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PUC.MINAS. Curso de Direito. FILOSOFIA II. Profa. Magda Guadalupe Extratos . Os dois extratos abaixo dispostos introduzem o tema acerca da leitura ética do Direito feita por H.C.L.Vaz. Devido à complexidade da linguagem utilizada pelo autor, vale considerar a necessária introdução, de conceitos historicamente definidos, feita a partir de excertos de textos do próprio autor. Busca-se compreender e estipular, nessa primeira parte da primeira unidade, formas de aguçamento reflexivo e crítico que possibilitem o estudante do Direito a ousar enfrentar os desafios cognitivos que sustentam a estrutura do pensamento filosófico-jurídico. Mas vale aqui uma leve atenção. Sem esforço, sem desejo de compreensão, pouco sentido farão tais extratos. Extratos de textos de Vaz, H.C.L. 1. Fenomenologia do Ethos 1 I. Preliminares semânticos. Para Aristóteles seria insensato e mesmo ridículo (geloion) querer demonstrar a existência do ethos, assim como é ridículo querer demonstrar a existência da physis. Physis e ethos são duas formas primeiras de manifestação do ser, ou da sua presença, não sendo o ethos senão a transcrição da physis na peculiaridade da práxis ou da ação humana e das estruturas histórico- sociais que dela resultam. No ethos está presente a razão profunda da physis que se manifesta no finalismo do bem e, por outro lado, ele rompe a sucessão do mesmo que caracteriza a physis como domínio da necessidade, com o advento do diferente no espaço da liberdade aberto pela práxis. Embora enquanto autodeterminação da práxis o ethos se eleve sobre a physis, ele reinstaura, de alguma maneira, a necessidade da natureza ao fixar-se na constância do hábito (hexis). Demonstrar a ordem da práxis, articulada em hábitos ou virtudes, não segundo a necessidade transiente da physis, mas segundo o finalismo imanente do logos ou da razão, eis 1 VAZ, H.C.L. Fenomenologia do Ethos. In: VAZ, H.C.L. Escritos de Filosofia II. Ética e cultura. Loyola, 2000. P. 11-16.

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PUC.MINAS. Curso de Direito. FILOSOFIA II. Profa. Magda Guadalupe

Extratos. Os dois extratos abaixo dispostos introduzem o tema acerca da leitura ética do Direito feita por H.C.L.Vaz. Devido à complexidade da linguagem utilizada pelo autor, vale considerar a necessária introdução, de conceitos historicamente definidos, feita a partir de excertos de textos do próprio autor. Busca-se compreender e estipular, nessa primeira parte da primeira unidade, formas de aguçamento reflexivo e crítico que possibilitem o estudante do Direito a ousar enfrentar os desafios cognitivos que sustentam a estrutura do pensamento filosófico-jurídico.Mas vale aqui uma leve atenção. Sem esforço, sem desejo de compreensão, pouco sentido farão tais extratos.

Extratos de textos de Vaz, H.C.L.

1. Fenomenologia do Ethos1

I. Preliminares semânticos. Para Aristóteles seria insensato e mesmo ridículo (geloion) querer demonstrar a existência do ethos, assim como é ridículo querer demonstrar a existência da physis. Physis e ethos são duas formas primeiras de manifestação do ser, ou da sua presença, não sendo o ethos senão a transcrição da physis na peculiaridade da práxis ou da ação humana e das estruturas histórico-sociais que dela resultam. No ethos está presente a razão profunda da physis que se manifesta no finalismo do bem e, por outro lado, ele rompe a sucessão do mesmo que caracteriza a physis como domínio da necessidade, com o advento do diferente no espaço da liberdade aberto pela práxis. Embora enquanto autodeterminação da práxis o ethos se eleve sobre a physis, ele reinstaura, de alguma maneira, a necessidade da natureza ao fixar-se na constância do hábito (hexis). Demonstrar a ordem da práxis, articulada em hábitos ou virtudes, não segundo a necessidade transiente da physis, mas segundo o finalismo imanente do logos ou da razão, eis o propósito de uma ciência do ethos tal como Aristóteles se propõe constituí-la, coroando a tradição socrático-platônica. A Ética alcança, assim, seu estatuto de saber autônomo, e passa a ocupar um lugar preponderante na tradição cultural e filosófica do Ocidente. O termo ethos é uma transliteração dos dois vocábulos gregos ethos (com eta inicial ) e ethos (com épsilon inicial). (...) A primeira acepção de ethos (com eta inicial) designa a morada do homem (e do animal em geral)). O ethos é a casa do homem. Este sentido de um lugar de estada permanente e habitual, de um abrigo protetor é o que origina a significação do ethos como costume, esquema praxiológico durável, estilo de vida e ação. A metáfora do morada e do abrigo indica justamente que, a partir do ethos, o espaço do mundo torna-se habitável para o homem. (...) é no espaço do ethos que o logos torna-se compreensão e expressão do ser do homem como exigência radical do dever-ser ou do bem. (...) A segunda acepção de ethos (com épsilon inicial) diz respeito ao comportamento que resulta de um constante repetir-se dos mesmos atos (...) O ethos nesse caso denota uma constância no agir que se contrapõe ao impulso do desejo. O modo de agir (tropos) do indivíduo, expressão da sua personalidade ética, deverá traduzir, finalmente, a articulação entre o ethos como caráter e o ethos como hábito.(...).Mas, se o ethos (com épsilon inicial)designa o processo genético do hábito ou da disposição habitual para agir de uma certa maneira, o termo dessa gênese do ethos – sua

