Qualidade novo antitexto

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Andr A. Abramczuk

GESTO DA QUALIDADE TOTALum antitexto

No existe soluo ideal para um problema; cada alternativa tem suas vantagens e desvantagens. O que importa o responsvel pela deciso selecionar aquela que lhe parea melhor sob todos os aspectos, implant-la resolutamente e aceitar as consequncias.

ERWIN ROMMEL

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Andr A. Abramczuk

GESTO DA QUALIDADE TOTAL: um antitexto

SO PAULO 1998

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Andr A. Abramczuk

Gesto da Qualidade Total: um antitexto

SUMRIOPREFCIO INTRODUO I. II. O MILAGRE JAPONS AS ORIGENS DA PROSPERIDADE DAS NAES

III. O PARASO PERDIDO IV. COMPETIO E ATIVIDADE EMPRESARIAL V. A PREAMAR DO FUTURO UMA NOTA SOBRE A BIBLIOGRAFIA

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PREFCIO Esse livro estava pronto em primeira verso em 1996 e em verso revisada em 1998. Pensei que traz-lo vida mais de uma dezena de anos depois seria intil, posto que o assunto de que tratava poderia ter j se tornado obsoleto. Mas, depois de reler o que havia escrito h tanto tempo, conclu que deveria public-lo praticamente como estava, apenas fazendo alguns reparos cosmticos e acrscimos de referncias bibliogrficas. As origens desse livro merecem ser contadas. Em 1994 eu abracei entusiasticamente um projeto de preparao da empresa em que ento trabalhava para torn-la apta a uma certificao ISO 9000. Isso me obrigou a reunies frustrantes, ouvir gerentes polemizar em torno de pontos desimportantes e despender precioso tempo discutindo solenemente questes pueris que se afigurariam ridculas at para um capataz de fazenda. Alm disso, os profissionais da empresa de consultoria (em princpio contratada para orientar a execuo do projeto) no demonstravam a mnima competncia (ou disposio, nunca ficou claro para mim) para colaborar comigo no sentido de encaminhar o projeto ao objetivo. Quando assim me achei a errar por uma selva escura, longe da boa via, ento perdida,1 a sorte veio em meu auxlio na forma de um livro h tempos esquecido na minha biblioteca, Understanding Organizations.2 Ao reler alguns trechos, tranquilizei-me; em pouco tempo deixei de me angustiar com o andamento do projeto ao compreender que no era eu que tinha autoridade para lev-lo avante nem seria eu a responder por seu possvel fracasso. Compreendi, alm disso, que o projeto nada mais era do que a manifestao de outro modismo de gesto que na poca grassava nas organizaes empresariais (proporcionando contratos lucrativos para consultores autnomos e empresas de consultoria); parei de entrar em choque com gerentes e diretores, passei a trabalhar estritamente dentro dos limites das atribuies de minha rea de competncia no projeto (que praticamente se resumia a elaborar as atas de reunio do grupo encarregado do desenvolvimento do projeto). A consequncia foi imediata. Os principais interessados na obteno da certificao ISO 9000 tomaram a iniciativa do projeto; em seis meses tudo estava pronto para uma auditoria preliminar. Depois desta, transcorreram quatro meses at a auditoria de certificao, que foi finalmente obtida, para alegria geral de toda uma unidade de negcios.3

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Parte do primeiro verso do Canto I, Inferno, da Divina Comdia. HANDY, Charles B. Understanding Organizations. Harmondsworth: Penguin, 1976. Essa primeira certificao foi uma certificao ISO 9001 de uma linha de produtos. Mais tarde, com mais calma e conhecimento, outras linhas de produtos tambm obtiveram suas certificaes, ISO 9001 ou ISO 9002, conforme o caso.

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Passada a tempestade da certificao, ocorreu-me uma pergunta: Por que a implantao de um processo de inovao da gesto da organizao (por mais comprovado que tivesse sido o potencial desse processo de levar a organizao excelncia) foi to rduo? Buscando resposta para essa pergunta, terminei por estudar assuntos relativos cultura organizacional e a coletar informaes sobre projetos de implantao de Gesto da Qualidade Total em outras empresas, pequenas, mdias e grandes, nacionais e multinacionais. Comearam ento a se esboar as anotaes que deram origem a esse livro. Em 1997 tomei conhecimento de dois livros, Management Gurus: What makes them and how to become one,4 e Management redeemed: Debunking the fads that undermine our corporations.5 Graas a eles tive compreenso mais clara do objetivo que pretendia alcanar com o meu livro. Revisei-o mais uma vez, mas ele acabou esquecido por todos esse anos nos arquivos de um computador. Por que no o publiquei? No sei! O que importa que agora c est ele para sua apreciao e crtica, caro leitor! Andr A. Abramczuk Jundia, dezembro de 2010

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HUCZYNSKI, Andrzej A. Management Gurus: What makes them and how to become one. London: Routledge, 1993.

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HILMER, Frederick G.; DONALDSON, Lex. Management redeemed: Debunking the fads that undermine our corporations. New York: The Free Press, 1996.

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INTRODUO Qualquer discusso sobre Gesto da Qualidade Total (daqui em diante designada GQT) pode tornar-se infindvel, de modo que talvez o caminho mais curto e seguro para compreend-la seja mediante a dissecao das concepes errneas a respeito e, especialmente, do erro fundamental de que se originam. este o propsito desse livro. As concepes errneas sobre a GQT se tornaram novo dogma no campo de paradigmas de gesto empresarial. Embora seja propsito desse livro demonstrar a falsidade desse dogma, convm parafrasear Anatole France e dizer que, longe de nos sentirmos alegres ao ver destrudo um dogma longamente venerado, melhor pensarmos sobre o novo dogma que vai lhe tomar o lugar e nos fazermos uma pergunta ansiosa: no ser ele mais inconveniente e pernicioso do que aquele que est sendo abandonado? A nica razo por que os princpios genunos da GQT no conseguem se impor definitivamente em nenhuma das grandes organizaes privadas ou governamentais do Ocidente o amontoado de contradies dos que falam sobre o assunto, especialistas dispersos por diferentes linhas de pensamento, ainda que tenham em comum uma quantidade razovel das mesmas premissas. Isso assim porque, em assuntos referentes vida prtica, simplesmente impossvel manter coerncia com contradies. A diferena entre uma linha de pensamento sobre GQT e outra est no fato de que um grupo consegue despertar mais cedo do que outro diante dos absurdos a que suas premissas o esto conduzindo. Resta ao grupo, ento, nmero muito reduzido de opes: (1) abandonar as premissas (o que significa abandonar o assunto), (2) dissimular as concluses mais drsticas e conflitantes com as prticas vigentes, divulgando somente aquelas menos inquietantes e menos fantasiosas do que as exigidas pela fria lgica, ou ento (3) concentrarse na divulgao e aplicao de algumas tcnicas de indiscutvel eficcia, apresentando-as como nova concepo de gesto organizacional. A terceira opo, que consiste em inferir uma concepo a partir de uma tcnica, magistralmente empregada por especialistas que preferem a popularidade seriedade. uma das grandes pragas do nosso tempo, pois consegue cativar pessoas incautas e as leva a grandes confuses. Infelizmente, da confuso nasce mais confuso, nunca a verdade. O que torna a GQT vtima de concepes errneas a maneira muito pessoal com que os especialistas no assunto se posicionam sobre a questo. A opinio pessoal elemento reduzido a papel insignificante nas cincias exatas; em assuntos que no se submetem aos cnones destas, contudo, pode dar margem a argumentos especiais oriundos de circunstncias, de interesses pessoais e at mesmo de preconceitos egostas.

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Alm dos inmeros argumentos vinculados a interesses prprios das pessoas, h um segundo fator interveniente que leva a concepes errneas sobre a GQT. a tendncia do ser humano de buscar somente os efeitos imediatos de determinada ao ou seus reflexos apenas numa rea determinada ou sobre um grupo especial. o erro de menosprezar consequncias secundrias. Esse erro leva as pessoas a no analisar a repercusso e as implicaes mais abrangentes de uma ideia ou de uma ao, no s a curto, mas tambm a longo prazo, no s sobre uma rea ou grupo especfico, mas sobre todos os demais. Esse mesmo erro faz com que os apstolos da GQT se satisfaam com ligeiras e transitrias melhorias de eficincia a curto prazo, mas se inibam em buscar mudanas genuinamente criativas e inovadoras, radicais e duradouras. Acima de tudo, h outro fator interveniente que provoca a gnese e a disseminao de concepes errneas sobre a GQT (em verdade, sobre qualquer assunto que tenha a liberdade da ao humana como objeto de ateno). Muitos dos equvocos intelectuais que se constatam no se devem somente a convices intuitivas de seus autores, mas principalmente falta de orientao e a certa confuso na aquisio de informaes bsicas, principalmente de cunho histrico e filosfico. Em outras palavras, por razo de erudio exagerada combinada com baixa assimilao cultural (a que em geral se somam a desinformao e boa dose de arrogncia), algumas pessoas misturam conceitos oriundos de culturas e de pensadores que divergem fundamentalmente entre si, na esperana de formar supostas novas ideias, usando em seguida essa mistura para compor a maioria dos discursos inconsequentes que se ouvem e se leem nos dias correntes. Para que a anlise pretendida nesse livro se mantenha, tanto quanto possvel, concreta e objetiva, seu ponto de partida deve ser necessariamente elementar; deveria comear de preferncia pela explicao do que seja GQT. Tal explicao, contudo, no ser clara e convincente se antes no forem discutidos alguns elementos fundamentais. Por isso, a explicao ocorrer somente no quarto captulo desse livro. Vale a pena postergar tanto assim o enunciado de quaisquer conceitos especficos, pois a melhor maneira de evitar que a aridez de uma discusso escolstica sobre as diversas concepes vigentes impea a anlise de questes mais substanciais. Alm disso, o significado de algumas palavras se tornou to vago, que fica difcil concordar desde o incio quanto a um sentido nico e rigoroso que a elas se deva atribuir. Na dcada de 1971 a 1980 qualidade foi palavra que se desgastou pelo uso inadequado, juntamente com muitas outras introduzidas na desconexa torrente de discursos inconsequentes sobre GQT. Isolada ou em unio com outras palavras, ela foi utilizada to inapropriadamente e seu significado se desvirtuou tanto, que se ergueram vozes para dizer que qualidade nada significa a menos que se lhe atribua um contedo especfico, ou seja, com um pouco de jeito, lev-la a assumir o significado que se quiser.

