos

especializados na resolução de microconflitos. Não é sem motivo que os currículos

escolares são massificados com disciplinas de direito privado e processual, sem

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qualquer relação com os grandes conflitos das sociedades contemporâneas, como

também não é sem motivo que os manuais dedicam inúmeras páginas para explicar

como se resolve uma demanda quando um fruto de uma árvore situada no limítrofe de

dois imóveis cai no terreno vizinho, enquanto a mortandade no campo campeia e a

disputa pela terra assume macroproporções de conflito armado.

Toda esta construção possui muitas bases falsas. A premissa maior da

racionalidade humana é tema a ser posto em debate pela psicanálise. Também a idéia

de técnica (em sentido geral) capaz de julgar objetivamente pode ser atacada a partir

desta disciplina propedêutica. Outras desconstruções podem ser feitas, a partir, por

ilustração, da sociologia, da filosofia, da política e da economia, em relação à pretensa

ordem e harmonia geral da sociedade (principalmente após toda a crítica marxista), só

perturbada por microconflitos. Parece evidente, inclusive com perspectivas de

comprovação empírica, existirem conflitos estruturais em qualquer sociedade, não só

os clássicos de classe, mas outros, como de gênero e de culturas. E só isto já é

suficiente para colocar em entredito toda a racionalização jurídica. Como estes temas

não pertencem à disciplina objeto deste estudo, ficarão apenas registrados.

Um ponto importante a ser analisado adiante se refere à visão ontológica,

à concepção sobre o ser, que dá base à Ciência Jurídica. A partir disto, estudar-se-á,

interdisciplinarmente, todas as questões subjetivas (inconscientes, diria a psicanálise)

que permeiam o Direito, em todos os seus momentos. Isto remete a análise jurídica a

sua devida complexidade, permitindo ao estudioso afastar-se das construções

fantasmagóricas sobre a vida e as instituições jurídicas, capacitando-o a uma

compreensão profunda sobre os fenômenos da regulação social, inclusive tendo

presente qual o lugar ocupado pelo Direito na mente humana, como sistema regulador

repressivo.

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2. Visão ontológica

Ter uma compreensão ontológica é necessário, entre outros tantos

fatores, por uma razão muito simples: toda e qualquer teoria, mesmo elaborada com

requintes de perfeição, não vale por si só, pois depende de um ser humano (ou vários)

tanto para sua elaboração como para sua implementação ou consumação. Teorias

aparentemente perfeitas sobre uma sociedade digna e democrática simplesmente não

dão certo, porque as pessoas encarregadas de colocá-las na prática agem com base

em seus desejos (pulsões em linguagem psicanalítica) e não, em consonância com as

elaborações teóricas. Pense-se na teoria marxista, de uma sociedade sem estado,

igualitária, sem classe social, sem repressão oficializada, e os fatos históricos

acontecidos em todos os países ditos comunistas. Edificaram-se tiranias pessoais,

com base nos desejos pessoais dos ditadores, e não a sonhada sociedade natural de

plena paz e harmonia.

Portanto, a primeira função de uma disciplina propedêutica de psicologia

jurídica é investigar rigorosamente, e não, idealmente, o que é o ser humano. E este é

um ponto difícil, pois esbarra em dois poderosos fatores ideológicos: a) o religioso,

para o qual o homem foi feito “à imagem e semelhança de deus”, portanto bom; e b) o

político/filosófico, que afirma a racionalidade do ser humano, por conseguinte, sua

capacidade de chegar à verdade e agir, construir seu mundo, através da razão. Por

mais que os fatos históricos empíricos demonstrem o contrário, isto não impede que

milhões de pessoas ajam (aparentemente, ou melhor, no discurso) a partir destas

crenças e até influenciem boa parte da epistemologia científica.

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A psicanálise possui uma visão diversa. A compreensão do ser humano

parte de um pressuposto evolutivo, tendo início nos primórdios da humanidade,

quando nossos ancestrais viviam em hordas, grupos fora da cultura ou da civilização. E

aqui cabe uma reflexão. Normalmente costuma-se pensar a história (talvez por

influência do relato bíblico), em tese, a partir de cem mil anos antes de Cristo, quando

se constituiu o Homo sapiens sapiens. Entretanto, nossos ancestrais já habitavam este

planeta desde o período plioceno (vai de 5 milhões a 2 milhões de anos atrás). Dando

a devida amplitude histórica ao desenvolvimento do ser humano, fica muito mais fácil

compreender (ou aceitar), como se verá, momentos históricos (passaram-se mais de 3

milhões de anos até a atualidade) sem Direito e sem Estado. Naquela época as ações

de homens e mulheres não obedeciam a qualquer interdito (ou proibições) criado por

qualquer tipo de norma (jurídica, moral, religiosa, etc.). O agir dava-se a partir das

necessidades e dos instintos, e só a força da natureza ou a força bruta de outro

ancestral se opunham à saciação dos desejos. Frente à inexistência de conceitos

como respeito, crime, vontade alheia e tantos outros, a vida comunitária ou social não

existia, salvo o agrupamento por absoluta necessidade de sobrevivência (a vida

individual, fora da horda, significava morte, por incapacidade de sobrevivência diante

das agressões da natureza ainda não dominada).

Aqui talvez exista um erro de interpretação marxista, ao julgar o estado de

natureza, período sem Estado e sem Direito, como um momento histórico no qual

reinava a harmonia e a solidariedade. Estudos antropológicos demonstram o contrário,

ou seja, a existência de profunda violência nesta fase histórica, com vida em conjunto,

mas por necessidade de sobrevivência, como já dito, e não por princípios éticos ou de

solidariedade.

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As hordas eram ajuntamentos de pessoas que, necessariamente, viviam

de forma nômade, em decorrência da escassez de alimentos. A vida em conjunto (não

é correto ainda usar o termo social ou comunitária) restringia-se à sobrevivência, ou

seja, dormir, comer e se reproduzir. Esta singeleza, ou falta de complexidade, permitia

a sobrevivência sem normas, salvo as regras (ou fenômenos) da natureza do tipo:

colocar a mão no fogo, queimar-se; pular de um precipício, morrer; entrar em um rio

profundo, afogar-se, etc. E estas regras não necessitam de qualquer autoridade para

serem cumpridas.

A própria comida, que para uns era repartida de maneira amigável, era,

provavelmente, usufruída primeiro pelo líder, o mais forte e capaz de defender o grupo,

seguindo-se os demais -- há fortes indícios neste sentido. Líder, aliás, escolhido não

por qualquer convenção política cultural, mas pela natureza da força na defesa da

horda.

A idéia de individual representava a morte, pois a sobrevivência só era

garantida pela união. No curso do tempo e pela capacidade psíquica do ser humano,

algumas aprendizagens foram sendo incorporadas à vida grupal, como a manipulação

do fogo, os rudimentos da agricultura e a domesticação de animais. Estes primeiros

atos cognitivos deram início à cultura, ou seja, à criação humana para além da

natureza, e permitiram a fixação da horda em determinado ambiente, pois se aprendeu

a aquisição de comida prévia, ademais da caça e da coleta, suprindo-se as

necessidades nutricionais para mais de um dia. Até então, tinha-se alimento para o

momento.

Estas pequenas descobertas foram suficientes para proporcionar uma

grande evolução na vida de nossa espécie. A abundância de comida permitiu a fixação

das hordas. Mesmo em momentos de falta de alimentos em decorrência do tempo, o

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plantio e a domesticação de animais permitia a alimentação mínima à sobrevivência.

Uma vez abandonada a vida nômade, o dia-a-dia destas pessoas foi acrescentado de

outras atividades, tornando a vida em grupo um pouco mais complexa. Uma coisa é

viver andando diariamente atrás de comida, sem proteção adequada, reproduzindo-se

em plena locomoção nômade. E outra é estar fixado em um lugar, com comida

suficiente e, em corolário, em condições de melhorar o ambiente de vida, em uma

caverna, por exemplo, quando poderia proteger-se das intempéries da natureza e das

agressões de outros animais.

Esses avatares no cotidiano levaram a uma outra grande transformação:

tempo livre. Garantida a nutrição, melhor defendidos das agressões da natureza,

nossos ancestrais começaram a ter tempo livre durante o dia, ou à noite, para colocar

a funcionar algo que nos diferencia dos demais animais: a mente. E, neste momento,

aparece algo que talvez vá marcar a humanidade para sempre: as diferenças entre as

pessoas. Cada um passou a desenvolver suas habilidades pessoais, produzir bens.

Até então, o contato ser/natureza dava-se de forma direta, ou seja, as mãos em

contato imediato com a natureza. Mas a psique humana permitiu o aperfeiçoamento de

determinados objetos (osso transformado em foice ou porrete, por ilustração) que

passaram a intermediar sua relação com a natureza (hoje, como já demonstrou a

antropologia, alguns primatas já o fazem -- talvez o façam há muitas eras --, usando

pedras para quebrar coquinhos, ou uma pequena vareta para caçar pequenos animais,

como formigas). São os modernamente denominados meios de produção.

Muitas vezes torna-se difícil compreender esta longa evolução de nossa

espécie, porque o atual conhecimento cultural acumulado não nos permite o devido

distanciamento que enseje a compreensão do mundo de nossos antepassados. Há de

ser imaginada a existência praticamente sem conhecimento, incluindo os mais

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rudimentares, como o uso da roda, do fogo e, até mesmo, o desconhecimento da

participação masculina na procriação. Isso sem falar na chuva, trovões, enchentes e

demais fenômenos naturais, todos sem explicação.

