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Ciência & Saúde Coletiva ISSN: 1413-8123 [email protected] Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva Brasil Goldbaum, Moisés Qualidade de vida e saúde: além das condições de vida e saúde Ciência & Saúde Coletiva, vol. 5, núm. 1, janeiro-março, 2000, pp. 19-31 Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva Rio de Janeiro, Brasil Available in: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=63050103 How to cite Complete issue More information about this article Journal's homepage in redalyc.org Scientific Information System Network of Scientific Journals from Latin America, the Caribbean, Spain and Portugal Non-profit academic project, developed under the open access initiative

Qualidade de vida e sa de:al m das con- filena teoria e pr tica da Sa de Coletiva. Apesar da concord ncia,a leitura e an lise do texto provocaram-me algumas indaga es, que compartilharei,

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Ciência & Saúde Coletiva

ISSN: 1413-8123

[email protected]

Associação Brasileira de Pós-Graduação em

Saúde Coletiva

Brasil

Goldbaum, Moisés

Qualidade de vida e saúde: além das condições de vida e saúde

Ciência & Saúde Coletiva, vol. 5, núm. 1, janeiro-março, 2000, pp. 19-31

Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva

Rio de Janeiro, Brasil

Available in: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=63050103

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Qualidade de vida e saúde: além das con-dições de vida e saúdeQuality of life and health: beyond livingand health conditions

Moisés Goldbaum 1

O artigo “Qualidade de vida e saúde: um de-bate necessário”, de Minayo, Hartz e Buss, dis-cute um assunto relevante e que compõe aagenda atual dos profissionais da saúde. Osautores fazem uma oportuna revisão da lite-ratura e apresentam uma adequada análise crí-tica sobre as diferentes perspectivas que têmorientado a produção científica sobre o tema.A condução geral do trabalho, com a qual con-cordo, mostra a necessidade de rever os con-ceitos e noções e trabalhá-los à luz de um pro-fícuo diálogo interdisciplinar, para aprimorá-los visando subsidiar os necessários avançosna teoria e prática da Saúde Coletiva.

Apesar da concordância, a leitura e análisedo texto provocaram-me algumas indagações,que compartilharei, neste debate, com auto-res e leitores. Procurarei apresentá-las de for-ma pontual e discorrer sobre as dúvidas queme suscitaram.

A primeira diz respeito às dimensões daqualidade de vida postas em uma perspectivaindividual e a sua correspondência na pers-pectiva coletiva. Assim, a posição assumida emrelação ao mal-estar com reducionismo biomé-dico ou mesmo à persistente visão medicaliza-da do tema poderia ser melhor trabalhada,considerando o seu caráter operacional (naanálise detalhada dos anais dos congressos ge-rais e temáticos da Abrasco, observou-se quefalta o esforço de fazer da noção um conceito etorná-lo operativo). Entendo que a forma co-mo a área médica expressa o tema encontra-se justificada pelo seu próprio referencial e/ouobjeto que é o indivíduo portador de doença,sobre o qual se debruça para restabelecer assuas melhores condições físicas, mentais e so-ciais, obedecidos os seus limites de atuação.Sem entrar no mérito do debate e significadodas novas tendências da clínica (que se faz ne-cessário) entre as quais se situa a citada medi-cina baseada em evidências, está bastante claroo caráter individual do trabalho clínico quelhe permite trabalhar no sentido que se pro-

1 Departamento de Medicina Preventiva, Faculdade de Me-dicina, Universidade do Estado de São Paulo

põe. A crítica que se pode tecer de forma mar-cada, no caso, pode estar na sua intenção deexplicar os problemas de natureza coletiva queestão requerendo todo o esforço de recompo-sição interdisciplinar. Dentro de seus limites,a construção que se vem operando na clínica(buscando o seu status científico) tem a sualógica e coerência. Reitero que esse fato mere-ce também um amplo debate, especialmentedas formas como vem a clínica sendo ofereci-da e de sua localização no setor saúde.

A afirmação de que na maioria dos estudoso termo de referência não é qualidade de vida,mas condições de vida, estilo de vida; situaçãode vida é bastante pertinente, revelando a in-suficiência da abordagem sobre o tema e re-força a idéia de que a discussão sobre o mes-mo tem a sua estratégia central na promoçãoda saúde. Neste ponto, os autores, a despeitode citarem a existência de um artigo sobre oassunto neste número da Revista, deixam deexplorar mais detidamente como este concei-to (promoção) constitui-se na estratégia-cha-ve para a discussão da qualidade de vida pelosetor saúde. Isso poderia responder, ao menosem parte, ao esforço necessário para torná-loum instrumento operativo.

Essa discussão se impõe, pois as modernasconcepções de promoção, tais como citadaspelos autores, encontram suas lógicas em for-mações sociais nas quais foram concebidas eque estão a merecer o debate em nosso meio.A isto deve-se agregar ou detalhar quais se-riam os possíveis elementos que essa nova con-cepção traz por referência às formulaçõesabrangentes de qualidade de vida. Entendo queo aprofundamento da questão poderia orien-tar estudos que superassem as insuficiênciasapontadas na revisão promovida, responden-do às novas formas de identificar variáveis quepudessem trazer, para o campo da saúde, a ri-queza do debate travado em outros setores eáreas do conhecimento. Esta questão especí-fica sugere uma articulação com o debate so-bre a crise da Saúde Pública, que tem sido ob-jeto de várias publicações. Venho me pergun-tando se esta crise não está radicada na iden-tificação mais precisa de seu objeto, que vem semodificando no decorrer da história, e nós,profissionais da Saúde Coletiva, não estamosalcançando a sua plenitude ou não estamospromovendo o seu aggiornamento, o que po-deria explicar, em parte e ao lado do reducio-nismo biomédico, o estreitamento do concei-to de qualidade de vida.

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A proposta de síntese da noção de quali-dade de vida em um campo semântico polissê-mico é abrangente, incluindo as idéias de de-senvolvimento sustentável e ecologia. Aqui ca-beria rever ou lembrar as teorias sobre as con-cepções dos mecanismos de adaptação, emseus sentidos amplos e restritos, como elemen-to de identificação de qualidade de vida e, porextensão, naquilo que se refere à saúde, supe-rando o pragmaticismo e/ou a racionalidadeque se procura imprimir a partir da construçãodos QALYs ou DALYs.

O trabalho identifica com precisão a idéiade que a qualidade de vida, em certas circuns-tâncias, é estratificada e está relacionada aosentido de bem-estar das camadas superiores,ou seja, determinado pela noções (ou possi-bilidades) de consumo. Na apreciação dos ins-trumentos propostos e utilizados mais recen-temente, fica a indagação de quanto os indi-cadores compostos, a despeito de sua menorou maior sofisticação, fogem a este padrão decompreensão ou explicação. Em outros ter-mos, não se observa, nesta análise, uma iden-tificação do grau de incorporação das novasdimensões definidoras de qualidade de vida,que cada um dos novos modelos promove.

Uma última ponderação poderia ser feitaa partir da observação de que a qualidade devida não é definível exclusivamente por crité-rios científicos ou técnicos, remetendo a ques-tão, também, para o âmbito político. Impõe-se perguntar se a incorporação de debates so-ciais amplos não são passíveis de tratamentocientífico, ficando a questão política voltadapara identificar a adequada aplicação ou for-mulação de intervenção baseada nos conheci-mentos produzidos.