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Esse livro procura auxiliar a compreenso do assunto, mas no contribui para aguar qualquer fervor ou entusiasmo. Embora muitos autores e especialistas no resistam tentao de apelar para a emoo quando escrevem sobre a GQT, esse livro procura conduzir a anlise com esprito to sbrio quanto possvel. perigosa, contudo, qualquer anlise fria e intelectual de uma ideia que sentimento sagrado para muitos. Assim como difcil a um antroplogo apresentar dada religio como fenmeno cultural a um fantico praticante dela, difcil dissecar certos equvocos que envolvem a GQT para aqueles que conduzem toda uma concepo de gesto organizacional com fundamento em algumas tcnicas de controle de qualidade utilizadas na produo industrial. Desse livro esto ausentes as pessoas cujos nomes so explorados na literatura de GQT, pois isso implicaria render justia especial a cada uma dessas pessoas, com transcries exatas de suas ideias, considerar a nfase que do a um e outro ponto e as circunstncias que as levaram a formular tal e qual ideia etc. Por outro lado, no h por que criticar supostos erros peculiares a determinados autores, mas somente os erros concretos mais frequentes, generalizados e influentes que se propagam pela palavra daqueles que no interpretaram corretamente as ideias que hauriram nas obras desses autores. Quando atingem o estgio de dogmas, as concepes errneas sobre qualquer assunto tornam-se praticamente annimas. No h nenhuma inteno de cometer injustia se a forma de uma ideia, como aqui apresentada, no for precisamente idntica formulao original. O interesse desse livro evidenciar os equvocos das ideias que grupos influentes propagam e segundo as quais algumas pessoas tomam decises, no nas razes histricas dessas ideias. Esse livro no est isento de imperfeies. A responsabilidade por quaisquer erros mais graves inteiramente do autor.

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IO MILAGRE JAPONS A GQT comeou a ser disseminada no mundo ocidental em fins da dcada de 1961 a 1970, atraindo o interesse de executivos e de dirigentes de empresas. Em pouco tempo comearam a proliferar especialistas e consultores em GQT, surgiram inmeros livros sobre o assunto, cresceram e prosperaram as empresas de consultoria que a divulgavam.6 Centenas de pessoas foram treinadas para implant-la nas empresas. Por que tanto interesse pela GQT? Os consultores afirmavam que a GQT era a mola propulsora do milagre japons, como ento se denominava o espetacular crescimento da economia nipnica aps a Segunda Guerra Mundial.7 Era ela, portanto, a melhor maneira de que as empresas ocidentais poderiam dispor para enfrentar a crescente concorrncia dos produtos japoneses. Assim comeou a grande corrida do Ocidente para a GQT, com o objetivo prioritrio e absoluto de competir comercialmente com os japoneses e venc-los. Os especialistas e consultores comearam a transferir as concepes do modelo japons da GQT para as empresas ocidentais sem darem a devida ateno ao fato de que estavam tentando transplantar para a cultura ocidental, na forma de recurso da razo instrumental, uma concepo de vida peculiarmente japonesa, consolidada ao longo de um processo milenar de evoluo cultural. Alguns estudiosos perceberam o grave erro que estava sendo cometido e o apontaram, advertindo que o transplante do modelo japons de GQT para o Ocidente seria um fracasso. Argumentavam eles que era totalmente equivocada e perniciosa a ideia de que as empresas ocidentais poderiam competir vantajosamente com os japoneses simplesmente6

As primeiras divulgaes falavam em Total Quality Control. Para os trabalhadores ocidentais, todavia, a palavra control evoca coero; por isso os divulgadores passaram a falar em Total Quality Management.

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O primeiro produto' a que no Ocidente se atribuiu o papel de mola propulsora do milagre japons foram os Crculos de Controle de Qualidade, iniciados l pelos anos de 1960-1962 por Kaoru Ishikawa (1915-1989). Na esteira do fascnio exercido sobre as gerncias ocidentais pelos livros que divulgavam as prticas gerenciais japonesas um professor de gesto empresarial, William Ouchi, apresentou outra mola propulsora do milagre japons num livro intitulado Theory Z: how American business can meet the Japanese challenge (Addison-Wesley, 1981). No difcil comprovar que de 1970 em diante a mola propulsora do milagre japons tem sido trocada a cada cinco ou seis anos, acompanhando o ciclo de vida dos modismos divulgados por consultores e empresas de consultoria.

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por lhes copiar o modelo de gesto organizacional. Isso significava deixar a iniciativa com os japoneses. Por isso, se as empresas ocidentais desejavam recuperar as posies que estavam perdendo por causa do xito comercial dos japoneses, deveriam fazer uso de meios que pudessem desenvolver em sua prpria cultura, no copiar os meios desenvolvidos pelos japoneses. Estes, afinal, no dispunham de nenhum recurso excepcional nem de nenhuma arma secreta; estavam simplesmente fazendo uso eficiente de concepes e de tcnicas de gesto organizacional criadas e desenvolvidas no Ocidente, mas nunca definitiva e completamente integradas s culturas das organizaes do Ocidente. Estas deveriam contrapor crescente concorrncia japonesa a sua prpria e comprovada capacidade de ousar e inovar. O fecho do discurso de advertncia desses estudiosos era a informao de que o problema das organizaes ocidentais no vinha de fora, no eram os japoneses. O problema mais grave estava dentro delas. Era uma combinao de ineficincia e comodismo que empestava principalmente as grandes organizaes e lhes emperrava o caminho rumo a desempenhos excelentes. Infelizmente, ningum ouve a voz da razo quando busca solues fceis e imediatas para suas angstias. Com televisores japoneses invadindo os mercados ocidentais e levando as indstrias eletrnicas locais ao desaparecimento, com quantidades diariamente crescentes de automveis japoneses circulando nas estradas das Amricas e da Europa e tirando o sono dos executivos da indstria automobilstica ocidental, esses estudiosos no receberam a devida ateno; remavam contra a mar. Havia no ar a opinio generalizada de que, se a GQT estimulara o sucesso da indstria nipnica, estimularia igualmente as indstrias ocidentais e as levaria a recuperar a capacidade de competir e vencer nos mercados e nos negcios em que sua liderana estava sob ameaa. improvvel que qualquer um que estivesse ocupado divulgando a GQT como a mais perfeita arma de que dispomos contra os japoneses tenha lido na poca o artigo de B. Bruce-Briggs (ento membro graduado da equipe de pesquisadores do Hudson Institute), The dangerous folly called Theory Z, publicado na revista Fortune de 17 de maio de 1982. Uma verso condensada desse artigo, intitulada Why we cant imitate the Japanese, foi publicada na edio de dezembro de 1982 do Readers Digest: A Amrica deve aprender com o estilo gerencial japons, dizem os autores de recente enxurrada de livros e artigos. De acordo com esses autores, o sucesso econmico do Japo resultado do conceito superior que eles tm de gesto de recursos humanos. No Japo no existem patres grosseiros, gerentes violentos nem supervisores de produo que recorram a palavres. Pelo contrrio, envolvidos por um clima de confiana mtua e de relacionamentos abertos no ambiente de trabalho, os felizes trabalhadores

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japoneses realizam prodgios porque se identificam com os interesses e objetivos da empresa. Como diriam os japoneses na sua linguagem rica em sutilezas e circunlquios, a realidade das coisas no assim to boa quanto essa percepo quer fazer parecer. Traduzindo para uma linguagem mais franca e aberta, essa percepo das coisas pura imbecilidade. inegvel que os japoneses esto apresentando desempenhos econmicos e comerciais soberbos. Conseguiram maravilhas, proporcionando ao mundo boas mercadorias com bons preos. Raramente os produtos japoneses tm se caracterizado como altamente inovadores, mas tm conseguido proporcionar maior valor ao dinheiro de quem os compra. Esta a verdadeira vantagem japonesa. Como conseguem isso? Com trabalho que produz exatamente o que se espera que produza. Em minha opinio, o trabalho bem feito que a chave do sucesso japons, no a arte da gesto de recursos humanos. Vou descrever uma experincia pessoal que tive em minha ltima visita ao Japo. Na agncia de Tquio do banco em que tenho conta nos Estados Unidos descubro que com carto posso sacar em ienes somente o equivalente a 15 dlares - quantia insuficiente para pagar uma conta de bar no Japo. Fico nervoso e constrangido. A moa da caixa v minha angstia. Vai ao supervisor, que a encaminha ao gerente, que a manda de volta com um recado para mim: Ele ir entrar em contato com San Francisco para obter da matriz uma ordem de pagamento. Mas uma hora da tarde, tenho coisas para fazer e uma viagem de trem logo de manh no dia seguinte. O Sr. volte, por favor, s trs e quinze. Um tanto quanto incrdulo, voltei ao banco na hora combinada e recebi os desejados 600 dlares convertidos em ienes. Um detalhe, a moa da caixa no foi ao seu supervisor; ela correu. No ambiente japons de negcios, diz-se hai (sim, senhor) para o cliente, hai para o chefe e corre-se como o diabo. Na Amrica, a disciplina est associada a ordens dadas de maneira dura e autoridade para punir. No assim no Japo. Os observadores americanos aparentemente foram confundidos pela linguagem extremamente rica em polidez e cheia de circunlquios dos japoneses. Vale a pena relembrar a ocasio em que, pela primeira vez na histria, o Imperador dirigiu-se ao povo pelo rdio, em agosto de 1945. A esquadra japonesa estava no fundo do Pacfico, a fora area sumira dos cus envolta em chamas, Hiroshima e Nagasaki incineradas por bombas atmicas. Como que o idolatrado imperador Hirohito descreve a situao do imprio para os seus sditos? Ele

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diz: A guerra transcorreu de maneira no muito favorvel a que nosso pas conseguisse as vantagens que espervamos. Um chefe japons jamais gritar Yamata, limpe j toda essa sujeira!, mas dir com toda a fleuma Yamata, a mim me parece que o cho no est to limpo como costumava estar! Isso mais do que suficiente para espicaar Yamata a se pr a varrer freneticamente. A polidez e as maneiras refinadas dos dirigentes japoneses ocultam dos olhos do observador ocidental a maneira poderosa com que eles impem a sua presena. A organizao social japonesa baseada em hierarquia - os idosos tm ascendncia sobre os jovens, os homens sobre as mulheres, o primognito sobre o caula, os de origem nobre sobre os plebeus, o supervisor sobre o aprendiz. Cada um sabe o seu lugar, o que torna desnecessrio ameaar as pessoas com a perspectiva de punio ou dar-lhes ordens duramente ou aos gritos. De manh bem cedo, o pessoal da limpeza e coleta de lixo de Tquio dedica-se a polir cuidadosamente os seus caminhes Isuzu. Imagine o leitor qual seria a resposta dos coletores norte-americanos de lixo se seus superiores lhes ordenassem para fazer o mesmo! Sob tal sistema, tomar decises por consenso fcil - pouqussimos indivduos sustentariam um ponto de vista contrrio ao do grupo, em hiptese alguma contrrio ao do chefe. De modo anlogo, o chefe est aberto s sugestes dos subordinados, porque inovaes e melhorias que porventura implante no contam pontos para uma futura promoo, no funcionam como alavancas para tir-lo do lugar que lhe est designado. A to decantada gesto de portas abertas dos executivos japoneses no representa convivncia de igual para igual entre chefes e subordinados, mas apenas a reafirmao do poder que aqueles tm sobre estes. Quando chegam ao trabalho numa empresa, os trabalhadores japoneses foram muito bem treinados pela famlia, pela escola, pela sociedade toda. Para garantir que eles iro se comportar devidamente, o sistema est recheado com o que ns chamamos de reforos. Tal o papel que cabe s canes e aos programas recreativos da empresa, tudo com o objetivo de manter os trabalhadores na condio de massa dcil e fcil de ser bem dirigida. Um reforo de grande poder a linguagem. Em cada coisa que o japons diz ou que lhe dita, colocado no seu devido lugar. Muitos americanos viveram por muito tempo no Japo e pensavam estar mantendo relaes de extrema cordialidade com japoneses; ignoravam, contudo, que uma maneira

