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364 Revista Brasileira de Ensino de F´ ısica, Vol. 25, no. 4, Dezembro, 2003 Quando e Como o Homem Comec ¸ou a “Ver” os ´ Atomos! (When and How Mankind Started to See Atoms!) Caio M´ ario Castro de Castilho Grupo de F´ ısica de Superf´ ıcies e Materiais Instituto de F´ ısica, Universidade Federal da Bahia Campus Universit´ ario da Federac ¸˜ ao, 40210-340 Salvador, Bahia, Brasil Recebido em 23 de maio, 2003. Aceito em 8 de setembro, 2003. O conceito de ´ atomo ´ e anterior a qualquer tentativa de compreender a natureza a partir do experimento. N˜ ao obstante, o conceito de ´ atomo, formulado inicialmente pelos gregos e posteriormente apresentado a partir da interpretac ¸˜ ao de experimentos, s ´ o vem a se estabelecer completamente na linguagem cient´ ıfica ao final do s´ eculo dezenove e in´ ıcio do s´ eculo vinte. Inicialmente tida como tarefa imposs´ ıvel, a obtenc ¸˜ ao de imagens capazes de evidenciar ´ atomos individualmente foi conseguida na metade do s´ eculo rec´ em-findo mediante a t´ ecnica de Microscopia Iˆ onica. Este trabalho apresenta uma breve noc ¸˜ ao do desenvolvimento da id´ eias sobre os ´ atomos e descreve os principais passos que levaram ` a obtenc ¸˜ ao das primeiras imagens de ´ atomos individuais por E. W. Muller e colaboradores, na primeira metade da d´ ecada de 50, no s´ eculo XX. The concept of atom is older than any tentative of trying to understand nature from an experimental approach. Nevertheless, the concept of atoms, as initially conceived by the Greeks and later on presented from experiments and its interpretation, only become well established on the scientific jargon by the end of the nineteen century and beginning of the twentieth. Initially considered as an impossible task, images able in identifying individual atoms were, for the first time, obtainable by the middle of last century through the Field Ion Microscopy technique. This work presents a brief summary on how developed the ideas about atoms and describes the main steps which led to the first images of individual atoms by E. W. M¨ uller and collaborators, during the first half of the fifties of the twentieth century. Em 2001 completaram-se 50 anos da publicac ¸˜ ao do primeiro artigo, de autoria de Erwin W. M¨ uller, sobre o Mi- crosc´ opio Iˆ onico de Campo (Field Ion Microscope – FIM), o equipamento que possibilitou ao homem, pela primeira vez, “ver” ´ atomos individualmente, isto ´ e, distinguir entre as posic ¸˜ oes de dois ´ atomos vizinhos - um feito marcante na ısica do s´ eculo rec´ em-findo. ´ E hoje consensual que a id´ eia de ´ atomo remonta ` a civilizac ¸˜ ao grega. A pr´ opria palavra ´ atomo vem do grego e composta de α’, que corresponde a uma negativa, junta- mente com τε 0 μειυ, que diz respeito a cortar, partir, dividir. Dem´ ocrito (s´ eculo quinto AC) concebia os ´ atomos como as menores part´ ıculas da mat´ eria, ainda que n˜ ao os imaginasse como necessariamente pequenos (no conceito de pequeno que temos hoje). A composic ¸˜ ao da mat´ eria, na vis˜ ao de Emp´ edocles (490 – 430 AC), resultava de quatro elemen- tos indestrut´ ıveis (fogo, ar, ´ agua e terra) – uma vis˜ ao ainda hoje assim apresentada por muitos m´ ısticos. Estes elemen- tos, se uniam mediante ou se separavam como conseq¨ encia, de duas forc ¸as divinas: amor e disc´ ordia. Epicuro (341 – 270 AC), por sua vez, afirmava que os ´ atomos n˜ ao podiam ser divididos em partes menores por nenhum meio, ainda que eles possu´ ıssem estrutura. Lucr´ ecio (romano, 98 – 55 AC) concebia os ´ atomos como infinitos em n ´ umero e restri- tos nas suas variedades e seriam, juntamente com o espac ¸o vazio, as ´ unicas entidades eternas e imut´ aveis das quais o mundo f´ ısico era constitu´ ıdo. A vis˜ ao oposta, no entanto, ou seja, a de continuidade e divisibilidade sempre poss´ ıvel, possu´ ıa tamb´ em defensores. Anax´ agoras (500 – 428 AC) e Arist´ oteles (384 – 322 AC) estavam entre estes. O grande sucesso de Arist´ oteles, em v´ arios outros campos, provavel- mente contribuiu para que a vis˜ ao atom´ ıstica n˜ ao pros- perasse, pelo menos at´ e o s´ eculo dezessete. A concepc ¸˜ ao da mat´ eria como constitu´ ıda por ´ atomos, inicialmente resul- tado apenas de uma construc ¸˜ ao especulativa, essencialmente ao se altera no per´ ıodo que vai da Gr´ ecia Antiga at´ e o final do s´ eculo dezoito e in´ ıcio do s´ eculo dezenove. Os trabalhos de Lavoisier (1743 – 1794), Dalton (1766 – 1844), Avogadro (1776 – 1856), Berzelius (1779 – 1848), Mendeleev (1834 – 1907), entre outros, contribu´ ıram deci- sivamente para o estabelecimento dos conceitos de ´ atomo e de mol´ ecula mas, a despeito disto, a situac ¸˜ ao estava longe de uma soluc ¸˜ ao mesmo em 1860 durante o congresso de Qu´ ımica realizado em Karlsruhe – provavelmente a primeira conferˆ encia internacional realizada. Ao final do s´ eculo dezenove, a descoberta do el´ etron (1897) e a possibilidade de “partir” um ´ atomo, ambas decorrˆ encia dos trabalhos de Thomson (1856 – 1940), bem como os fenˆ omenos radioat- ivos – observados inicialmente em 1896 – possibilitaram a consolidac ¸˜ ao dos conceitos de ´ atomo e de mol´ ecula. Ainda que n˜ ao percebido inicialmente, os estudos sobre a Radioatividade em muito contribu´ ıram para a consolidac ¸˜ ao

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364 Revista Brasileira de Ensino de Fısica, Vol. 25, no. 4, Dezembro, 2003

Quando e Como o Homem Comecou a “Ver” osAtomos!(When and How Mankind Started to See Atoms!)

Caio Mario Castro de CastilhoGrupo de Fısica de Superfıcies e Materiais

Instituto de Fısica, Universidade Federal da Bahia

Campus Universitario da Federacao, 40210-340 Salvador, Bahia, Brasil

Recebido em 23 de maio, 2003. Aceito em 8 de setembro, 2003.