O importante a ser frisado no âmbito deste trabalho é um fator que vem

acontecendo ainda hoje, sendo ele crucial para as ciências jurídica e psicológica. Cada

descoberta humana torna a vida social mais complexa, produzindo efeitos no

comportamento anímico e, em conseqüência, tornando necessária a produção de

normas regulamentadoras. Basta pensar na descoberta da internet e a necessidade de

normatização que ela implicou.

A nova forma de vida pré-civilizacional, ademais de melhorar a qualidade

de vida: alimentação, defesa, rudimentos de saneamento, queda da tacha de

mortalidade infantil, em especial no parto, crescimento populacional acelerado1, criou

outro fator decisivo para a história da humanidade: a possibilidade do individual. Até

então o isolamento significava morte (o degredo, até pouco tempo, era uma pena

severa). A partir destas evoluções, o indivíduo já poderia pensar em viver só e, muito

importante, teve condições em pensar no é meu, quer dizer, na propriedade privada.

A somatória de todos estes fatores: agricultura, domesticação de animais,

produção de bens e conhecimento (lidar com o fogo, saber da participação masculina

1 Interessante o grado seguinte:

CRESCIMENTO POPULACIONAL NA PRÉ-HISTÓRIA

Anos a.C. Período Densidade por km2

População total

265000 Paleolítico inferior 0,00425 125.000

125000 Paleolítico médio 0,012 1.000.000

65000 Paleolítico superior 0,04 3.340.000

10000 Mesolítico 0,04 5.320.000

6000 Sedentarismo agrícola

Neolítico

1,0 86.500.000

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na procriação, etc.), criou, devido às complexidades advindas dos mesmos, uma nova

e decisiva necessidade para a vida em grupo: a criação de normas culturais. Existem

muitas teorias tentando explicar este fenômeno, não sendo possível repassar todas. O

texto será fiel ao marco teórico antes indicado.

Antes de adentrar neste tema particular, torna-se necessário realizar uma

importante diferenciação entre o natural e o cultural. Isto é importante, pois como as

palavras aceitam qualquer conceito, muitas vezes idéias importantes podem ser

confundidas. É o que os jusnaturalistas soem fazer. Acima foi afirmado que nossos

ancestrais viviam sem Direito e sem Estado. Para muitos, isto é uma heresia. Como

disse, as palavras aceitam qualquer coisa. Há quem defenda a existência do Direito

antes mesmo do ser humano, vinculando-o a uma divindade qualquer. Trata-se de

uma questão ideológica e lingüística, nada mais.

Independente destas divergências sobre as formas de ver o mundo e

suas crenças, sob o ponto de vista acadêmico é bem plausível diferenciar as

prescrições naturais (Capella chama de regras, prefiro denominar de fenômenos) das

culturais (normas, para ambos). A vida primitiva era regrada pelos fenômenos naturais.

O líder se impunha pela força e capacidade de proteção coletiva. As ações e omissões

dos nossos primatas eram determinadas por estes fenômenos, cumpridos por pura

necessidade humana. Isto não é Estado e não é Direito. Estes, após produzirem suas

normas, necessitam de autoridade, de força ou violência monopolizada, para fazerem

cumpri-las.

Um exemplo pode aclarar esta complicada diferenciação. Pegue o leitor

(se não de fato, imaginariamente) um livro ou outro objeto (não quebrável, para evitar

acidente) e ponha-o na palma da mão, erguendo-o. Pois bem. Feito isto, retire a mão

rapidamente. O que acontecerá ou aconteceu, caso tenho o leitor participado desta

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experiência empírica? A resposta é única: o livro cai. E por que caiu? Também há uma

única resposta: por força da gravidade. A gravidade, conhecida como “Lei”, em

verdade não é Lei ou norma, é um fenômeno natural. O livro irá cair, independente de

qualquer ordem em contrário. De nada adianta chamar o exército americano, a maior

força organizada do planeta, para evitar que o livro caia, porque ele irá cair. A única

forma de evitar um fenômeno natural é modificar o ambiente natural, no caso, levar o

leitor e o livro para a Nasa e colocá-los em um câmara sem gravidade.

Ainda mantendo o exemplo do livro, pense o leitor em outra situação.

Parta da afirmação: “Este livro é meu”. Este novo fenômeno, a propriedade sobre o

livro, para ser obedecido, ou cumprido, necessita, ou não, de uma autoridade ou da

força pública organizada? Pode até que as pessoas respeitem a propriedade, mas a

verdade é que basta uma pessoa com maior força física desejar não a respeitar para

tornar necessária a presença da violência estatal, a fim de garantir este fenômeno, em

verdade, norma jurídica, ou seja, norma cultural. E o exército americano (não necessita

tanto) seria muito eficaz nesta tarefa, como, aliás, está sendo na invasão de países.

Fica, assim, bastante distinguidos os fenômenos naturais, que acontecem

independente da vontade humana ou de qualquer autoridade, dos fenômenos

culturais, ou seja, não dados pela natureza e construídos por vontade humana, os

quais necessitam, sim, de força legalizada para se fazerem cumprir, por mais que

sejam introjetados via ideologia.

Retornando à evolução histórica, torna-se inegável que, em determinado

momento, nossos antecipados começaram a criar normas para regulamentar a vida

social, pois os fenômenos naturais não mais davam conta de manter a vida em grupo,

frente às descobertas realizadas. Friedrich Engels defende a origem das normas para

garantir a transmissão da propriedade privada. Pode-se dizer que, em um só “golpe”,

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foi criada a instituição da propriedade privada; a instituição da família monogâmica,

para retirar a mulher do sexo grupal típico de uma sociedade matriarcal e, assim,

subordiná-la à exclusividade sexual de um homem, e, com isto, garantir o

conhecimento da paternidade; e, o Estado, para garantir a manutenção e respeito a

estas instituições, incluindo a transmissão hereditária da propriedade privada. Já Juan

Ramón Capella analisa a criação das normas para consumar a divisão social do

trabalho. Na organização social rudimentar dos ancestrais, o trabalho era dividido

naturalmente, em consonância com a capacidade de cada um. Mas, com a transcorrer

da história, e com os conhecimentos produzidos, criaram-se normas para dividir o

trabalho intelectual para poucos e o trabalho braçal, pesado, para muitos.

Postas estas duas teorias, assim, de forma absolutamente fragmentária e

superficial, só para constar (pois não são incompatíveis com a tese psicanalítica),

tentar-se-á esboçar as complexidades do pensamento antropológico de Freud, para

apresentar não só uma visão ontológica, mas também toda a relação do sujeito com os

interditos ou as prescrições (normas que lhe proíbem algo), o que permite uma análise

diacrônica e sincrônica entre o Direito e a Psicologia (termo sempre usado neste

trabalho em sentido amplo, como toda ciência dedicada ao estudo da psique humana).

Na horda regida por fenômenos naturais sempre se destacava a figura do

líder, o mais forte e mais apto para manter a segurança do grupo. Este, exatamente

por ter a força, impunha-se como tirano (parecem presentes reminiscências desta

realidade em tantos ditadores da história da humanidade, e mesmo ainda hoje),

subordinando a todos aos seus desejos, incluindo os sexuais. Este líder,

simbolicamente o Pai, tinha a exclusividade (ou preferência) das fêmeas,

simbolicamente as Mães. E os demais machos da espécie, submetidos ao tirano,

representavam a figura dos Filhos. Suplantando as naturais resistências, pode-se ver

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esta construção na família nuclear (monogâmica, hierárquica e repressora) burguesa.

Mesmo dentro da democracia, com as sempre presentes exceções (no nível simbólico,

imaginário, talvez não haja exceções), é o pai quem manda, o tirano, sendo o detentor

do monopólio da mãe, e quem determina aos filhos todas as interdições. Estes,

admitindo ou não, exatamente por terem no pai aquele que proíbe, possuem com ele

uma relação de amor e ódio.

Esta situação gerava conflito e forte desejo dos Filhos de possuírem as

Mães. Mas tinham no Pai o grande obstáculo. A partir desta construção, Freud defende

o parricídio como o marco inaugural da civilização ou da cultura, ou seja, a reunião dos

mais fracos (Filhos), para somarem força e poderem enfrentar o mais forte (Pai

tirânico), com o propósito de possuírem sexualmente as fêmeas (Mães exclusivas do

tirano). E esta união leva ao assassinato do Pai. Mas após a morte, diante da relação

de amor e ódio, surge o sentimento de culpa, o remordimento. Como conseqüência, a

consumação sexual da mãe é abandonada e, mais ainda, cria-se o tabu do incesto,

uma norma cultural (a natureza não impede, de qualquer forma, a relação sexual

incestuosa), ou seja, a primeira norma criada pelo ser humano, independente da

natureza.

Muito se critica esta teoria, tentando demonstrar a impossibilidade de

parricídios em massa, em uma determinada época da histórica. É claro, e o próprio

Freud admite, há muito de especulação nesta construção, mas a verdade é que, ainda

hoje, e não se precisa dos consultórios clínicos e dos divãs para se comprovar, há

muito destes sentimentos no nosso cotidiano. Cada leitor que pense em sua volta e em

todas as relações afetuosas que o envolvem, bem como a sua família. E ninguém

pode negar ser o incesto, de fato, um grande tabu (proibido, mesmo sem lei estatal).

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Independente da comprovação empírica desta tese, o concreto é que os

estudos históricos, antropológicos e arqueológicos demonstram que as instituições

sexuais foram as primeiras a serem estabelecidas, seguidas das instituições políticas e

econômicas.