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dos japoneses de expressar desprezo serem polidos e gentis um pouco mais do que o justificado pelas circunstncias. Minha mulher de origem japonesa fala com sua irm mais nova num tom diferente do que usa para falar com o seu cunhado japons ou com os meus parentes americanos. Certa vez mantive relaes de amizade com um executivo japons, descendente de nobre e poderosa linhagem de samurais, membro da turma de 1944 da Imperial Academia Naval. Aps a guerra tornou-se funcionrio de uma grande empresa no Japo, casou-se - como previamente acertado - com uma mulher apropriada sua classe, teve filhos, trabalhou duro; durante 20 anos, apresentou desempenho e comportamento em acordo com o que se esperava de um cavalheiro japons de sua estirpe. Aconteceu, ento, ser transferido para trabalhar em New York. A mergulhou de cabea no modo de vida ocidental. Passou a viver junto com uma jovem norte-americana. Nada de excepcional, pois os japoneses consideram sexo extraconjugal (para o homem) passatempo permissvel. Mas, certo dia divorciou-se da esposa japonesa e casou-se com a jovem norte-americana. No seu meio social, ningum faz uma coisas dessas. Por causa disso no poderia retornar ao Japo; esta foi a razo para que fosse preterido em promoes e mantido na Amrica. A sociedade japonesa tem uma linguagem de hierarquia. Lembro-me perfeitamente da expresso de sofrimento estampada no rosto de meu amigo, explicando-me o horror de ser obrigado a usar linguagem respeitosa ao dirigir a palavra a antigos subordinados que tinham se tornado seus superiores. A tica japonesa propicia, contudo, uma sada honrosa para tais situaes intolerveis. Depois do desenlace, sua viva norte-americana ficou amargurada ao descobrir que, para os antigos companheiros de trabalho do marido, ela simplesmente no mais existia. A penso que a empresa proporcionava famlia, a ttulo de adicional de seguro em caso de morte de funcionrio no estrangeiro, era paga verdadeira viva no Japo. O sistema de vida japons no foi adotado como poltica pelos dirigentes empresariais japoneses nem livremente escolhido pelos trabalhadores. Ele simplesmente lhes foi imposto a todos eles. Em conversas particulares, eu mesmo ouvi queixas sobre tal sistema, vindas at mesmo de altos executivos. Pesquisas de opinio pblica e o crescente aumento de votos para o partido socialista japons mostram que os trabalhadores japoneses nutrem profundos

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descontentamentos. Caro leitor, voc acha que eles gostam de trabalhar to arduamente como trabalham? Ou de cantar as msicas da empresa? Voc pensa que os pilotos kamikaze sentiam prazer e alegria diante da ideia de se estourar nos conveses dos navios norte-americanos? Os comentrios mais inteligentes e esclarecidos sobre a cultura japonesa enfatizam os valores dominantes de on (obrigao) e giri (dever), isso de cima para baixo. De baixo para cima, todavia, o valor mais relevante gaman - pacincia, conformismo, tolerncia. Para imitar os japoneses, necessitaramos de uma fora de trabalho disciplinada por uma hierarquia social controlada por uma oligarquia. Entre algumas das tradicionais tcnicas japonesas de gesto de recursos humanos havia uma muito especial - conceder aos samurais plena autoridade para eliminar, no ato e pela espada, qualquer comportamento rebelde dos camponeses e comerciantes. Outro mtodo muito eficiente era a imposio de punies coletivas para delitos individuais - um estmulo superlativo para assegurar a coeso da comunidade e o controle mtuo do comportamento de seus membros. Tal regime estruturou a sociedade japonesa com uma populao perfeitamente sintonizada com a organizao econmico-industrial moderna. Talvez devssemos copi-lo na Amrica - todos ns sabemos perfeitamente quem deve sentir o gosto do fio de nossa espada. Isso, contudo, exigiria centenas de anos para funcionar to bem como no Japo; comear hoje certamente no seria de grande ajuda para os negcios da prxima semana. Ns, americanos, somos amlgama de gente audaciosa e autoconfiante vinda da Europa e trazida da frica; jamais conseguiremos concorrer com os japoneses no que tange a corporativismo conformista. Somos, todavia, capazes de inovar, inventar e criar. Podemos inclusive nos mover mais rapidamente que os japoneses, a menos que sejamos reprimidos por pseudoconsensos. Tentar dirigir as empresas americanas como se administravam as pequenas vilas pioneiras da Nova Inglaterra pode privar-nos do mnimo de vantagem competitiva que ainda temos. O que devemos aprender do sucesso japons o valor da crena nos princpios fundamentais do comrcio em um sistema econmico livre e aberto - dar ao cliente o que ele deseja e controlar os custos - o valor do trabalho rduo e persistente e a disposio para correr como o diabo. Era uma vez na Amrica em que ns sabamos, defendamos e praticvamos tudo isso

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- e nossa economia tinha taxas de crescimento anual medidas por nmeros inteiros que quase chegavam a dois dgitos. Num quadro inserido dentro dessa condensao do artigo de Bruce-Briggs estava a condensao de um artigo de George P. Brockway publicado no jornal The New Leader, com o sugestivo ttulo de Milagre ou Miragem?: Tornou-se moda atribuir o desempenho superior da fora de trabalho do Japo, especialmente quando comparado com o desempenho da fora de trabalho de Detroit, ao fato de o trabalhador japons dedicar-se por toda a vida empresa em que trabalha e generosa retribuio que dela recebe por isso. Mas, analisemos os fatos com frieza e um pouco mais detalhadamente. A dedicao empresa por toda a vida termina quando o trabalhador completa 55 anos de idade, ocasio em que rebaixado e literalmente cedido por arrendamento - com salrio menor - para algum fornecedor da empresa qual dedicou toda a sua vida, ou simplesmente demitido, aps acordo e em troca de modesta indenizao. De qualquer maneira, todavia, vai viver a velhice sem receber espcie alguma de penso. Esta, contudo, no a pior situao; at mesmo uma das melhores. Tal como a sociedade, a economia japonesa tambm hierrquica de um modo muito peculiar. Os fabricantes de automveis, por exemplo, conseguem manter os nveis de estoques em patamares comparativamente muito inferiores aos dos fabricantes norte-americanos porque subcontratam praticamente tudo. As grandes companhias dominam seus fornecedores, que no tm outro mercado para o que produzem; uma bomba injetora de combustvel desenhada para um Toyota praticamente ferro-velho intil se no for instalada num Toyota. Os fornecedores que so obrigados a arcar com o nus de estoques altos para poderem atender just-in-time s necessidades sempre cambiantes de seus grandes clientes; devem, alm disso, dar-se por muito satisfeitos com os preos que esses grandes clientes decidem lhes pagar. Essas empresas fornecedoras dos grandes fabricantes no podem, consequentemente, assegurar aos seus funcionrios a estabilidade no emprego, muito menos um emprego vitalcio. So elas que promovem demisses em massa quando h uma recesso nos negcios dos grandes fabricantes, so elas que desaparecem do mercado quando ocorrem inovaes tecnolgicas que no consigam assimilar. Os trabalhadores dessas empresas so cidados de segunda classe. Ns no ouvimos falar deles, mas eles representam, na indstria automotiva japonesa, cerca de 70 por cento da fora de trabalho.

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de pouca ou nenhuma valia fundamentar nossa argumentao em pontos fracos do adversrio se no atentarmos para os nossos prprios pontos fortes e fracos. Pior ainda, no entanto, agir sem base em fatos. aventura temerria pressupor os motivos e os meios que levaram algum a uma posio de superioridade e supor que possamos conquist-la se tivermos os mesmos motivos e lanarmos mo dos mesmos meios. Muitas empresas ocidentais apostaram, todavia, numa aventura temerria. Buscaram reestruturar sua gesto de recursos humanos e a maneira de conduzir os negcios com fornecedores e clientes em conformidade com os ditames da GQT made in Japan. Tudo o que conseguiram ganhar foi, todavia, perdido quando, sob o influxo dos ventos de uma recesso econmica provocada por decises polticas incompetentes, elas mesmas e seus fornecedores (compelidos por vezes a implantar a GQT por presses das empresas clientes) viram-se obrigadas a demitir multides de funcionrios. Os trabalhadores perceberam ento que, embora os discursos dos dirigentes e dos consultores mencionassem a gesto participativa, o esprito de equipe, a necessidade de transparncia nos relacionamentos entre superiores e subordinados num clima de confiana mtua, o que contava realmente era o desempenho econmico-financeiro dos negcios e, por tabela, a satisfao dos acionistas. Qualquer outra coisa nada mais era do que meio de promover aumentos da produtividade e da lucratividade, mas no de assegurar empregos. Ora, quando os funcionrios percebem que medidas de racionalizao podem resultar em demisses, qual a vontade que tero de sugeri-las, se a recompensa for v-las se voltando contra eles mesmos? Uma das consequncias melanclicas disso foi que as empresas que viveram tais experincias traumticas vetaram sumariamente quaisquer iniciativas ulteriores sob o signo da GQT made in Japan, preferindo aceitar e praticar a tradicional regra de resolver problemas no curto prazo pela rpida adoo de medidas drsticas conhecidas. Para aes que demandem investimentos elevados ou muito tempo, sai caro discuti-las em clima de gesto participativa e de tomada de decises por consenso. Diante dessas tragdias, especialistas e consultores de GQT comearam a atribuir o fracasso dos programas de implantao da GQT ora incapacidade dos dirigentes de organizar suas empresas para a nova era da GQT, ora falta de compromisso do corpo executivo com o sucesso desta, ou deficincia de seu estilo de liderana e de comunicao, e assim por diante. Poderia at ser verdade que os dirigentes ocidentais fossem incapazes de organizar suas empresas para a GQT, que o corpo executivo no tivesse predisposio para se comprometer com o sucesso de programas desenvolvidos sob a gide da GQT, que a produtividade do trabalhador ocidental fosse de fato inferior do trabalhador japons. Mesmo que fossem admitidos como totalmente verdadeiros, tais fatos seriam - na opinio dos estudiosos mais srios e menos histricos - apenas evidncias superficialmente

