pureza e perigo

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    Civitas Porto Alegre v. 5 n. 2 jul.-dez. 2005 p. 399-413

    Da diferena perigosaao perigo da igualdadeReflexes em torno do paradoxo moderno

    Ruth M. Chitt Gauer*

    Mary Douglas uma destas autoras que quando nos deparamos na estante

    de livros, ficamos tentados em rel-la. H alguns dias, isso ocorreu. Deparei-mecomPureza e perigo (Douglas, 1976. p. 56), livro que trabalhei na dcada de70. Relendo algumas passagens do livro, que destaquei h tanto tempo, verifi-quei o enfoque dado pela autora sobre as questes da pureza, do perigo, daimpureza, da sujeira. A nfase no exame destas questes est vinculado a outra

    problemtica, no menos importante, que a autora trabalha, qual seja: a questoda ordem. Pensei como a ordem fundamenta todo um padro de comportamen-to que nem sempre costumamos relacionar impureza e ao perigo. No entanto,

    nada mais apropriado que pensar na ordem para compreender a desordem as-sim como todo o tipo de discriminao. A sujeira um fato que nos repugna,temos horror a certos tipos de sujeira, passamos pensando o quanto importan-te a limpeza, a pureza e a ausncia de qualquer perigo. Tudo o que nos cercadeve estar imune contaminao e impureza, mesmo as mais microscpicas.A ordem est colada organizao: todas as coisas em seus lugares e todos oslugares com suas coisas igualmente ordenadas e purificadas.

    * Historiadora, antroploga, doutora pela Universidade de Coimbra, professora dos programasde ps-graduao em Histria e em Cincias Criminais na Pucrs. Pesquisa financiada peloCNPq. Email: [email protected]

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    A obsesso pela limpeza configurada pela disciplina. Nada mais impor-tante para essa obsesso que a busca desesperada pelo modelo que retrate

    limpeza, normalmente associada ao belo. A beleza est vinculada aparnciade limpeza do corpo, o qual deve estar livre de impurezas, isto , com ausn-cia de resduo, mesmo os mais microscpicos, como se isso fosse possvel.A esttica, nomeadamente no sculo XIX, colou a limpeza de tal forma quese tornou uma obsesso. Desde a era vitoriana podemos observar esse com-

    portamento obsessivo principalmente atravs das tarefas femininas. Emboraas casas e mesmo as ruas das cidades exalassem odores no muito agradveis,as mulheres tinham uma jornada diria de trabalho que hoje no podemos

    sequer imaginar, ligada s tarefas da casa. O tempo de limpar, lavar, passar,desinfestar etc. ocupava mais de doze horas dirias de trabalho pesado e esta-fante. Esse fato no iniciou no sculo XIX. Muito antes as questes de pure-za, higiene e sujeira estabeleciam a ordem da casa (espao privado) assimcomo a ordem do espao pblico.

    A limpeza dos espaos pblicos foi e tambm realizada pelas institui-es vinculadas esfera da administrao e das polticas pblicas (a casa,exemplo de espao privado, tambm foi submetida disciplina da higiene).

    Desde a antigidade o isolamento foi uma prtica utilizada para evitar acontaminao, o exemplo histrico de excluso mais conhecido o dos le-

    prosos. Na modernidade essa prtica continuou, passou-se a isolar casas,hospitais, at quarteires inteiros de cidades como forma de proteo dosespaos no contaminados. Esses locais vistos como perigosos deveriam estar

    bloqueados como forma de imunidade dos locais limpos. O isolamento comomedida de exceo constitua-se na nica forma de proteo.

