4
esde a hora em que acorda até o momento em que vai dormir, João (que pode- ria ser qualquer adolescente típi- co da classe média carioca) de- para-se com as cenas mais trash mas culturalmente aceitáveis. Às 7h da manhã, na porta do seu prédio, esbarra com uma família inteira dormindo sobre papelões. Às 9h, entre uma aula e outra, s u r p reende uns amigos fuman- do maconha escondidos no ba- nheiro. Às 13h, a caminho do trabalho, presencia a grosseria do motorista de ônibus com um senhor de idade. No trabalho, vê o chefe menosprezando seus empregados. Ao voltar para casa, já tarde da noite, assiste a pegas de automóveis e a ata- ques de pitboys. Através da ja- nela do ônibus, João teste- munha os mais variados pra- z e re s . Obviamente o personagem é fictício, mas o retrato do cotidi- ano é real. O fato é que as cenas mais absurdas, que implicam o prazer de uns e a desgraça de ou- t ros, já foram de tal forma absorvidas pelo corpo social que passam despercebidas. E o que chama a atenção, seja dos veícu- los de comunicação ou de uma sociedade repleta de falsos puri- tanismos, é a atitude inusitada e fora dos padrões previamente estabelecidos de alguns grupos e figuras excêntricas que estariam pregando o “prazer no trash”. Talvez o exemplo mais clássico seja o cineasta José Mojica Marins, o famoso Zé do Caixão. O personagem Zé do Caixão ou Coffin Joe, como é conhecido no exterior, é um ícone do que se convencionou chamar de trash: obras que causam riso, inicial- mente não desejado, e que se pre- tendiam sérias, marcadas por recursos materiais e humanos escassos, improvisos e temas bi- zarros, ligados ao sobrenatural e à ficção científica. Para o cineas- ta, cultivar seu personagem e, conseqüentemente, alimentar um apreço por situações fora do comum foi a única solução para mantê-lo próximo de seu maior prazer: o cinema. Mojica foi o primeiro a realizar filmes de terror no Brasil por percebê-lo como um gênero pou- co explorado. Sofreu com a ditadura e com a falta de finan- ciamento, mas conseguiu cha- mar atenção e formar admi- radores no Brasil e no exterior, onde seus filmes são mais bem Com muito prazer 37 Quando o lixo vira luxo A exploração do sentimento de prazer no trash vem ganhando espaço no cinema, na literatura e na TV D “ A autoflagelação é característica do sujeito pós-moderno” Madalena Sapucaya IVAN KASAHARA, MARCIA PATERMAN, PAULA BARCELLOS E SU ANNE TAKEDA Zé do Caixão foi o primeiro cineasta brasileiro a produzir filmes trash

quando o lixo vira luxo.pdf

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: quando o lixo vira luxo.pdf

esde a hora emque acorda atéo momento emque vai dormir,João (que pode-

ria ser qualquer adolescente típi-co da classe média carioca) de-para-se com as cenas mais trash –mas culturalmente aceitáveis. Às7h da manhã, na porta do seuprédio, esbarra com uma famíliainteira dormindo sobre papelões.Às 9h, entre uma aula e outra,s u r p reende uns amigos fuman-do maconha escondidos no ba-n h e i ro. Às 13h, a caminho dotrabalho, presencia a gro s s e r i ado motorista de ônibus com umsenhor de idade. No trabalho,vê o chefe menosprezando seuse m p regados. Ao voltar paracasa, já tarde da noite, assiste apegas de automóveis e a ata-ques de p i t b o y s. Através da ja-nela do ônibus, João teste-munha os mais variados pra-z e re s .

Obviamente o personagem éfictício, mas o retrato do cotidi-ano é real. O fato é que as cenasmais absurdas, que implicam oprazer de uns e a desgraça de ou-t ros, já foram de tal form aabsorvidas pelo corpo social quepassam despercebidas. E o quechama a atenção, seja dos veícu-los de comunicação ou de uma

sociedade repleta de falsos puri-tanismos, é a atitude inusitada efora dos padrões pre v i a m e n t eestabelecidos de alguns grupos efiguras excêntricas que estariamp regando o “prazer no t r a s h” .Talvez o exemplo mais clássicoseja o cineasta José Mojica Marins,o famoso Zé do Caixão.