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analisadas de males muito mais profundos, sintomas de um entrelaado de problemas muito mais graves e complexos do que anlises precipitadas (por vezes feitas sob a tica de opinies preconcebidas) conseguiam identificar. As discusses e polmicas estimuladas pelo rtulo de mais um produto de consultoria - GQT - deixaram em segundo plano a essncia do problema: a produtividade e a competitividade das empresas ocidentais, ambas insatisfatrias quando comparadas s das empresas japonesas. Uma discusso sobre produtividade e competitividade seria interessante e at conveniente, mas exigiria uma discusso preliminar sobre o significado de ambos os termos. Isso prolongaria desnecessariamente esse captulo. Melhor encerr-lo com um vislumbre do que deve ser realmente a essncia dessa discusso, transcrevendo ipsis litteris virgulisque um artigo muito interessante e ilustrativo. A maior parte do progresso alcanado pela indstria tem sido resultado do aperfeioamento tcnico dos meios de produo, mais do que do desenvolvimento humano propriamente dito. Se estamos sempre prontos a aceitar novas teorias cientficas, por que no admitirmos novos conceitos relativos ao homem e suas possibilidades latentes? Tivemos em nossa Companhia oportunidade de verificar o fenmeno correspondente a um desses conceitos, o da gerncia incentivadora, com aplicao de planos que visam tornar a indstria mais til prpria humanidade. A partir de 1929, o salrio mdio anual de nossos trabalhadores subiu de 2100 para 5800 dlares, tornando-os o operariado mais bem remunerado do mundo inteiro. medida que a capacidade produtiva de cada operrio foi aumentando, conseguimos reduzir de mais de 80 por cento as horas de trabalho direto necessrio para fabricar nossos produtos, cujo preo mnimo baixou assim de 1500 para 200 dlares. Isso no quer dizer que os operrios trabalhem cinco ou dez vezes mais depressa. O esforo fsico agora provavelmente menor que dantes. Gerncia incentivadora no implica aumento de velocidade; uma forma de estimular o raciocnio e o poder imaginativo de todos, a fim de obter melhor rendimento do trabalho. Nossa Companhia uma empresa industrial de fundio, altamente competidora. Nada existe, em seus produtos ou em seus mtodos de produo, que lhe assegure vantagem sobre seus concorrentes. O grande milagre se realizou pelo desenvolvimento do prprio operrio. Enquanto sua capacidade no posta prova por uma espcie de desafio, o indivduo nunca sabe de quanto capaz. Como disse o grande psiclogo William James: O ser humano comumente no atinge todos os seus limites.

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Em geral possui potenciais que no pe em uso. Sob o acicate de uma crise, a maioria dos homens desenvolve capacidades de que antes no se apercebia. Quando postos altura de resolver uma dificuldade imprevista, adquirem nova envergadura que ento se desdobra em desenvolvimento permanente. Resumindo: nossa ideia desenvolver o operrio por meio de situaes de crise e de incentivo. A crise pode ser, por exemplo, uma tarefa que parece estar acima de sua capacidade, mas que ele vence por seus prprios esforos. O incentivo que mais age sobre os indivduos em regra a conquista do respeito, prprio e alheio. Salrios que representem recompensa por qualquer realizao de destaque; melhoria de posio; cargos de responsabilidade - eis outros tantos meios de favorecer essa conquista. O operrio deseja sentir-se parte duma turma em que seus esforos so necessrios e sua habilidade se destaca. Nosso plano de incentivos triunfou por seguir princpios fundamentais, aplicveis a qualquer outro ramo industrial: 1. Desenvolver um sistema de pagamento que estimule o trabalhador e constitua recompensa para o trabalho fruto de seu crebro e de suas mos. 2. Promover todo operrio por mrito. Todos os cargos de destaque devem ser preenchidos por membros da organizao. Todos devem saber que o mais capaz promovido pela nica razo de ser o mais capaz. 3. Dar a todos tarefas que pelo menos ocasionalmente estejam acima de sua capacidade atual. 4. Providenciar para que todos conheam os planos da empresa, saibam o que esto fazendo, por que e como o esto fazendo. 5. Dar a todos os membros da organizao parte nos lucros da Companhia. Se os lucros so dobrados, a maior parte do aumento deve caber aos que os fizeram dobrar - operrios, tcnicos, fregueses, gerentes. Raramente os acionistas fazem grande coisa para aumentar os lucros; sua parte, portanto, deve ser pequena. preciso, porm, tomar cuidado para no concentrar a ateno sobre os lucros. Entre as finalidades quanto irei ganhar? e como poderei fazer esse trabalho de maneira mais adequada, tornando-o mais barato e proveitoso? existe uma diferena fundamental e decisiva. Uma vez introduzido um plano de incentivos adequado, gerncia e operrios estaro trabalhando para o mesmo fim - obter produtos cada vez melhores, a preos cada vez mais baixos. Em nosso caso, esse resultado foi

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obtido pelo sistema de diretoria consultiva, tendo como membros: um representante de cada departamento, eleito anualmente pelos operrios; um representante eleito pelos chefes de turmas; o superintendente de cada fbrica; e o presidente, na qualidade de encaminhador das discusses. Tudo quanto diz respeito organizao resolvido por essa diretoria. Os resultados tm sido imensos, abrangendo problemas como horas de trabalho, taxa de produo, aplices de seguro, garantia de frias e de anuidade para todos, sistema de bnus anual, planos de economia e compra de aes da Companhia. Cerca de metade dos operrios tem parte na sociedade e quase todas as aes pertencem a trabalhadores em atividade ou j aposentados. Condio indispensvel que a gerncia seja absolutamente honesta em todas as direes. Se se deseja que o operrio participe da empresa no sentido de consagrar-lhe os esforos, ponham-no tambm a par das circunstncias do negcio. Suponhamos, por exemplo, que um pedido de aumento de salrio seja apresentado. Outrora o gerente responderia que a Companhia no estava em condies de pagar salrios maiores, at mesmo porque se expunha ao risco de ir falncia - resposta quase sempre falsa. O pedido de aumento apenas d ao gerente oportunidade de explicar o que todos - gerncia e operariado - devem fazer para obt-lo. E isso os faz encarar melhor suas responsabilidades e possibilidades. Escravido, feudalismo e livre iniciativa foram os sistemas sucessivamente postos em prtica pela humanidade durante os ltimos mil anos. Feudalismo e livre iniciativa constituram passos no caminho da libertao e desenvolvimento do trabalhador. Parece que o conceito de gerncia incentivadora vai constituir o passo lgico seguinte. O leitor familiarizado com o jargo dos especialistas de recursos humanos e dos consultores de GQT notar que alguns termos e expresses que aparecem no artigo no so exatamente aqueles que atualmente se usam. Pudera! O artigo, escrito por James F. Lincoln, na poca presidente da Lincoln Electric Company, foi publicado sem ttulo num exemplar do Readers Digest de 1947. Sua transcrio aqui tem simplesmente o propsito de mostrar a crnica falta de memria e de cultura histrica dos especialistas e consultores, principalmente em seu prprio campo de interesses profissionais. A sociedade em que vivemos, por outro lado, no tem nenhum dispositivo institucional que obrigue um indivduo a adotar e colocar em prtica iniciativas de outros indivduos. Eles so livres para adot-las se assim o quiserem. De modo anlogo, nenhuma empresa ocidental pode ser coagida a adotar iniciativas que porventura tenham dado certo em outras empresas. Todas elas so livres para adotar boas ideias umas das outras, se isso lhes parecer vantajoso e no configurar violao das leis de proteo de patentes.

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Diante da crescente concorrncia japonesa, muitas empresas ocidentais - em especial as maiores e melhores - recorreram s memrias histricas de seus xitos e decidiram agir dentro dos princpios pacficos da liberdade de comrcio. Reestruturaram-se, inovaram processos e mtodos de trabalho, educaram seus funcionrios para os novos tempos de globalizao das atividades econmicas, refinaram sua capacidade de competitividade. Em muitos casos e em acordo com uma linha de pensamento bastante pragmtica, at mesmo associaram-se a empresas japonesas. Levar as empresas ocidentais a se lembrar dos princpios fundamentais que determinaram sua grandeza e prosperidade e - partindo de uma reflexo fundamentada nesses princpios - reformular sua maneira de ser e de agir numa nova ordem econmica mundial, este foi o verdadeiro milagre japons. Por sua importncia para o propsito desse livro, a esses princpios dedicado o prximo captulo.

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II AS ORIGENS DA PROSPERIDADE DAS NAES O progresso do mundo que se seguiu Revoluo Francesa e s guerras napolenicas foi consequncia direta daquilo a que o filsofo alemo Max Weber deu o nome de o esprito do capitalismo. Capitalismo evoca dio no mundo inteiro. A palavra est associada a egosmo, explorao, desigualdades, imperialismo, guerras. Lamentavelmente, isso verdadeiro quando se refere a sistemas capitalistas bastardos, extintos nas naes mais desenvolvidas, mas comuns ainda hoje em pases como Bolvia, Brasil, Colmbia, Coreia do Sul, Filipinas, Formosa, Indonsia e Mxico. Na poca em que estava escrevendo, Weber no se referia a concepes e prticas que j tinham ido para a lata de lixo da histria dos Estados Unidos e da maioria das naes da Europa; referia-se a um capitalismo democrtico, isto , um sistema econmico dependente de um esprito moral orientado por um sistema poltico. Weber no usou a expresso capitalismo democrtico nica e simplesmente porque, nas suas consideraes, no levou em conta a componente poltica - talvez por no ter percebido sua importncia. De todos os sistemas de economia poltica que modelaram nossa histria, nenhum revolucionou tanto as expectativas comuns da vida humana quanto o capitalismo democrtico; aumentou a durao da vida humana, tornou vivel a possibilidade de eliminar a pobreza e a fome, abriu vasto leque de alternativas para as diferentes vocaes humanas. Weber usou a expresso o esprito do capitalismo para denominar o ethos de um tipo de organizao econmica cujas possibilidades teriam sido articuladas pela primeira vez por John Locke. Este comentou que um campo de morangueiros, ainda que dos mais favorecidos pela natureza, produziria, se abandonado prpria sorte, grande quantidade de morangos. Submetido, contudo, ao cultivo e aos cuidados da inteligncia prtica, poderia produzir at dez vezes a quantidade habitual de morangos. Em resumo, concluiu Locke, a natureza bem mais rica de possibilidades do que os seres humanos j haviam percebido. Nessa viso de Locke nascia um novo e revigorante sentido para a vocao humana. Os seres humanos j no teriam que supor para si um destino passivo, sofredor, submisso. Estavam convocados a serem inventivos, prudentes, previdentes, trabalhadores devotados, a fim de realizarem a construo e o aperfeioamento do reino de Deus nesse mundo. Este passava a ser repositrio de promessas s cincias e artes, religio e at mesmo aos confortos humildes da vida humana. O mundo intocado como Ado o conheceu aps o Jardim de den deixou a humanidade na fome e na misria durante milnios. O homem tinha, contudo, a oportunidade de mud-lo e mudar assim o destino de todo o gnero humano.