1 VAZ, H.C.L. Fenomenologia do Ethos. In: VAZ, H.C.L. Escritos de Filosofia II. Ética e cultura. Loyola, 2000. P. 11-16.

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forma acabada e o seu fruto- é designado pelo termo hexis, que significa o hábito como possessão estável, como princípio próximo de uma ação posta sob o senhorio do agente e que exprime a sua autárkeia, o seu domínio de si mesmo, o seu bem. Entre o processo de formação do hábito e o seu termo como disposição permanente para agirde acordo com as exigências de realização do bem ou do melhor, o ethos se desdobra como espaço da realização do homem, ou ainda como lugar privilegiado de inscrição da sua práxis.Enquanto ação ética, a práxis humana é a atualização imanente (enérgeia) de um processo estruturado segundo uma circularidade causal de momentos, e essa constitui exatamente o primum notum, a evidência primeira e fundadora da reflexão ética.O ethos como costume, ou na sua realidade histórico-social, é princípio e norma dos atos que irão plasmar o ethos como hábito. Há, pois uma circularidade entre os três momentos: costume (ethos), ação (práxis), hábito (ethos-hexis), na medida em que o costume é fonte das ações tidas como ética e a repetição dessas ações acaba por plasmar os hábitos. A práxis, por sua vez, é mediadora entre os momentos constitutivos do ethos como costume e hábito. (...) Ao expor a circularidade dialética do ethos, Hegel indica a diferença entre o costume (ethos) e a lei (nómos) como dupla posição do universal ético que é o conteúdo próprio da liberdade ou na forma da vontade subjetiva (o conteúdo da ação ética é, então, virtude), ou na forma da vontade objetiva como poder legiferante válido (o conteúdo da ação ética é, então, lei). A passagem do costume à lei assinala justamente a emergência definitiva da forma de universalidade e, portanto, da necessidade imanente, que será a forma por excelência do ethos, capaz de abrigar a praxis humana como ação efetivamente livre. O ethos como lei é, verdadeiramente, a casa ou a morada da liberdade. Essa a experiência decisiva que está na origem da criação ocidental da sociedade política como espaço ético da soberania da lei. No início das Leis, Platão nos fala da educação en éthesi... nomikois, o que se pode traduzir, evocando Montesquieu, “no espírito de excelentes leis”. È sob a soberania de leis justas que o exercício da liberdade se constitui.

2. Democracia e Dignidade Humana2

2 VAZ, H.C.L. Democracia e Dignidade. In: VAZ, H.C.L. Ética e Direito. Loyola, 2002, p. 353-366

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Introdução. O título da presente comunicação aponta, desde o início de nossas considerações, na direção de um fundamento teórico cuja solidez será necessário comprovar, a fim de que possamos estabelecer, com suficiente rigor demonstrativo, a proposição que afirma ser a democracia, no plano político, a expressão mais adequada da dignidade humana. À primeira vista a junção dos dois termos desta proposição presta-se a uma objeção de princípio, pois eles situam-se em níveis conceituais diferentes. Com efeito, “democracia” é um conceito político, “dignidade humana” um conceito ético. Por sua vez, a relação que se afirma vigorar entre os dois na proposição que nos cabe explicar e demonstrar é uma relação de tipo ontológico, vem a ser, aquela que tem lugar entre o ser e o fenômeno, entre a essência e sua manifestação. Ela pressupõe no nome uma dignidade essencial e pretende mostrar na democracia a forma mais adequada de expressão dessa dignidade no campo político. Supondo-se ser a dignidade uma prerrogativa do ser moral do homem como quer Kant (CRP, A, 145), a manifestação dessa dignidade na forma da organização democrática da sociedade Política implica necessariamente uma articulação ontológica entre Moral e política (na perspectiva de uma ontologia do ser humano ou de uma antropologia filosófica) que torna possível a manifestação, no campo político, das exigências que fluem da essencial e intrínseca moralidade do homem e de seu agir. Ora, essa relação entre essência e manifestação, que parece ser a estrutura ontológica adequada subjacente à proposição que faz da democracia expressão da dignidade humana não encontra, surpreendentemente, a esperada confirmação na história do pensamento ético e político do Ocidente. Ao contrário, estamos aqui em face de um paradoxo que reclama nossa atenção. De uma parte, temos o pensamento clássico, que admite uma profunda unidade entre Ética e Política (unidade que é identidade em Platão e que, em Aristóteles, se mantém na distinção metodológica das duas disciplinas. Ver H.C.L.Vaz, Ética e Cultura, cap. II)).Ora, na filosofia política clássica, prolongamento da Ética, não encontramos nenhuma teoria que se proponha estabelecer uma relação de necessária conseqüência entre a idéia da dignidade do homem e a forma democrática do governo. Ao invés, essa relação começa a ser formulada justamente no contexto do pensamento político moderno, quando se aprofundam a cisão entre Ética e Política. Por outro lado, no momento de sua aparição, ela não é tanto uma tese de filosofia política, quanto uma caracterizada proclamação ideológica. Como tal, ela passa a fazer parte da linguagem dos ideólogos das revoluções liberais a partir dos fins do século XVIII. Portanto, recuperar ao nível de uma filosofia política rigorosa a proposição que articula democracia e dignidade humana impõe-se como tarefa teórica precípua às correntes de pensamento político que se reconhecem numa comum inspiração democrática. Este, igualmente, o alvo que aqui nos propomos. Enfoque histórico. Esquema.Problemas acerca da melhor Politéia – da mais justa – como uma questão que alimenta o tópos (lugar) clássico sobre o critério para a classificação das constituições, como centro do pensamento político grego (Vaz, 2002, p. 356). A justiça, como parâmetro de distinção política.