O personagem Zé do Caixãoou Coffin Joe, como é conhecidono exterior, é um ícone do que se

convencionou chamar de trash:obras que causam riso, inicial-mente não desejado, e que se pre-tendiam sérias, marcadas porrecursos materiais e humanosescassos, improvisos e temas bi-zarros, ligados ao sobrenatural eà ficção científica. Para o cineas-ta, cultivar seu personagem e,conseqüentemente, alimentar uma p reço por situações fora docomum foi a única solução paramantê-lo próximo de seu maiorprazer: o cinema.

Mojica foi o primeiro a realizarfilmes de terror no Brasil porpercebê-lo como um gênero pou-co explorado. Sofreu com aditadura e com a falta de finan-ciamento, mas conseguiu cha-mar atenção e formar admi-radores no Brasil e no exterior,onde seus filmes são mais bem

Com muito prazer 37

Quando o lixo vira luxoA exploração do sentimento de prazer no trash vem ganhando espaço no cinema, na literatura e na TV

D

“ A autoflagelação écaracterística do

sujeito pós-moderno”Madalena Sapucaya

IVAN KASAHARA, MARCIA PATERMAN, PAULA BARCELLOS E SU ANNE TAKEDA

Zé do Caixão foi o primeiro cineasta brasileiro a produzir filmes trash

Page 2: quando o lixo vira luxo.pdf

recebidos. Em 2001, um docu-mentário sobre sua obra foi pre-miado em Sundance, o maisi m p o rtante festival de cinemaindependente do mundo.

Se Mojica optou pelo trash parapoder viver, a jovem escritoraShirlei Massapust, 25 anos, vivepara ser trash. Vampira convictae confessa, Shirlei tem uma vastabibliografia sobre assuntos sobre-naturais e defende, com umraciocínio até lógico e científico,a existência do vampirismo:“ A l e rgistas da universidade deIdaho constataram carência dep roteínas em hematomaníacos(eles examinaram grupos, e nãoum indivíduo). Em 2001, umainvestigação policial nos EUAsubmeteu diversos ‘vampiros’ aexames, constatando que os cor-pos de um certo grupo apresen-tavam anomalias semelhantes e,incrivelmente, exalavam natu-ralmente o mesmo odor, diferentede tudo que os médicos já vi-ram”, relata com entusiasmo.

Mas o prazer de Shirlei não seresume a estudos. Longe disso.

Ela veste-se como vampiro (se-melhante àqueles dos filmes doDrácula), sente-se bem deitadanum caixão e no seu último ani-versário reproduziu, num salãode festas, um verdadeiro cemi-tério. Haja estômago para rece-ber das mãos de um garçom-co-veiro os petiscos da festa.

Enquanto o prazer para a vam-pira e para o Zé do Caixão estáligado a bizarrices mórbidas,para a professora Fátima Mes-quita, a satisfação encontra-se noque está bem vivo e, o pior, den-tro de cada um. A autora dorecém-lançado Almanaque depuns, melecas e coisas nojentas(Editora Pandabooks) não tem omenor pudor em cutucar taisassuntos. Pelo contrário. “Sempregostei de falar coisas inesperadas,às vezes, até abusadas, e assimquebrar o clima. Sempre fuimuito desconfiada das coisasditas sérias, ou dos assuntos con-siderados ‘dignos’. E mais aindada postura sisuda de certos ambi-entes de trabalho, certas gentes,c e rtos lugares. Às vezes, tudo

parece tão teatral! Essa coisa dahipocrisia”, critica Fátima, queestá morando em To ronto, noCanadá.

