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Quando a escola é em casaDe ano para ano, cresce o número de matrículas no ensino doméstico.A tendência agrada sobretudo a famílias com rendimentos e estudos
superiores, que ambicionam dar aos filhos uma aprendizagem maislivre e criativa. Mas nem tudo são rosas
Quandoa escolaé em casaDe ano para ano, por esta altura, cresce
o número de matrículas no ensino doméstico.De hipótese bafienta a tendência alternativa,
agrada sobretudo a famílias com rendimentose estudos superiores, que ambicionam
proporcionar aos filhos uma aprendizagemmais livre e criativa. Mas nem tudo são rosas
POR PATRÍCIA FONSECA
TPC Regras a cumprirMatrículas Todas as crianças têm de
ser inscritas numa escola reconhecida
pelo Ministério da Educação, assinalan-
do a opção «ensino doméstico».
Avaliação Sâo realizados exames em
cada final de ciclo: no 4.°, 6.° e 9." anos.
A partir do 2° ciclo, além dos exames
nacionais de Português, Matemática
e Estudo do Meio, é necessário realizar
provas de equivalência à frequênciade todas as disciplinas.
Habilitações Os pais precisam apenasde ter completado um ciclo de ensino
superior ao que vão lecionar.
Ou seja, com o 9.° ano podem
acompanhar os estudos até ao 6." ano.
Otopo da enorme tenda teepee avista-se à distância,
guiando os forasteiros que chegam ao Oeste até à
Quinta da Pedra, nos arredores da Ericeira. A pro-priedade já serviu de abrigo a muitos «índios» masos ateliês pedagógicos que ali se realizavam foramdesativados há dois anos. Hoje, a tenda nativo-ame-
ricana c o forte dos cowboys, tal como o escorrega e os baloiços,estão por conta dos três filhos de Nuno Cardoso e Cláudia Sousa,de 42 e 40 anos, respetivamente.O gestor e a psicóloga viviamnum apartamento dos subúrbiosde Lisboa quando tiveram o pri-meiro filho, Pedro, hoje com 14
anos. Hugo nasceu três anos de-
pois e foi quando Ana vinha a ca-
minho, dois anos mais tarde, quese mudaram para este refúgio no
campo com cheiro a maresia.
Cláudia ficou em casa com osfilhos até estes fazerem cincoanos. «Achava que, depois, ti-nham mesmo de ir para a escola»,conta, revivendo a resignação de
outros tempos. Foi com a filhamais nova que descobriu o ensinodoméstico. Ana aprendeu o bê-
á-bá numa pequena primária antiga, masessa escola foi fechada. No 2.° ano, numgrande centro escolar e com uma cargahorária pesada, começou a dar sinais detristeza. Repetiam-se as dores de barriga,as febres baixas e a mesma pergunta: «Se
eu tiver febre não vou à escola, pois não?»A família procurava uma saída quando a
mãe de uma criança que Cláudia acompa-nhava lhe falou nesta solução. «Nem sabia
que era legal no nosso País», confessa. Foiassim que, há dois anos, Ana foi estudar
para casa - uma opção que começa a fazerescola em Portugal.