Várias outras questões podem ser suscita-das pelo trabalho, o que revela a sua riquezaem termos de revisão do assunto e da sua rele-vância. Estas são algumas que apresento paraestimular o debate e que penso poderiam seraprofundadas. Lembro, todavia, que podemser motivação para novos trabalhos e, é claro,não espero que sejam exploradas exaustiva-mente neste curto espaço.

Qualidade de vida: individual ou coletiva?Quality of life: individual or collective?

Edson Mamoru Tamaki 1

Nada mais apropriado do que abordar o temada qualidade de vida na edição de abertura doinício do terceiro milênio. Assim como a éti-ca em saúde, este assunto certamente se cons-tituirá em uma das grandes questões do sécu-lo XXI.

A busca da qualidade de vida por meio daestratégia da promoção da saúde defendidapelos autores alarga o horizonte, amplia o uni-verso das ações possíveis, recompõe a carac-terística multifatorial e multidisciplinar nosfenômenos da saúde e ressalta a importânciada ação intersetorial, da participação ativa dosindivíduos e da comunidade ao nível local(Terris, 1996).

Ao mesmo tempo em que alarga os hori-zontes, o texto sugere linhas de desenvolvimen-to possíveis (promoção da saúde) e nos lançapara uma reflexão profunda sobre a qualida-de de vida; nos traz à realidade no momentoem que prega a busca de conceitos operativos,ou seja, aqueles que poderão ser integrados àprática política dos serviços de saúde.

Para contribuir com esta reflexão, o artigotraz um repertório de indicadores de qualida-de de vida que constituem um primeiro esfor-ço de operacionalização. São apresentados osprincipais indicadores (IDH, ICV, IQV, QVLS,HRQL, WHOQOL, QALY, GBD, DALY, HeaLY),onde críticas do tipo das citadas a seguir se al-ternam e se combinam: não levar em conside-ração a relatividade histórica ou social da qua-lidade de vida; os pesos dados a cada fator nãocontemplam ou não são representativos da di-versidade existente na sociedade; privilegia osbens materiais; não considera valores subjeti-vos, sentimentais ou emocionais; não leva emconsideração a intensidade ou a incapacidadeprovocada pelas doenças; os parâmetros uti-lizados são arbitrários, subjetivos ou não re-presentativos; não leva em consideração as de-sigualdades sociais existentes; privilegia os as-pectos econômicos; não considera a perspec-tiva do indivíduo; não leva em consideração

1 Departamento de Tecnologia de Alimentos e Saúde Pú-blica, Centro de Ciências Biológicas e da Saúde, Universi-dade Federal de Mato Grosso do Sul

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as questões ambientais; entre outras. Todos es-ses indicadores, inegavelmente, medem aspec-tos da qualidade de vida. Todos têm méritos elimitações e são questionáveis uns em relaçãoaos outros.

Qualquer método aplicado à avaliação daqualidade de vida sempre vai ser reducionis-ta, pois é um objeto permeado por múltiplasfacetas, em que não existe ou não é possívelcriar um modelo agregador que as reúna, to-das, em uma construção coerente, lógica, con-sensual e com uma capacidade explicativa dofenômeno da vida, da qualidade de vida.

Essa dificuldade faz com que a questão daqualidade de vida seja deslocada para condi-ções de vida, estilo de vida ou situação de vida,uma vez que estas são, em essência, descriti-vas, não trazem obrigatoriamente dentro de siconotações ideológicas ou de concepção de vi-da, prioridades, hierarquias ou julgamentosde valor.

Qualidade de vida poderia ser definida co-mo a satisfação das necessidades individuais.O bem-estar provocado pela satisfação das suasnecessidades definiria a qualidade de vida doindivíduo e a soma do bem-estar de todos osindivíduos constituiria a qualidade de vida dapopulação. Esta definição, bastante aceitávelpor sinal, permitiria a existência de situaçõesem que um indivíduo que, pelas mais varia-das razões, não teve acesso à educação, ao co-nhecimento e à informação, poderia conside-rar-se extremamente feliz dentro da sua inco-mensurável pobreza.

Operacionalizar tal conceituação traria areprodução das desigualdades sociais. Apesarde ser, aos olhos da sociedade, uma situaçãoinaceitável, alguém poderia argumentar, e nãosem razão: mas não é isso que procura o serhumano – a felicidade?

No plano particular da saúde, a operacio-nalização desse conceito implicaria adotar umadefinição como a de Illich (1974), em que saú-de não seria um estado, mas uma capacidade:a capacidade de se adaptar a um meio que semodifica, a capacidade de crescer, de envelhe-cer e de curar se necessário, de sofrer e de es-perar a morte em paz.

A aplicação dessa definição nos levaria aintervir ou agir sobre os indivíduos somenteno momento em que eles expressassem suasnecessidades. Será que tal conduta seria acei-ta por uma ‘sociedade’ que, à luz do conheci-mento existente, é capaz de identificar umainfinidade de situações não percebidas pelos

indivíduos, mas que comprovadamente con-tribuem para a melhoria do seu estado de saú-de, das suas condições de vida?

Neste momento, surge uma questão cru-cial: com que direito se pode impor a um indi-víduo situações que ele não julga necessáriase que, por essa razão, não lhe trazem aumen-to no seu bem-estar? Muito pelo contrário, porse ver contrariado, poderia haver redução noseu bem-estar, na sua qualidade de vida. Osvalores individuais (autonomia, liberdade, in-dividualidade) se confrontam com os coleti-vos (igualdade, eqüidade, justiça social).

O artigo, apesar de ressaltar a importânciade ambos, deixa, cuidadosamente, essa ques-tão em aberto no momento em que utiliza ter-mos como individual e coletivo, ou quandoadota como pressuposto a existência de umasíntese cultural de todos os elementos que de-terminada sociedade considera o seu padrãode conforto e bem-estar. O que se depreendedesta afirmação é que existiria uma síntese en-tre o individual e o coletivo em que todos sesentissem satisfeitos.

A economia, ao tratar da preferência dosindivíduos por um produto, bem ou serviço,traz elementos de resposta para essa questãoquando afirma que é impossível construir umacurva de preferências agregada (coletiva) queseja representativa das curvas de preferênciasindividuais. Isto quer dizer que com uma de-cisão coletiva é impossível agradar ao máxi-mo a todos. Neste caso, alguns terão de imporsuas preferências como ditadores invisíveis,como afirmam Maynard e Bloom, citados pe-los autores.

Não é possível satisfazer a todos. Logo, pa-ra avançar no sentido da operacionalização,será necessário estabelecer o ponto – entre asatisfação das necessidades individuais e a sa-tisfação das necessidades coletivas – a ser ado-tado como referência para desenvolver açõesvisando à melhoria da qualidade de vida. Ou,em outras palavras, definir o grau de imposi-ção destas ações sobre os indivíduos, para atin-gir o nível de qualidade de vida estabelecidopara cada sociedade.