Mas o que levaria uma pessoaa gastar seu tempo escrevendosobre a quantidade de puns quesão soltos por minuto ou o prazerde tirar meleca em público?Curiosidade, obsessão? “Minhaprimeira idéia era escrever, nav e rdade, um livro que ia sechamar qualquer coisa como‘Manual do cutuque’, porque euqueria escrever sobre a obsessãodo cutuque. O que leva alguém,por exemplo, a espremer cravode namorado em parque públi-co? Eu não consigo entender. Masé uma compulsão comum, jánotou? Aí, ia escrever sobre isso,sobre cutucar o nariz também.Passou mais um tempo, comeceia escrever sobre o pum, mas commais informação técnica. E aí umassunto puxa o outro e deu noque deu”, explica a autora.

O almanaque, por mais apa-rentemente bizarro que seja, con-quistou seu espaço na crítica ecom o público. Fátima veio aoBrasil participar de programas degrande audiência da televisãoaberta – o programa do Jô Soares(TV Globo) e o da Adriane Ga-listeu (TV Record). Segundo a as-sessoria de imprensa da editoraPandabooks, a vendagem dolivro está muito boa e o público éo mais variado: de crianças asenhoras. Talvez o sucesso sejaresultado de uma preocupaçãoinicial da autora: “A idéia doalmanaque também é mostrarcomo tudo é relativo, como oconceito de nojo é cultural edatado (e, por extensão, o con-

Janeiro/Junho 200438

A vampira Shirlei Massapust e seu caixão

Page 3: quando o lixo vira luxo.pdf

ceito de bom, ruim, feio, bonitoetc.)”, enfatiza Fátima, que nãoesconde a satisfação que teve emescrever sobre o que é cultural-mente nojento.

“Tenho enorme prazer em pen-sar que estou cutucando a hipo-crisia. E tenho também o maiorprazer de, pela primeira vez navida, entender coisas do fun-cionamento do corpo humano,coisas do meu dia-a-dia que eudeveria ter aprendido. Tive oprazer de ter aprendido muito,pesquisando para escrever olivro”.

O grotesco na geração coca-cola light

O que determina a identidadecultural de um grupo é um con-junto de vivências, crenças e cos-tumes. Mas os movimentos cícli-cos da moda podem desviar essepercurso. A geração nascida nosanos 1980 chega hoje ao novomilênio com uma bagagem cul-tural muito particular.

Assistiu à ascensão do movi-mento punk-rock, à camaleônicaMadonna desde as roupas ras-gadas, às boinas e aos coturnos,os andróginos David Bowie eMarilyn Manson, aplaudiu Cha-ves, Chapolin Colorado, Os Tra-palhões e as vídeo-cassetadas,usou as medonhas calças semi-bag com bolso pontudo, massuperou, sem qualquer vergonha,a pochete, a cintura-alta e os pro-gramas de auditório. Colaboroupara que os ícones do bre g anacional Falcão e ReginaldoRossi tornassem-se ícones i n,releu o grotesco de ontem, comoa franja e o look “secretária anos80” nos cabelos femininos, os

jeans de boca estreita e analisatudo sob o olhar do reciclável.

A “geração coca-cola l i g h t”t r a n s f o rmou o lixo em luxo.Centrifugou as brutalidades dasvídeo-cassetadas, os filmes deviolência e o “tosco”. Reuniu essacombinação nos grandes hits dacultura jovem atual: os progra-mas de autoflagelação, comoJackass. No lugar dos programasde sátira de outrora, surgiram“Hermes e Renato” e “Os pioresclipes do mundo”.

Jackass veio ao mundo em1996, quando Johnny Knoxvilleteve a pouco usual idéia de testarem si mesmo objetos de autodefe-sa, como spray de pimenta, ge-rador de choques elétricos e pisto-la de balas de borracha. Elevendeu a idéia para uma revistanorte-americana e acabou tendoum programa na MTV, no qual,junto com outras pessoas, jácometeu maluquices como mer-gulhar em uma fossa de esgoto,unir as nádegas com um piercing,comer uma omelete feita comgemas vomitadas e intro d u z i rcarrinhos de metal no ânus.