Eram apenas meia dúzia de alunos noano letivo 2006/2007, segundo dados do
Ministério da Educação. Em 2008/2009,o número subiu para 11 e em 2009/2010matricularam-se 84 crianças em ensinodoméstico. Sem disponibilizarem dados
oficiais relativos aos últimos dois anos, as
direções regionais de Educação referem
que os inscritos se têm multiplicado rapi-damente, ultrapassando já as duas cente-
nas, na zona de Lisboa e Vale do Tejo.Um inquérito online realizado este ano
por Cláudia Almeida, 35 anos, no âmbitode um mestrado no ISCTE, apurou 67 res-
postas de famílias em ensino doméstico,em 18 dias. Trinta por cento declararam
ser este o primeiro ano em que o fazem.«É algo que parece estar a emergir com
todas as forças», diz a investigadora, ela
própria mãe de um menino de 3 anos queplaneia vir a educar em casa. No seu es-
tudo, destaca-se o facto de cerca de 70%dos inquiridos terem concluído um curso
superior. Sobre as razões que motivaramesta opção, 87% mencionam a «liberdadede aprendizagem», 23% referem a «car-
ga horária excessiva» nas escolas e 20%
apontam o «bullying e violência escolar».Uma outra pesquisa, conduzida por
Álvaro Ribeiro, 38 anos, no mestrado de
Ciências da Educação da Universidadedo Minho, indica que «a maioria destasfamílias situa-se entre os 30 e os 45 anos,vivendo em regime biparental, acade-
UM REFÚGIO NO OESTE Retrato de uma família de bem com a sua opção de vida: Catarina, Hugo, Pedro, Ana, Nuno... e a cadela Cassie
I Guia Descubra as diferençasÉ «lecionado no domicílio do aluno,
por um familiar ou por pessoa
que com ele habite», segundo o
Decreto-Lei n.° 553/80. que aprovao Estatuto do Ensino Particular
e Cooperativo. A Direção-Geralde Educação criou um grupo de
trabalho que está a elaborar uma
proposta de legislação para clarificar
e atualizar o estatuto deste ensino.
É ministrado por um professor
diplomado a um único aluno, forado estabelecimento de ensino
(normalmente, em casa).A figura do tutor/professor privado
quase desapareceu na sociedade
portuguesa mas está a ser
recuperada por famílias em ensino
doméstico que sentem necessidade
de apoio nalgumas matérias.
Esta modalidade de ensino foi
contemplada na lei para dar uma
resposta às crianças que vivem de
forma itinerante, como os filhos
dos artistas de circo. Hoje, várias
famílias já escolhem matricular os
filhos em escolas internacionais,
transformando, com o auxílio da
internet, a sala de jantar em sala
de aulas.
micamente bem qualificadas e com umestatuto e papel profissional que lhes per-mitem despender grande quantidade de
tempo e recursos para este projeto».O investigador salienta a importância
dada pelos pais à «liberdade curricular»,concluindo que «os programas de apren-dizagem são flexíveis e altamente indivi-
dualizados», havendo a tendência paraseguir «um currículo já experimentado
e consistente» nos primeiros dois anosde ensino doméstico. Depois, a maioriadas famílias opta pela construção de um
programa próprio.Cláudia Sousa, que além da licencia-
tura em Psicologia concluiu também o
curso de professora do i.° ciclo do ensino
básico, optou por educar a filha mais nova
seguindo o programa do Ministério da
Educação. Mas com «respeito pelos rit-
mos próprios de aprendizagem e de de-
senvolvimento», valorizando «a troca de
saberes e de experiências». Ana, que so-nha ser pintora e pediatra, está a concluir
o 4.0 ano e desenhou toda a história da pri-meira dinastia. Foi entre pincéis e aguare-las que a mãe lhe ensinou os nomes dos
reis e o contexto em que nasceu o amor de
Pedro e Inês. «Acaba por aprender-se de
forma mais criativa, sem ser necessário
passar oito horas entre quatro paredes»,
explica, referindo que não se senta muito
tempo com Ana. Todas as atividades dodia a dia são pretextos para aprender mais
um pouco: «Sempre que fazemos um bolo
aplicamos conceitos da área da Matemá-tica, da Língua Portuguesa, do Estudo doMeio.» E sobra tempo para ela se aven-
turar em muitas outras coisas: além do
inglês, está a aprender alemão e japonês,
pratica surf, vela, judo, equitação, nata-
ção e, tal como os irmãos, é escoteira.
Também os filhos de Carlos e Catarina
Mendes, de 35 e 32 anos, têm agora mais
tempo para se dedicarem a atividades de
que gostam, como o hóquei em patins ou
o xadrez. O técnico informático e a pro-fessora do ensino especial optaram poreducar em casa o filho Rafael, de 7 anos,no início do ano passado, e Flor, de 5 anos,
? seguirá agora os passos do irmão. Fran-
cisco, de 4 anos, e Lua, de um ano e meio,mantêm-se em casa com eles e, em breve,
juntar-se-á a todos um quinto bebé.