    A reflexo sobre a sujeira envolve pensar relao entre a ordem e a de-sordem. Nada mais eficaz do que a disciplina moderna para garantir a ordem.As tcnicas disciplinares preocupam-se no apenas com a sujeira e a doena,elas trataram e tratam de organizar meios para disciplinar todas as formas deexpresso e de comportamento, da forma como sentamos mesa at a maiscotidiana comunicao buscando os ideais de ordem. A civilizao perseguiufreneticamente o controle e o domnio de toda e qualquer forma de perigo.O respeito com as converses e a higiene se constitui em duas ferramentas

    eficazes de controle social. A representao sobre a limpeza e a pureza pre-tende eliminar a entrada do grotesco, do monstruoso, do feio, do disforme, do

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    violento, em resumo, de todos os modelos perigosos para as convenesestabelecidas pela civilizao. Talvez possamos afirmar que o modelo de

    igualdade, tal como foi criado nos tempos modernos, tenha estruturado todasas aes sociais e polticas desde seu incio com o objetivo de eliminar dife-renas contaminadoras e, portanto, perigosas.

    A modernidade disciplinou no apenas os homens, mas todas as coisasque pudessem estar fora do lugar. Mary Douglas (1976, p. 18) refere que oreconhecimento de qualquer coisa fora do lugar constitui-se em ameaa, eassim as consideramos desagradveis e as varremos vigorosamente, pois so

    perigos em potncia. Neste processo de limpeza os perigos so semi-identitrios. A modernidade criou essa compulso, esse desejo irresistvel deordem e de segurana. O mundo perfeito, utopia dos iluministas, seria total-mente limpo e idntico a si mesmo, transparente e livre de contaminaes.A racionalidade expressa pelas convenes e pelas leis tinham como fimimunizar a sociedade contra a violncia, a corrupo, a seduo das crenas edemais impurezas. Os modernos esqueceram, no entanto que no haveriaimunidade para o egosmo, o niilismo e para a explorao de um nmeroenorme de seres humanos.

    Quais os procedimentos polticos, jurdicos, administrativos, e quais osdispositivos que permitiriam a busca da construo e manuteno de umasociedade higienizada e imunizada? A compulso pela ordem esteve, e est,

    presente nas sociedades ocidentais, seja nos regimes polticos das democra-cias liberais seja nos regimes totalitrios. Porm h que se salientar que aviolncia depuradora sempre esteve mais presente nos ambientes onde aexceo constitui-se a regra. A eliminao dos adversrios polticos vista

    como uma forma de limpeza. Ela visa a atingir os opositores e a todos os quepodem se constituir em perigo. Os exemplos histricos mais recentes como onazismo, fascismo, comunismo, assim como as formas mais diferenciadas deditaduras na contemporaneidade comprovam, sem muito esforo, a utilizaode prticas de saneamento dos sistemas polticos. Nos estados de exceo, os

    perigosos, todos os que so identificados como potencialmente contaminado-res, devem ser purificados ou eliminados. Quando os estados passaram aestabelecer polticas pblicas para cuidar do corpo da populao, purificando

    a sociedade e assim protegendo e ordenando a vida pblica e privada,abriu-se a possibilidade para a incluso de alguns e logicamente a exclusode outros.

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    A manuteno do modelo igualitrio ganha espao na mesma proporoque os regimes totalitrios e de exceo se aprofundam. Quanto maior a ex-

    ceo, maior a igualdade, por mais paradoxal que possa parecer. Dumont(1985, p. 270-274) sugere que o nacional-socialismo tenha revelado a essn-cia mesmo que essa opinio possa causar algum, mas no suficiente, inc-modo mal estar da sociedade contempornea. A atomizao do indivduofez com que prevalecesse uma tenso contraditria. Por um lado, a emancipa-o gerou o individualismo arrebatado, por outro, uma coletivizao ao ex-tremo, isto , o nivelamento de todas as diferenas, conduziu pior das tira-nias. Esse fato eliminou o carter carismtico do vnculo social e abriu a

    possibilidade de eliminar os laos de solidariedade que uniam as comunida-des e estruturavam a sociedade. A ausncia de laos de solidariedade implicana abertura da excluso em nome da ordem igualitria totalizadora. Os peri-gos precisam ser eliminados, limpos, depurados, para que a totalidade se faano conjunto da sociedade. Contemporaneamente a sociedade de massa revelaa impossibilidade de pensar na forma, na essncia e no modelo. Esse aspectotraz problemas para a democracia.