Dallari (1987), ao se referir à mesma pro-blemática em relação ao direito à saúde, colo-ca a questão: é justo que, em nome do direitoà saúde, se restrinja o direito à liberdade doindivíduo? Conclui que os próprios membrosda sociedade devem ditar as regras que garan-tirão o direito à saúde, dispondo por exemplo,que em benefício de todo o grupo cada indi-

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víduo terá cerceada a sua liberdade de não servacinado contra a paralisia infantil, para que seacabe por fim com a doença. A forma comoserão ditadas essas regras, ou como serão ob-tidos os necessários consensos na sociedade,ainda é questão não satisfatoriamente resol-vida e que também necessitará de profundosdesenvolvimentos.

A estratégia da promoção da saúde, que sebaseia no conceito de campo de saúde, reto-mado por Dever (1988) nas suas estratégiaspara a prevenção (prevenção aqui entendidano sentido de prevenção de um mal maior),superaria essa questão, uma vez que propõedesenvolver todas as ações que contribuem pa-ra resolver um problema de saúde em umaperspectiva integral. Isto significaria ações deprevenção primária, secundária e terciária so-bre o estilo de vida, ambiente, biologia huma-na e sistema de prestação de serviços de saú-de sem hierarquizá-las, sem priorizar ou atri-buir precedências. Essa perspectiva de ação se-ria válida e operacional se não vivêssemos emum mundo onde há escassez, onde há limita-ções de recursos.

Como os recursos são limitados, não bas-ta saber se uma ação contribui ou não para asaúde ou bem-estar do indivíduo e/ou popu-lação. É necessário saber o quanto contribui,afinal, em um campo multifacetado, em queas necessidades são ilimitadas, inúmeras ou-tras ações podem ser desenvolvidas com im-pactos positivos na saúde. É imprescindível,neste momento, se colocar a questão: queação(ões) traria(m) maior benefício à saúdedo indivíduo e/ou população com o mesmoesforço empreendido pela sociedade? Por estaperspectiva, é possível compreender a influên-cia crescente dos fatores econômicos na toma-da de decisão e na condução do setor saúde.

Tudo o que já foi exposto até então, nesteartigo, só corrobora a necessidade de aprofun-dar o conhecimento, de criar condições e deimplementar ações capazes de promover a saú-de e a qualidade de vida e, nesse processo, aSaúde Coletiva, entendida como um campofundamentalmente multidisciplinar, e [que] ad-mite no seu território uma diversidade de obje-tos e de discursos teóricos, sem reconhecer emrelação a eles qualquer perspectiva hierárquicae valorativa (Birman, 1991), constitui um espa-ço privilegiado para esse desenvolvimento.

A Saúde Coletiva, além de constituir umcampo de conhecimento, é um campo de prá-ticas. Uma relação em que o compromisso com

mudanças efetivas na saúde da população cons-titui o elo que os tornam indissociáveis. É den-tro deste contexto que os novos questionamen-tos foram lançados aqui, fazendo coro ao de-safio lançado pelos autores: fazer da noção[qualidade de vida] um conceito e torná-lo ope-rativo.

Referências bibliográficas

Birman J 1991. A physis da saúde coletiva. Physis 1(1):7-11.

Dallari SG 1987. A Saúde do Brasileiro. Ed. Moderna,São Paulo.

Dever GEA 1988. A Epidemiologia na Administração deServiços de Saúde. Ed. Pioneira, São Paulo.

Illich I 1974. L’expropriation de la santé. Esprit, juin:931-940.

Terris M 1996. Conceptos de la promoción de la salud:dualidades de la teoría de la salud pública, pp.37-44. In OPS. Promoción de la Salud Pública: Una An-tología. OPS, Washington DC.

1 Departamento de Epidemiologia, Instituto de Medicina So-cial, Universidade do Estado do Rio de Janeiro

O debate qualidade de vida e saúde: outrosaspectos a considerarQuality of life and health debate: additionalaspects to be considered

Eduardo Faerstein 1

O artigo de Minayo, Hartz e Buss, entre váriosméritos, nos atualiza sobre tema de extremarelevância para o desenvolvimento conceituale metodológico de nosso campo disciplinar, aSaúde Coletiva. Os autores sistematizaram boaparte da literatura recente sobre qualidade devida, combinando informações sobre as diver-sas abordagens desenvolvidas dentro e fora daárea da saúde e divulgando enfoques críticosde várias limitações existentes. Nossos comen-tários se concentram em alguns temas selecio-nados, com a intenção de trazer informaçõesadicionais e de ampliar o debate.

Fora da área da saúde, como mencionamos autores, o Índice de Desenvolvimento Hu-mano (IDH), elaborado pelo Programa das Na-ções Unidas para o Desenvolvimento (PNUD),– e, portanto, outros nele inspirados – tem co-mo base conceitos de capacidade e potencia-lidade humanas. Para a avaliação de sua rique-

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za analítica, pode ser útil conhecer as origensintelectuais de tais noções.

Um bom ponto de partida é a obra deAmartya Sen, economista indiano radicadonos EUA, professor de economia e filosofia naHarvard University e Prêmio Nobel de Econo-mia. A obra de Sen – destacadamente o seureexame do tema da desigualdade (Sen, 1992)– inclui-se, de modo especial, entre os esfor-ços intelectuais contemporâneos que se opõemao economicismo de várias filiações.

A natureza da pesquisa sobre qualidade devida na área da saúde em geral, e mesmo naárea médica em particular, abarca múltiplastendências em cada sociedade. Essa multipli-cidade torna imprecisa a generalização de quea reflexão e a prática do campo da saúde pú-blica estejam dominadas pelo sistema médi-co, e mesmo que a incorporação do tema daqualidade de vida traga apenas uma visão me-dicalizada ou dominada pela lógica de custo-benefício, da forma como sugerem alguns crí-ticos citados pelos autores.

Ao nosso ver, ainda que motivações pri-mordiais de contenção de custos estejam sa-bidamente presentes, é inegável a presença si-multânea de outros determinantes, sejam estes‘objetivos’, como o aumento da esperança devida ao nascer (com a exceção de países afri-canos devastados pela Aids, e de ex-repúbli-cas soviéticas devastadas pelo choque de ca-pitalismo), ou ‘subjetivos’, como o crescentequestionamento social sobre a efetividade deprocedimentos médico-cirúrgicos. É preciso,antes de mais nada, saudar o fato de que a qua-lidade de vida das pessoas ganhe espaço comoum critério de avaliação desses procedimen-tos, depois de muitos anos em que tais crité-rios se limitavam aos aspectos fisiopatológi-cos ou anatomopatológicos, ou à duração davida.

Claramente, em suas formulações atuais,trata-se de um tema florescente na década de1990. O periódico Quality of Life Research co-meçou a ser publicado em 1992. Cerca de tre-zentos artigos indexados na base de dados Me-dline, entre julho e setembro de 1999, incluíama expressão qualidade de vida em seu título,em periódicos cobrindo ampla gama de espe-cialidades médicas, com aplicação em situa-ções tão variadas como doenças crônicas ementais, deficiências físicas, procedimentosmutilantes ou debilitantes, idosos etc.

Merece atenção o esforço desenvolvido pe-lo Grupo de Qualidade de Vida da Organiza-

ção Mundial de Saúde. É bastante provávelque, nos próximos anos, assistamos ao usocrescente desses questionários na pesquisa mé-dica e na saúde pública. As versões longa(WHOQOL-100) e abreviada (WHOQOL-Bref) do questionário estão disponíveis no si-te da OMS (www.who.int). Nessa homepage,encontram-se, também, as listas dos quinze cen-tros em todos os continentes que participa-ram do desenvolvimento do instrumento, emvinte idiomas, e das referências dos artigos jápublicados e em preparação pelos grupos detrabalhos, como o The WHOQOL Group(1998). Módulos adicionais, para aplicação emsubgrupos específicos (e.g. portadores de HIV,refugiados) estão sendo desenvolvidos. O gru-po brasileiro (UFRGS) divulgou recentementeresultados de seu trabalho (Fleck et al., 1999).