O conceito deatomoe anterior a qualquer tentativa de compreender a natureza a partir do experimento. Naoobstante, o conceito deatomo, formulado inicialmente pelos gregos e posteriormente apresentado a partir dainterpretacao de experimentos, so vem a se estabelecer completamente na linguagem cientıfica ao final do seculodezenove e inıcio do seculo vinte. Inicialmente tida como tarefa impossıvel, a obtencao de imagens capazesde evidenciaratomos individualmente foi conseguida na metade do seculo recem-findo mediante a tecnica deMicroscopia Ionica. Este trabalho apresenta uma breve nocao do desenvolvimento da ideias sobre osatomos edescreve os principais passos que levarama obtencao das primeiras imagens deatomos individuais por E. W.Muller e colaboradores, na primeira metade da decada de 50, no seculo XX.

The concept of atom is older than any tentative of trying to understand nature from an experimental approach.Nevertheless, the concept of atoms, as initially conceived by the Greeks and later on presented from experimentsand its interpretation, only become well established on the scientific jargon by the end of the nineteen centuryand beginning of the twentieth. Initially considered as an impossible task, images able in identifying individualatoms were, for the first time, obtainable by the middle of last century through the Field Ion Microscopytechnique. This work presents a brief summary on how developed the ideas about atoms and describes the mainsteps which led to the first images of individual atoms by E. W. Muller and collaborators, during the first halfof the fifties of the twentieth century.

Em 2001 completaram-se 50 anos da publicacao doprimeiro artigo, de autoria de Erwin W. Muller, sobre o Mi-croscopio Ionico de Campo (Field Ion Microscope – FIM),o equipamento que possibilitou ao homem, pela primeiravez, “ver” atomos individualmente, istoe, distinguir entreas posicoes de doisatomos vizinhos - um feito marcante naFısica do seculo recem-findo.

E hoje consensual que a ideia de atomo remontaacivilizacao grega. A propria palavraatomo vem do gregoe e composta deα’, que corresponde a uma negativa, junta-mente comτε′µειυ, que diz respeito a cortar, partir, dividir.Democrito (seculo quinto AC) concebia osatomos como asmenores partıculas da materia, ainda que nao os imaginassecomo necessariamente pequenos (no conceito de pequenoque temos hoje). A composicao da materia, na visao deEmpedocles (490 – 430 AC), resultava de quatro elemen-tos indestrutıveis (fogo, ar,agua e terra) – uma visao aindahoje assim apresentada por muitos mısticos. Estes elemen-tos, se uniam mediante ou se separavam como consequencia,de duas forcas divinas: amor e discordia. Epicuro (341 –270 AC), por sua vez, afirmava que osatomos nao podiamser divididos em partes menores por nenhum meio, aindaque eles possuıssem estrutura. Lucrecio (romano, 98 – 55AC) concebia osatomos como infinitos em numero e restri-tos nas suas variedades e seriam, juntamente com o espacovazio, asunicas entidades eternas e imutaveis das quais o

mundo fısico era constituıdo. A visao oposta, no entanto,ou seja, a de continuidade e divisibilidade sempre possıvel,possuıa tambem defensores. Anaxagoras (500 – 428 AC) eAristoteles (384 – 322 AC) estavam entre estes. O grandesucesso de Aristoteles, em varios outros campos, provavel-mente contribuiu para que a visao atomıstica nao pros-perasse, pelo menos ate o seculo dezessete. A concepcaoda materia como constituıda poratomos, inicialmente resul-tado apenas de uma construcao especulativa, essencialmentenao se altera no perıodo que vai da Grecia Antiga ate o finaldo seculo dezoito e inıcio do seculo dezenove.

Os trabalhos de Lavoisier (1743 – 1794), Dalton (1766– 1844), Avogadro (1776 – 1856), Berzelius (1779 – 1848),Mendeleev (1834 – 1907), entre outros, contribuıram deci-sivamente para o estabelecimento dos conceitos deatomo ede molecula mas, a despeito disto, a situacao estava longede uma solucao mesmo em 1860 durante o congresso deQuımica realizado em Karlsruhe – provavelmente a primeiraconferencia internacional realizada. Ao final do seculodezenove, a descoberta do eletron (1897) e a possibilidadede “partir” um atomo, ambas decorrencia dos trabalhos deThomson (1856 – 1940), bem como os fenomenos radioat-ivos – observados inicialmente em 1896 – possibilitaram aconsolidacao dos conceitos deatomo e de molecula.

Ainda que nao percebido inicialmente, os estudos sobrea Radioatividade em muito contribuıram para a consolidacao

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da Teoria Atomica. Em 8 de novembro de 1895 Rontgen(1845 – 1923) descobriu os raios-X. Num espaco de tempode uma decadae possıvel relacionar uma serie de resultadosestreitamente ligadosa moderna Teoria Atomica: em 1896Becquerel (1852 – 1908) observa a radioatividade, denom-inada por ele de “raios uranicos”; no mesmo ano Zeeman(1865 – 1934) analisa a influencia dos campos magneticossobre as linhas espectrais; a relacao entre a carga e a massados raios catodicose determinada pelo ja citado Thomsonem 1897; no ano seguinte Rutherford (1871 – 1937) regis-tra a existencia de dois tipos de radioatividade (raios alfa ebeta); neste mesmo ano M. Curie (1867 – 1934) refere-sea radioatividade como uma propriedade atomica; em 1899Thomson, ao medir a carga dos eletrons emitidos, relacionaeste fatoa possibilidade doatomo ser quebrado; em 1900Villard (1860 – 1934) descobriu os raios gama e em 1905Einstein postula sobre o quantum de luz.

No que se referea avaliacao sobre o tamanho dosatomoso percursoe tambem longo. Em 1816 Young (1773 –1829) estimou a dimensao da molecula daagua como en-tre dois mil e dez mil milionesimos de polegada. Em 1866Loschmidt (1821 – 1895) calculou o diametro da “moleculado ar” como da ordem de milionesimo de milımetro, en-quanto Kelvin (1824 – 1907), em 1870, avaliou a moleculado hidrogenio como medindo cerca de6× 10−8 cm, um re-sultado similar encontrado no mesmo ano por van der Waals(1837 – 1923). Por volta de 1880 o tamanho da moleculado Hidrogenio e das demais componentes do ar situava-sena faixa de 1 a 2× 10−8 cm, um valor bastante razoavel seconsideramos os valores atualmente aceitos(2, 0×10−8 cmpara o diametro efetivo doatomo de Hidrogenio,0, 7×10−8

cm para a distancia entre os nucleos numa molecula deHidrogenio). As primeiras imagens capazes de mostraratomos individuais surgem na decada de 50 (seculo XX),com o Microscopio Ionico de Campo (Field Ion Microscope– FIM).