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As reflexes de Locke representavam a ideia seminal do esprito do capitalismo a que Weber se referia. O caminho da evoluo das ideias que culminaram no capitalismo democrtico foi longo, tortuoso e demorado. Provavelmente o marco inicial dessa evoluo, a mais importante conquista da sociedade humana, foi a ideia da supremacia da liberdade individual. Embora viva numa sociedade que amlgama de consequncias diretas da prtica dessa ideia, a grande maioria das pessoas de hoje no tem conscincia da sua importncia. Durante muitos milnios da existncia humana, a ideia da supremacia da liberdade individual mal era balbuciada. As informaes mais antigas sobre sua prtica no Ocidente associam-na a consequncias desagradveis. Ado foi desalojado do Jardim de den, Prometeu foi acorrentado s rochas do Cucaso e seu fgado servia de repasto dirio a uma guia. A ideia da supremacia da liberdade individual como um bem um legado da civilizao ocidental. Sua importncia e implicaes sociais foram vislumbradas na Grcia do perodo de Scrates, Plato e Aristteles. Pouco mais a leste, o povo judeu tinha-a registrada na Bblia, como legado de Jeov ao povo eleito. Jesus a traduziu para um novo tempo e a transmitiu aos apstolos,8 que a divulgaram por todo o Imprio Romano.. Por muito tempo, contudo, todas essas mensagens sobre a importncia da prtica da liberdade individual, quando no eram reprimidas pela fora, permaneciam ignoradas, latentes como o resplendor das asas da borboleta no casulo fechado. Elas comearam a ser sistematicamente decodificadas nos mosteiros medievais. Na medida em que os monges se debruavam sobre as Sagradas Escrituras, com o intuito de desvelar a mensagem de Deus aos homens, e interpretavam os trabalhos dos filsofos gregos e latinos, esclarecendo-lhes o contedo e o alcance, mais explcita se tornava a ideia de que a liberdade individual era consequncia lgica da inteligncia que o Criador concedera ao homem. Este no estava nesse mundo para sofrer pacientemente a pena imposta a Ado; sua mais nobre misso era mudar o mundo conforme a sua prpria vontade. A responsabilidade de reduzir o sofrimento e a dor, a misria e a fome no de Deus, mas do prprio homem.

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Por que Cristo escolheu para continuadores de sua obra pescadores e cobradores de impostos, desconsiderando os Doutores da Lei com quem discutira aos doze anos de idade? Provavelmente porque sabia que os doutos no antigo estado de coisas so os que mais se opem a quaisquer mudanas, incapazes portanto de promover mudanas radicais e de implantar uma nova ordem no mundo.

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Quando as primeiras formulaes mais coerentes da ideia da supremacia da liberdade individual se tornaram predominantes na sociedade, a Europa viu a ecloso de criatividade humanista do Renascimento. Com a revoluo cultural provocada pela imprensa, um nmero maior de pessoas tendo acesso aos escritos clssicos, medievais e renascentistas, o Ocidente testemunhou o surgimento de uma mirade de pensadores, cujas ideias e obras culminaram no Iluminismo. No sculo XVIII e princpios do sculo XIX, o ideal da liberdade individual ganhou consistncia prtica a partir das concepes filosficas do liberalismo, conquistou coraes e mentes de lderes polticos e de educadores e literalmente provocou a recriao do mundo. O liberalismo, como formulado pelos filsofos, socilogos e economistas do sculo XVIII e primrdios do sculo XIX, prope uma ordem social baseada em trs pontos: um sistema econmico predominantemente de mercado, uma atitude de respeito em relao aos direitos individuais vida, liberdade e busca de felicidade e - no menos importante um sistema de instituies polticas e culturais movido por ideais de liberdade e de justia para todos. Isso constitui um conjunto de trs sistemas dinmicos e convergentes funcionando como um: uma forma de governo democrtica, uma economia fundamentada em mercados e incentivos, um sistema moral-cultural pluralista. O liberalismo defende uma economia democrtica qual corresponde, na esfera de conduo dos negcios de Estado, um sistema de governo representativo e, na esfera social, um sistema aberto s oportunidades de auto-realizao do indivduo. Os proponentes das polticas liberais nunca conseguiram alcanar plenamente todos os seus propsitos. Seria exagero dizer que o mundo tenha alguma vez vivido uma era liberal plena. Nunca se permitiu que o liberalismo flusse totalmente. Mesmo assim, apesar dos contratempos e restries, o que os ideais do liberalismo conseguiram estimular em termos de realizaes e conquistas prticas foi suficiente para mudar radicalmente a face do planeta e alterar de forma duradoura as instituies sociais e polticas. O divisor de guas entre o conformismo com a misria milenar e o desvelamento das perspectivas de desenvolvimento constante o ano de 1776, testemunha de dois importantes acontecimentos: o nascimento da primeira repblica democrtica do mundo, os Estados Unidos da Amrica, e a publicao do livro de Adam Smith, An Inquiry into the Nature and Causes of the Wealth of Nations. At essa poca, o padro clssico de economia poltica era mercantilista - a economia totalmente controlada pelo Estado. Fomes, epidemias e pragas devastavam o mundo civilizado em mdia uma vez por gerao. No decnio de 1780, quatro quintos das famlias francesas separavam nove dcimos de sua renda apenas para comprar po - e somente po - e tentavam sobreviver. Em 1795, a expectativa de vida na Frana era de 27,3 anos para as mulheres e 23,4 anos para os homens. Em 1800, em toda a Alemanha pouco menos de mil pessoas tinham rendas anuais equivalentes a mil dlares.

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No incio do sculo XIX, o sol acalentava um mundo em sua maior parte entorpecido. Viajantes europeus, habituados pobreza em seus pases, espantavam-se com as condies ainda piores que encontravam na frica e na sia. Em grande parte do planeta, preceitos elementares de higiene eram desconhecidos, o analfabetismo era virtualmente universal. Simultaneamente, governos autnomos eram raros. Contavam-se nos dedos as democracias. Quase todos os Estados eram autoritrios. Na maioria das naes predominavam os senhores que tinham fora para submeter seus concidados mais fracos. Eram raros os lugares em que havia liberdade de religio e de expresso. Reinavam preceitos absolutistas sobre questes religiosas, polticas, econmicas, morais e culturais. Esse paradigma foi rompido com o surgimento da ideia da economia de mercado e a consequente limitao da autoridade do Estado em assuntos econmicos. Nos Estados Unidos isso era consequncia natural da maneira de pensar e do modo de viver daqueles que idealizaram e concretizaram o sonho da Independncia. A instituio da economia de mercado, na Inglaterra e nos Estados Unidos, revolucionou o mundo, de 1800 at os dias atuais, de forma mais profunda do que qualquer outra fora isolada. Na Inglaterra, os salrios reais dobraram de 1800 a 1850, voltando a dobrar entre 1850 e 1900. Como a populao da Inglaterra quadruplicou no decurso, isso representou um aumento real da massa salarial de um mil e seiscentos por cento ao longo de um sculo. Os benefcios em liberdade e opo pessoal aumentaram proporcionalmente, com dieta alimentar mais diversificada, bebidas mais variadas, novas artes e profisses, novas vocaes. As pessoas podiam viver incomparavelmente melhor do que nos sculos precedentes. Tal prosperidade no fluiu apenas para uma seleta classe de privilegiados. s vsperas da Primeira Guerra Mundial, o trabalhador nas indstrias europeias e nos Estados Unidos vivia melhor e muito mais prazerosamente do que o nobre de apenas algumas dezenas de anos antes. No somente podia comer e beber segundo seus desejos, mas podia proporcionar aos filhos uma educao melhor. Podia, se assim o quisesse, fazer parte da vida intelectual e cultural de sua nao e, caso possusse talento e energia suficientes, podia at mesmo ascender sem grandes dificuldades para uma posio social mais alta. Era precisamente nos pases que adotaram o programa liberal que o cume da pirmide social se compunha, essencialmente, no de pessoas que gozavam de posio privilegiada por fora de bero, em virtude da riqueza e posio de seus pais, mas de pessoas que, mesmo em condies adversas, encontraram a sada da pobreza por seus prprios meios. Haviam cado as barreiras que em outros tempos separavam o mundo em senhores e servos. Agora, havia apenas cidados com direitos iguais. As perseguies polticas e religiosas haviam desaparecido da Europa e da Amrica, as guerras internacionais haviam se tornado menos frequentes. Havia otimistas que saudavam inclusive o advento da Idade da Paz Eterna.

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No perodo de 1800 a 1900 a humanidade viu surgirem avanos tecnolgicos num ritmo como nunca tinha sido visto nos precedentes quatro ou cinco milnios de civilizao. Quando o sol se ps no ltimo crepsculo de sculo XVIII, a noite se iluminou com a luz de velas e lmpadas de leo. Cem anos depois, o sculo XIX chegava ao fim iluminado por lmpadas eltricas. Todo o progresso do mundo ocidental nos ltimos duzentos anos no aconteceu por acaso, ou em decorrncia de alguma irreversvel lgica da Histria. Deveu-se deliberada ao humana nas artes, nas cincias e na tcnica, com profundos e duradouros reflexos nos sistemas polticos, educacionais e econmicos da sociedade. Os reflexos no sistema econmico deveram-se principalmente s mudanas radicais dos modos de produo de riqueza, levadas a efeito por um tipo especial e diferenciado de pessoa, o empresrio. A imagem que os opositores do capitalismo nos transmitem do empresrio a de um homem com corao de pedra, insensvel, ambicioso, audaz, movido pela cupidez do lucro. O modo muito pessoal de ser de um empresrio em particular pode evidenciar essas peculiaridades em maior ou menor grau; generaliz-las como caractersticas intrnsecas de todos os membros da comunidade empresarial , para dizer o mnimo, leviandade irresponsvel. Nada tem a ver com a essncia do esprito do capitalismo, muito menos com a crtica de algumas de suas aparentes deficincias ou falhas. O capitalismo se identifica indubitavelmente com o lucro, mas este deve ser necessariamente lucro renovado por meio de uma organizao produtiva contnua, racional e eficiente - a empresa. A ao do empresrio repousa indiscutivelmente na expectativa de lucro, mas lucro fundamentado na utilizao de oportunidades de troca, isto , na explorao de oportunidades pacficas de lucro. Sobre o papel do empresrio, Israel M. Kirzner tece algumas consideraes muito interessantes no livro Competition and Entrepreneurship.9 Nesse livro pe-se em cheque a opinio corrente dos advogados do sistema capitalista de que o empresrio faz jus ao lucro por correr riscos, por ter capital e know how, por ser quem dirige a empresa ou at mesmo por trabalhar demais. De fato, na atuao de qualquer empresrio, todos esses elementos aparecem mesclados em maior ou menor proporo. Esses elementos, no entanto, podem ser substitudos: o capital pode ser tomado por emprstimo, o know how pode ser comprado, o risco posto no seguro, a gerncia contratada. A que, ento, atribuir o lucro empresarial? De acordo com Kirzner, o elemento caracterstico da atividade empresarial, o nico que no pode ser transferido - a no ser a outro empresrio - a funo realmente9

Boston: University of Chicago Press, 1973.