A união dos mais fracos somou força e levou à derrota do mais forte. Mas

a dissolução desta união levaria ao retorno do tirano. Portanto a manutenção desta

união era condição necessária à manutenção da primeira ordem, ou relação social de

poder. Esta manutenção significa exatamente os primórdios do Estado e do Direito. Foi

ela quem deu origem à civilização e à cultura, a partir da primeira norma cultural

estabelecida. É claro que muito cedo esta união necessária à criação da vida social foi

apropriada por uns, para subordinar os demais.

Criada a primeira interdição, abriu-se a possibilidade da criação de muitas

outras, como a história demonstra. Mas desta troca, do primata animal regido pela

natureza, para o ser humano delimitado pela cultura, nasceu, nas palavras de Freud, o

mal-estar da civilização.

Na fase pré-civilizacional, nossos antepassados gozam seus desejos,

sem qualquer trava cultural. Para imaginar esta afirmação, basta olhar um grupo de

crianças atualmente, a partir, por exemplo, de um ano de idade. Juntas, sem a

intervenção dos adultos, cada uma irá tentar saciar todos os seus desejos, sem se

importar com as demais crianças, inclusive agredindo qualquer uma que tente impedir

o gozo. São movidas pelo princípio do prazer, quando só o gozo importa. A

participação dos adultos na manutenção da ordem, evitando as agressões, choros e

confusão geral, significa exatamente a intervenção da cultura. Papais e mães correm

para apartar as brigas, dizendo frases como (quando não mantendo a ordem pela

violência, igual ao Estado): “este brinquedo é do nenê”; “não chore, que o papai vai te

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comprar um depois”. Sob o ponto de vista psicanalítico, estas atitudes representam a

adequação das crianças à civilização, ou, em palavras mais científicas, a troca do

princípio do prazer pelo princípio da realidade, quando a criança aprende que nem

tudo é possível e que o gozo tem seus limites.

A adaptação ao princípio da realidade é a única forma de manter vida

social, pois ela exige valores como respeito, pois o outro necessita do seu lugar. E a

vida social proporciona vários benefícios como o sentimento de proteção (na vida

agregada) e de solidariedade. Mas tem seu preço. E o preço é exatamente abdicar dos

desejos anti-sociais. Aqui se estabelece um conflito inevitável, entre a renúncia dos

desejos animais e os benefícios da vida em sociedade. Este é o mal-estar, origem de

todas as neuroses.

E o sujeito, para refrear seus desejos anti-sociais (ou pulsões), deve estar

submetido a vários sistemas de interdição (ou repressão). Como dito acima, o primeiro

freio cultural foi o tabu do incesto. Este tabu é uma proibição externa ao indivíduo, ou

seja, uma norma construída fora dele, de caráter geral. Portanto, para a manutenção

do desejo de gozo absoluto, para o enquadramento do ser ao mundo compartido,

foram construídas, inicialmente, as normas proibitivas externas a ele, iniciando com o

tabu do incesto, ou até mesmo qualquer outra, não parecendo isto ter grande

importância.

Como o tema é demasiado complexo, é necessário lembrar, pelo menos

de passagem, que em toda esta evolução, e ao mesmo tempo em que ocorriam todas

as mudanças narradas, outras também aconteciam, como o nascimento do

pensamento religioso, ou a necessidade de se acreditar em vida antes e pós-morte.

Em determinado momento nossos ancestrais tomaram consciência da morte, do seu

fim. E isto deve ter-se dado diante do cadáver do ser amado. Ser este desaparecido,

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mas que voltava em sonho, estando, portanto, presente. Disto para a crendice, de vida

mesmo após a morte, foi só um passo de alívio.

Estes interditos externos, com o passar do tempo histórico, foram se

desdobrando. Na atualidade, pode-se falar de três grandes sistemas de prescrições

existentes fora do ser, de caráter geral. São os sistemas: jurídico, religioso e moral.

Para a psicanálise, estes sistemas externos, mesmo unidos, não são suficientes para

segurar as pulsões, as necessidades de gozo infinito, os desejos humanos, como mais

comumente se fala. Sempre tendo como fundo um processo histórico evolucionista

(não no sentido de qualquer série de movimentos desenvolvidos contínua e

regularmente, completando um ciclo harmonioso, mas, sim, no estrito sentido

darwiniano. Apesar de ser discutível qualquer idéia de evolução na psicanálise, pois o

sujeito do desejo de hoje é o mesmo de qualquer era civilizada), o ser humano,

submetido a um processo de introjeção, foi construindo em seu interior,

subjetivamente, um novo sistema de interditos. É por isto que cada um de nós possui

um severo código pessoal, interno, em sua psique, responsável maior por sua

adequação ao sistema social vigente.

Nesse ponto, todos os semestres, costumo fazer uma pesquisa entre os

alunos, em média quarenta alunos por classe, uma noturna ou diurna. Pergunto-lhes

quais são as normas que, de fato, verdadeiramente, determinam suas ações a cada

dia, desde o momento que acordam até que vão dormir. Quais normas indicam o

conceito de certo e de errado, de bom e de mal, e, a partir delas, eles delimitam suas

ações e omissões. Coloco no quadro negro os três sistemas externos de interditos. Os

resultados são impressionantes. Muito raro alguém indica o religioso. Um ou dois por

turma menciona o jurídico. Quase a unanimidade afirma ser o sistema moral o

responsável por seus atos. Aqui já aparece um grande ponto de contribuição da

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psicologia jurídica ao Direito: fazer ver a sua própria importância na delimitação da

conduta humana.

Cabe, aqui, uma rápida digressão. Em continuação, indago aos alunos se

eles costumam efetuar uma análise crítica sobre estas normas morais externas e

internalizadas nas profundezas psíquicas de cada um. Pergunto-lhes: Já pensaram

como elas foram constituídas? Como foram parar em suas mentes? Quem as colocou

aí? Por que e para quê? Será que, efetivamente, aquilo que pensam como certo, é

certo? E o errado é, de fato, errado? Estas normas os fazem felizes? Já pensaram em

mudá-las? Quase sempre o silêncio é a resposta. Cada leitor pense no seu caso.

Tendo sua própria concepção ontológica, a psicanálise entendeu a

estrutura psíquica humana a partir de três bases (não são órgãos autônomos), a saber:

ego, id e superego. O id é a parte “animal”, sendo inconsciente, não submetido à

cultura. O id não tem moral, não tem remordimento, apenas demanda, busca a

satisfação. O superego, ao contrário, é o código prescritivo de cada um, a

regulamentação subjetiva, construída a partir da cultura (aqui representada menos nas

instituições sociais e mais nas relações primárias com os progenitores). O ego é parte

do id transformada por influência direta do mundo exterior, nós em nossa vida. Foi

formado pelo sistema perceptivo-consciente, mas não se tornou pura consciência.

Submetido às demandas do id e as interdições do supergo, o ego sobrevive, quase

sempre (uns dizem sempre) recorrendo às neuroses, psicoses, ou seja, produzindo

sintomatologia.

Em conclusão, ontologicamente, para a psicanálise, o ser humano é um

animal submetido à cultura, formado por uma parte não civilizada, que demanda gozo,

mas obstruída (em certa parte) pelas prescrições externas e internas, o que lhe

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permite viver em sociedade, obtendo ganhos e perdas, motivo pelo qual vive em mal-

estar. Este ser, sujeito de desejo, convive com as normas jurídicas.

Uma questão fundamental é a relação entre o sujeito de desejo e o

sujeito do direito; é saber até que ponto as prescrições jurídicas, a partir da

subjetividade humana, são construídas, respeitadas, interpretadas e aplicadas; é

saber, afinal, para que e para quem serve o Direito e qual sua real capacidade de

regular a sociedade, interditar os desejos do id, mantendo a vida comunitária dentro

dos limites civilizadores.

3. As normas jurídicas

Fala-se de norma jurídica sem levar em consideração – pois, sob o ponto

de vista psicológico, isto não faz muita diferença – o sistema jurídico analisado

(Romano-germânico, Common Law, Muçulmano, Socialista, etc.), bem como as fontes

do direito (empirismo exegético francês, lei escrita; historicismo casuístico inglês,

jurisprudência; ou o racionalismo dogmático alemão, doutrina). A Lei, em sentido

psicanalítico, representa a força afetiva da prescrição, do proibido, não importando se

vem de um texto escrito, moral, religioso ou, até mesmo, simbólico. Mas como este

texto é produzido no Brasil, país submetido ao sistema Romano-germânico, tendo

como fonte do Direito a norma escrita, esta será a base da análise.

Partindo da teoria do Direito (e também do Estado) com sua base

racionalista, advoga-se a construção das leis através do Parlamento, órgão soberano e

com capacidade de legiferar com a razão, produzindo um arcabouço jurídico (a

legislação) no qual serão previstas todas as condutas necessárias (proibindo-se as

danosas) à manutenção do bem comum e do interesse geral da nação. Como este

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trabalho preocupa-se com o que é e não com o como se diz que é, não é de

surpreender a afirmação de ser uma grande falácia o acima afirmado. O fato é que o

parlamento funciona a partir de vários valores, incluindo o suborno em grande escala,

crenças religiosas, interesses capitalistas, corporativos, ideologias de todos os tipos,

etc. Por conseguinte, a contribuição da psicologia jurídica, neste particular, é

possibilitar a discussão sobre os porquês: por que se suborna, por que se proíbe uma

e não outra conduta, e assim por diante.