Entretanto, como ressaltam Minayo et al.,esses instrumentos privilegiam o componen-te subjetivo da qualidade de vida. Portanto, acombinação de indicadores que mensuremcomponentes objetivos e subjetivos da quali-dade de vida constitui uma área estratégica dedesenvolvimento metodológico. Não se trata,obviamente, de tarefa trivial. Nem sempre énítida a demarcação entre o que é ‘objetivo’ ou‘subjetivo’, e tampouco são sempre evidentesas dimensões da qualidade de vida em que ca-da componente, ou ambos seriam fundamen-tais para a sua mensuração. A comparação en-tre resultados empíricos de componentes ob-jetivos e subjetivos, interrelacionados, revela,por vezes, inconsistências. No Canadá, con-forme descrição que nos foi feita por G. Ca-tlin, por essa razão, optou-se por eliminar dosinquéritos nacionais de saúde a mensuraçãodo tamanho da rede social e freqüência de con-tato com a rede (componente objetivo); bemcomo por enfatizar dimensões do suporte so-cial – que indicariam a percepção subjetiva dofuncionamento efetivo da rede social –, vistoque estas, ao contrário daquelas, foram as quese mostraram consistentemente associadas adesfechos relacionados à saúde naquele país.

É interessante relatar outras experiências.Em 1972, o Estudo Escandinavo Comparati-vo de Bem-Estar (Allardt, 1993) investigou ne-cessidades básicas em relação a ter, amar e ser(Having, Loving, Being), com indicadores ob-jetivos e subjetivos para uma dessas dimen-sões:

1) ter – condições materiais incluindo ren-da, educação, emprego, condições de trabalho,habitação, saneamento, nutrição e saúde;

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2) amar – aspectos da vida de relação e for-mação da identidade social, inclusive vida fa-miliar, amor e sociabilidade;

3) ser – oportunidades de realização pro-fissional, crescimento pessoal, contato com anatureza e lazer; alienação.

Allardt (1993) comenta que, apesar de osindicadores de percepções subjetivas carrega-rem a aura de mais democráticos, podem le-var a conclusões conservadoras quando, pormotivos variados, alguns problemas (porexemplo, a qualidade do ar) têm sua impor-tância subestimada por determinadas socie-dades ou estratos populacionais. Com o usoexclusivo de indicadores objetivos, no entan-to, pode-se incorrer em dogmatismo técnico.Vale ressaltar que análises dessas relações em-píricas entre indicadores objetivos e subjeti-vos – especialmente de suas inconsistências –podem fornecer informações valiosas dos pon-tos de vista científico e das políticas públicas.

Referências bibliográficas

Allardt E 1993. Having, Loving, Being: an Alternative tothe Swedish Model of Welfare Research, pp.88-94.In M Nussbaum M. & A Sen (eds.). The Quality ofLife. Oxford University Press, Nova York.

Fleck MPA et al. 1999. Aplicação em português do ins-trumento de qualidade de vida da OrganizaçãoMundial de Saúde (WHOQOL-100). Revista deSaúde Pública São Paulo 33(2):198-205.

Sen A 1992. Inequality Reexamined. Harvard Universi-ty Press, Cambridge.

The WHOQOL Group. The World Health Organizationquality of life assessment (WHOQOL): develop-ment and general psychometric properties. SocialScience and Medicine 46:1.569-1.585.

Qualidade de vida: uma utopia oportuna Quality of life: an opportune utopia

Ana Maria Fernandes Pitta 1

A discussão sobre qualidade de vida, a pana-céia da década, desenvolvida de modo proati-vo e crítico a um só tempo, por Minayo, Hartz& Buss, é um exercício generoso e oportuno.Em artigo instigante, os autores nos brindamcom uma sistematização criteriosa das dife-rentes abordagens sobre o tema que tem susci-

1 Departamento de Gestão de Políticas Estratégicas da Secreta-ria de Políticas de Saúde do Ministério da Saúde

tado um número expressivo de publicaçõesnas duas últimas décadas.

O artigo traz uma tríade de possibilidadesreflexivas. Qualidade de vida entendida como:1) estilo de vida, modo de vida, condições devida; 2) desenvolvimento sustentável, sem pe-cados ecológicos; e ainda 3) pragmatismo utó-pico relacionado com o respeito a direitos hu-manos e sociais, em um exercício de cidada-nia ativa, incursionando no campo da demo-cratização da saúde.

Sinto-me tentada a fazer alguns comentá-rios paralelos no sentido de incluir aspectossubjetivos, presentes no texto, mas seguramen-te não desenvolvidos por serem muito especí-ficos, como a inclusão da subjetividade de pes-soas que sofrem com transtornos mentais nes-se movimento de ruptura da noção tradicio-nal de cura.

Por ser um conceito equívoco, que se modi-fica na dependência de cada sujeito, qualida-de de vida, quando relacionada à doença, podeproblematizar, de modo diferente, a noção decura como avatar uma procura frenética da me-dicina de eliminar sinais e sintomas revelado-res de debilidades do corpo ou da mente.

Cura como remissão de sintomas, substi-tuída por cura no seu sentido latino mais pu-ro de tomar a si a responsabilidade de cuidar,pressupõe uma visão de promoção à saúdeque considera as pessoas nos estados em queelas podem se apresentar, sem exigir-lhes qual-quer sacrifício eugênico de tornarem-se sa-dias a qualquer preço para enfeitar estatísti-cas de sucesso terapêutico ou de bem-estar. Écerto que os sintomas incomodam e que fazparte de um melhor padrão de qualidade devida reduzi-los, ou até mesmo eliminá-los,quando possível. Não se deve, entretanto, de-sistir de melhorar o padrão de vida dos sin-tomáticos se tal superação de sintomas não sefaz possível.

O impacto sobre a qualidade de vida depessoas vitimadas de diferentes formas de li-mitações físicas e/ou psíquicas tem sido obje-to de escutas e avaliações. Isso tem influencia-do a intencionalidade ética de governos e pres-tadores que passam a considerar a efetividadedos tratamentos do ponto de vista dos seususuários, e a eficácia (tecnológica) e eficiên-cia (custos) das respostas que estão sendo pro-porcionadas por técnicos e sociedade, habi-tualmente resistentes às dimensões muito sub-jetivas do que se concebe como necessidadese pontos de vista da clientela.

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Mergulhando e até defendendo esse carátersubjetivo que concede humanidade e singula-ridade aos processos avaliativos, valorizei noartigo, sobremodo, a fuga dos racismos qua-li-quantitativos para estudar uma abordagemtão delicada e imprecisa, qual seja o quantomedidas e tratamentos podem favorecer a vi-da das pessoas. Nestes últimos anos tenhoacompanhado o interesse de parte da comu-nidade científica em estudar, entre os porta-dores de transtornos mentais severos, como asesquizofrenias, depressões graves e outras psi-coses, as repercussões que o peso da doença,dos tratamentos e institucionalizações costu-mam imprimir em um cotidiano, que podesempre ser melhorado se considerarmos seusuniversos de valores.