A possibilidade primeira do homem “ver” osatomos estaindelevelmente ligada a Erwin W. Muller. Para uma melhorcompreensao de como funciona o FIM talvez sejautil co-mentar sobre o seu predecessor, o Microscopio de Emissaopor Campo (Field Emission Microscope – FEM), bem comodiscorrer um pouco sobre como se distribuem os eletrons emum metal. Entre os eletrons que constituem umatomo, aque-les responsaveis pelas ligacoes quımicas nas quais umatomopode participar, sao denominados de eletrons de valencia,e sao os eletrons mais externos doatomo. Osatomos deum metal podem, de um modo simplificado, ser represen-tados conforme mostrado na Figura 1. Assim, num metal,os eletrons de valencia “se separam” do respectivoatomooriginal formando quase que um “gas de eletrons” que per-meia todo o metal, possuindo, portanto, grande liberdadede movimento – e isto esta diretamente relacionado com apossibilidade de conducao eletrica por parte dos metais. Oseletrons, a despeito desta grande mobilidade interna, nao saocapazes de deixar o metal. Estes eletrons nao podem, por-tanto, sair do metal, a menos que recebam uma quantidademınima de energia. Isto ocorre, por exemplo, quando se in-cide luz ultravioleta sobre um metal. Os eletrons que ab-sorvem a energia cedida pela luz podem entao escapar do

metal que, portanto, se torna eletrizado positivamente. Istoe o denominado efeito foto-eletrico. Representando esque-maticamente a energia dos eletrons de um metal (ver Figura

Figura 1. a) Representacao esquematica de umatomo isolado,com o nucleo, os eletrons mais profundos (eletrons do ”caroco”)e os eletrons que participam das ligacoes quımicas (eletrons devalencia). A figura nao apresenta correspondencia no que se refereaos tamanhos relativos, nao estando portanto em escala. b) Em ummetal o nucleo e os eletrons mais profundos essencialmente preser-vam a sua distribuicao espacial, comparativamente com oa tomoisolado. Os eletrons de valencia, no entanto, ”deixam” os seusatomos originais, constituindo quase que um “gas de eletrons” comgrande liberdade de movimento no interior do metal. (Adaptado doLivro Solid State Physics, de Ashcroft e Mermin).

Figura 2. O “poco de potencial” e os nıveis de energia dos eletrons“livres” de um metal. Os nıveis de energia estao ocupados parauma energia E≤ EF e vazios para E> EF , onde a energia doultimo nıvel ocupadoe denominada de Energia de Fermi. A funcaotrabalho, F,e a energia necessaria para trazer um eletron da Energiade Fermi ate o topo do poco de potencial, situacao que correspondea um eletron livre do metal e com energia cinetica zero (repouso).

2), temos que, para que um eletron “escape” do metal, hanecessidade que o mesmo absorva uma quantidade mınimade energiaΦ, e a esta energia mınima denominamos defuncao trabalho. Uma analogia para a situacao dos eletrons,livres para se moverem no interior do metal, mas inca-pazes de escaparem dele, poderia ser feita imaginando umabola solta numa superfıcie lisa, a partir do ponto A, comomostrado na Figura 3. Se a bolae solta (em repouso) a partirde A e se a superfıcie e lisa, a mesma pode se mover livre-mente entre os pontos A e B, nao possuindo portanto energiasuficiente para atingir o ponto C, nao sendo tambem capaz

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de, ultrapassando C, atingir a plataforma horizontal da dire-ita. Para que a bola se “libertasse” do poco e atingisse C,podendo assim escapar para a plataforma horizontal, serianecessario que lhe fornecessemos um adicional de energia.

Figura 3. Uma bolinha solta em repouso a partir do ponto A, numarampa lisa, no maximo alcanca o ponto B. Para escapar para aplataforma da direita seria necessario fornecer-lhe uma energia adi-cional.

Figura 4. a) Energia potencial de um eletron de valencia de ummetal sem a aplicacao de um campo eletrico externo. (b e c) – En-ergia potencial de um eletron com aplicacao de campo externo. b)Forma aproximada (triangular) e c) Forma mais precisa (rombuda).

Os eletrons sao partıculas carregadas de eletricidade e, por-tanto, sofrem forcas se sobre elese aplicado um campoeletrico. Assim, o diagrama representativo da energia poten-cial de um eletron em um metal, que no caso sem aplicacaode um campo eletrico e representado na Figura 4.a, resultamodificado pela aplicacao do campo, tendo entao o aspectorepresentado nas Figuras 4.b e 4.c. A figura 4.b representauma aproximacao mais grosseira, enquanto 4.c corresponde

a uma situacao mais realista.E possıvel entao comparar ocaso da bolinha solta na rampa com o do eletron de valenciaem um metal. Para que a bolinha atinja o ponto C, oupara que ela o ultrapasse, chegandoa plataforma horizon-tal, e necessario que, ao longo do percurso entre A e B, ummınimo de energia lhe seja concedida (desde que ela tenhasido abandonada, em repouso, no ponto A). Uma situacaoque e analoga a do eletron do metal com maior energia(nıvel de Fermi), que assim precisaria receber pelo menosuma quantidadeΦ de energia para que possa sair do metal.O campo eletrico externo aplicado nao modifica essencial-mente a energia dos eletrons no interior do metal, umavez que o campo eletrico “nao penetra” no metal. Comomostrado na figura 4, a energia potencial do eletron, no inte-rior do metal, com ou sem campo externo aplicado,e essen-cialmente a mesma.