Isto tem importância porque retira o caráter racional do arcabouço

jurídico, demonstrando existir, mesmo na legislação escrita, vários ingredientes

irracionais, ou, no mínimo, bastante subjetivos. E isto interferirá na eficácia jurídica,

sem dúvida. Alguns exemplos podem ajudar esta argumentação. Pode-se partir do

incesto. Por que o incesto é proibido (considerado crime) em alguns países (Alemanha,

Suíça, Itália, México, Uruguai e Cuba) e, em outros, não (Peru, Espanha, França,

Bélgica, Portugal e Brasil. Quando muito é considerado agravante de um crime)?

Parece difícil dar uma resposta racional para esta pergunta. Os fatores que diferenciam

a legislação destes países são de outra ordem. Só uma análise a partir de um

conhecimento profundo sobre cada uma destas nações poderá, quiçá, dar uma

resposta. No caso do Brasil, cuja legislação penal é da década de quarenta,

profundamente influenciada pela religião católica, em uma primeira análise, pode

parecer surpreendente a não-criminalização do incesto. Mas uma análise percuciente

pode levar a outra conclusão. Ao contrário de ser um avanço progressista, tal omissão

possui, sob um ponto de vista psicanalítico, uma explicação bastante plausível. Freud

sempre defendeu a idéia de que só se proíbe aquilo que é desejado, pois aquilo que

não se deseja não faz falta proibir e/ou reprimir. Como o incesto é um tabu primário

básico, o pensamento religioso sequer admite a existência do seu desejo. Portanto

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proibir significaria admitir o desejo da prática incestuosa. Na ausência de tipificação

legal encontra-se latente a negativa, ou tentativa de ocultação, do desejo incestuoso.

Outros exemplos podem ser dados: Por que em determinados países é

crime a prática de sexo anal e, em outros, não? Ou quais motivos justificam o fato de a

palavra do marido ter força de verdade, mesmo quando ele próprio acusa a mulher (em

benefício próprio) de adultério, em algumas nações cujo Direito se confunde com a

religião? Por que o Direito de Família, em determinados países, é estruturado com

base monogâmica e, em outros, poligâmica? O que justifica a pena de morte em

determinados lugares e, em outros, não? E a questão moderna do casamento entre

homossexuais? Por que gera tão profundas e radicais posições, só entendíveis, se

analisadas as profundezas da mente humana? Enfim, pode-se discorrer longamente

sobre as diferenças nas estruturas legais dos vários Estados, e a Ciência Jurídica não

possui base epistemológica para compreender estas diferenças e, muito menos,

analisar seus motivos e, menos ainda, sua eficácia no cumprimento de normas

prescritivas externas ao ser humano. Não poderá explicar, por corolário, os motivos de

(não) eficácia e efetividade das mesmas.

Há um outro fator a ser considerado na própria compreensão do Direito

em si e, no caso brasileiro, da sua estrutura legal, ou Direito Positivo. A Ciência

Jurídica ambiciona resolver conflitos. Ora, o conflito é algo diretamente relacionado à

subjetividade humana. Determinado fato pode ou não gerar conflito, dependendo da

estrutura mental do sujeito. Por ilustração, o fato de um travesti “fazer ponto” perto da

residência de uma pessoa, pode ou não gerar um conflito. A tendência homossexual

reprimida do morador pode tornar insuportável a presença próxima do travesti. E o

Direito não possui condições de compreender, sozinho, os reais motivos de um conflito

e, por isto, não poderá dar a devida solução para ele. Disto resulta que o Direito decide

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os conflitos, mas isto não implica sua resolução. Uma coisa é decidir um conflito,

impondo uma solução; outra é resolvê-lo, construindo, diretamente com as partes

envolvidas, uma forma de suplantá-lo e/ou de conviver com ele pacificamente.

Aliás, na questão do conflito, as faculdades de Direito, apesar de

pretenderem estudar uma ciência com capacidade de resolvê-los, não dedicam uma só

disciplina a seu estudo. Nem sequer se dão conta de que os conflitos jurídicos

representam, de fato, ínfima parcela dos conflitos sociais. Ou seja, os conflitos jurídicos

são os poucos conflitos sociais que foram jurisdicizados (Hoje, cada vez mais, os

conflitos sociais estão sendo levados ao Poder Judiciário, ocasionando um crescente

aumento do número de feitos).

Nestes pontos, os conhecimentos advindos das disciplinas dedicadas ao

estudo da mente humana podem ser fundamentais na compreensão das

complexidades envolvidas na construção das fontes (formal e material) do Direito.

4. O processo judicial

Quando se fala de psicologia jurídica, comumente, o falante refere-se

àqueles casos em que o processo prevê a participação de psicólogos e psiquiatras,

com apresentação de laudos periciais em : a) Direito de Família, separações, divórcio,

guarda de filhos, e Direito da Criança e do Adolescente, adoções e aplicação de

medida socioeducativas; b) interdições; e c) Direito Penal, em casos de incidente de

sanidade mental e concessão de alguns benefícios na execução penal. Nos dois

últimos itens, o comum é o laudo psiquiátrico. Já, no primeiro, vêm avançando as

perícias efetuadas por psicólogos. Por certo, outras hipóteses de perícias psicológicas

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na prática forense existem, mas são mais esporádicas, como em um processo de

indenização por danos morais, por ilustração, motivo pelo qual não foram citadas.

Mas este tipo de visão sobre a psicologia jurídica, além de se restringir

ao pensamento dogmático, tolhe o alcance da interdisciplinaridade. Tenta-se mostrar,

neste texto, o potencial da análise psicológica jurídica, não só nas perícias (quando a

autonomia do Direito se mantém e o conhecimento psicológico é apenas auxiliar), mas,

acima de tudo, na compreensão do próprio fenômeno jurídico, demonstrando suas

limitações ao tratar de normas de conduta humana, sem considerar devidamente as

implicações anímicas nesse processo, em especial as subjetivas.

O estudo do processo judicial talvez seja a melhor maneira de

demonstrar a necessidade da união destas duas áreas do conhecimento (sem excluir

outras), para se dar conta, de fato, das complexidades do ser humano e de sua vida

em sociedade. A partir da dogmática jurídica, o processo é visto com as normas

procedimentais (em verdade, um ritual) estipuladas de maneira formal e técnica, com

capacidade de levantar a verdade jurídica e, sobre ela, permitir a correta aplicação da

lei. Trata-se de uma construção fantasmática, sem dúvida.

Indubitavelmente, a legislação tenta estabelecer regras de procedimento

pelas quais o mundo do Direito trafega. Elas são pensadas como científicas e com

capacidade de garantir o levantamento da verdade jurídica, do juridicamente relevante,

dados necessários à aplicação do Direito e, dizem outros, adentrando especulações

filosóficas, à concretização da Justiça. Um estudo mais acurado poderá demonstrar as

dificuldades destas pretensões.

Afinal, o que, de fato, pretende fazer o processo? Sob um ponto de vista

empírico, abandonando o discurso jurídico, a única resposta plausível parece ser:

através de determinado ritual e da coleta de provas, reconstruir um fato passado, já

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acontecido, remontando-o no presente, para ser julgado. E o primeiro problema está

exatamente aqui: um fato já acontecido nunca é reconstruído (ou reproduzido) com

fidedignidade. Ou seja, o Direito trata não com o fato acontecido, mas com uma

hipótese de como ele aconteceu. Esta hipótese é repleta de subjetividade, de valores,

todos construídos a partir das mentes humanas envolvidas no processo judicial.

Analisando o processo (todos: penal, civil, etc.) para além do Direito e

descrevendo-o em linguagem não jurídica, não fica difícil compreender que seu início

sempre é uma hipótese já construída a partir da interferência (objetiva e subjetiva) de

pessoas não envolvidas no fato em si. Por ilustração, o processo penal tem início,

quase sempre, com a denúncia oferecida pelo Ministério Público e, em poucos casos,

por queixa-crime oferecida pelas partes. Já no processo civil, seu início dá-se pela

petição inicial. Todos estes documentos são papéis nos quais consta uma descrição

sobre os fatos fundamentadores da demanda jurídica, ou lide. Mas esta descrição não

reproduz aquilo que empiricamente aconteceu tempos atrás. Estes documentos

descrevem uma versão possível do fato (ou fatos), uma hipótese de como ele teria

ocorrido, mas já a partir dos desejos de quem os apresenta a julgamento.

Acontece o fato. Passam-se dias (quando não meses ou anos). Dá-se

início a sua reconstrução, com o inquérito policial, no crime; com os dados fornecidos

pela parte, no civil. Estes dados são construídos a partir das versões efetuadas sobre o

fato passado. E, sobre estas versões, o promotor de justiça ou o advogado constrói

outra versão. No mínimo, a segunda versão do fato dá início ao processo. Uma versão

é um modo (entre muitos) de contar e interpretar o ocorrido. Quem não estuda as

questões anímicas dificilmente entenderá os fatores (muitos, infantis) determinantes na

elaboração das versões.

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A partir da versão inicial (de fato uma construção elaborada já com

distorções) que remete ao passado, dá-se início ao processo judicial. Nele, se tentará

verificar, por intermédio das provas, a veracidade, ou não, dessa primeira versão.

Neste ponto, surge um novo problema negligenciado (ou omitido) pela Ciência Jurídica:

as provas não são capazes de encontrar a verdade empírica sobre o ocorrido. Na

melhor das hipóteses, criam uma terceira versão do fato, para, então, vir o julgamento

e dar a quarta versão.