    Partindo da premissa que a democracia tem por base uma igualdade, es-truturada na naturalizao do indivduo, constituda pelo direito, o que pres-supe a excluso do desigual (diferente) em nome da ordem, cabe aqui lem-

    brar que nesse caso a fora poltica se sustenta na medida em que se purificacolocando distncia entre a ordem e a desordem, entre a pureza e o perigo,com a tentativa de eliminao do estranho, do desigual, impedindo que ele setorne um perigo ameaador da homogeneidade. Se representao e identidadeconstituem, nas palavras de Franco de S (2004, p. 34, 51-52), a fora de umademocracia, no e possvel falar de democracia que prescinda da identidade.

    Jaques Derrid quem tenta pensar a democracia por vir atravs do apelode uma outra fraternidade. Para ele, a desnaturalizao estava em obra na

    prpria formao da fraternidade. A presena de qualquer grau de homoge-neizao e de excluso daquele que no homogneo implica na configura-o de uma totalidade. Na contemporaneidade a soberania do estado passou aser a soberania do direito. Hans Kelsen (1979) defendeu a identidade entre oEstado e a prpria ordem legal. A teoria pura do direito vista pelo autorcomo forma acabada da universalidade da ordem jurdica em termos de ra-

    cionalidade. A partir desta constatao, o exerccio da soberania, nos regimesdemocrticos, apresenta-se como a soberania da ausncia de soberania. Para

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    o autor, a teoria pura do direito est para a soberania como a verdade est para a evidncia. Seguindo essa reflexo, podemos encontrar nas teses de

    Schmitt (apud S, 2004), a questo da exceo. O autor explora profunda-mente a relao entre o ocaso da soberania poltica e a emergncia do concei-to de guerra humanitria enquanto guerra discriminante ou criminalizante,isto , guerra total, exemplo de regime de exceo. A prpria soberania, naatualidade, sofre evidncias devastadoras. A busca de novos fundamentos noser suficiente para imuniz-la da correo que uma forma de evidnciadevoradora. A soberania da igualdade, que nasceu naturalizada, ficou profun-damente contaminada pelos vrios eventos do sculo XX entre os agentes

    contaminadores mais emblemticos citamos os regimes de exceo o na-zismo e os fascismos.

    Fica evidente que a poltica da igualdade potencializa a violncia de v-rias formas: eliminando todo e qualquer outro, o diferente, o sujo, o impuro, oanormal, o doente, enfim tudo o que causa estranheza, perigo, que lembrasujeira e desordem. O tecido social precisou ser impermeabilizado a tal pontoque a sua proteo torna difcil pensar em rupturas que permitam a contami-nao. As prticas polticas adotadas na modernidade, em nome da igualdade,que visava eliminao das hierarquias medievais, estavam pautadas na

    prescrio de condies de controle dos comportamentos individuais e coleti-vos. Essa pretenso de controle social nada mais que a submisso da ao

    pelo comportamento: a ao enquanto possibilidade de criao e o compor-tamento pautado pela previsibilidade. A perspectiva da previsibilidade encon-tra-se vinculada lgica binria e dual tpica do pensamento moderno. Rea-firma o paradigma do ou isto ou aquilo, do sujo e do limpo, do modelo e doantimodelo. No entanto, o pensamento moderno estruturou uma forma de

    excluso que obscureceu a possibilidade de preferncia. Poderamos preferira incluso e no a excluso, ou seja: isto, aquilo, alm de outros.