Em escala atomica, as Leis da Fısica que sao capazesde explicar os fenomenos em escala macroscopica – aquelascorrespondentesas dimensoes com as quais os nossos senti-dos podem lidar – nem sempre sao adequadas. Uma situacaoque constitui um bom exemplo distoe a do chamado efeitotunel. Se a bolinha do nosso exemplo for de fato abandonadano ponto A, e desde que ela nao receba energia no percursode A ate B, nao ha hipotese dela ultrapassar C ou atingira plataforma horizontal. Nao e, no entanto, o que ocorrecom o eletron do nosso exemplo. A Mecanica Quantica –area da Fısica adequada ao trato de fenomenos em escalaatomica e sub-atomica – estabelece como possıvel que umeletron de valencia do metal, com energia igual ou mesmoinferior a energia de Fermi, consiga fazer o percurso entreA e C, mesmo sem receber alguma energia adicional, comoseria necessario no caso da bolinha. Este fenomenoe prob-abilıstico, i. e., a Mecanica Quantica estabelece a chancedisto ocorrer, nao sendo, por conseguinte, um fato deter-minıstico, como no caso previsto pelas Leis da Fısica ad-equadasa escala macroscopica – as Leis de Newton. Estaprobabilidade de transicao entre A e C depende fortementedo que se chama de barreira de potencial – a regiao hachu-rada das Figuras 4, b e c. Assim, quanto maior a inten-sidade do campo eletrico externo – o que corresponde auma regiao hachurada menor, o que faz com que a reta dadireita seja mais inclinada - maior a probabilidade que oeletron tem de sofrer a transicao entre A e C. Num pro-cesso probabilıstico, se o fenomeno se repete para muitoscorpos (no caso eletrons), uma fracao de sucesso (ou de in-sucesso) ocorre em proporcao correspondentea probabili-dade de ocorrencia (ou de nao ocorrencia).

Consideremos um metal, com a superfıcie separatriz en-tre o mesmo e o ar (ou vacuo por simplicidade), essencial-mente plana, e bem grande nas dimensoes da superfıcie.A aplicacao de um campo eletrico externo, perpendiculara superfıcie (apontando para ela), resulta em uma densi-dade superficial de carga eletrica que, esquematicamenterepresentada,e mostrada na Figura 5. Para uma superfıciemetalica plana, a densidade superficial de cargaσ (cargaeletrica por unidade dearea)e constante, bem como a inten-sidade do campo eletrico na vizinhanca da superfıcie, desdeque esta possua dimensoes bem maiores que a distancia doponto consideradoa superfıcie. A intensidade do campo

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eletrico – neste caso constante - pode ser “visualizada” pelaconcentracao das linhas de forca, conforme mostrado naFigura 5. A presenca de irregularidades na superfıcie dometal acarreta uma variacao local da densidade de cargae do

Figura 5. Superfıcie de separacao entre um metal e o va cuo. Ha,na regiao exterior ao metal, um campo eletrico uniforme, de sorteque uma densidade superficial de carga constante se faz presentena interface. A figura tambem mostra as linhas de forca do campoeletrico aplicado.

campo eletrico, ambos apresentando um incremento – com-parado com porcoes planas do condutor – na vizinhancadestas irregularidades. A Figura 6 representa esquemati-camente a situacao de uma protuberancia de forma hem-isferica superimposta a uma superfıcie plana. A intensidadedo campo eletrico no ponto A (topo da meia esfera)e, paraesta geometria, tres vezes maior que no ponto B (ponto dasuperfıcie bem afastado da meia esfera). Em virtude do au-mento local da densidade de carga e do campo eletrico navizinhanca de uma protuberancia, o fenomeno de tunela-mento (emissao) de eletrons a partir de uma regiao comoesta (ponto A) fica significativamente aumentada, se com-paramos com a situacao proxima de uma regiao plana (pontoB). Estee o fenomeno fısico em que se baseia o funciona-mento do Microscopio de Emissao por Campo – FEM.

Figura 6. Regiao da superfıcie separatriz entre um metal e o vacuo.A superfıcie em grande partee plana, apresentando uma protu-berancia na forma de uma meia esfera. No ponto A (topo da meiaesfera) a intensidade do campo eletricoe tres vezes maior que emB (ponto da superfıcie plana - bem afastado da protuberancia masainda distante do bordo da superfıcie).

O FEM, idealizado por E. W. Muller, foi o primeiroinstrumento concebido com a expressa intencao de ten-

tar visualizar uma superfıcie numa escala correspondenteao domınio das dimensoes atomicas, alem de, simultanea-mente, ser possıvel acompanhar a ocorrencia de mudancasque se desenvolvem na superfıcie. Muller, na concepcao doFEM, explorou o ja entao conhecido fato de que a densidadesuper-

Figura 7. Esquema simplificado do FEM. E correspondea parededa camara – originalmente de vidro, nas versoes atuais de aco.S ea tela fosforecente,B representa uma camada deoxido de Estanho,A o anodo eT a ponta emissora (amostra).

ficial de carga e a intensidade do campo eletrico ficam sen-sivelmente aumentadas na vizinhanca das pontas de um con-dutor; diferentemente do potencial eletrico quee o mesmo.Constituem aplicacoes comuns deste fato, as antenas e ospara-raios. Na sua concepcao mais simples, o FEM consistede um bulbo com geometria esferica, coberto internamentecom uma tela fosforescente e condutora. No centro do bulboe colocada uma ponta metalica, bastante afiada e condutora,que constitui a amostra a ser observada. A pressao internado bulboe mantida na faixa de 10−7 a 10−11 torr (1.0 torrcorresponde a 1mm de Hg, enquanto a pressao atmosfericapadrao e de 760 mm de Hg, portanto 760 Torr). A unidadepadrao de pressao e, na verdade, o Pascal (Pa), que corre-spondea forca de 1,0 Newton distribuıda em 1,0 m2. A cor-respondencia entre estas unidadese de 1,0 torr = 1,333×102 Pa. O torr, no entanto,e a unidade comumente empre-gada na tecnologia de vacuo. Um esquema simplificado doFEM e mostrado na Figura 7. A ponta (amostra) metalicapossui, na sua extremidade maxima, um raio da ordem de10−7 a 10−6 m e uma diferenca de potencial da ordem de104 Volts e aplicada entre a ponta e a tela fosforescente.A intensidade do campo eletrico (da ordem de 1 V/nm ouum pouco mais)e assim suficiente para promover o tunela-mento de eletrons a partir da amostra. Os eletrons deixamo metal com pequena energia cinetica (baixa velocidade) e,a partir daı, sao acelerados em direcaoa tela. Esta emissao,denominada de emissao fria (“cold emission”), decorre daacao do campo eletrico externo mediante o tunelamento doseletrons, nao devendo ser confundida com a emissao estimu-lada – seja pela acao de radiacao eletromagnetica (efeito fo-toeletrico) ou de aquecimento (emissao termoionica). Comoa velocidade com que os eletrons deixam o metale baixa ecomo o campo eletrico aplicado,e, na superfıcie da amostra,perpendiculara mesma, os eletrons seguem, da amostra paraa tela, uma trajetoria muito aproximadamente equivalente

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a das linhas de forca do campo externo, comoe esque-maticamente representado na Figura 8. O aumento entao,mostrado na tela,e aproximadamente dado por D/δ = x/r,sendo possıvel obter aumentos da ordem de 105 - 106 vezes.A resolucaoe, no entanto, limitada a cerca de 20 angstroms(1,0 Angstrom = 10−10 m). Isto leva a que o equipamentoe