Antes de adentrar na análise da produção de prova, torna-se

imprescindível citar um requisito altamente subjetivo que embase toda a teoria

processual: o princípio da boa fé. Pressupõe-se (é uma exigência legal) que as partes,

testemunhas, juízes, promotores, advogados, enfim, todos os envolvidos na relação

processual ajam com boa fé. O conceito de boa fé, em si, já é discutível. Um neurótico

compulsivo, um sádico, um masoquista, um psicótico, um esquizofrênico, por certo,

terão conceitos diferentes. Ademais, em um mundo guiado pelo afã do lucro, pelo

desejo de enriquecimento, quais os motivos que levariam os sujeitos, dentro do

processo (incluindo juízes e promotores de justiça), a abandonarem os valores-padrão

da sociedade em que vivem, para agirem de boa fé? Só muita boa vontade, ou desejos

diversos, e isto é matéria a ser analisada pelas ciências da mente e não só pelo

Direito, de forma autônoma.

Os meios de prova são basicamente três: documental, pericial e

testemunhal. Os dois primeiro, em princípio, são mais objetivos. Em princípio, porque

há um fato, de cunho ontológico, ou anímico, fundamental: qualquer atividade cognitiva

sempre implica certa dose de subjetividade. O próprio Einstein afirmou que a

observação científica assim o é, pois a velocidade de captação dos fenômenos pela

retina do observador (observar um astro, por telescópio, no caso) varia de pessoa a

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pessoa. Portanto, mesmo na produção (existe o crime de falsidade ideológica, não se

olvide) e interpretação de um documento autêntico há interferências de fatores

subjetivos. O mesmo ocorre com as perícias. Até mesmo em um teste de paternidade

efetuado por análise de DNA existe a possibilidade de erro. As perícias como um todo

não estão eximes dos fatores subjetivos dos peritos, pois estes sempre terão de

interpretar e concluir, e, como seres humanos, não podem abandonar sua

subjetividade, seu inconsciente, sua capacidade cognitiva, sua capacidade de

aprendizagem e memorização, suas crenças, enfim, sua história de vida. A verificação

da quantidade de erros em exames médicos e outros surpreenderia o leitor. Portanto,

até em relação às chamadas provas objetivas, trabalha-se com probabilidade e não

com certeza absoluta. Isto sem falar no caráter absolutamente subjetivo da

interpretação destas provas, a ser feita por todos os envolvidos no processo,

principalmente o magistrado, como se verá no próximo item.

Mas as provas documentais e periciais respondem por parte ínfima na

construção da verdade jurídica. Esta é montada, em quase todos os processos

judiciais, através das palavras de pessoas. E as palavras não são reprodução e sim

construção. A iniciar pelas partes. Nos processos cíveis, por óbvio, o discurso inicial de

uma demanda é montado a partir do interesse direto do demandante. O fato levado

aos autos representa seus desejos e não a realidade empírica passada. Já nos

processos crime, lida-se com a palavra do acusado a partir do seu medo de ser

condenado e preso, chegando ao oposto, ou seja, a auto-acusação para suprir uma

necessidade neurótica de ser punido. Passa-se, também, pelo desejo de proteger um

terceiro, de agradar e destruir. Questões nada objetivas e não incluídas na

epistemologia jurídica.

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Ademais da palavra das partes, o processo judicial costuma ser formado

basicamente sobre a prova testemunhal e esta, não há dúvida, é totalmente subjetiva e

trás ao processo uma reinterpretação do fato acontecido, uma versão nova, montada

(não necessariamente com má-fé) a partir dos valores de cada sujeito. E isto por vários

fatores. Sempre há, de início, os casos de corrupção ou outras transgressões da

própria legalidade. Testemunhas pagas, preparadas, não são poucas. É um fator

importante, mas para manter-se na crítica à teoria jurídica autônoma, ficarão de lado.

Mesmo a testemunha honesta não fala a verdade, entendida esta como reproduzir,

autenticamente, os fatos como eles ocorreram empiricamente (fala a sua “verdade”).

E a “mentira” não corresponde a um ato doloso, com a intenção de

falsear o fato. Não se trata disto. São questões fisiológicas e psíquicas que impedem a

qualquer ser humano reproduzir autenticamente um fato ocorrido no passado. A

percepção de cada indivíduo (visual, auditiva, olfativa, tátil, gustativa e afetiva) não é

igual à dos outros. A noção de espaço, de tempo, de temperatura, de claridade e

assim por diante está muito relacionada com a história de vida de cada um. Por

exemplo, uma pessoa criada solta em uma fazenda rural terá uma noção sobre perto e

longe, pequeno e grande, curto e longo, alto e baixo, muito e pouco, rápido e

demorado, bastante diferente de uma outra pessoa sempre criada em um pequeno

apartamento urbano.

Para explicar bem estas asseverações, sempre realizo uma experiência

com os alunos. Faço-lhes uma pergunta, antes esclarecendo ser ela de capital

importância para elucidar os fatos relativos a um crime. Da resposta poderá advir a

condenação ou absolvição do acusado. Peço-lhes que escrevam a resposta, antes de

se manifestarem sobre ela, a fim de que não sejam influenciados pelas respostas dos

demais colegas. Após estarmos de acordo, pergunto: quanto mede esta sala de aula,

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isto desde o quadro negro até a parede dos fundos? Anotadas as respostas, sempre

os resultados variam de sete a quinze metros, ficando a maioria perto dos nove

metros. Pois bem. Ninguém mentiu propositadamente, mas as respostas chegam a

diferir em até o dobro. E isto em relação a uma pergunta simples, sobre um fato

simples, sem qualquer estresse e em relação a um espaço relativamente pequeno (o

que diminui a margem de dúvida). Sete e quinze metros são os extremos. E qualquer

um dos alunos que fosse prestar um testemunho sobre a sala de aula deporia, sem

maldade, indicando ao processo uma metragem errada, pois as salas medem,

normalmente, de oito metros e meio a nove. Este erro ,oriundo das diferenças de

percepção de cada um, poderia ser crucial na fundamentação da futura decisão.

Tendo-se em conta, ainda, que os fatos levados ao processo, em

especial os tipificados como crimes, são praticados em momentos de alta tensão,

(medo, gritaria, barulho, nervosismo, etc.) e não na descontração de uma sala de aula,

é de se ter como certo outro fator: grande dificuldade na percepção dos fatos e sua

memorização (a capacidade de memorização também difere de pessoa a pessoa).

Some-se tudo isto a outro momento de estresse, quando a testemunha, muito tempo

depois, é levada diante de um juiz, nos palácios de Justiça, simbolicamente

agressivos, e, após jurar a verdade, sob pena de cometer o crime de falso testemunho,

deve descrever os fatos diante de estranhos, em lugar hostil e sob ameaça de prisão.

É muito ingenuidade, para usar um eufemismo, desejar da testemunha uma

reprodução genuína, autêntica, do ocorrido no passado.

Ademais de questões puramente fisiológicas, as psíquicas se impõem

como fatores complicadores do ato de testemunhar. Como já mencionado, não há ato

cognitivo puro. A percepção e compreensão de qualquer fato sempre são produzidas a

partir da filtragem efetuada por cada sujeito (e esta é uma regra sem exceção).

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Acontece um fato diante de várias pessoas, cada uma irá codificá-lo mentalmente de

forma diferente e disto resultarão diversas versões sobre o mesmo, na melhor das

hipóteses parecidas. Isto é inerente ao ser humano. E somem-se a isto outros fatores,

como a própria importância (ou não-importância) que a testemunha dará ao fato de

testemunhar. Um sujeito excluído, cuja vida é uma seqüência de monotonia e

vulgaridade, pode encontrar no seu testemunho um momento de autovaloração, e isto

poderá fazê-lo dizer mais do que sabe, inventando, não por maldade, mas para

justificar sua própria existência. Um racista, ou um sexista (não só com aversão a

homossexuais, mas, também, com idéias misogínicas ou misândricas) irá depor

influenciado, a partir de seu inconsciente (quando não mesmo conscientemente), por

estes fatores subjetivos, quando se trate de testemunhar um fato relativo a um negro,

um homossexual, uma mulher ou um homem.

Pode-se escrever folhas e folhas elencando todas as variáveis de

influenciar um depoimento e lhe tirar a objetividade pretendida pela Ciência Jurídica.

Mas o objetivo momentâneo é chamar a atenção para estes problemas e demonstrar

ou realçar a importância de uma análise jurídico-psicológica do processo como um

todo, para se poder praticar o Direito não a partir da crença de uma base

pretensamente objetiva (na verdade psicótica, pois fora da realidade), mas a partir de

sua efetiva realidade, que é subjetiva e probabilística.

5. A jurisprudência

Usa-se o termo jurisprudência não em seu sentido jurídico tradicional

(julgados reiterados), mas como sinônimo do ato de julgar, em qualquer instância. A

Ciência Dogmática do Direito insiste na defesa da neutralidade jurídica e na

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possibilidade do julgador agir como um técnico, alheio às questões não-jurídicas,

dando ao processo o justo é único julgamento possível, a partir da base científica

racional que a fundamenta. Tal visão é, quando muito, tão-só um ato de boa vontade.

Apenas com base na análise efetuada sobre o processo judicial, já fica

evidente a falta desta base epistemológica (em realidade, ideológica) do Direito.