    A lgica da excluso foi a base para a construo de termos comoclasse, raa, gnero, entre outros, que serviam identificao dossujeitos. Hoje esses termos dissolvem-se. As dimenses de territorialidadeque circunscreviam os espaos sociais romperam-se e a ordem das coisas,tal como pensada na modernidade, embasada na premissa da incluso e da

    excluso, deixou de ser a norma. Por intermdio de alguns fenmenos con-temporneos, d-se um processo de despurificao das identidades so-

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    ciais. A reteno de uma essncia identitria esforo nostlgico de afir-mao cada vez menos vivel. Podemos observar que todas as prticas

    culturais esto sob o contato contnuo entre o local e o global, fato esse queimpede a simples questo que pautou a incluso-excluso ao mesmo tempoem que impossibilita pensar uma igualdade tal como defendida pelos direi-tos humanos. Alguns exemplos mais marcantes podem ser apontados: ocaso da mulher paquistanesa condenada morte por crime de honra o qualfoi cometido por seu irmo; as famlias dos homens bomba que so punidas

    pelo crime cometido por eles quando suas casas so destrudas; noventa ecinco por cento dos casos julgados no Paquisto so realizados pelos conse-

    lheiros locais que julgam segundo os princpios especficos de sua cultura,desconhecendo a questo dos direitos humanos. Esses fatos suscitam ques-tes que focalizam aqueles processos que so produzidos na articulao dediferenas culturais. H uma intensa negociao nesses entre-lugares,lugares de negociao em andamento, locus do aqui e agora. A soma das

    partes envolvidas e suas demandas no implicam num nico resultado, masimplementam mltiplas negociaes e sobredeterminaes (como o disposi-tivo irrefrevel tal como analisado por Foucault).

    O embate cultural que caracteriza as crises sociais da atualidade no envolve, necessariamente, o duelo entre tradio e modernidade. Oadvento dos fundamentalismos (tentativa lograda de resgate) apenas umlado do caleidoscpio social onde as questes da ordem, do perigo, da in-cluso e, sobretudo, da excluso constituem-se no lcus das polticas atuais.

    As reflexes sobre os temas acima abordados so fundamentais para acompreenso da crise epistemolgica que vivemos. A premente necessidade

    de relativizar a verdade e vincular a anlise a um pensamento heterotpico,no consensual, permitiria uma maior visibilidade da crise em que estamostodos envolvidos. Esses temas no se encontram necessariamente juntos.Eles podem aparecer no desespero epistemolgico, no relativismo, entreoutros lugares. O certo que a sociedade j no consegue ser explicada

    pelo positivismo e pelo determinismo racionalista. No h preparao paralidar com o erro, com as impurezas, s podemos pensar nelas como possibi-lidade de nos imunizarmos. O Caos d visibilidade a uma instabilidade que apenas aparente. Qual o lugar para uma realidade nica? Em tempos poli-fnicos impossvel pensar na Babel.

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    Vivemos uma poca onde a prpria temporalidade deixou de ser vista deforma totalitria. A superao do eterno retorno, tempo cclico, foi substitu-

    do pelo tempo linear projetivo que estruturou a viso de que o tempo se trans-formou em histria. A base dessa viso estruturada na totalidade linear e nodeterminismo racionalista foi fragmentada. Essa viso foi quebrada pelasimultaneidade. O presente se torna imprescindvel. Ao lado da simultaneida-de temos a invisibilidade, os desvios sociais, ausncia do estado nos bolsesde misria gerando a violncia. Qual o papel do estado frente invisibilida-de? Frente pergunta, a seduo poderia ser dispensada? No entanto, identi-ficar o discurso em nvel de senso comum torna-se fundamental para visuali-

    zar como o discurso da purificao est presente inconscientemente. Somosseduzidos por outros mecanismos que do maior visibilidade uma vez que as

    palavras no possuem a transparncia necessria.