São grupos humanos evitados quando seexamina a bizarrice dos seus estilos de vida,os modos como desenvolvem o ambiente e so-brevivem na sociedade e, ainda, sua caracte-rística própria de um cidadão que é diferente.Problematiza-se, a um só tempo, a razão ava-liativa, a objetividade dos métodos e técnicase a intencionalidade ética dos que se preten-dem democráticos na consulta aos interessesdos que demandam, em última instância, fra-ternidade e solidariedade para fazer valer seusdireitos à saúde e a melhor qualidade de vidapossível, segundo seus próprios critérios.

O estudo The Global Burden Disease (OMS/Banco Mundial/Harvard), a despeito de críti-cas que se façam às suas limitações, inova aodeixar de lado clássicos indicadores de mor-talidade, para considerar perda de anos de so-brevida saudável e as suas incapacidades de-correntes como mais adequados para avaliara saúde de populações. Realçam o enfoque depromoção e qualidade de vida, enfatizandoamplos programas de reabilitação psicossocialcom garantia de renda, moradia, trabalho e la-zer para pessoas em desvantagem. É preocu-pante, ainda, o achado que tal estudo revela:das dez doenças mais incapacitantes no mun-do, cinco são de natureza psiquiátrica. Alémdisso, a primeira delas, a depressão maior, aco-mete cinqüenta milhões de pessoas, seguidado alcoolismo, doenças afetivas bipolares, es-quizofrenias e transtornos obsessivos com-pulsivos.

Introduz-se a possibilidade de um novoparadigma de cura, não centrado na díadedoença/saúde, com o que ela encerra no seuprojeto de reparação do órgão lesado nas ofi-cinas especializadas em devolver normais e sa-

dios à sociedade. Abandona-se, assim, a noçãode isolar o doente em uma quarentena cura-tiva capaz de torná-lo saudável e apto para oconvívio na sua coletividade. O tempo e as tec-nologias disponíveis nos dizem que não é bemassim quando se trata de transtornos mentais.Os arranjos que tornam possível a vida dessaspessoas são singulares e muitas vezes incom-preensíveis e desconcertantes a olhos incautos.

Mais discretas em número de publicações,mas não menos ricas e reveladoras da vida edo mundo de pessoas que sofrem com trans-tornos mentais severos, têm sido as contribui-ções etnopsicológicas e antropológicas de Co-rin (1979) ao acompanhar a vida de esquizo-frênicos em Montreal, Canadá. Com base emuma série de entrevistas de pessoas que recebe-ram um diagnóstico de esquizofrenia, tem si-do possível reconstituir uma espécie de etno-grafia do cotidiano e, mais particularmente,examinar a maneira como se organiza a vidaconcreta dessas pessoas na relação com a so-ciedade. Estudos antropológicos desenvolvi-dos por Corin, no Canadá, e Goldberg (1998),no Brasil, investigando a vida e o mundo deesquizofrênicos, revelam arranjos muito par-ticulares que pervertem noções que o sensocomum considera como modelos de vida pas-síveis de serem vividos. A persistência de umdelírio, de um ritmo sono/vigília invertido, daausência ou presença de familiares, suscita res-postas singulares, não previstas, e arranjos per-sonalizados que fazem essas pessoas avaliarempositiva ou negativamente situações de vidainusitadas.

O comportamento psicótico é identifica-do como desviante em qualquer cultura. En-tretanto, não existe um consenso universalquando se traduzem tais comportamentos nossistemas classificatórios vigentes ou mesmonas escalas avaliativas consagradas. Existe oesforço de alguns autores de incluir o manejodo sofrimento, das experiências institucionais,das vivências familiares (costumam percorreruma via de sociabilidade muito própria), valo-res e ajuizamentos sobre os diferentes domí-nios da vida psicótica que podem se incorporarao acervo de estudos elencados no artigo aquidiscutido para outros grupos de patologias.

Se agrego comentários específicos sobre aqualidade de vida de pessoas que sofrem comtranstornos mentais a este debate, que deveestar centrado no artigo em foco, é apenas pa-ra realçar o quão oportuna é, para esse grupode pessoas, a discussão quando se abandona o

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eixo exclusivo da emissão de sintomas ou qual-quer outra concepção de cura idealizada naclínica e se passa a operar sob uma lógica depromoção à saúde e à vida mesmo daquelasque padecem com transtornos mentais seve-ros e, com freqüência, persistentes. Cabe-nos,sem preconceitos, buscar escutá-los e imagi-nar com eles que existem possibilidades maissaudáveis de arranjar suas vidas, tendo garan-tidas satisfação de necessidades objetivas (mo-rar, comer, trabalhar) e subjetivas (desejos, fan-tasias, amores, felicidade) conforme a culturae os valores que lhes sejam próprios, balizados,é certo, por convenções universais, ou signifi-cado planetário que também os influenciamna arte ou ciência de viver, embora não sejaisso uma regra quando a ‘desrazão’ é a razão.

Nesses últimos 15 anos, observamos umabusca intensa de instrumentos multidimen-sionais para medir os diferentes domínios davida das pessoas que se encontram: 1) desen-volvendo programas de tratamento na comu-nidade; 2) acompanhadas em ensaios clínicoscom novas drogas; 3) participando de outrasiniciativas de cuidados passíveis de estudoscomparativos entre dois ou mais grupos, sub-metidos a tipologias diferentes de interven-ções; 4) necessitadas de mudar a orientaçãode tratamento visando potencializar aspectosou domínios de vida minimizados e 5) defi-nindo políticas de cuidados e/ou responsáveispela atenção a essas dificuldades.

Não é fácil consultar pessoas que trazemcomo traço marcante rupturas radicais comas formas habituais de linguagem, valores, ne-cessidades. Os trabalhos mais bem-sucedidosse iniciam quantitativos, utilizando escalascomo: QOL Scale (Heirichs, Hanlon, & Car-penter 1984), QOL Interviews (Lehman,1997), W-QLI (Becker & Diamond, 1997). Etambém as contribuições da OrganizaçãoMundial de Saúde – WHOQOL e WHO-Sa-tis, esta última traduzida, adaptada e validadano país pela equipe do Núcleo de Ensino ePesquisa em Saúde Mental da Universidadede São Paulo.

Não há um instrumento universal que pos-sa comparar a vida de esquizofrênicos no Bra-sil, no Canadá, no Sri Lanka, na Inglaterra,sem aproximações grosseiras. Entretanto, combase nos estudos sobre o tema, podem-se ob-servar alguns pontos importantes: 1) o inte-resse em avaliar o impacto na qualidade de vi-da das pessoas que freqüentam serviços de saú-de mental, mesmo em se tratando de pessoas

com transtornos mentais severos, para alémde avaliar qualquer coisa, introduzem igual-mente uma mentalidade de promoção de saú-de em programas com essa vocação. Perseguirmelhores padrões de satisfação em diferentesdomínios do viver cotidiano parece contribuirpara a potencialização da condição de cidadãoem uma sociedade excludente; 2) ordem deprioridades diferentes para pacientes, familia-res e profissionais de saúde, quando se consi-deram projetos de vida, finanças, afetos, liber-dade, trabalho, moradia, acenam com proje-tos distintos no planejamento de ações quepromovam os diferentes grupos. Tendo a eqüi-dade como referência para grupos humanosdiferentes, caberá maiores investimentos aosque precisam mais, para garantir igualdade detratamento; 3) a boa adesão dos clientes aosestudos de impacto sobre qualidade de vidacomo uma percepção de cuidado e respeitoaos seus interesses, mesmo com instrumentosnem sempre ajustados culturalmente aos seusvalores e interesses, revela um potencial de-mocrático desses estudos; 4) qualidade de afe-tos em países subdesenvolvidos substitui, comvantagens, qualidade de recursos materiais empaíses desenvolvidos na evolução de pacien-tes com transtornos mentais severos.