Entretanto, mesmo acreditando-se na construção da verdade jurídica de forma

objetiva, ainda assim a subjetividade não escaparia à função de julgar. Isto porque o

julgador, como qualquer ser humano, não pode prescindir de seus valores, de suas

experiências emocionais, de sua estrutura psíquica, de seu inconsciente, na prática de

qualquer ato cognitivo, e, por óbvio, no momento de julgar. O juiz, o desembargador e

o ministro (e seus assessores, por certo) encontram-se vinculados às suas emoções,

às suas pulsões, e delas não podem se apartar, quando julgam. Isto não leva ao

absurdo, ao descontrole ou à possibilidade de o julgador cometer aberrações (apesar

de muitas serem feitas cotidianamente, pois os juízes hoje presos por corrupção

ditaram muitas sentenças, com argumentos jurídicos racionais, e muitas delas foram

mantidas por vários tribunais). Há, sempre, a exigência de argumentação. Os fatores

subjetivos estão latentes nela e só uma análise psicológica -- no caso, o mais preciso é

dizer psicanalítica, pode trazê-la à tona, ou desvendá-la.

O magistrado não escapa aos mesmos fatores que influenciam as

testemunhas. Assim, já no momento da coleta da prova, fatores não-jurídicos

influenciam a sua atuação. Isto em relação às perguntas que escolhe fazer às

testemunhas, a credibilidade que dará a cada uma (e aqui os fatores racistas, sexistas

e outros também atuam), chegando até à forma como dita o depoimento ao digitador,

para registrá-lo na ata de audiência. Aliás, neste ponto, quem atua na prática forense

sabe muito bem, não é infreqüente o próprio digitador digitar uma palavra diferente

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daquela ditada pelo juiz, a qual já era diferente daquele falada pela testemunha. O

comum, e os julgadores sabem bem disto, é a prática do prejulgamento, já no primeiro

contato com os autos, para depois realizar a simples adequação da prova ao desejo

expressado no seu prejulgar. É claro que isto não representa uma regra absoluta, mas

é comum.

Também há uma vinculação afetiva, emocional, do magistrado com o

conteúdo do processo sob sua jurisdição. Um magistrado filho de um pai alcoolista

seguramente será influenciado por sua história de vida na hora de instruir e decidir um

processo envolvendo uma parte com o mesmo vício (ou doença, como, na atualidade,

muitos reconhecem). Ou um magistrado religioso sofrerá influências de sua crença em

todos os processos cujos valores religiosos estejam envolvidos, mesmo de forma

dissimulada. Ou criado no interior, com grande apego à terra. Ou em uma cultura

machista, com seus fortes valores de subordinação da mulher ao homem. E, aqui, o

“ou” se perpetuaria, para indicar todas as possibilidades de fatores subjetivos, não

jurídicos, no ato de julgar.

Além da questão cultural, até mesmo fatores psicopatológicos influenciam

diretamente a decisão judicial. Um juiz neurótico compulsivo, ou obsessivo, julgará

diferente de um sádico, que julgará diferente de um psicótico, que julgará diferente de

um masoquista, e assim por diante.

Na vida prática, por ilustração, alguns advogados mais experientes

possuem um subterfúgio eficaz para arrancarem medidas liminares de juízes, isto, por

evidente, a partir de argumentos não-jurídicos. Em um caso de reintegração de posse,

com pedido de liminar, soem falar com o juiz e, assim, sem qualquer intenção, dizem

que a parte requerida afirma, de forma categórica, “que não sairá do imóvel e nenhum

juiz o tirará de lá.” Atingido frontalmente em sua autoridade (ou desejo de ser macho,

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super-homem), o juiz cai na armadilha, fica irado e diz todo orgulhoso: “Vou mostrar

quem manda.” Após, arruma os argumentos jurídicos necessários para fundamentar

sua decisão interlocutória, e manda retirar o requerido do imóvel (aliás, que nunca

ameaçou o magistrado). Estes espertos advogados foram além do Direito e

conseguiram seu intento. Só as ciências da mente podem explicar este tipo de

atuação.

Também há um outro caso emblemático para demonstrar os fatores

inconscientes no ato de julgar. Certo desembargador era conhecido como um “grande

condenador”, quando se tratasse de crimes sexuais. Era um homem honesto, não

afeito a qualquer prática corruptiva. Mas, ao chegar aos setenta anos, foi aposentado

compulsoriamente. Retirado dele o peso da toga, sempre voltava ao seu antigo lugar

de trabalho, o Tribunal. Entretanto, agora, ao contrário de condenar acusados de crime

sexuais, ele passou a molestar sexualmente as mulheres que lá trabalhavam, em

especial ascensoristas e serventes. Esta dualidade de prática: antes, um moralista

ferrenho contra os crimes sexuais, com base jurídico-racionalista, e, depois, um

molestador (ou criminoso), desvenda fatores ocultos, escondidos no discurso jurídico

que durante anos foi usado para colocar pessoas na cadeia (algumas de forma

merecida, outras, talvez, não). Afinal, quem ou o que este julgador condenou em sua

vida profissional? Aqueles com coragem para realizar seus desejos inconscientes? A si

próprio? Como atuam (e qual discurso racionalista utilizam) os julgadores

homossexuais reprimidos? Só anos de análise para responder. Mas a falta de resposta

imediata não retira a necessidade de aprofundar estudos interdisciplinares sobre a

função de julgar e todas as implicações subjetivas nesta importante tarefa social.

6. As soluções jurídicas

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Como analisado no início deste texto, o Direito se apresenta à sociedade

com suas promessas de controle social e promotor do bem comum e da paz, via

resolução dos conflitos. Também foi visto que o Direito, de fato, situa-se entre os

sistemas de prescrição (ou interdição) externos ao sujeito, convivendo paralelamente

com os sistemas morais, religiosos e outros. E todos estes, por sua vez, atuam sobre o

sujeito, também submetido ao seu código interno de proibições. Neste item final de

estudo, discutem-se as formas pelas quais a Ciência Jurídica pretende cumprir suas

promessas, ou, mais tecnicamente, por quais mecanismos o Direito tenta cumprir suas

funções.

Antes de qualquer análise, torna-se necessário frisar as limitações do

Direito no cumprimento de sua tarefa. A dogmática jurídica omite (propositadamente,

ou não) a insuficiência da Ciência Jurídica para fazer seu trabalho mínimo: fazer

cumprir as normas. Em realidade, no arcabouço jurídico existem normas para serem

cumpridas e normas para não serem cumpridas. Estas últimas são aquelas com

capacidade de transformar as relações de poder, em especial as econômicas, na

sociedade. Assim, todas as normas relativas aos direitos sociais, econômicos e,

também, os princípios básicos constitucionais (dignidade de vida, por ilustração) não

existem para serem cumpridos via Direito. E aqui já surge um tema baste interessante

para se analisar a partir dos conhecimentos da mente humana. Qual a necessidade de

existirem normas para não serem cumpridas? Por que isto ocorre e os juristas ignoram

o fato? Quais os fatores determinantes desta esquizofrenia epistemológica e de

conduta dos juristas?

Deixando de lado esta parte, legislada para não ser cumprida, na outra,

a que deve ser cumprida, o Direito possui algumas formas de atuar. Pode-se dividir em

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dois ramos básicos: a) a repressão à criminalidade e b) o cumprimento dos direitos. No

primeiro, fala-se de Direito Penal. No segundo, precipuamente, de Direito Civil, mas,

também, dos demais ramos do Direito, como Constitucional, Tributário, Comercial,

Trabalhista, etc.

O combate à criminalidade dá-se por uma prática bastante behaviorista,

pretendendo-se combater a celeridade através de punição e castigo. Já no

cumprimento aos direitos, a Ciência Jurídica enfatiza a reparação do dano, o

cumprimento dos contratos e a garantia da propriedade privada. Todos estes

mecanismos são ditados em uma sentença a ser futuramente executada, após seu

trânsito em julgado. A coerção estatal, ou o monopólio legítimo da violência, é a

garantia do cumprimento das decisões judiciais.

O Direito Penal pode ser estudado a partir de sua própria perversidade

estrutural. Alguns dados2, por si só, demonstram as complexidades das mentes

criadoras das normas repressivas brasileiras: as reprimendas mais severas em nosso

sistema penal referem-se aos delitos de latrocínio, tipificado em um mero parágrafo (§

3º) do crime de roubo, disposto no art. 157, e extorsão mediante seqüestro quando

resulta morte, conforme § 3º, art. 159, coincidentemente ambos dentro do capítulo II do

Título II do Código Penal, que diz respeito aos crimes contra o patrimônio. Se uma

pessoa rouba e mata, está sujeita a uma pena de 20 a 30 anos de reclusão. Caso

seqüestre um empresário para obter vantagem e o mate, será condenado, no mínimo,

a 24 anos e, no máximo, a 30 anos de reclusão. Mas, se estupra uma adolescente, e

do fato resulta a morte (art. 213 c/c 223, parágrafo único), a pena é de 12 a 25 anos de

reclusão. Aliás, para o código, o estupro é um crime contra a liberdade sexual, incluído

2 Estudo mais detalhado por ser encontrado em ANDRADE, Lédio Rosa. Direito Penal Diferenciado.

Tubarão: Editorial Studium, 2002, 120 p.

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entre os crimes contra os costumes. Já, se o crime for de homicídio simples (art. 121),

a pena é de 6 a 20 anos de reclusão; e se for homicídio qualificado (art. 121, § 2º), a

reprimenda sobe para 12 a 30 anos de reclusão.