Figura 8. Diagrama representando o esquemaotico em que sebaseia o FEM, comr sendo o raio de curvatura da extremidadeda amostra ex a distancia entre amostra e tela. Uma porcao daamostra, de dimensao lineard, sera aumentada, correspondendo natela a uma distancia D. O fator de aumento lineare pois, aproxi-madamente,D/d.

incapaz de fornecer uma resolucao em escala atomica(poucos angstroms). Fica por este meio impossibilitada avisualizacao deatomos individuais, mas apenas de agrega-dos deatomos, capazes, no entanto, de identificar planosatomicos com a sua respectiva orientacao. A incapacidadedo FEM em fornecer imagens com resolucao atomica levouMuller a buscar uma outra alternativa. Em 1928 Oppen-heimer (o mesmo que mais tarde dirigiu o Projeto Man-hattan, que resultou na primeira bomba atomica) havia pre-visto que umatomo isolado poderia ser ionizado (pela perdade um dos seus eletrons) como resultado da aplicacao deum campo eletrico externo. Esta previsao permaneceu,por varios anos, como apenas um exercıcio teorico, decomprovacao experimental dificultada em razao da mag-nitude necessaria para o campo eletrico (da ordem de 10V/nm = 1010 V/m), seraquelaepoca inacessıvel do pontode vista pratico. Os experimentos com o FEM vieram asugerir procedimentos que tornava possıvel obter intensi-dades maiores de campo eletrico. Em 1941 Muller obser-vou que, invertendo a polaridade de operacao do FEM, e au-mentando substancialmente a tensao, era possıvel observara dessorcao (ou evaporacao) deatomos da amostra, tendoentao tentado obter uma imagem da amostra como resul-tado da emissao dosatomos dessorvidos/evaporados, queradialmente se deslocavam em direcao a tela em trajetoriasaproximadamente radiais. A imagem obtida na tela, resul-tado do processo de dessorcao/evaporacao, era por demaistenue, dado ao reduzido numero deatomos emitidos. Nointuito de promover o suprimento dosatomos dessorvidos,e assim manter o processo de emissao, foi introduzido nacamara um gas - Hidrogenio. Isto levou a que, em 1951, fos-sem obtidas as primeiras imagens com o entao denominadoField Ion Microscope. A Figura 9 reproduz a capa de folhetode um evento comemorativo dos 50 anos do FIM, mostrandoa pagina inicial do primeiro artigo sobre o equipamento. Ha

razao para se acreditar nao haver,aquelaepoca, clareza daparte de Muller, sobre se as imagens formadas resultavam deatomos da amostra que eram dessorvidos/evaporados ou deatomos do gas, estes ionizados pela acao do campo eletrico.A segunda possibilidade veio, mais tarde, a se mostrar comoa correta.

Figura 9. “Fac-sımile” de “folder” do International Field EmissionSymposium, realizado em julho de 2001 em Berlim, quando sessaocomemorativa aos 50 anos do FIM foi realizada. A foto foi retiradada publicacao: E. W. Muller, Z. Phys. 131 (1951) 136. Traducao dotexto em alemao: Atraves da troca de polaridade do microscopiode emissao de campo,e possıvel removeratomos adsorvidos naforma deıons positivos da ponta do objeto. Essa dessorcao e re-alizada por campos de ate 3x10−8 V/cm. Com reposicao rapidadosatomos adsorvidos a emissao deıons de campo possibilita umaimagem microscopica da superfıcie da ponta, cuja capacidade deresolucao alcanca a constante de rede.

Uma situacao que se presta, como exemplo simples, paraa explicacao do fenomeno de ionizacao por campoe a doatomo de Hidrogenio. Um eletron, com energiaEi em

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um atomo de Hidrogenio, apresenta uma energia potencialcomo a representada na Figura 10. Uma possibilidade paraque o eletron deixe oatomo, que assim se tornaria ionizado,seria a de que a ele fosse fornecida uma energia, no mınimo,

Figura 10. Esquema aproximado representativo da energia poten-cial de um eletron de umatomo de Hidrogenio no espaco livre.

igual aEi. Com oatomo de Hidrogenio (no espaco livre,distante, portanto, de outras influencias) submetido apenasa acao de um campo eletrico externo, o diagrama da en-ergia potencial fica modificado, como mostra a Figura 11.Vemos assim que, numa direcao, a barreira de potencialereduzida e o eletron passa a ter uma probabilidade nao nulade escapar doatomo, que assim seria ionizado pela acao docampo eletrico, prescindindo desta maneira do fornecimentode uma energiaEi. A transicao eletronica (tunelamento) soe significativa quando o campo eletrico for elevado o su-ficiente para que a barreira de potencial seja reduzida, detal forma, que a mesma tenha uma largura que possibiliteuma probabilidade de transicao nao muito pequena. Cam-pos eletricos de alguns volts/angstroms (algumas dezenasde volts/nm) sao necessarios e as dificuldades tecnologicasem se produzir campos desta intensidade foram a causa paraque cerca de uma decada tenha decorrido entre a previsaoteorica de Oppenheimer e os primeiros trabalhos experimen-tais de Muller. Se oatomo de Hidrogenio, em lugar de iso-lado, sofrendo apenas a acao do campo eletrico externo, es-tiver proximo a uma superfıcie condutora (um metal, porexemplo), o diagrama correspondentea energia potencialdo eletrone aproximadamente como representado na Figura12. A curva representativa da energia potencial apresenta,assim, continuidade entre a posicao fora do metal e no inte-rior deste (comparar com a Figura 2 que mostra a energia deFermi num metal). A barreira de potencial se estreitaa me-

dida que oatomo esta mais proximo da superfıcie, aumen-tando assim a probabilidade de um eletron “saltar” doatomopara a superfıcie metalica, com subsequente producao de umıon. O Microscopio Ionico de Campo (Field Ion Microscope– FIM) utiliza entao do fenomeno da ionizacao por campopara a producao de imagens de superfıcies. Um esquema

Figura 11. Aproximacao para a energia potencial de um eletronem umatomo de Hidrogenio no espaco livre, sujeitoa acao de umcampo eletrico externo.

Figura 12. Energia potencial para o mesmoatomo da figura ante-rior, sujeitoa acao do campo eletrico externo, mas na vizinhancade um metal cuja funcao trabalhoe F. A situacao mostrada cor-responde ao caso onde o nıvel de energia do eletron doatomoencontra-se alinhado com o nıvel de Fermi do metal.