    A impossibilidade de uma verdade nica, de uma identificao tota-lizante, associada a uma velocidade, que segundo Virilio (1973) a velhicedo mundo, matam o discurso poltico. Nesse quadro, o consensual fica sendoos totalitarismos, os fundamentalismos, enfim, todos os determinismos totali-trios prprio de tempos de descrena e de desconstruo de verdades limpas,ordenadas, protegidas dos perigos, enquadradas na limpeza purificadora queordena o social com a possibilidade de termos a ditadura do modelo reveladorda ordem dos Estados Nacionais, tais como pensados desde o sculo XVIII.Outra pergunta se faz necessrio: o consensual ficaria sendo o totalitarismo?Todos os determinismos so totalitrios? Propor um pensamento heterotpi-co, no consensual, estruturante, sem levar em conta que as teorias do con-senso existem para tornar invisveis as manifestaes polticas partidrias.Onde esto os requisitos dos totalitarismos? Em todos os nveis sociais as

    suas manifestaes ocorrem quotidianamente.

    A questo no envolve a justaposio da diferena, ao lado do consensocultural, no se trata apenas de incluso e reconhecimento das minorias,nesse caso, o ideal essencializador (ou identitrio) seria reforado. Concordo,neste sentido, com Bhabha (2001, p. 20-46) sobre a possibilidade de afirmaro deslocamento do lugar onde as relaes sociais se concretizam. O autor re-fere que os entre-lugares, as fmbrias, os interstcios, enfim, correspondem

    ao lcus no qual se exercitam as relaes sociais. As diferenas culturais soexercitadas engendrando novos espaos e temporalidades, o que implica umdeslocamento constante, anulando as categorias de centro e periferia.

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    Para Bhabha (2001), essa passagem intersticial entre identificaes fi-xas abre possibilidade de um hibridismo cultural que acolhe a diferena sem

    hierarquia suposta ou imposta. O presente o tempo de agora, capaz de seautogerar, distante do historicismo teleolgico das causas. Nem ruptura,nem projeo, abandona-se a seqencialidade.

    O autor refere ainda que o presente torna-se obeso, alargado, expandi-do pelas experincias nascidas do hibridismo cultural. O presente no temlugar ele ex-cntrico, isto o fim da hierarquia centro-periferia e sua cor-respondente temporalidade (o presente no o meio do caminho entre passa-do e futuro, mas, paradoxalmente, contm ambos (porque os re-significa) enenhum, ao mesmo tempo (na medida em que, nessa re-significao, subvertea fixidez de suas caractersticas).

    A idia da homogeneidade vista como pureza das culturas nacionais, oumesmo das raas, a exemplo do nazismo, fica comprometida, passando a serquestionada. o ocaso do etnocentrismo. A interferncia das minorias ocupao territrio da cultura, mas no produz a multiplicao da prosa austera dosrefugiados polticos e econmicos. nesse sentido que a fronteira se torna o

    lugar a partir do qual algo comea a se fazer presenteem um movimento nodissimilar ao da articulao ambulante, ambivalente, do alm. Como decor-rncia, o exotismo minoritrio no um mix de diversidades mas uma trans-formao qualitativa: o nascimento de novas conexes que extrapolam asdualidades: minoria X maioria, capital x trabalho, estado x sociedade, metr-

    pole x colnia, pureza x perigo e assim por diante. O que impressionante nonovo internacionalismo que o movimento do especfico ao geral, do materi-al ao metafrico, no uma passagem suave de transio e transcendncia

    (Bhabha, 2001, p. 25-26). A meia passagem da cultura contempornea comono caso da prpria escravido, um processo de deslocamento e disjunoque no totaliza a experincia.

    Ao lado dessa reflexo, de releitura da contemporaneidade, h tambm,um movimento poltico. Na viso do autor, na medida em que esse espaodo alm torna-se um espao de interveno no aqui e no agora. Trata-se deum movimento de renovao do passado, reconfigurando-o como entre-lugar contingente, que inova e irrompe a atuao do presente. Segundo

    Bhabha, na linguagem bejaminiana, quando o presente explode para forado contnuo da histria. Ao invs do continuum cristalizado, no sucessivo