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intrnseca atividade empresarial, a descoberta. A funo empresarial bsica descobrir oportunidades inexploradas. Empresrio , por definio, toda pessoa que contrata e organiza os servios dos meios de produo. Entre esses meios, podem estar pessoas com maior habilidade tcnica, melhor conhecimento e informaes de mercado etc. O prprio fato, contudo, de que esses detentores de habilidades e de informao no as exploraram eles mesmos em seu prprio benefcio mostra que, talvez no seu sentido mais verdadeiro, esse conhecimento possudo no por eles, mas por aquele que os est contratando. este que sabe quem contratar, que sabe onde encontrar os que dispem das informaes de mercado de que ele, empresrio, necessita para localizar oportunidades de lucro. Onde existem de fato condies de troca que no so exploradas em decorrncia de ignorncia existe, consequentemente, campo de ao para a atividade empresarial lucrativa. Sob esse prisma, o lucro no um objetivo intrnseco da atividade empresarial. , antes de tudo, indicador do xito de uma atividade empresarial bem sucedida, devendo resultar de mrito, mais do que de cupidez. Ludwig von Mises, um dos grandes expoentes intelectuais do liberalismo, contesta nos seguintes termos as crticas que se fazem ao capitalismo em geral e ao empresrio capitalista em particular, no livro Liberalism in the Classical Tradition:10 A vida do homem no constitui um estado de felicidade plena. A terra no paraso algum. Embora isso no seja falha das instituies sociais, as pessoas tendem a consider-las responsveis por isso. O fundamento de toda e qualquer civilizao, inclusive a nossa, a propriedade privada dos meios de produo. Quem quer que busque criticar a moderna civilizao comea, portanto, pela crtica propriedade privada. Esta culpada por tudo o que no agrade ao crtico, especialmente pelos males que se tenham originado dos obstculos e restries impostos instituio da propriedade privada em vrios aspectos, impedindo-a de realizar plenamente suas potencialidades sociais. O procedimento costumeiro adotado pelo crtico imaginar como tudo seria maravilhoso se ele pudesse simplesmente seguir o caminho que escolheu. Em seus sonhos, elimina toda vontade que se oponha sua prpria ou todo aquele cuja vontade coincida com a sua, que a de elevar-se posio de senhor absoluto do mundo. Todo aquele que prega o direito do mais forte considera-se o mais forte. Quem defende a instituio da10

Esse livro foi publicado originalmente em alemo (Liberalismus. Jena: Gustav Fischer, 1927). A primeira edio em lngua inglesa de 1962. Os trechos transcritos so da terceira edio, coeditada em 1985 por Cobden Press (San Francisco, CA) e The Foundation for Economic Education, Inc. (New York, NY).

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escravatura nunca se pe a pensar que ele prprio poderia ser um escravo. Quem exige restries liberdade de conscincia, assim o faz em relao aos outros e no em relao a si prprio. Quem defende uma forma oligrquica de governo sempre se inclui na oligarquia; quem chega ao xtase por pensar no despotismo esclarecido ou na ditadura benevolente bastante imodesto para outorgar-se a si prprio, em suas fantasias, o papel de dspota ou ditador ou, pelo menos, para esperar que ele prprio se torne o dspota sobre os dspotas ou o ditador sobre os ditadores. A literatura anticapitalista criou um padro fixo para essas fantasias do sonhador, na costumeira oposio que se faz entre lucratividade e produtividade. O que ocorre na ordem social capitalista contrastado em pensamento com o que (correspondendo aos desejos do crtico) seria conseguido na sociedade socialista ideal. Caracteriza-se como improdutivo tudo o que se desvia dessa imagem ideal. Como nem sempre a maior lucratividade para os agentes individuais coincide com a maior produtividade para a comunidade, isso se tem convertido, desde h muito, na mais sria objeo contra o sistema capitalista. S muito recentemente ganhou terreno a conscincia de que, na maioria desses casos, uma comunidade socialista poderia agir de modo nada diferente do que os indivduos numa comunidade capitalista. Mas at mesmo onde a alegada oposio de fato exista, no se pode supor simplesmente que uma sociedade socialista faria necessariamente o que correto e que a sociedade capitalista deva ser sempre condenada se fizer algo a mais. O conceito de produtividade sempre subjetivo, nunca capaz de se constituir no ponto de partida para uma crtica objetiva. No vale a pena, portanto, preocuparmo-nos com os devaneios de nosso ditador sonhador. Em sua viso fantasiosa, todo mundo obsequioso e obediente, pronto a executar suas ordens de imediato e pontualmente. Numa sociedade socialista real, contudo, as coisas se mostram muito diferentes, nunca de modo meramente visionrio. A suposio de que a distribuio igual do produto anual da economia capitalista entre todos os membros da sociedade seria o bastante para assegurar a cada um o sustento suficiente completamente falsa, como mostra um clculo estatstico simples. Uma sociedade socialista, portanto, dificilmente poderia obter aumento perceptvel de padro de vida dessa maneira. Se ainda se mantm o objetivo de bem-estar e mesmo de riqueza para todos, isto somente seria possvel na suposio de que o trabalho numa sociedade socialista seria mais produtivo do que o sob o capitalismo, e que o sistema socialista tornar desnecessria uma srie de gastos suprfluos e, consequentemente, improdutivos.

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Em decorrncia desse segundo ponto pode-se pensar, por exemplo, na supresso de todas as despesas originrias dos custos de promoo de vendas, de concorrncia e de publicidade. Est claro que no h lugar para esses gastos numa sociedade socialista. No se deve esquecer, contudo, que o aparelho socialista de distribuio tambm envolve custos considerveis, talvez at mesmo maiores que os correspondentes custos numa sociedade capitalista. Mas no este o elemento mais importante no julgamento da significao dessas despesas. O socialista pressupe, sem questionar, que de se esperar que numa sociedade socialista a produtividade do trabalho ser pelo menos igual de uma sociedade capitalista, e procura provar que ser at mesmo superior. Mas o primeiro pressuposto no de modo algum evidente, como parece pensar o defensor do socialismo. A quantidade de coisas produzidas numa sociedade capitalista no independente do modo pelo qual so produzidas. de importncia decisiva o fato de que em cada simples estgio, em cada ramo de produo, o interesse das pessoas nele engajadas est intimamente ligado com a produtividade da cota particular de trabalho colocado em execuo. Todo trabalhador precisa esforar-se ao mximo, uma vez que seus salrios so determinados pelo produto do seu trabalho, e todo empresrio precisa esforar-se por produzir com custos menores, isto , com dispndios de capital e de trabalho inferiores aos de seus concorrentes. unicamente em razo desses incentivos que a economia capitalista tem sido capaz de produzir as riquezas geradas sob seu comando. Objetar aos alegados custos excessivos do aparelho mercadolgico capitalista mostrar, sem dvida alguma, uma viso mope das coisas. Quem censura o capitalismo por esbanjar recursos, por haver muitos comerciantes de quinquilharias em concorrncia e um nmero maior ainda de tabacarias nas ruas movimentadas no v que esse tipo de organizao de vendas apenas o elo final de um aparelho de produo que garante a maior produtividade de trabalho. Todos os aumentos de produo obtidos assim o so porque da natureza desse aparelho de produo produzir aumentos contnuos. por isso que todos os empresrios esto em constante concorrncia e so impiedosamente erradicados se no produzirem da maneira mais lucrativa possvel, por isso que os mtodos de produo so continuamente aperfeioados e refinados. Se esse incentivo desaparecesse, no haveria maior progresso na produo e nenhum esforo seria feito para economizar na aplicao dos mtodos tradicionais. Consequentemente, um absurdo completo colocar a objeo de que se poderia poupar muito, caso fossem abolidos os custos com publicidade.

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Ao contrrio disso, dever-se-ia indagar qual seria a produo se a concorrncia fosse abolida. No se pode pr em dvida qual seja a resposta a essa indagao. Os homens podem consumir somente na medida em que trabalham e, portanto, na quantidade que seu trabalho produz. Ora, a caracterstica do sistema capitalista prover cada membro da sociedade com esse incentivo para executar seu trabalho com a maior eficincia possvel e alcanar, portanto, a maior produo possvel. Numa sociedade socialista, estaria ausente a ligao direta entre o trabalho do indivduo e os bens e servios de que poderia gozar. O incentivo ao trabalho no consistiria na possibilidade de gozar o fruto de seu trabalho, mas na capacidade das autoridades de influir no sentimento de dever de cada um. O que sempre criticado no sistema capitalista o fato de os proprietrios dos meios de produo ocuparem posio preferencial. Eles podem viver sem trabalhar! Se se observa a ordem social de um ponto de vista individualista, no h dvida de que isso uma sria deficincia do capitalismo. Por que algum deve ser melhor que o outro? Mas, se considerarmos as coisas, no do ponto de vista de pessoas individualmente, mas de toda a ordem social, descobriremos que os detentores da propriedade dos meios de produo somente podem preservar sua agradvel posio exclusivamente na condio de que executem um servio indispensvel sociedade. O capitalista poder manter sua posio favorvel somente se colocar os meios de produo na atividade mais importante para a sociedade, isto , na produo de bens que a sociedade considere essenciais. Se no o fizer, se investir sua riqueza de modo imprudente, sofrer perdas; se no corrigir seu erro em tempo, ser inexoravelmente alijado de sua posio preferencial. Deixar de ser capitalista e outros, mais qualificados, com certeza lhe tomaro o lugar. Numa sociedade capitalista, o desenvolvimento e o uso dos meios de produo est sempre em mos dos mais bem qualificados; queiram ou no, eles tero sempre de tomar o cuidado de empregar esses meios de produo de modo a gerar para o mercado bens essenciais com o maior valor agregado possvel.11 A inferncia lgica que pode se fazer de todas as ideias at aqui apresentadas simples e direta: um sistema econmico de livre mercado deixa aberto para o empresrio um nico caminho para a obteno de lucro: ter xito em atender s necessidades dos consumidores da melhor maneira possvel, ofertando-lhes bens teis com preos tentadores.11

Ludwig von Mises, Liberalism in the Classical Tradition. p. 65-68.

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Nisso reside a essncia da competio no mercado: o empresrio deve organizar os meios de produo para satisfazer o consumidor com um bem que valorize o dinheiro que este se dispe a gastar para obter esse bem. Isso significa que, numa ordem social constituda sob princpios genuinamente liberais, o empresrio ter xito somente se oferecer ao mercado bens que satisfaam os consumidores quanto qualidade e ao preo, em competio aberta com outros empresrios imbudos do mesmo propsito. Todos os empresrios esto em constante concorrncia. Aqueles que no oferecerem qualidade e preo nos bens que os consumidores desejam e no produzirem da maneira mais lucrativa possvel sero impiedosamente erradicados do negcio. por isso que tanto os bens oferecidos ao mercado quanto os mtodos de produo devem ser continuamente aperfeioados e refinados. A corrida ser ganha por aqueles empresrios que conseguirem atender ao mercado no s com rapidez, mas principalmente melhor. Fica evidente, portanto, que as origens da prosperidade das naes repousam sobre um nico princpio: uma sociedade aberta s inovaes e mudanas, na qual se defenda a liberdade dos indivduos de buscar os meios para a auto-realizao sob um sistema de governo que no administra as atividades dos homens, mas to somente a justia entre homens que exercem livremente suas atividades.12

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Walter Lippmann, An Inquiry into the Principles of Good Society (Boston, 1937). p. 267.