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simplificado do FIMe mostrado na Figura 13. Entre a ponta,que constitui a amostra a ser observada, e a tela (cerca de 10cm distante da amostra)e aplicada uma tensao (diferencade potencial) entre 3,0 e 30 kilovolts, o que faz com queproximo a amostra ocorram campos da ordem de algu-mas poucas unidades de volt/angstrom (algumas dezenas devolt/nm). A polaridade neste casoe inversa, comparada como FEM. Um gas e inserido na camara (pressao da ordemde 2 x 10−3 Pa) e seusatomos restam fortemente polar-izados, sendo assim atraıdos em direcao a amostra. Aposum processo de acomodacao, com consequente reducao dasua velocidade, osatomos fortemente polarizados apresen-tam maior probabilidade de serem ionizados pela acao docampo. Isto majoritariamente ocorre nos locais onde a in-tensidade do campo eletricoe maior, istoe, logo acima dosatomos mais protuberantes da amostra. Osıons produzidossao acelerados em direcaoa tela, onde se forma uma imagemque revela o contraste resultante dos locais onde ha maiorou menor producao deıons, refletindo assim as posicoesdos atomos mais protuberantes. A montagem do equipa-mentoe mostrada na Figura 13, enquanto o que ocorre navizinhanca da superfıcie e esquematicamente representadona Figura 14. A elevada curvatura da amostra, relativa-mentea curvatura da tela, faz com que as linhas de forcado campo eletrico sejam altamente divergentes. A Figura 15mostra uma imagem tıpica obtida com o FIM. A obtencaode imagens, com resolucao capaz de se poder identificaratomos individuais, nao foi um processo simples, como aexplanacao ate agora dada poderia sugerir. Em 1951 Mullerpublicou seu primeiro artigo a respeito do FIM (ver Figura9), descrevendo a sua estrutura basica, bastante semelhantea do seu predecessor, o FEM, com a adicao de Hidrogeniocomo gas formador da imagem. Ja aı ele enfatizava a ne-cessidade de resfriar o equipamento como forma de mel-horar a resolucao espacial, fazendo tambem referencia aque experimentos onde o Hidrogenio era substituıdo peloHelio estariam sendo realizados. Estas providencias bus-cavam, pelo emprego de umatomo mais pesado (He) que oHidrogenio, melhorar a resolucao do equipamento. Assim,aparentemente, quase todos os ingredientes para a obtencaode resolucao em escala atomica estavam ja presentes. Nestemesmo ano Muller transferiu-se de Berlim para o Pennsyl-vania State College, o que atualmente correspondea Penn-sylvania State University. Por estaepoca os equipamentoseram essencialmente constituıdos de camaras de vidro, emlugar das atuais, construıdas com aco e dispondo de janelasde quartzo. Por volta de 1954 quase todos os membros dogrupo de Muller estavam ainda envolvidos com FEMs, en-quanto apenas Muller e um dos seus estudantes, KanwarBahadur, estavam diretamente envolvidos com o FIM. Umdos demais estudantes de entao, Allan Melmed, relembraem um vıvido e interessante testemunho [1], a atmosferaprevalecenteaquelaepoca no laboratorio de Muller. Reg-istra por exemplo que, ao longo de mais ou menos um ano,varios estudantes teriam sugerido a Muller um expressivoresfriamento de todo o sistema, com o objetivo de melho-rar a resolucao. A ideia deles, e de Bahadur em partic-ular, resultava de uma observacao experimental segundo aqual, mesmo um pequeno acrescimo na temperatura, era ca-

paz de degradar significativamente a qualidade da imagem.Raciocinando portanto em sentido contrario, poder-se-ia es-perar que a reducao da temperatura possibilitaria melhorar aresolucao. Invariavelmente, segundo relata Melmed, Mullerretrucava alegando que as ideias apresentadas pelos estu-dantes estavam, por uma ou por outra razao, erradas, o quefrequentemente deixava os estudantes “de cabeca baixa”. Ajulgar por tal testemunho,e possıvel inferir que o chefe dolaboratorio desejava, sistematicamente, impregnar a todoscom a ideia de que todas as boas ideias a respeito do FEMe do FIM eram, invariavelmente, suas. Era como se “ele jativesse feito tudo, antes”.

Figura 13. Diagrama simplificado do FIM. Este esquema contemum aperfeicoamento, incluıdo bem depois das primeiras imagenscom resolucao atomica, destinadoa intensificacao das imagens for-madas.

Figura 14. Atomos do gas formador da imagem sao polariza-dos pela acao do campo eletrico e atraıdos para a vizinhanca daamostra. Na regiao imediatamente acima dosatomos mais protu-berantes a intensidade local do campo eletrico e maior e portantoaı ha maior probabilidade de ionizacao dosatomos do gas. Estes,apos ionizados, sao acelerados em direcao a tela onde o contrasteentre regioes com maior e menor intensidade do campo aparece.

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Figura 15. Imagem tıpica obtida com o FIM. No caso trata-se deuma amostra de Tungstenio, tendo sido utilizado o He como o gasformador da imagem e a temperatura da amostrae de 40K, sendoa tensao aplicada de 4,5 kV. (Foto gentilmente cedida por G. W.Smith e colaboradores, Department of Materials, University of Ox-ford, U. K.).

Duas principais concepcoes dominavam os primeirosanos do FIM, na busca de uma verdadeira resolucaoatomica:

i) o mecanismo de formacao da imagem resultava dadessorcao/evaporacao deatomos que, depois de ad-sorvidos na superfıcie, eram emitidos na forma deıons positivos, com o gas formador da imagem fun-cionando apenas como fonte de reabastecimento paraos sıtios liberados com a dessorcao/evaporacao;

ii) para a formacao da imagem da superfıcie eranecessario remover primeiro qualquer contaminacaosuperficial bem como toda rugosidade eventualmentepresente, sendo isto feito mediante o aquecimento daamostra (tratamento termico – “annealing”).