«Não é fácil gerir tudo», concede Cata-
rina, com um sorriso. A família mudou-sehá cinco anos da zona de Loures para umaaldeia da Lourinhã, proporcionando aos
filhos o crescimento entre gatos, cães e
galinhas, em vez de carros. Ainda assim,
quando se instalaram no campo tinhamos hábitos da vida na cidade. Carlos es-
tava a trabalhar em Angola, Catarina foicolocada numa escola do Cadaval e não
parava. «De manhã era uma correria paravestir os três c despachá-los. Depois ia
buscá-los ao fim do dia, outra vez a cor-
rer, dava-lhes banho, o jantar e iam para acama. Quase não estava com eles. Come-cei a sentir que não os conhecia... Só pen-sava: 'Mas o que ando a fazer?'» Quandoficou grávida de Lua veio para casa e nãovoltou a trabalhar. «Enquanto conseguir-mos manter a situação, financeiramen-te... é o que sentimos ser certo.»
á 0 ensino domésticosurgiu como formade protesto contra aescola convencional'Álvaro Ribeiro, investigadorda Universidade do Minho
QUANTOS OVOS? Rafael, Francisco e Flor gostam tanto das suas galinhas como dos cãese dos gatos. Enquanto tratam delas, também aprendem Matemática
DESCONTRAÍDAS Cláudia e Ana fazem leituras e trabalhos no interior de uma tenda teepee que ergueram na propriedade da família, na Ericeira
QUEIXAS EM COMISSÕES DE MENORES
Longe do estereótipo das famílias queeducam os filhos em casa por motivos
religiosos (em Portugal, há adventistasdo sétimo dia que o fazem, em ensino in-
dividual), estes pais procuram, sobretu- do, acompanhar mais o crescimento das
crianças. Para Álvaro Ribeiro, o ensinodoméstico que se realiza no nosso país«assenta numa estratégia de classes so-ciais elevadas», tendo surgido como «for-ma de protesto contra a escola conven-cional, como instituição e organização», e
representando «a emergência, paulatinae impercetível, de uma contracultura».
Com maior tradição nos EUA e em In-glaterra, os estudos realizados indicamvárias vantagens em termos dos resulta-dos académicos, segurança emocional e
autoestima das crianças. Mas tambémdesvantagens. Nem todos os pais estarão
preparados academicamente e existe até
uma corrente que defende o não-ensino,entendendo que as crianças aprendempor si próprias aquilo de que necessitam.Em Espanha, por exemplo, estes compor-tamentos levaram à proibição do ensino
doméstico, depois de terem surgido ado-
lescentes que não sabiam ler e escrever.Em Portugal, o ensino é obrigatório até
aos 18 anos, pelo que os alunos têm de re-alizar exames em cada final de ciclo (vercaixa) . Contudo, a primeira lei relativa ao
ensino doméstico data de 1948, com vá-
rias adendas ao longo dos anos, o que temlevado a diferentes interpretações e inter-
venções da Proteção de Menores. Se uma
criança não for matriculada ou se faltara um exame, é movido um processo pornegligência. Foi o que sucedeu na zona de
Castelo Branco, onde uma menina de 9anos ia ser retirada aos pais porque estes
decidiram matriculá-la numa escola fran-
cesa, não reconhecida pelo Ministério da
Educação, recusando realizar os examesdo 4. 0 ano. A família alegou motivos reli-
giosos numa primeira audição mas, quan-do o tribunal avançou com o processo...«Fugiram para outro país», confirmou àVISÃO o advogado oficioso da menor.
Este tipo de casos tem vindo a multi-plicar-se, com frequência por desconhe-cimento da lei, e é um dos motivos quelevaram à criação do MEL - Movimento
Educação Livre. A sua presidente é Cláu-
dia Sousa. «O grande objetivo é termosuma voz mais coesa e ativa na defesa da
educação em Portugal, e do ensino do-méstico em particular», explica.