Dentre os crimes contra a pessoa, existem as lesões corporais. Vejam-se

os seguintes casos: a) uma pessoa desfere, sem intenção de matar, uma facada em

outra, causando-lhe um corte. Pena de 3 meses a um ano de detenção (art. 129); b) se

da facada resultou incapacidade para as ocupações habituais, por mais de trinta dias,

perigo de vida, debilidade permanente de membro, sentido ou função (cegar um olho,

por ilustração), ou acelerar o parto, pena de 1 a 5 anos de reclusão (art. 129, § 1º); c)

se da facada resultou incapacidade permanente para o trabalho (ficar tetraplégico),

enfermidade incurável, perda ou inutilização de membro, sentido ou função (ficar

totalmente cego), deformidade permanente (perder as pernas) ou aborto, pena de 2 a

8 anos de reclusão (art. 129, § 2º); d) se da facada resultar lesão leve, mas a vítima

cair, bater com a cabeça e vir a morrer, a pena é de 4 a 12 anos de reclusão (art. 129,

§ 3º).

Voltando aos crimes contra o patrimônio, passo a analisar casos de furto

e roubo, com suas conseqüentes penas, a fim de compará-los com as hipóteses de

lesões corporais: a) se a vítima deixa aberta a porta de seu veículo, e o criminoso retira

de seu interior um relógio usado, pena de 1 a 4 anos de reclusão (art. 155); b) se a

porta do veículo estiver travada, e o agente quebrar o vidro ou usar uma chave falsa, a

pena passa para 2 a 8 anos de reclusão (art. 155, §4º); c) se a vítima estiver dentro do

veículo, e o agente a ameaçar, sem produzir qualquer ferimento, e se apossar do

relógio, a pena é de 4 a 10 anos de reclusão (art. 157). Se, para produzir a ameaça, o

agente usar um revólver de brinquedo, a pena de 4 a 10 anos é aumentada de um

terço até a metade (§ 2º, I, do mesmo artigo); d) no caso da violência resultar em lesão

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corporal grave, a pena é de 7 a 15 anos de reclusão (art. 157, § 3º); e) mesmo sem a

intenção de matar, se da violência exercida para roubar (a vítima pode morrer de

ataque cardíaco) resultar a morte, caracteriza-se o latrocínio, com a pena de 20 a 30

anos de reclusão, conforme já dito.

A comparação chega ao absurdo, se for efetuada em relação ao crime de

extorsão mediante seqüestro: a) para o fato em si de seqüestrar uma pessoa para

obter vantagem, mesmo sem lhe causar qualquer dano físico, a pena é de 8 a 15 anos

de reclusão (art. 159, caput, do CP), ou seja, maior do que o crime de lesão corporal

seguida de morte. A pena mínima é superior em dois anos à do homicídio simples; b)

se o seqüestro durar mais de 24 horas, ou for praticado por bando ou quadrilha (quase

todos são, pois é praticamente impossível uma única pessoa seqüestrar outra e obter o

resgate em menos de 24 horas), ou se a vítima for menor, isto também sem qualquer

dano físico, a pena é superior à prevista para o crime de homicídio simples (6 a 20

anos de reclusão) e praticamente igual à fixada para o homicídio qualificado (12 a 30

anos), uma vez que a reprimenda é de 12 a 20 anos de reclusão, nos termos do § 1º,

do mesmo artigo; c) se do crime resultarem lesões graves, pena de 16 a 24 anos, e se

resultar morte, 24 a 30 anos de reclusão (§§ 2º e 3º). Isto é um absurdo frente às

penas estipuladas para os crimes contra a pessoa, incluindo o homicídio qualificado.

Para deixar bem explícito, se um criminoso, sem a intenção de matar,

furar os dois olhos de uma pessoa e, ainda, deixá-la tetraplégica, poderá receber uma

pena de 2 a 8 anos de reclusão, mas, se ousar roubar o relógio de uma pessoa,

ameaçando-a com uma arma de brinquedo, sem lhe produzir qualquer lesão física,

estará sujeito a uma pena de 4 a 10 anos de reclusão.

Uma outra comparação bastante ilustrativa pode ser efetuada entre os

crimes previstos nos artigos 149 e 155, § 5º, do Código Penal. Reduzir um ser humano

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à condição análoga à de escravo é considerado um crime de menor potencial

agressivo à sociedade em relação à subtração de um automóvel em um Estado da

Federação, transferindo-o para outro Estado.

Com estas ferezas básicas e, ainda, estruturado para regular os seres

humanos a partir de uma lógica de castigo e prêmio, não se pode esperar do Direito

Penal qualquer eficácia no cumprimento de sua missão declarada (combater o crime e

promover a paz e harmonia social), pois a velada, a ideologicamente embutida, a

cumpre muito bem. Ademais, os castigos aplicados, na prática, restringem-se à prisão.

Penas como multas ou as chamadas alternativas simplesmente não são aplicadas e,

se fossem (em poucos casos são), não funcionariam.

E a dogmática jurídica penal, mais uma vez, não adentra em pontos

importantes para se pensar o controle social, via Direito. Ora, submetido à miséria,

com supressão do mínimo à subsistência, qualquer sujeito pode delinqüir. E, mesmo

suprido materialmente do necessário à sobrevivência, o desejo pelo proibido (há de ser

diferenciada a necessidade do desejo) é muito mais forte do que as proibições

externas ao sujeito. Portanto, uma deficiência de superego pode levar um indivíduo a

cometer crimes, exatamente para pedir uma punição. E não é só isto. Basta pensar

nos crimes cometidos por pessoas abastadas economicamente. O que leva um juiz de

Direito (ou um empresário, ou um legislador), por ilustração, com seu salário suficiente

para pagar o necessário a uma vida confortável, a envolver-se com corrupção? A

ameaça de cadeia será suficiente para prevenir estes crimes? É claro que não, pois

eles existem em grande quantidade. E a efetivação da prisão irá recuperar estes

delinqüentes? Parece que não: primeiro, porque não são presos (com raríssimas

exceções) e, segundo, porque o discurso da recuperação do criminoso via cárcere é

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tão-só ideológico, não encontrando muito amparo na própria Ciência Jurídica, na

sociologia e, muito menos, nas Ciências da mente.

Pense-se, então, em um maníaco sexual. Após apossar-se da vítima (ou

mesmo antes), irá raciocinar a partir das penas para não prosseguir com seus atos

agressores? Todas estas possibilidades envolvem questões anímicas e não só

jurídicas.

Alguns exemplos (bem constantes) presenciados em mais de vinte anos

de magistratura podem demonstrar a ineficácia dos remédios jurídicos penais, quando

se trata de, realmente, resolver um conflito e proteger, do crime, a sociedade (e isto

sem considerar que os tipos penais são sempre antijurídicos, mas nem sempre são

anti-sociais. E muitos atos anti-sociais não são antijurídicos).

Em casos de estupros e atentados violentos ao pudor dentro da família,

quase todos incestuosos, muitas mães, quando não as próprias vítimas, protegem o

agressor. A demora no processo, com o passar dos anos, leva à reestruturação do lar.

Quando a pena chega para ser cumprida, só serve como novo golpe à família. O que

faz o Direito nestes casos de abuso sexual masculino em crianças e adolescentes, nas

relações parentais? Para proteger a vítima, busca reconstruir os fatos, através da fala

dos envolvidos. Quebra a confidencialidade do ocorrido, torna pública a possível

agressão (o segredo de justiça só serve para avivar o interesse no caso), pressupõe

ter encontrado a verdade, e acaba destruindo a figura paterna, destituindo o pátrio

poder e, quando não, aprisionando o agressor. Da solução dada pelo Direito, decorrem

grandes conflitos familiares, entre pais e mães, divórcios, suicídios, queda profissional

do condenado, entre tantos. Pode-se perguntar: O que fazer, então, absolver o

criminoso? Um enérgico NÃO é a resposta.

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O problema é outro, e mais complexo. O Direito erra, em primeiro lugar,

ao confundir a ação com o dito. Ora, todo tema referente à sexualidade, na sociedade

que construímos, já implica uma certa violência implícita. O falar sobre, com uma

criança, um adolescente e, até mesmo, com um adulto, se efetua sob o signo da

surpresa, do segredo, do abalo, do proibido e do velado. O tema em si dispara as

fantasias dos sujeitos. Então, um pai ou um padrasto, que acaricia uma criança ou

uma adolescente no leito, pode, dependendo das fantasias delas (e dele também),

estar simplesmente acariciando paternalmente ou cometendo um abuso sexual. É duro

e forte de dizer, mas há uma certa cumplicidade, em determinados atos, entre agressor

e agredido, entre abusador e abusado. Isto não implica defender a complacência com

o abuso sexual, bem ao contrário, deve-se analisá-lo com redobrado cuidado.

Um segundo erro do Direito é quebrar a confidencialidade do fato. Não se

trata de proteger o agressor, mas de preservar a vítima, pois a exposição de sua

intimidade acarretará danos irreparáveis, podendo ser pior do que a agressão. Por fim,

o derradeiro erro é a destruição da figura do pai. Todo ser humano se desenvolve a

partir de um ideal de pai. Portanto, sua destruição, mesmo sendo um agressor,

significa acabar com um importante referencial do sujeito, mormente sendo criança, e

isto também implica distúrbios graves.