Nao obstante, tudo leva a crer que, de fato, Muller con-cebia, pelo menos ate 1954, o FIM como sendo um mi-croscopio que tinha como princıpio basico para o seu fun-cionamento a dessorcao/evaporacao deatomos – seria as-sim um “Field Desorption Microscope”. Melmed [1], arguicomo possıvel que isto explique a sua recusa inicial em re-duzir a temperatura do equipamento com o intuito de buscaruma melhor imagem, como sugerido por alguns dos seus es-tudantes. Em 1953 Muller relata que Dreschler e Pankowteriam mergulhado um FIM em Nitrogenio lıquido, sem quenenhuma melhora na imagem fosse observada, decorrentedo resfriamento, comparando com o caso em que o equipa-mento operavaa temperatura ambiente. Melmed qualificacomo “curioso” o fato de que, a despeito da publicacao de1951 mencionar experimentos com He como em realizacao,

isto na verdade so mais tarde foi feito, mas desta feita porDreschler e Pankow em Berlim e publicado em 1954. Autilizacao de He como gas formador da imagem representouum passo importante no que viria a ser mais tarde a obtencaode imagens com resolucao atomica. Ate entao, no entanto,a ideia de que o mecanismo basico para a formacao daimagem resultava de um processo de dessorcao prevalecia.Em 1954, um trabalho fundamental por parte de Ingrahm eGomer mostrou que, na verdade, osıons formadores da im-agem tinham origem numa estreita regiao poucos angstromsacima da amostra, conforme mostrado na Figura 14. Umgolpe que se mostrou definitivo na interpretacao de que oFIM funcionava a partir de um processo de dessorcao.

Pouco tempo depois, em junho de 1954, Muller e Ba-hadur tentaram obter imagens com o FIM essencialmenteimerso em nitrogenio lıquido, sem no entanto obterem umamelhor resolucao, apesar da imagem aparecer mais bril-hante. Melmed relata [1] que, pouco depois e a despeitodeste insucesso, Bahadur comecou a, de alguma maneira,ter a expectativa de que o resfriamento da ponta (amostra)poderia representar alguma diferenca. Muller, ainda se-gundo Melmed, nao se mostrou convencido desta possibili-dade, mas aquiesceu, permitindo que um novo experimentofosse realizado por Bahadur. Em um trabalho submetido apublicacao no inıcio de setembro de 1955, mas efetivamentepublicado em 1956, Muller e Bahadur apresentam resulta-dos de uma amostra de Tungstenio com raio de curvaturada ordem de 20 nm que tinha sido aquecida e parcialmentesubmetida a evaporacao por campo. Este resultado, comomais tarde se verificou, estava muito proximo da obtencaoda resolucao atomica, mas os proprios autores manifestavamduvidas a este respeito. O continuado pessimismo de Mullersobre a utilidade de efetuar o resfriamento da amostra, pro-cedimento que depois se mostrou essencial para se con-seguir resolucao atomica, pode ser compreendido em se con-siderando as duas tentativas anteriores que se mostraraminfrutıferas e o fato de que consideracoes teoricas nao in-dicavam tal melhoria como possıvel de se esperar a par-tir do processo de resfriamento. Em 11 de outubro de1955, ainda segundo o relato de Melmed, a ansiedade eragrande no laboratorio. Bahadur convidou Muller a salaonde a sua mais recente montagem havia sido instalada.As condicoes de observacao entao existentes exigiam umperıodo de acomodacaoa necessaria escuridao do ambiente,posto que as imagens formadas eram por demais tenues –so bem mais tarde um procedimento de intensificacao daimagem foi acoplado ao equipamento. Alguns outros es-tudantes, que sabiam ou desconfiavam do que estava ocor-rendo, nervosamente aguardavam do lado de fora. Ao veras imagens formadas, de acordo com relato posterior de Ba-hadur, Muller pronuciou o que hoje pode ser traduzido como“e isto aı” (“This is it”, literalmente). Ao sair da sala Mullerfalava, como que para si mesmo: “Atoms, ja atoms”. Aatmosfera no laboratorio era de completa e total excitacaoe alegria. A expectativa de um premio Nobel para Mullerpairava na cabeca de muitos – o que acabou nao se confir-mando. Logo apos houve a divulgacao sobre o sucesso doFIM. Poucas semanas depois Muller fez um anuncio publicodo fato durante uma conferencia (Ann. Meeting Electron

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Microscope Soc. Of America, Pennsylvania State Univer-sity, 27 a 29 de Outubro de 1955), tendo a seguir submetidopara publicacao dois artigos [2, 3] onde ele aparece comounico autor. No inıcio de 1956 Kanwar Bahadur retornou aoseu paıs natal, aIndia, apos defesa da sua tese de doutorado,intitulada Experimental Investigation of Field Ion Emission.

No ja mencionado artigo de Melmed [1], ele chama aatencao para dois aspectos, de certa forma intrigantes, a re-speito do desenvolvimento do FIM, desde o artigo originalde 1951 ate a obtencao de resolucao atomica em outubro de1955, quais sejam: i) Qual a razao para um perıodo de 5anos ter decorrido entre a invencao do FIM (1951) como ummicroscopio operantea temperatura ambiente e a obtencaode resolucao atomica, operando a baixa temperatura, espe-cialmente see considerado o fato de que no artigo origi-nal e feita mencao de que outros experimentos (especifica-mente mencionando o uso de He) estavam em realizacao?ii) Qual a razao para que os dois primeiros experimentoscom o FIM, operando a baixa temperatura, nao tenham sidocapazes de fornecer resolucao atomica? Quantoa primeiraquestao restam apenas especulacoes. A respostaa segundapergunta reside no fato de que o processo de evaporacaopor campo (“field evaporation”),a temperatura ambiente oumais baixa, nao tinha ainda estabelecida a sua utilidade.O processo de limpeza da amostra era anteriormente feitopor aquecimento (“thermal annealing”). Em condicoes at-uais de experimentacao e possıvel mostrar imagens de umamesma amostra, obtidas a baixa temperatura, com apenas otratamento termico ou com ele seguido de evaporacao porcampo, e que resultam em imagens bem distintas, sendoque o primeiro processoe incapaz de fornecer resolucaoatomica. Assim, a utilizacao da evaporacao por campo abaixa temperatura, no processo de preparacao da amostrapara se obter resolucao atomica,e absolutamente essencial.O quee estranhoe que este fenomeno tenha demorado tantotempo para ser observado, mesmo nas condicoes de entao.As reduzidas dimensoes da amostra, e a necessidade de queas mesmas tenham a forma de uma ponta extremamentefina, requerem cuidado e procedimentos muito especıficospara a preparacao da amostra a ser examinada. A Figura16 mostra uma imagem obtida por microscopia eletronicade uma amostra nas condicoes de uso para a obtencao deimagens com o FIM.