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    de passado-presente, o dilogo cultural engendra uma espcie de novoconceito de novo, caracterizado pela emergncia constante da traduo

    cultural. Isto , a modernidade tropical ps-colonial no a Mesma doVelho Mundo autenticada to pouco completamente diferente desta.Igualdade na Diferena. O desejo de reconhecimento (como o Eu no

    pareo com voc, da msica do Rappa) introduz a negao, ao contingen-te, pois impe uma transcendncia (reconhecimento alm do tempo).A minoria no quer ser includa, higienizada, tornada semelhante, masser reconhecida. Ainda segundo o autor (Bhabha, 2001, p. 29-59) reconhe-cer implica deslocar o fundo fixo da identidade, superando a diacronia da

    histria. A tradio ocidental, que se buscou sempre a exegese da diferena,embora nunca conseguido superar o arco hermenutico para alm do outro(como o prprio em si), d seus ltimos passos. O Outro perde o poder designificar, de negar, de iniciar seu desejo histrico, de estabelecer seu pr-

    prio discurso institucional, do puro e do impuro. A experincia social dateoria crtica ocidental perfaz um caminho que vai da considerao dobom selvagem de Rousseau, ao bom e dcil corpo da diferena, nosdiscursos contemporneos do multiculturalismo. Essa concepo permite a

    compreenso de experincias como sendo, ela mesma, a marca da impossi- bilidade de se localizar tanto uma origem, quanto uma pureza cultural.Produz um problema irresolvvel de diferena cultural para a prpria inter-

    pelao da autoridade cultural colonial. Como exemplo, Bhabha lembra quena relao entre hindusmo e cristianismo, sob a gide do discurso colonia-lista, e para sua prpria eficcia, foi preciso encontrar catequistas nativos,que traziam consigo suas prprias ambivalncias e contradies culturais e

    polticas. As noes liberais de multiculturalismo, de intercmbio de cultu-ras e de cultura da humanidade, so uma retrica que considera as culturascomo portadoras de contedos totalizveis, de memrias mticas e de iden-tidade coletiva nica, o arcabouo da tradio.

    A luta se d freqentemente entre o tempo e as narrativas historicistas,teleolgicas ou mticas, do tradicionalismo de direita ou de esquerda e ocampo deslizante, estrategicamente deslocado, da articulao de uma polticade negociao. Para Bhabha (2001, p. 65-68), o tempo de libertao (...)

    um tempo de incerteza cultural, e, mais crucialmente, de indecidibilidadesignificatria ou representacional.

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    Uma cultura no pode ser auto-suficiente por causa da differance daescrita, quer dizer no processo de manifestao simblica da linguagem

    porque existe, de acordo com o autor, uma diferena manifesta no prpriolugar do enunciado. Isso justifica-se porque o pacto da interpretao nun-ca simplesmente um ato de comunicao entre o Eu e o Voc designadosno enunciado. A produo de sentido requer que esses dois lugares sejammobilizados na passagem para um Terceiro Espao, que representa tanto ascondies gerais da linguagem quanto a implicao especfica do enunciadoem uma estratgia performativa e institucional da qual ela no pode, em si,

    ter conscincia. O que essa relao inconsciente introduz uma ambivaln-cia no ato da interpretao.1

    O que o autor pretende desafiar a noo de identidade histrica dacultura como fora homogeneizante, unificadora, totalizante, autenticada

    pelo passado originrio mantido vivo na tradio nacional de um Povo.Sua perspectiva desloca a narrativa da nao ocidental de modo a tornarmanifesto que o discurso sobre a pureza inerente s culturas (ou a purezaracial) insustentvel, mesmo antes de recorrermos a instncias histricas

    empricas que demonstram seu hibridismo. Para esse fim deveramos lem- brar que o inter fio cortante da traduo e da negociao, o entre-lugar que carrega o fardo do significado da cultura. E, ao explorar esseTerceiro Espao, temos a possibilidade de evitar a poltica da polaridade eemergir como os outros de ns mesmos. Esse fim nos levaria ao abandonoda incluso-excluso.