A simpatia com que advogo as pesquisasavaliativas, que levam em conta o impacto so-bre a qualidade de vida dos usuários dos sis-temas de saúde, se dissipa quando observo oalerta dos autores quanto à intenção de a saú-de pública querer hierarquizar os custos deseus atos com instrumentos como o QALY,DALY, ou qualquer outro semelhante. A utili-zação desses indicadores para decidir investi-mentos desconsiderando grupos populacio-nais marginais, loucos, miseráveis, desafilia-dos, me faz agregar às preocupações dos au-tores duas outras questões. Primeira: a dita-dura invisível de valores de qualidade de vidaatribuídos pelo senso comum dos normais –hegemônicos na sociedade – poderá eliminaro potencial de eqüidade dessas iniciativas? Se-gunda: a construção de novos indicadores cen-trados no impacto sobre a qualidade de vidados beneficiários do sistema e níveis de satis-fação com serviços e ações têm chances decompetir com indicadores clássicos de avalia-ção de programas e políticas de saúde? Qual asaturação necessária para isso acontecer?

Para finalizar, resta-me apenas agradecera chance de agregar inquietações a uma já mui-to corajosa iniciativa.

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Referências bibliográficas

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Corin E 1979. Contraintes et stratégies: la pertinence dela notion de communauté dans le cas de patientsschizofrènes, 179:195.

Goldberg J 1998. Cotidiano e instituição: revendo o trata-mento de pessoas com transtorno mental em institui-ções públicas. Tese de doutorado. Faculdade de Me-dicina da Universidade de São Paulo, São Paulo. 325pp.

Heirichs DW, Hanlon TE & Carpenter Jr. WT 1984. Thequality of life scale: an instrument for rating theschizophrenia deficit syndrome. Schizophrenia Bull10(3):389-398.

Lehman AF 1997. Instruments for measuring quality oflife in mental illness, pp.80-84. In H Kaltschnig, HFreeman & N Sartorius (eds.). Quality of Life inMental Disorders. John Wiley and Sons, Chichester,Inglaterra.

Qualidade de vida: necessidade reflexivada sociedade contemporâneaQuality of life: reflexive needs of contem-porary society

Lia Giraldo da Silva Augusto 1

O tema indicadores de qualidade de vida vemsendo alvo de interesse da saúde coletiva e temsido uma necessidade permanente, para todosque se interessam pelo assunto. Trata-se de umverdadeiro desafio construir indicadores quesejam capazes de qualificar a qualidade de vi-da. Os autores, do artigo em debate, partemdo relativismo cultural, que limita as tentati-vas de alcançar um indicador de qualidade devida, fazendo crítica ao reducionismo dos in-dicadores de um modo geral. Situam esta dis-cussão no momento histórico da sociedadepós-fordista, do despertar ambientalista e dasproposições do desenvolvimento sustentável.

A natureza crítica da problemática que en-volve esta questão nos remete aos desafios teó-ricos de encontrar soluções práticas para o de-senvolvimento de indicadores que sirvam pa-ra distintas relações socioecológicas, em todasua complexidade e que, atualmente, vivem o

1 Centro de Pesquisa Ageu Magalhães, Fundação OswaldoCruz

processo de globalização. Ao aceitar o convi-te para debater o presente artigo, fui buscaralguns poucos pensadores que tratam o tema,apenas como um complemento à excelente re-visão feita aqui por seus autores. Um ponto,que pode balizar o debate proposto, pode ser orelativo ao entendimento de que os indicado-res de qualidade de vida são uma necessidadereflexiva das instituições desse período da his-tória da humanidade, e que busca uma recom-binação das distâncias temporais e espaciaisexistentes, pois que necessitam usar, cada vezmais, os sistemas de informação para organi-zar e reorganizar os ambientes de intervençãopolítico-econômica, na nova ordem mundial.Possivelmente, os indicadores são muito maispara dar respostas às demandas das agênciasfinanciadoras mundiais do que, de fato, sereminstrumentos voltados para demonstrar e verresolvidas as iniqüidades que se observam nasrealidades locais. Estas questões, ao meu ver,estão carregadas de dúvidas metodológicas eisso também constitui-se uma característicado momento em que vivemos.

Hoje, a todos parece ridículo o uso do cres-cimento econômico, como foi na década de1960, para medir a qualidade de vida dos po-vos. Também, como se refere Giddens (1994),está claro que o estilo de vida relacionado aospadrões de consumo da vida material foi o res-ponsável pela poluição e deterioração ambien-tal, pois que, como modelo de desenvolvimen-to, comprometeu todo o globo terrestre. Po-de-se dizer que os indicadores de qualidade devida social, propostos na atualidade, são des-cendentes do bem-estar econômico e da gran-de tecnologia e são incapazes, ainda, de incor-porar os efeitos do modelo de desenvolvimen-to sobre o ambiente natural e social, uma vezque, para isto, seria necessário uma teoria desociedade que fosse internacionalmente acei-ta, como resultado de deliberações políticas.Por este motivo, a noção de qualidade de vidaperde força nesse processo (Ammassari, 1994).Assim, o Produto Interno Bruto (PIB), que re-fletia uma deliberação política, foi utilizadocomo um termômetro do desenvolvimentoeconômico, tornando-se um conceito inade-quado para medir a qualidade de vida social.Aos poucos tornou imperativo reconhecer ou-tros aspectos da qualidade de vida, tais comoos relacionados com a cultura, valores e di-mensões das necessidades e perspectivas debem-estar. Dunlap (1980) e Catton (1992) pro-puseram que os indicadores de qualidade de