Os agressores sexuais devem sofrer algum tipo de atenção (a prática de

punição nada resolve neste caso, e talvez em nenhum outro, mas isto não significa

total irresponsabilidade jurídica pelo ato praticado. Outros meios de atuação devem ser

construídos a partir de um novo paradigma jurídico interdisciplinar), mas, para proteger

as vítimas, os julgamentos devem ser efetuados sob confidência, levando-se em conta

as fantasias das partes, e preservando-se na filha e no filho o seu ideal de pai, imagem

a se sobrepor à do pai agressor. E isto o jurista sozinho não sabe fazer. Afinal, se

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ninguém pode ignorar a lei, é de se exigir que legisladores e julgadores não ignorem as

conseqüências de sua aplicação.

Muitos casos de mulheres agredidas, quando resulta denúncia e prisão

do agressor, culmina com a vítima implorando por sua soltura. O desejo masoquista, a

dependência psíquica (também a econômica) são temas não considerados pelo Direito

Penal, e a prisão, sua única resposta para estes casos, é totalmente inadequada,

produzindo danos superiores ao crime em si. Não se está a falar em absolvição

generalizada, pois isto manteria a mesma lógica, mas, sim, em ponderar,

interdisciplinarmente, sobre os fatores envolvidos no conflito.

Muitos outros exemplos poderiam ser dados. Mas para concluir a análise

sobre o Direito Penal, torna-se importante frisar que a solução dada pelo Direito para

combater a criminalidade, a pena, não possui, em si, o potencial pedagógico e

repressivo pensado pelos juristas. Nem antes, nem depois da prática criminosa.

Dependendo da estrutura psíquica do sujeito criminalizado (diferente do criminoso,

todos, pois não há quem não pratique ato típico penal), a pena pode, inclusive, servir

de incentivo ou, quase sempre, simplesmente não importar nada.

Nas demais áreas do Direito, a solução, normalmente, vem através de

uma sentença condenatória reparadora. Sem esquecer que a tecnologia já criou danos

irreparáveis, como, por ilustração, uma explosão nuclear, quando as vítimas não

podem ser quantificadas e, pior, pessoas ainda não nascidas serão vítimas no futuro,

mesmo hoje a reparação, em si, não resolve conflitos, em muitos casos. O desejo

psíquico da parte não se contenta com uma reparação pecuniária.

A questão torna-se mais complexa, quando diz respeito ao Direito de

Família. Nesta área, a reparação já não possui muito sentido. Várias partes usam o

processo para manterem um vínculo afetivo, de amor e ódio, tornando os feitos

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intermináveis. São constantes os pedidos de pensão alimentícia, revisão de pensão,

revisão da revisão, direito de visita e tantos pleitos de modificação, de guarda de filhos

e acusações mútuas de maus tratos. Muitas vezes, o processo é a garantia de que os

separados possam se ver, vez por outra (em outras palavras, não conseguem viver

juntos e nem separados, logo: vivem “juntos” no processo). Os fatores não-jurídicos se

multiplicam.

Um caso emblemático pode ser citado, por experiência própria. Em uma

ação de separação judicial, cumulou-se o pedido de guarda de um casal de filhos, uma

menina de aproximadamente nove anos e um menino de cinco ou seis anos. Eles não

queriam nem ouvir falar da mãe. Aberta a audiência, para tentar uma conciliação, os

genitores foram para a sala de audiência e as crianças, para o gabinete do magistrado.

Este (eu), dirigiu-se diretamente para a sala de audiência, sem ver as crianças. Casal

de classe média baixa, com instrução média. O argumento principal apresentado pelo

pai centrava-se na vontade dos filhos. Dizia: “São eles que querem ficar comigo e não

querem ver a mãe.” Esta atuava a partir de forte postura fundamentalista e isto, como

bem pode ser observado, tinha reflexo em sua relação familiar, tornando-se uma

mulher bastante dogmática e rígida, com pouca relação afetiva com os filhos. Na falta

de acordo, surgiu a dúvida: “mesmo com a frieza materna, não é normal uma recusa

tão forte dos filhos para, até mesmo, tão-só ver a mãe”. Suspensa a audiência, o

magistrado deslocou-se até seu gabinete para ouvir as crianças. Na primeira visão, a

resposta apareceu. A menina, vestida como adulta, com batom vermelho e sapato um

pouco alto, tinha seu irmão deitado ao colo, no sofá, acariciando-o no cabelo. Disse

que não entendia qual era o problema, pois tudo estava muito bom em sua família,

pois ela cuidava da casa, do irmão e do pai, e nada faltava.

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As indumentárias da menina, suas atitudes para com o irmão (tornado

filho) e seu discurso evidenciaram um sério conflito edipiano, com falha total da

castração, assumindo, simbolicamente (não havia molestamento sexual), a filha, a

figura materna. Cuida da casa e do pai (transformado em marido) e do irmão (feito um

filho). Que falta faria a mãe, neste mundo ideal (ou idealizado)? Para este caso, qual a

solução a ser ditada pelo Direito? O problema grave era exatamente o conflito

edipiano. Caso não resolvido, seguramente acarretaria sérias conseqüências àquelas

crianças. Uma decisão jurídica, em favor do pai ou da mãe, sem trabalhar o conflito

psíquico causador da lide, só agravaria o problema. Isto demonstra a total necessidade

do Direito conviver, não como conhecimento auxiliar, mas em conjunto, sem qualquer

hierarquia, com outras áreas do conhecimento, destacando-se a psicológica, em seu

sentido mais amplo possível.

As soluções que o Direito apresenta à sociedade, em todos os seus

ramos, incluindo o internacional (a guerra é uma constante), não possuem condições

de cumprir com suas promessas, e necessitam ser revistas, modificadas, através de

um novo paradigma jurídico, interdisciplinar, para, então, se pensar na possibilidade de

um outro mundo.

Conclusão

“A normatização do poder” é o conceito de Direito dado pelo meu mestre

Capella. De fato, falar de Direito implica falar de poder, ideologia, manipulação,

bandeira de luta revolucionária, exploração, diferenciação, democracia, e tantas outras

coisas. O tecnicismo jurídico com toda sua epistemologia formal, dedutiva, lógica e

dogmática é, tão-só, um discurso ideológico, não valendo muito a pena combater o que

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já é óbvio. Mas, para além destas questões, outras, também complexas, se

apresentam e necessitam ser estudadas.

No transcorrer deste texto, buscou-se demonstrar o imperativo de

superação da estreita visão dogmática do Direito, a qual tenta, por pura vaidade

intelectual, manter a autonomia desta ciência. Ao tratar com seres humanos, por

corolário, trata com todas as suas complexidades, e estas não são poucas. Os mais

profundos conflitos psíquicos estão presentes na elaboração da lei, na instrução

processual, na hermenêutica jurídica e na elaboração das decisões. Negar isto é negar

a própria condição humana. Assumir a falta de autonomia não significa qualquer

demérito, pois toda ciência particular, ao fim e ao cabo, depende das outras.

Superadas as questões pessoais dos cientistas, resta a necessidade da

interdisciplinaridade como condição necessária para se lidar com os sujeitos e se

ensejarem as transformações sociais necessárias à criação de novas possibilidades de

vida comunitária.

A violência é um fenômeno intrínseco ao ser humano. O nascimento da

cultura, ou da civilização, com seus sistemas de interditos, surgiu para tentar manter a

vida comunitária em níveis aceitáveis. Pelo estudado, a união do sistema externo

moral ao sistema interno (superego) é a responsável maior pela determinação da

conduta social, ou da conduta dos indivíduos em sociedade. O Direito exerce uma

função auxiliar, para punir aqueles que rompem os demais sistemas repressivos, não

obedecem a eles.

Se isto for certo, o nível civilizacional da humanidade, condição possível

de se melhorar as relações entre as pessoas, depende muito mais das crenças, da

visão de mundo, da estrutura psíquica dos sujeitos e, menos, das normas jurídicas

repressivas. Não que estas sejam desnecessárias. Apenas não possuem o potencial

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regulador desejado pelos juristas. É claro que a Ciência Jurídica, na função de criar

direitos e determinar a forma de se garantir o direito aos direitos, contribui de forma

decisiva para melhorar as relações civilizadas, pois também atua na construção do

imaginário social e individual.

O nível de democratização das relações sociais de poder pode ser

aperfeiçoado, talvez, a partir da construção de um código simbólico social, capaz de

introjetar no mundo subjetivo de homens, mulheres, homossexuais e assexuais, um

novo sistema axiológico, calcado em princípios democráticos, no qual os Direitos

Humanos (construção puramente cultural), o respeito ao outro, a igualdade e a

liberdade sejam valores efetivamente predominantes, acima da avidez, da ganância,

da sedução produzida pelo dinheiro. Trata-se de construir novos valores no imaginário

social e individual, com capacidade de agir a partir dos sistemas externo e interno de

prescrições, valores estes, como visto, decisivos na construção do agir humano. Se

cada indivíduo, na sua subjetividade, tiver para com os Direitos Humanos e para com a

Democracia, uma relação de grande respeito, de desejo de sua realização, de tê-los

como importantes e cruciais à vida coletiva (como fazem em relação à propriedade

privada), as atitudes podem mudar.

Utopia ou não, é uma bandeira de luta, e o Direito, se afastado de sua

arrogância, poderá prestar um inestimável serviço na construção deste possível mundo

novo.

Autores importantes.

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Influenciaram este trabalho de forma direta os seguintes pensadores:

Sigmund Freud, Amilton Bueno de Carvalho, Juan Ramón Capella, Perfecto Andrés

Ibáñez e José Eduardo Faria. Também anos e anos de leitura e prática jurídica.

Indicações para leitura.

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