    Importante lembrar ainda outra expresso do autor influenciada pelo

    pensamento de Walter Benjamim, quando cita a seguinte passagem do texto bejaminiano: o estado de emergncia em que vivemos no a exceo,mas a regra. Temos de nos ater a um conceito de histria que corresponda a

    1 Para uma anlise sobre a complexidade do processo de enunciao, bem como da relaoentre emissor, mensagem e receptor, e suas interconexes com a teoria hermenutica, sugere-se o captulo Hermenutica e Cincias Humanas onde Luiz Eduardo Soares afirma que alinguagem antecede o sujeito, instaura com este uma dialtica, na qual representa ouniversal aquilo que, oferecendo-se ao sujeito, o precede e sucede, o inclui tornando-o possvel e o exclui, prescindindo de sua interveno para configurar-se em suaessencialidade universal, mas que, simultnea e paradoxalmente, depende dele para existir,assumindo concretude nas particularizaes que ele realiza (Soares, 1994, p. 45).

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    essa viso (Benjamim, 1987). A luta contra a discriminao, a opresso, o perigo da Impureza racial, entendido como sujeira, no apenas muda a

    direo da histria ocidental, mas tambm contesta sua idia historicista detempo como um todo progressivo e ordenado. A anlise da despersonaliza-o no somente aliena a idia iluminista de homem, mas tambm contestaa transparncia da realidade social como imagem pr-dada do conhecimen-to humano. Afinal, a prpria natureza da humanidade se aliena na condioda discriminao e a partir daquela declividade nua ela emerge, no comouma afirmao da vontade nem como evocao da liberdade, mas comouma indagao enigmtica: de o que quer o homem? (cf. Fanon, 1983)

    desloca e questiona: o que deseja o homem negro?

    Ao articular o problema da alienao cultural colonial na linguagempsicanaltica da demanda e do desejo, Fanon questiona radicalmente a for-mao tanto da autoridade individual como da social na forma como vm ase desenvolver nos discursos da soberania social. Para ele, tal mito doHomem e da Sociedade fundamentalmente minado na situao colonial.A vida cotidiana exibe uma constelao de delrio que medeia as relaes

    sociais normais de seus sujeitos: o preto escravizado por sua inferioridade,o branco escravizado por sua superioridade, ambos se comportam de

    acordo com uma orientao neurtica. A esse quadro social, o autor cha-ma de delrio maniquesta.

    De acordo com Fanon, o que freqentemente chamado de alma ne-gra um artefato do homem branco. Bhabha afirma que esta transfernciarevela a incerteza psquica da relao colonial porque suas representaesfendidas so o palco da diviso entre corpo e alma que encena o artifcio

    da identidade, uma diviso que atravessa tanto a pele branca quanto a preta no processo de firmamento da autoridade individual e social. Daemergem trs condies subjacentes a uma compreenso do processo deidentificao na analtica do desejo:

    a) existncia no transcendente, mas d-se em relao a uma alteri-dade, seu olhar e seu locus. Ou seja, o colonizador, s existe em relao aocolonizado e o negro em relao ao branco. Esse pensamento supera o arco

    hermenutico;

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    b) o prprio lugar da identificao j contm uma ciso porque preci-samente naquele uso ambivalente de diferente ser diferente daqueles que

    so diferentes faz de voc o mesmo que o Inconsciente fala da forma daalteridade, a sombra amarrada do adiamento e do deslocamento. No o Eucolonialista nem o Outro colonizado, mas a perturbadora distncia entre osdois que constitui a figura da alteridade colonial;

    c) a identificao nunca a afirmao de uma identidade pr-dada, nun-ca uma profecia auto cumpridora sempre a produo de uma imagem deidentidade e a transformao do sujeito ao assumir aquela imagem. A de-manda da identificao isto , serpara um Outro implica a representaodo sujeito na ordem diferenciadora da alteridade (Bhabha, 2001, p. 76-78).