Figura 16. Imagem da extremidade de uma amostra de Rodio uti-lizada em FIM. A imagem foi obtida por microscopia eletronica,com um aumento de 20 000 vezes. (Foto gentilmente cedida porDr. T. Visart – Universite Livre de Bruxelles – Belgica)

No processo de evaporacao por campo (tambem denom-

inado dessorcao induzida – ver vocabulario), um pulso nosentido de fazer rapidamente crescer e decrescer a tensaoaplicadaa amostrae produzido. Fazendo isto correspondera campos eletricos suficientemente elevados na superfıcieda amostra,atomos podem ser removidos do material. Osatomos mais proeminentes sao ionizados e assim “arranca-dos” da amostra e acelerados em direcaoa tela (ou detector).Atualmente as taxas de evaporacao induzidas pela aplicacaode um campo eletrico podem ser cuidadosamente contro-ladas, de tal forma que apenas poucosatomos podem serremovidos a cada pulso de tensao. Na sequencia mostradana Figura 17, umunicoatomoe removido do plano atomicomais externo, entre as sucessivas tomadas. O processo podetambem ser utilizado para limpeza controlada de contami-nantes depositados sobre uma superfıcie.

Figura 17. Sequencia de imagens obtidas com o FIM. Oultimoplano atomico possui 9atomos que sao, individual e sucessiva-mente, removidos por evaporacao induzida por campo. Trata-se deuma amostra inter-metalica de Nıquel-Zirconio. (Foto gentilmentecedida por M. K. Miller – Oak Ridge National Laboratory, EUA).

Atualmente tres tecnicas de microscopia sao capazes defornecer resolucao em escala atomica: Microscopia Ionicade Campo (Field Ion Microscopy), Microscopia Eletronicade Alta Resolucao (High Resolution Electron Microscopy –HREM) e a Microscopia de Tunelamento e Varredura (Scan-ning Tunneling Microscopy – STM). A mencao eventual-mente feita de quee possıvel “ver” os atomos nao e maisrazao de surpresa, seja no meio cientıfico ou mesmo no meiojornalıstico especializado. A situacao no entanto era bas-tante diferente 45-50 anos atras. Os trabalhos de Muller ecolaboradores representaram o primeiro grande passo parasuperar o que parecia ate entao impossıvel: os atomos se-riam pequenos demais para serem de alguma forma indi-vidualmente identificados. Apos as primeiras imagens como FIM, foram necessarios mais 25 anos para que imagenscom resolucao em escala atomica fossem fornecidas medi-ante HREM (em 1980), enquanto o STM conseguiu isto soem 1984. Os modernos equipamentos que utilizam, pelo

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menos em parte, a concepcao basica do FIM sao utilizadosem pesquisas em variasareas do conhecimento: metalurgia,reacoes catalıticas, determinacao da estrutura de superfıciese mecanismos de adsorcao e difusao em varios tipos de ma-teriais [4]. A forma mais moderna destes equipamentos, oAtom-probe Field Ion Microscope, encontra-se em operacaoem varios centros de pesquisa dos paıses mais desenvolvi-dos. Um campo de pesquisa que o Brasil pode e devera pas-sar a utilizar.

Referencias

[1] A. J. Melmed, Applied Surface Science, 94/95 (1996) 17.

[2] E. W. Muller, Z. Naturforsch. 11a. (1956) 88.

[3] E. W. Muller, J. Appl. Phys. 27 (1956) 474.

[4] D. P. Woodruff e T. A. Delchar, em: Modern Techiniquesof Surface Science, Cambridge University Press, Cambridge,1986.

1 Vocabulario

• Adsorcao – Processo de fixacao das moleculas de umasubstancia (o adsorvato) na superfıcie de uma outrasubstancia (o adsorvente).

• Angstrom (A) – Unidade de comprimento correspon-dente a 10−10 do metro, ou 0,1 nm.

• Atomo – A menor quantidade de um elementoquımico que pode existir como um ente estavel, i.e., que mantem as propriedades quımicas do ele-mento. Constitui assim a menor porcao de um el-emento quımico que pode participar de uma reacaoquımica.

• Comprimento de Onda de de Broglie – Uma partıculacom massa m, movendo-se com velocidade v,pode, quando submetida a certas condicoes experi-mentais, apresentar um comportamento ondulatorio,apresentando-se como uma onda de comprimento deondaλ tal queλ = h / mv, onde he a constante dePlanck.

• Dessorcao – E o processo inverso da adsorcao, ouseja,e o mecanismo de separacao de uma moleculade uma superfıcie a qual a molecula estava anteri-ormente ligada. O processo de dessorcao pode serprovocado de diversas maneiras, como por exemplopela incidencia de radiacao ou por aquecimento. Aum processo deste tipo denomina-se de dessorcao es-timulada ou induzida.

• Dessorcao por Campo (“Field Desorption”) –E o pro-cesso de dessorcao estimulado pela acao de um campo

externo, usualmente um campo eletrico. Reserva-se ouso desta expressao para o caso onde as moleculasque sao liberadas sao de natureza distinta daquelasque constituem o adsorvato.

• Elemento Quımico – Substancia que nao podeser decomposta, mediante os processos quımicosordinarios, em outras substancias mais simples,substancia composta poratomos com a mesma carganuclear.

• Evaporacao por Campo (Field Evaporation) –E oprocesso de dessorcao, estimulada pela acao de umcampo externo, numa situacao onde a natureza dasmoleculas, tanto do adsorvato quanto do adsorvente,e a mesma.

• Molecula – A menor quantidade de uma substanciaque pode existir em estado livre.

• Nanometro (nm) – Unidade de comprimento que cor-responde a 10−9 do metro, i. e., uma fracao igual a1/1 000 000 000 (1 bilionesimo do metro). Um nmcorresponde assim a 10 Angstroms.

• Pressao – A pressao num certo ponto de um fluido, gasou lıquido, correspondea forca exercida por unidadede area num plano infinitesimal eventualmente colo-cado no ponto.

• A unidade SI, denominada de Pascal (Pa), corre-spondea pressao que resulta da aplicacao de umaforca de intensidade igual a 1.0 Newton atuando deforma uniformemente distribuıda numaarea de 1,0m2. Outras unidades sao a pressao atmosferica, o mmde Hg e o Torr.

• 1,0 Torr = 133,322 Pa = 1/760 atmosferas

• 1,0 atmosfera = 760 mm de Hg.

• Resolucao ou Potencia de Resolucao – Em umtelescopio ou em um microscopio, esta caracterısticadiz respeitoa capacidade do equipamento em detectarcomo imagens separadas dois objetos proximos.

2 Agradecimentos

O autor reconhece o benefıcio de conversas e de corre-spondencias estabelecidas, em momentos varios, com osDrs. Allan Melmed, Alfred Cerezo, David Kingham,George Smith e Richard Forbes.Angela Luhning nos ajudoucom textos em alemao enquanto Virgınia Lucia PimentelSouza, Hudson Cabral Sales de Souza e Von Braun Nasci-mento foram de grande valia na preparacao dos desenhos.