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III O PARASO PERDIDO Maquiavel escreveu que nada mais difcil, arriscado e duvidoso do que tomar a iniciativa de introduzir uma nova ordem das coisas. Aqueles que inovam tm por inimigos todos os que levaram vantagem no antigo estado de coisas. Os que podem se beneficiar com a nova situao oferecem, quando muito, apoio moderado e discreto.13 Na maioria dos casos, o conflito entre ideias velhas e novas termina com o triunfo destas, com as velhas ideias sendo lanadas na lata de lixo da Histria. Isso, no entanto, no ocorreu no conflito entre as antigas ideias vigentes no mundo pr-capitalista e os ideais do liberalismo. Apesar dos inegveis xitos prticos das ideias liberais no decurso do sculo XIX, eles no originaram uma concomitante formulao terico-filosfica a favor do liberalismo que, se no pudesse aniquilar de vez as ideias e argumentos antiliberais, pelo menos tivesse conseguido conter-lhes o mpeto e a virulncia pelo tempo suficiente para que o ideal liberal se realizasse plenamente. As mudanas econmicas, polticas e sociais preconizadas pelo liberalismo foram atacadas desde cedo, praticamente no nascedouro. Os argumentos contrrios s ideias do liberalismo evitavam a palavra liberalismo e suas derivadas, pois evocavam liberdade. Preferiam nica e exclusivamente o termo capitalismo, usando-o especificamente para evocar a imagem de um mundo mergulhado em misria e pobreza crescentes. Ao invs de falar do capitalismo em estreita ligao com a prodigiosa e inegvel melhoria do padro de vida da sociedade em geral, a propaganda antiliberal se especializou em mencion-lo apenas quando fazia referncias a fenmenos cujo surgimento foi possvel somente em razo das limitaes impostas ao desenvolvimento pleno dos ideais do liberalismo. Nenhum dos ataques ao sistema econmico de livre mercado defendido pelo liberalismo faz, por exemplo, referncia ao fato de que o capitalismo colocou disposio das massas trabalhadoras um bem de luxo to delicioso quanto o acar. Este relacionado ao capitalismo somente quando seu preo elevado acima do preo do mercado mundial por fora de manobras de cartis (cuja existncia e ao seriam simplesmente inconcebveis em uma ordem social em que estivessem operando plenamente os princpios liberais), ou quando se discutem as agresses ao meio ambiente e as condies supostamente desumanas do trabalho da colheita da cana. Aps a Primeira Guerra Mundial - ela prpria resultado de uma luta acirrada contra o liberalismo - os princpios liberais passaram pelo perodo mais amargo de ataques. Em diferentes pases, o declnio do esprito liberal levou a experincias socialistas, cujo13

O Prncipe (1513), Captulo VI.

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resultado foi a reduo da produtividade do trabalho humano e o concomitante aumento de necessidades e da misria. Na dcada de 1930 o ideal do liberalismo se encontrava praticamente beira da extino, tanto assim que Jos Ortega y Gasset escreveu em 1932: O liberalismo - convm lembrar isso hoje - a forma suprema de generosidade; o direito que a maioria concede s minorias e constitui, por isso, o clamor mais nobre que j ressoou nesse planeta. Anuncia a determinao de conviver com o inimigo; mais que isso, com um inimigo que fraco. Se verdade no fosse, seria inacreditvel que a espcie humana tivesse chegado a uma atitude to nobre, to paradoxal e refinada, to difcil de manter, to antinatural. No deve, pois, surpreender que logo essa mesma espcie parea disposta a abandon-la. uma disciplina demasiado difcil e complexa para lanar razes profundas na terra.14 Paradoxalmente, foi no perodo mais negro para o liberalismo - que se estendeu de 1918 at fins da dcada de 1951 a 1960 - que surgiram seus principais defensores no campo terico e filosfico, entre eles Ludwig von Mises e Friedrich Hayek. Hoje, no limiar do sculo XXI, as ideias do liberalismo, revigoradas por uma nova gerao de pensadores surgida aps a Segunda Guerra Mundial, esto voltando luz, principalmente aps os fracassos das experincias socialistas e com o fim dos regimes comunistas. O tempo parece estar dando razo a Mises. O resultado final da luta entre liberalismo e totalitarismo, escreveu ele em 1927, no ser decidido pelas armas, mas pelas ideias. So as ideias que renem os homens entre as faces litigantes, que lhes colocam armas nas mos e que determinam contra quem ou a favor de quem as armas devero ser utilizadas. So apenas as ideias e no as armas que, em ltima anlise, pesam na balana.15 prematuro, todavia, qualquer entusiasmo em relao plena revivescncia dos ideais do genuno liberalismo. Ainda no foram exorcizados os fantasmas do antiliberalismo que levaram o planeta a dois confrontos armados de mbito mundial em menos de trinta anos e a crises econmicas renitentes desde 1930 at os nossos dias. Eles circulam livres e venerados nos corredores de muitas escolas de cincias econmicas, inspiram os programas de vrios partidos polticos, os pensamentos de alguns defensores da chamada teologia da libertao, as ideias de escritores influentes e de respeitveis jornalistas. Alm disso, so assduos frequentadores das salas de reunies de algumas grandes empresas e dos gabinetes de muitos polticos e governantes. Na poca em que os ideais do liberalismo floresciam, a maioria dos indivduos responsveis pela formao da opinio era constituda de pessoas independentes, isto , pessoas que obtinham o sustento por se dedicar a atividades autnomas. Em palavras de14

Jos Ortega y Gasset, The Revolt of the Masses (New York: Norton, 1932). Captulo VIII. O livro foi originalmente publicado em espanhol em 1930 (La rebelin de las masas).

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Ludwig von Mises, Liberalism in the Classical Tradition. p. 52.

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hoje, a maioria da elite social urbana era constituda por empresrios, comerciantes e profissionais liberais. Nossa sociedade atual em sua grande maioria formada de assalariados, em geral de grandes organizaes privadas e governamentais. So pessoas acostumadas a trabalhar com recursos pelos quais no se sentem responsveis (posto que no os possuem nem assumiram o risco de adquiri-los) e, de modo geral, obedecem a instrues. A moderna sociedade no se compara sociedade do sculo XIX; so duas humanidades radicalmente diferentes. Isso torna mais difceis as coisas para os que pensam na possibilidade da revivescncia dos ideais do liberalismo puro. Alm disso, desde h muito o estado de esprito dos lderes intelectuais do Ocidente vem se caracterizando pela desiluso com os princpios que tornaram possveis os feitos da civilizao ocidental, pelo desprezo pelas realizaes desta e por uma preocupao exclusiva com a criao de mundos melhores. No h uma ideia clara do que se quer alcanar, muito menos do que se quer preservar. A ideia de liberdade foi emasculada pelo tratamento literrio que recebeu, isso quando no fica restringida imagem de indivduos que conseguem chocar sua gerao, criando a iluso de que livre somente quem consegue escandalizar a sociedade. As novas geraes ouvem falar de liberdade como um valor especfico, levando-as a ignorar que ela em verdade a fonte e a condio essencial da maioria dos valores morais. Pior ainda, a liberdade das pessoas se encontra ameaada em muitos campos simplesmente porque elas esto muito propensas a deixar que especialistas decidam por elas ou a aceitar de forma passiva e sem crtica a opinio de especialistas sobre problemas dos quais eles conhecem profundamente apenas um pequeno aspecto. Estamos nos esquecendo de que, na prtica, a liberdade depende de questes bastante prosaicas; as pessoas que desejam preserv-la devem provar sua dedicao no s pela ateno que dispensam s preocupaes ordinrias da vida pblica, mas pelos esforos que estejam dispostas a dedicar compreenso daquelas coisas que o idealista muitas vezes considera comuns, at mesmo ignbeis.16 Foi para contrapor os ideais do liberalismo a essas vises pessimistas e totalitrias que Ludwig von Mises escreveu: Cada vez mais se compreende que o progresso material s possvel numa sociedade aberta, liberal e capitalista. Mesmo que no seja expressamente aceito pelos antiliberais, esse aspecto plenamente reconhecido, pelo menos de modo indireto, nos panegricos que exaltam a ideia da estabilidade e de um estado de estagnao. Dizem os antiliberais que os avanos materiais alcanados pelas geraes recentes tm sido indubitavelmente agradveis e benficos. necessrio, entretanto, dar-lhes uma pausa. Essa afobao desenfreada do moderno capitalismo deve dar lugar a uma tranquila contemplao. Deve-se ter tempo16

Friedrich Hayek, The Constitution of Liberty (London: Routledge, 1960).

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para meditar e refletir; por isso, outro sistema econmico deve tomar o lugar do capitalismo, outro sistema que no seja to impaciente, to vido de novidades e inovaes. Os romnticos recordam nostalgicamente as condies econmicas da Idade Mdia, no da Idade Mdia como de fato foi, mas de uma imagem dela, construda em fantasias sem qualquer amparo na realidade histrica. Ou ento contemplam o Oriente, de novo no o Oriente real, mas uma viso fantasiosa dele, e lamentam: Como eram felizes os homens sem os recursos da moderna tecnologia! Como pudemos ns renunciar to frivolamente a uma vida to paradisaca? Quem prega o retorno s formas simples de organizao econmica da sociedade deveria ter em mente que apenas o nosso tipo de sistema econmico oferece a possibilidade de manter, no estilo de vida ao qual hoje estamos acostumados, o nmero de pessoas que hoje povoam a Terra. A volta Idade Mdia exigiria o extermnio de centenas de milhes de pessoas. Na verdade, os amigos da estabilidade e da estagnao dizem que de modo algum se deve chegar at esse ponto. Basta parar por aqui, atermo-nos ao que j tenhamos alcanado e renunciar a novos avanos. Os que louvam o estado de estagnao e de equilbrio estacionrio se esquecem de que no homem h um desejo inerente de melhoria das suas condies materiais, na medida em que ele seja um ser pensante. Esse impulso no pode ser erradicado, pois a fora motriz da motivao de toda ao humana. Se algum impede o homem de trabalhar pelo bem da sociedade e, ao mesmo tempo, de dar satisfao s suas prprias necessidades, s poder faz-lo lanando mo de um nico expediente: tornar-se ele mesmo mais rico e tornar os demais mais pobres, por meio de violenta opresso e espoliao de seus semelhantes. verdade que todo esforo e toda luta para aumentar o padro de vida material no torna os homens mais felizes. Est, no obstante, na natureza do homem lutar constantemente para a melhoria de suas condies materiais de vida. Se for impedido de satisfazer essa aspirao, o homem se torna obtuso e embrutecido. As massas no daro ouvidos s pregaes que as exortam moderao e ao contentamento; at possvel que os filsofos que preguem tais admoestaes estejam trabalhando sobre uma enorme desiluso. Se algum diz s pessoas que seus pais viveram em condies piores, elas respondero no saber por que no devam procurar melhor-las. Ora, quer seja bom ou ruim, quer receba ou no a sano moral, o certo que o homem sempre buscar a melhoria de suas condies de vida. Tal o inexorvel destino do homem. A agitao e a inquietude do homem moderno