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vida deveriam ser abordados em três catego-rias: indicadores físicos (por exemplo, os re-lacionados com habitação, saneamento); in-dicadores de direito (os relacionados com ascondições sociais e políticas) e os indicadoressubjetivos, que seriam obtidos diretamente daspessoas (os relacionados com os aspectos es-pecíficos de satisfação pessoal). Mas, estes au-tores alertam que, a justaposição dos indica-dores físicos e legais com os da percepção sub-jetiva das pessoas só são congruentes se, emcada país, tiverem sentido político. Na medidaque a perspectiva ambiental passou a ganharnotoriedade para a crítica do desenvolvimen-tismo, um novo paradigma se instituiu, noqual a perspectiva ecológica surge como umaalternativa para modernização. Nesse sentido,Oommen (1990) refere que os elementos ne-cessários para construir um índice de quali-dade de vida inclui a mudança na abordagemdo Estado e do Movimento Social. Esta con-dição é necessária, para que o indicador se tor-ne um instrumento social de transformação ede evolução político-social, deixando seu cará-ter de manutenção do status quo, para adqui-rir um caráter de indução de mudanças. Ou-tro aspecto epistemológico é entender o dis-curso do indicador e saber que sempre está su-bordinado a uma variável de nível superior,que lhe dá o contexto (Samaja, 1999). O con-ceito de qualidade de vida como dimensão deum sistema de indicadores sociais, materiaise psicológicos, de bem-estar social, obriga auma operação de ordenação destituída de re-lações. No entanto, a vida é fruto de relaçõessociais e sua qualidade depende da qualidadedo resultado dessas relações. Nesta direção,Slzai (1980) afirma que uma relação social temqualidade quando há conhecimento, aprendi-zado e internalização de regras, as quais estãolingüisticamente estruturadas e comunicadaspara construir um padrão de valores éticos.Diversas tentativas de pesquisas empíricas têmsido feitas para medir a qualidade de vida co-letiva e individual, levando-se em consideraçãoo modo de vida, nível de vida, a satisfação navida e qualidade ambiental. Nesse sentido,tem-se dado ênfase para os sentimentos subje-tivos das condições de vida. Mas a felicidadeou satisfação com a vida, como variável de-pendente, é uma caixa preta, pois a dimensãocoletiva não pode ser descrita pela agregaçãodas felicidades individuais.

Oommen (1990) propõe ainda que a qua-lidade de vida possa ser entendida dentro de

uma política social concernente a dois pon-tos: liberdade e eqüidade, aqui entendida comoacesso a bens materiais e de oportunidades.Podemos concluir que os indicadores de qua-lidade de vida são muito mais complexos doque podemos imaginar. O tema assim estáaberto, tornando o presente artigo precioso ede grande importância para o campo da Saú-de Coletiva e para todos aqueles que dedicam-se a sua reflexão.

Referências bibliográficas

Ammassari P 1994. Ecology and the Quality of SocialLife, cap. 4, pp. 43-49. In William V. D’Antonio,Masamuchi Sasaki & Yoshio Yonea Yashi. Ecology,Society & The Quality of Social Life. Ed. TransactionPublishers, Londres.

Catton WR 1992. Separation versus Unification in Soci-ological Human Ecology. Advances in Human Ecolo-gy, Vol. 1, ed. Lee Freese. Greenwich. TAI Press, pp.65-99.

Dunlap RE 1980. Paradigmatic Change in Social Sci-ence: from Human Exemptionalism to an Eco-logical Paradigm. American Behavior Scientist, 24:5-12.

Giddens A 1994. Industrialization, Ecology and the De-velopment of Life Politics, cap. 2, pp. 11-31. InWilliam V. D’Antonio, Masamuchi Sasaki & YoshioYonea Yashi. Ecology, Society & The Quality of So-cial Life. Ed. Transaction Publishers, Londres.

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Samaja J 1999. La Semantica del Discurso Científico yel Analisis de Matrices de Datos (Mimeo).

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Os autores respondemThe authors reply

Na discussão do nosso artigo “Qualidade devida: um debate necessário”, tivemos a genero-sa contribuição de cinco companheiros queleram o nosso texto sob diversos ângulos, mui-to contribuindo para a ampliação da reflexãosobre o tema. Houve alguns pontos comunsassinalados por todos, entre os quais destaca-mos a forma ainda pouco aprofundada comque o tema é tratado; as dificuldades de criaçãode indicadores quantitativos e qualitativos ar-ticulados e o risco de ideologização da noçãode qualidade de vida. Mais do que os pontosde concordância, porém, é relevante assinalaras contribuições singulares trazidas por essesnossos leitores críticos.

Em seu texto “Qualidade de vida e saúde:além das condições de vida e saúde”, o ques-tionamento central de Goldbaum é sobre asrelações entre clínica e saúde pública, e sobreas imprecisões do conceito de promoção dasaúde. Concordamos com Moisés, e sua refle-xão apenas reforça nossas preocupações, poisse é verdade que a clínica, ao criar indicado-res de qualidade de vida, é estritamente fiel aoseu próprio paradigma, essa mesma área, nosúltimos tempos, tem expandido sua atuaçãopara abranger o conceito de promoção, numsentido mais coletivo. Podemos dar algunsexemplos a partir de atividades promovidaspor sociedades médicas. Os congressos de car-diologia hoje organizam eventos populares si-multâneos, buscando informar a populaçãosobre o papel dos estilos de vida na produçãodas cardiopatias. A Sociedade de Pediatria as-sumiu a prevenção da violência doméstica co-mo objeto de campanhas e orientação a seusassociados, por causa da relação desse proble-ma social com o crescimento e o desenvolvi-mento. A Sociedade de Emergência e Traumaresolveu tomar como sua a prevenção dos aci-dentes de trânsito e do consumo abusivo deálcool, fatores reconhecidos de risco para aslesões, traumas e mortes por causas externas.Daí que, ao concordarmos com o nosso deba-tedor, transferimos aos leitores nossas preo-cupações: na verdade, existe hoje um “núcleoduro” de cada área, campo ou disciplina, co-mo é o caso dos nichos específicos da saúdepública e da clínica. Porém, é mais evidenteainda o fato de existir um certo apagamentodas fronteiras disciplinares nesse novo mo-

mento da ciência. A recíproca apropriação dossaberes proporcionada pelas trocas inter etransdisciplinares, contraditoriamente às prá-ticas desse tempo de radicalização das reser-vas de mercado, não pode ser considerada umproblema, e sim uma bênção. Porém, o quetem acontecido no caso das relações entre clí-nica e saúde pública é que a “extensão” do con-ceito de promoção mexe no próprio coraçãodo paradigma da saúde pública que, por suavez, não está suficientemente claro, definido,nem muito menos praticado. E, no entanto,ele é o nosso vínculo essencial com o conceitode qualidade de vida.

Edson Tamaki, em “Qualidade de vida: in-dividual ou coletiva?”, aprofunda a reflexãosobre as dificuldades práticas trazidas pela ten-são entre os anseios individuais e o estabele-cimento de padrões coletivos de qualidade devida que, por tratarem de uma média, desco-nhecem os diferentes níveis de aspiração. Éverdade que nunca haverá um indicador ca-paz de sintetizar as expectativas de todos. Po-rém, na sociedade, hoje temos algumas ques-tões que já se tornaram padrões universais,através dos chamados Direitos Humanos, So-ciais, Políticos e de Terceira Geração. E sobreesses, transformados em leis da própria hu-manidade (embora construídos culturalmen-te), o coletivo se impõe sobre o individual. Porexemplo, o analfabetismo, os espancamentos,as mutilações, a mortalidade infantil, a faltade acesso à sobrevivência são inaceitáveis, mes-mo e apesar de qualquer justificativa religiosaou subjetiva que se possa apresentar. O pro-blema maior se observa, ao contrário, no pata-mar social economicamente mais elevado, on-de as classes dominantes tendem a colocar ospadrões de acordo com seus gostos, suas aspi-rações e suas posses, chamando qualidade devida privilégios insustentáveis coletivamente.Na verdade, concordamos com o nosso deba-tedor sobre as grandes dificuldades existentesno estabelecimento de indicadores universais.Nosso leitor crítico retoma a questão da pro-moção da saúde como o tema central que de-veria galvanizar nossa força de pensamento eação. Nesse sentido, sintoniza-se com as mes-mas preocupações de Goldbaum, acrescentan-do a necessidade de estabelecer e exercitar es-colhas de ações que contribuam para resolverproblemas de saúde numa perspectiva inte-gral. Nossa pergunta ao caro debatedor é senão valeria a pena pensar o conceito de pro-moção não limitado à resolução de problemas

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de saúde, mas sobretudo como um campo pro-motor dos padrões que consideramos coleti-vamente equânimes de saúde.