A 0 ingresso na escolaé extremamenteimportante para quea criança possa estarcom pessoas fora doseu círculo familiar'Teresa Paula Marques, psicóloga
A SOMBRA DA SOCIALIZAÇÃO
Questões legais à parte, a grande críticaao ensino doméstico resume-se numapalavra: socialização. Teresa Paula Mar-
ques, 40 anos, psicóloga especialista em
comportamento infantil e a concluir umdoutoramento na área educacional, con-sidera o ingresso na escola «extremamen-te importante» para que «a criança possaestar com pessoas fora do seu círculofamiliar restrito». Essa convivência, diz,
«permite-lhe aprender a conviver comas diferenças culturais e sociais». Alémdisso, «se no seio da família a criança en-tende as regras como uma imposição dos
pais, na escola vai perceber a sua utilidadeem termos de convivência e adequaçãosocial». Aprenderá, por exemplo, «que se
não respeitar certas regras, poderá per-der a amizade de um colega, enquanto em
casa nada disso acontece. Por muito queos irmãos briguem, o grau de parentescoimpede a rutura», afirma a psicóloga.
Cláudia Sousa não aceita, de todo, essa
ideia: «O ensino doméstico promove
partilhas geracionais de qualidade, apro-funda relações de vizinhança, permitetempo e criatividade para explorar cami-nhos diferenciados e evidencia-se na no-
ção de pertença a um lugar, à família e à
própria comunidade.» A família Mendestambém não sente que os filhos estejamisolados do mundo. «Têm os vizinhos ouos amigos do hóquei», aponta Catarina,lembrando também que duas vezes pormês viajam até Lisboa, onde se juntam a
outras crianças em ensino doméstico, vi-sitando exposições e museus.
«Acredito que há mais vantagens que
desvantagens», reforça Cláudia Sousa,
que, no próximo ano, também irá ensinaro filho do meio, Hugo, em casa. A presi-dente do MEL convida a um exercício:
«Imagine-se que o Estado decidia criaruma rede de cantinas públicas e decreta-va que todas as crianças teriam, obriga-toriamente, de frequentá-las, seguindoos menus definidos, pois só assim estaria
garantida uma nutrição adequada... Seriarazoável? Agora substitua-se as palavras'cantinas' por 'escolas', 'menus' por 'cur-rículos' e 'nutrição' por 'educação'. Abdi-car-se-ia, sem questionar, da liberdade de
escolha? E seria melhor frequentar a 'can-tina pública' ou confecionar as refeiçõesem casa, decidindo os menus, os ingre-dientes, os horários das refeições?»
Cláudia olha para Ana, agora tão dife-rente da menina tímida e insegura de há
dois anos, e não tem dúvidas. A família
prefere colher os legumes na horta bioló-
gica, misturando-os numa colorida e nu-tritiva sopa - que depois comerão todos
juntos, à conversa na sua tenda teepee. n
Anos 90 O aluno pioneiroFoi por um «acidente de percurso» que Leonardo de Melo Gonçalves se tornou na
primeira criança portuguesa a ser matriculada em ensino doméstico. Corria o ano de1993 e o menino, então com 7 anos, estudava num colégio privado que abriu falênciaa meio do ano letivo. A mãe. a pintora Felippa Lobato, descobriu, então, que poderiaeducá-lo em casa e resolveu tentar. «Foi uma experiência lindíssima», recorda, expli-cando que não necessitava de mais de meia hora por dia para lhe ensinar a matériaoficial. Contudo, apesar do sucesso, no ano seguinte matriculou-o no Colégio Vasco da
Gama, em Sintra. «Eu era apologista de que as crianças deviam estar na escola», expli-ca. Leonardo precisava também de muitos estímulos, pois tinha múltiplos interesses,sendo considerado sobredotado. Talvez por isso, no 7 o ano, voltou para casa. Não se
integrou bem na escola de Vila Viçosa, para onde se tinham mudado. Nessa fase, a pin-tora contratou professores privados para a ajudarem em algumas matérias: «Apren-deu inglês com um jornalista britânico, por exemplo.» Leonardo, que hoje tem 27 anose é empresário, guarda memórias positivas do ensino em casa, sobretudo do primeiromomento. «Havia uma grande liberdade para falar de outras coisas, (amos muito alémdas matérias normais», recorda. «Dedicávamos muito tempo à música e às artes, porexemplo.» Já com dois filhos, de 3 e 6 anos, não pensa, para já, educá-los dessa forma.Porque também se lembra de que «sentia falta do contacto com outras crianças».