    Os retratos ps-coloniais manifestam o ponto de fuga de duas tradiesfamiliares do discurso da identidade: a tradio filosfica da identidade como

    processo de auto-reflexo no espelho da natureza humana tal como o cogitoergo sum cartesiano (Descartes, 1973) e a viso antropolgica da diferenada identidade humana enquanto localizada na diviso natureza/cultura talcomo aponta Claude Lvi-Strauss (1975) acerca do tabu do incesto. Funciona

    como dobradia, da passagem, entre natureza e cultura. a impossibilidadede reivindicar uma origem para o Eu (ou o Outro) dentro de uma tradio derepresentao que concebe a identidade como a satisfao de um objeto deviso totalizante, plenitudinrio. Ao romper a estabilidade do ego, expressana equivalncia entre imagem e identidade, a arte secreta da invisibilidademuda os prprios termos de nossa percepo da pessoa. A prpria questo daidentificao s emerge no intervalo entre a recusa e a designao. Ela encenada na luta agnica entre a demanda epistemolgica, visual, por um

    conhecimento do Outro e sua representao no ato da articulao e da enun-ciao.

    O poder total construdo com base na impessoalidade e na igualdade permitiu o discurso da identidade que pode ser pensada como a auto-interpretao poltica do mundo contemporneo. A totalidade dos estadosnacionais foram construdas, em boa parte, pelo sentido declinante de co-munidade, a incluso dos iguais e a excluso dos diferentes. Por outro lado,a perda de valores espirituais unificados, que foram substitudos pela possi-

    bilidade de liberdade de credo, o crescimento do poder do Estado e dacultura de massas, e mesmo o aumento do conhecimento constituram-se

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    em aes polticas baseadas na liberdade mas que no desempenharam um papel social que tivesse impedido a discriminao. O historiador Jacob

    Burckhardt via claramente o lado decadente da natureza humana, nessecontexto, acreditava que era uma barreira permanente ao progresso. Seuargumento principal era considerar a decadncia essencialmente como umdecrscimo geral na vitalidade, que se originava numa certa espcie devirtude, a moral das velhas senhoras do cristianismo e da burguesia, quesalientava a piedade, o amor ao prximo, a solicitude e falta de confianaem si mesmo.

    Durkheim (1974) observou que as sociedades tiveram sempre mitos co-letivos para poderem existir, e isto era precisamente o que os europeus dofinal do sculo XIX j no possuam, ou estavam em processo de perder.Ele compreendia a suprema importncia para a sociedade das crenas co-muns e dos vnculos que tradicionalmente se encarnavam na religio, nafamlia e nas lealdades sociais e vocacionais. Para ele a Europa sofria deuma anomie (colapso geral da conscincia coletiva), que era o resultado dadiviso do trabalho, que estimulava a mobilidade e a especializao, e deste

    modo no s separava as pessoas umas das outras, como as tornava crticasem relao s normas tradicionais. Para muitos, essa era a melhor explica-o da decadncia contempornea. Era a crise espiritual, ou declnio dasvelhas crenas que deixara um vazio religioso e metafsico.

    Ao voltar ao pensamento de Durkheim, Baumer (1990) coloca que re-tirar-se de um novo mundo irracional do Fin-de-Sicle, para o mundo s-

    brio da razo e da cincia. Durkheim s pertencia a este novo mundo irra-cional, no sentido em que via a decadncia e procurava maneiras de a curar.

    Para compensar a anomie, que era a causa da doena social, era necessrio planejar uma nova solidariedade moral. Para isso o autor defendeu umanova tica secular e um novo tipo de instituio. A tica para ser ensinadanas escolas devia salientar o dualismo da natureza humana: por um lado aindividualidade do homem e a dignidade da pessoa humana, por outro lado,o lado social de sua natureza e at que ponto a sociedadeo afeta, mesmo namaneira como pensa e, conseqentemente, o que lhe deve.

    Estas receitas para a recuperao, baseadas numa crena na liberdadeda histria tal como da natureza, ajudam a explicar a evaporao parcial do

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    Recebido em 15 de janeiro de 2005 e aprovado em 20 de julho de 2005