Em “O debate qualidade de vida e saúde –outros aspectos a considerar”, Eduardo Faers-tein, mesmo numa leitura generosa, não dei-xa de assinalar nossa tendência generalizado-ra, ao acolhermos autores que consideram ocampo da saúde pública dominado pela lógi-ca biomédica. Aceitamos a crítica, porque nosincluímos entre os que corroboram essa visão.Talvez tenha sido exagerada essa ênfase, masqueríamos deixar claro o nosso pensamentode que, apesar de todo o discurso, continuamuito tênue, no campo da saúde pública, o es-forço para levar às últimas conseqüências oconceito e a prática de promoção da saúde.Goldbaum e Tamaki também assinalaram jun-to conosco esse problema que, ao nosso ver, de-veria ser pauta relevante de aprofundamentodo campo da saúde coletiva. Apreciamos tam-bém o otimismo do nosso leitor ao chamar aatenção para o fato positivo que significa apreocupação da clínica com a qualidade de vi-da dos pacientes, o que, sem dúvida, revela umsalto qualitativo da reflexão médica e da Or-ganização Mundial da Saúde nos anos 90. Nos-so debatedor enriqueceu sobremaneira a re-flexão com novos dados, trazendo outros es-tudos, inclusive um do início da década de1970. Foi muito importante a lembrança daobra de Amartya Sen, o Prêmio Nobel de Eco-nomia, a qual estava subjacente à nossa refle-xão. Esse autor não só modificou o indicadorde progresso que vigorou até o final dos anos70, então fundamentado na visão economicis-ta do tamanho do PIB dos países, como foi oprincipal responsável pela construção do IDH.Devemos lembrar também que as modifica-ções, realizadas em 1999, dos critérios para aconstrução do ranking de desenvolvimento,no qual o Brasil retrocedeu (por causa das ex-tremas desigualdades sociais), causando gran-de mal-estar nas esferas do poder, também sãode sua responsabilidade. Concordamos com onosso debatedor sobre a necessidade de exer-citar a visão crítica sobre os indicadores, se-jam eles objetivos ou subjetivos, pois podemeles se transformar em instrumentos ideoló-gicos dos grupos dominantes, tendendo, por-tanto, a magnificar alguns problemas e a ocul-tar outros, de acordo com interesses subjacen-tes de várias ordens.

Ana Maria Pitta nos brindou com uma ex-celente contribuição, a que denomina “Qua-

lidade de vida: uma utopia oportuna”, sobre-tudo porque sanou uma grande lacuna emnossa reflexão. Pela sua intensa militância naárea da saúde mental, nossa debatedora entranuma seara relativamente (porém não sufi-cientemente) discutida na área da saúde, masmuito menos assumida pela sociedade em ge-ral, qual seja, a qualidade de vida das pessoasque sofrem transtornos mentais. Na verdade,Pitta provoca nossa cômoda idéia de qualida-de de vida por excluir, na sua definição, os di-ferentes. Por outro lado, assume um papel pro-positivo, ao revelar que, no caso das doençasmentais, é fundamental abandonar o eixo ex-clusivo da remissão de sintomas, ou qualqueroutra concepção de cura idealizada na clíni-ca, para operar sob uma lógica de promoçãoda saúde e da vida mesma daqueles que pade-cem de transtornos mentais severos e, com fre-qüência, persistentes. Os pontos que a nossaleitora advoga como centrais para a qualida-de de vida dos que sofrem de doenças mentaissão, de fato, questões que retratam os lapsosda nossa sociedade com tudo e com todos quesão diferentes ou “ofendem” a nossa sensibili-dade acomodada. As metas de qualidade de vi-da que incluam esses sujeitos sociais, segun-do a debatedora, pressupõem uma visão de pro-moção da saúde que considera as pessoas no es-tado em que podem se apresentar, sem exigir de-las qualquer sacrifício eugênico de tornarem-sesadias a qualquer preço, para enfeitar estatísti-cas de sucesso terapêutico ou de bem-estar. Asperguntas que coloca no final do texto, nós asencampamos e as universalizamos como ques-tões de grande pertinência para o avanço dodebate que ora iniciamos.

Por último, o texto de Lia Giraldo, “Qua-lidade de vida: necessidade reflexiva da socie-dade contemporânea”, coloca o tema em de-bate no âmbito do relativismo cultural e dastensões uniformizadoras que a globalizaçãoda cultura tende a exacerbar. Nossa leitoraaprofunda a crítica sobre essa necessidade his-tórica de qualificar a qualidade de vida, fre-qüentemente fazendo tábula rasa dos proble-mas socioeconômicos fundados na acumula-ção de capital e nas condições reais de existên-cia das classes sociais. Porém, sua ênfase maiorse dá no reconhecimento das mudanças depauta política trazidas pelo movimento am-bientalista. Essas mudanças vêm qualificar deforma diferenciada esta reflexão, sobretudoem dois aspectos. Primeiramente, no sentidode que o tema do ambiente tem dois pressu-

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postos básicos: a essencialidade da relação en-tre ser humano-natureza e o pressuposto, de-rivado deste primeiro, de que o conceito deambiente é construído pela ação humana e,assim, pode ser repensado e modificado, ten-do em vista nossas responsabilidades presen-te e futura com a qualidade de vida, não só dosseres humanos como a da biosfera. Num se-gundo sentido está a discussão sobre o con-ceito de desenvolvimento. Este termo deixoude ser a palavra mágica que durante quasemeio século embalou os planos dos países de-senvolvidos e os sonhos dos subdesenvolvidos,numa visão evolucionista do progresso, numacorrida sem limites pelo domínio da nature-za, das matérias-primas, de forma desenfrea-da e predatória. Hoje, a palavra desenvolvimen-to parece inspirar mais problemas que solu-ções, indicando que a conquista de melhorespadrões de qualidade de vida não pode ser umprojeto excludente. O texto de Lia chama, en-tão, a atenção para o fato de não podermos es-

perar apenas do extraordinário avanço tecno-lógico a solução dos problemas de maior eqüi-dade e bem-estar. A debatedora assinala que aqualidade de vida deve ser entendida dentrode uma política social que enfatize dois pontos:eqüidade e liberdade. Ou, como lembravaEduardo Faerstein, rememorando o EstudoEscandinavo Comparativo de Bem-Estar, essaqualidade está no equilíbrio entre ter, amar eser. Como nada disso é uma tarefa simples, te-mos que continuar a buscar formas de trans-formar em ação todas as propostas que nospermitam não apenas pensar, mas sobretudousufruir melhor padrão coletivo do que en-tendemos como qualidade de vida.

No final desta réplica, cabe-nos mais umavez agradecer aos debatedores, que nos per-mitiram ampliar e dar mais asas a reflexões eexpectativas, para que nós, atores da saúde co-letiva, criemos referenciais cada vez mais ade-quados à promoção da qualidade de vida dapopulação brasileira.