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so estmulos para a mente, os nervos e os sentidos. To difcil quanto restaurar-lhe a inocncia ingnua da infncia ser lev-lo de volta passividade dos perodos anteriores da histria da humanidade. Mas, antes de mais nada, o que se oferece em troca da renncia a um maior progresso material? Levados pelo ressentimento, os literatos utopistas imaginam que a pobreza e a ausncia de desejos criam as condies especialmente favorveis para o desenvolvimento das capacidades espirituais do homem; mas isso um absurdo. Felicidade e satisfao, paz e harmonia interior no sero possveis simplesmente porque as pessoas no mais desejam a melhoria da satisfao de suas necessidades Na discusso de tais questes devem-se evitar quaisquer eufemismos e dar s coisas os seus devidos nomes. A moderna riqueza se expressa, acima de tudo, pelo culto ao corpo: higiene, asseio, a prtica de esportes. Hoje ainda luxos dos abastados em muitos lugares do mundo, mas no mais para a maioria absoluta das pessoas nos Estados Unidos e na Europa, tais conquistas estaro ao alcance de todos num futuro no muito distante, se o desenvolvimento econmico prosseguir como tem ocorrido at agora. Seria a vida interior das pessoas intensificada de algum modo por impedir que as massas tenham acesso ao nvel de cultura fsica de que os abastados desfrutam? Ser que se encontra a felicidade em um corpo desleixado? Aos panegricos da Idade Mdia somente se pode responder que no sabemos se o homem medieval se sentia mais feliz que o homem moderno. Mas podemos deixar, para aqueles que tm o modo de vida dos orientais como modelo, a resposta pergunta se a sia e de fato o paraso que dizem ser. A fastidiosa louvao da economia estacionria como o ideal social o argumento final a que os inimigos do liberalismo tm de recorrer para justificar suas doutrinas. Que fique muito claro em nossas mentes, no entanto, que o ponto de partida para suas crticas foi que o liberalismo e o capitalismo impedem o desenvolvimento das foras produtivas, sendo por isso responsveis pela pobreza das massas. Os adversrios do liberalismo alegam que procuram uma ordem social que possa gerar mais riqueza do que a ordem social que esto atacando. Ora, colocados contra a parede pelos contra-ataques da economia e da sociologia, tero de concordar que apenas o capitalismo e o liberalismo, somente a instituio da propriedade privada e a

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desimpedida atividade dos empresrios podero garantir a mais alta produtividade do trabalho humano. Com exceo de uns poucos ascetas coerentes, que procuram despojar a vida de todas as suas exterioridades e que finalmente conseguem alcanar a auto-anulao, todos os homens que tenham experimentado a cultura europeia, quaisquer que sejam os seus pontos de vista sobre questes sobrenaturais, preferem um sistema social em que o trabalho seja altamente produtivo a um sistema social em que seja menos produtivo. Mesmo os que acreditam que uma crescente melhoria da satisfao dos desejos humanos no traga bem algum e que seria melhor que produzssemos menor quantidade de bens materiais (embora seja duvidoso que o nmero dos que tenham e sinceramente mantenham essa opinio seja muito grande) no desejariam que a mesma quantidade de trabalho resultasse em menor quantidade de bens. Quando muito, desejariam que houvesse menos trabalho e, consequentemente, menos produo, mas no que a mesma quantidade de trabalho devesse produzir menos. Os antagonismos polticos de hoje no constituem controvrsias sobre questes ltimas de filosofia, mas respostas contrrias pergunta de como um objetivo, que todos reconhecem como legtimo, possa ser alcanado o mais rapidamente possvel e com o menor sacrifcio. Esse objetivo, a que visam todos os homens, a melhor satisfao possvel dos desejos humanos, a prosperidade, a abundncia. Isso, sem dvida, no tudo a que os homens aspiram, mas tudo o que podem esperar alcanar, por fazer uso de meios externos, por meio da cooperao social. As bnos internas - felicidade, paz de esprito, exaltao - devem ser buscadas por cada homem dentro de si prprio.17 Os ideais do liberalismo comearam a ser rejeitados numa poca em que os homens no viam limites s suas ambies, isso porque o credo liberal muito modesto e at humilde, baseado numa considervel falta de confiana na sabedoria e capacidade humanas e na conscincia de que, nos limites dentro dos quais podemos planejar, nem mesmo a melhor das sociedades conseguir satisfazer todos os desejos de seus membros. Tal credo est longe tanto do perfeccionismo quanto da pressa e impacincia do reformador apaixonado, cuja indignao diante de determinados males frequentemente o impede de perceber o prejuzo e a injustia que a concretizao de seus planos tender a produzir. A ambio, a impacincia e a pressa so admirveis nos indivduos; so, contudo, perniciosas quando orientam o poder e quando o destino da sociedade depende daqueles que, ao lhes ser17

Ludwig von Mises, Liberalism in the Classical Tradition. p. 188-191.

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conferida a autoridade, supem que tal investidura encerra sabedoria superior e, portanto, o direito de impor a sua vontade aos outros. Foi o perfeccionismo dos utopistas que frequentemente destruiu qualquer grau de decncia que as sociedades j chegaram a alcanar. Trs fatores convergentes contriburam para o declnio do ideal liberal no Ocidente: o intervencionismo, o keynesianismo e o assistencialismo, facetas de um e mesmo complexo entrelaado de questes. Difcil afirmar com certeza qual deles causa, qual consequncia. mais adequado consider-los como culminncias de uma sucesso de tropeos que levou a outros e mais desastrosos tropeos, todos tendo uma origem comum: a infiltrao, no mecanismo social do moderno estado democrtico, de uma mistura letal do perfeccionismo dos utopistas com as ideias dos socialistas radicais. O intervencionismo caracteriza-se pela progressiva interveno e crescente controle do Estado sobre as atividades econmicas, na crena de que isso necessrio ao progresso e eficincia e de que assim se assegura a liberdade individual. O socialismo radical defende a abolio de toda propriedade privada; o liberalismo defende a tese de que o progresso depende da propriedade privada dos meios de produo. Em alguns pases, buscou-se dirimir o conflito entre essas posies comprovadamente antagnicas pela adoo do intervencionismo, soluo de compromisso teoricamente satisfatria, mas tremendamente ineficaz e desastrosa na prtica. Em sistemas intervencionistas, permitida a existncia da propriedade privada, mas os modos por que os meios de produo sero empregados pelos empresrios, capitalistas e donos de terras so regulados, dirigidos e controlados por decretos restritivos e determinaes autoritrias do Estado. Tais decretos e determinaes destinam-se, no fim das contas, a fixar os preos dos bens e servios em nveis bem diferentes daqueles que se definiriam num mercado livre. Ora, quando as autoridades governamentais decidem quantos porcos devem ser criados, quantos nibus podem ser postos em circulao, quais as minas de carvo a explorar ou a que preo devem ser vendidos o po, os sapatos e os automveis, essas decises no podem ser deduzidas de princpios formais nem estabelecidas antecipadamente para longos perodos. Dependem bvia e inevitavelmente de circunstncias ocasionais. Ao tomar tais decises, ser sempre necessrio cotejar os interesses de vrias pessoas e grupos. No final, sero as opinies de algum que decidiro quais os interesses preponderantes, devendo essas opinies ser includas na legislao. Eis a uma nova distino de categoria social que o aparelho coercitivo do Governo impe ao povo. Embora as principais naes ocidentais tenham praticamente abandonado a ideia do intervencionismo pleno, membros influentes da classe poltica e respeitveis empresrios ainda se deixam seduzir pelo conceito poltico do controle estatal em reas problemticas de alta prioridade nacional, ou como costumavam dizer os tecnocratas a

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servio de governos autoritrios, reas de importncia estratgica para a segurana nacional. Isso resultou na criao de um complicado compromisso poltico que desorientava os socialistas tanto quanto os liberais e que, de forma sutil, mas insidiosa, acabou por conduzir a sociedade a uma nova forma de escravido. Num sistema econmico intervencionista, cedo ou tarde o Estado acaba tambm assumindo a tarefa de definir os salrios, pela fixao das taxas de salrio mnimo. O aumento de salrios no depende mais do aumento da produtividade da mo-de-obra ou do avano dos processos tecnolgicos de produo, mas de convenincias polticas. Os empregadores no mais tm condies de tocar com sucesso uma empresa, mesmo se conseguirem mant-la lucrativa com salrios estabelecidos por decreto em patamares inferiores aos que seriam determinados por um mercado de trabalho livre (Isso no paradoxal, embora assim parea primeira leitura). Quando o governo tem autoridade para decretar novas taxas de salrio mnimo - e se elas servirem de referncia legal para o reajuste compulsrio de todos os demais salrios - aos empregadores no resta outra alternativa: diminuir a produo e de imediato dispensar mo-de-obra. Um salrio mnimo mais alto contribui, portanto, para a expanso do desemprego. O funcionamento ineficiente das polticas intervencionistas levou os socialistas contemporneos concluso de que o bem-estar material e a melhoria econmica so coisas do passado; as perspectivas que o futuro nos reserva so bem mais modestas. O fato de o governo considerar como exclusivamente seu o direito de estabelecer quais sero essas perspectivas contribui para respaldar a reivindicao para que essa perniciosa profecia se torne realidade e possa ser revalidada.18 O segundo fator a contribuir para o declnio dos ideais do liberalismo foi o keynesianismo. Convm deixar anotado, contudo, que nem tudo que se rotula como keynesiano ou keynesianista necessariamente resultado das ideias desenvolvidas por Lord John Maynard Keynes (1883-1946). Foi aps sua morte que o keynesianismo adquiriu mais fora. Muitos dos exageros e defeitos fatdicos do keynesianismo se devem ao dos discpulos de Keynes posteriormente sua morte, mais do que s ideias do prprio Keynes. J defunto, este nada podia fazer para refrear seus discpulos.

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O intervencionismo econmico serve de modelo para intervencionismos na rea poltica, social e cultural, traduzidos em determinaes discriminatrias como as que estabelecem quantas vagas as universidades devem colocar disposio de minorias raciais ou de desafortunados, qual a proporo numrica entre homens e mulheres no Parlamento etc. Ver, a propsito, uma inteligente discusso do assunto no nono captulo do livro de Norman E. Bowie e Robert L. Simon, The Individual and the Political Order (Englewood Cliffs, New Jersey: Prentice-Hall, 1977).

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Em livro publicado em 1936 - The General Theory of Employment, Interest and Money - Keynes apresentava explicaes tericas do conceito segundo o qual as depresses econmicas seriam produto de demanda insuficiente por parte dos consumidores e viceversa. O desemprego seria, portanto, consequncia de reduo da demanda agregada e esta, por sua vez, reduz-se com o aumento do desemprego. Para manter o nvel de emprego necessrio, portanto, manter o nvel de demanda agregada; elevar esta significa elevar aquele, at um ponto em que a demanda agregada consegui