O u t ro famoso programa de

sátiras e besteirol é o brasileiro“Hermes e Renato”, formado pe-los amigos Fausto Fanti, MarcoAntônio Alves e Felipe Torres. Emsíntese, o programa é ambienta-do na década de 1970, quandouma dupla de machistas metidosa malandros apronta de tudopara se dar bem. Os roteiros nãotêm nexo, são cheios de saca-nagem, machismo e palavrões. Éexatamente esse o segredo dosucesso do quadro da MTV bra-sileira.

Para o estudante do sexto perío-do de Comunicação Social Al-f redo Stadtherr, de 24 anos, o in-t e ressante são os traços cômico eb rega explorados pelo pro g r a m a .“O que me atrai é a estética, alémde ser muito divertido. As ro u p a sque descambam para o brega e osq u a d ros de pancadaria são muitoengraçados. O jovem de hoje can-sou do formal e procura diver-são”, analisa Alfre d o .

Já para o publicitário DiogoMaduell, de 26 anos, o fascinanteem “Hermes e Renato” e em“Jackass” é exatamente o trash.Mas ele percebe uma grandediferença entre ambos.

Com muito prazer 39

“Hermes e Renato”: o trash nacional na MTV.

Page 4: quando o lixo vira luxo.pdf

“A ‘tosqueira’ e a apare n t efalta de cuidado do “Hermes eRenato” são muito ‘maneiras’.Digo, aparente, porque é tudoplanejado. É muito inteligente,p o rque, parodiando, criticamprogramas de TV atuais e anti-gos. “Hermes e Renato” mostracomo a programação de TV ép o b re. Mas “Jackass” é outracoisa. Gosto porque os caras sãototalmente malucos e ficam semachucando”, afirma Diogo.

Mas o publicitário discorda deque os astros do programa ame-ricano tenham encontrado os tais15 minutos de fama por meio daparanóia do “ser original” nasloucuras que praticam, comoinserir um carrinho de ferro noânus e cheirar wasabi – a raizforte da culinária japonesa.

“O objetivo é descobrir os limi-tes do corpo e ganhar grana. Nãovejo o que fazem como marketing,mas como uma maneira queencontraram para sobre v i v e r.Ossos do ofício. É o showbiz”, con-clui o publicitário.

O u t ro fã dos programas é o estu-dante de Administração de Em-p resas Ricardo Petrus, de 23 anos.P e t rus, que conheceu “Jackass”enquanto zappeava pela TV, tem

uma visão diferente. Para ele,Jackass não passa de um casobem-sucedido e o que a indústriacultural faz é apro p r i a r-se doautêntico, transformando-o emproduto.

“Eles são um bando de play-boyzinhos, fingindo uma parada.É marketing puro. No início, eramuito engraçado justamente porser amador. A partir do momentoem que uma equipe oferece umaestrutura e coloca uma câmerade US$ 10 mil nas mãos deles, oconceito muda totalmente”.

Mas que fetiche é esse? O queleva os jovens a ter prazer emassistir programas que usam ogrotesco como espetáculo? Umahipótese é a capacidade de iden-tificação dos telespectadores comos personagens dos programas.Eles são, segundo Ricardo, apa-rentemente malucos e insanos,mas são tão normais quanto oespectador. “Aquele que está natela era um mau aluno na escola,gosta de aparecer e faz o que todomundo já pensou em fazer, masnão faz porque não é maluco”,conclui.

João Cláudio Silva, de 26 anos,não chega a ser um fã desses pro-gramas da MTV, mas criou umacomunidade virtual para conver-sar com os amigos “joselitos”: oscolegas de atitudes “sem-noção”.“Apesar de muito mal feito, oconteúdo agrada. As situaçõessão muito criativas, difere n t e-mente dos humorísticos tradi-cionais”, conta João Cláudio.Mas, para ele, a cultura do trashnão tem nada de novo. É, segun-do ele, o resultado de um proces-so iniciado pelas nossas mães.

“ C rescemos ouvindo histórias

inacreditáveis e músicas de ninarque amedrontam as crianças.Minha infância passou pela épo-ca tosca: os anos 1980, quandotudo era mal feito, da música aocinema. Pode-se contar nos dedoso que se salva dos 1980. E, poresse motivo, todo mundo gosta.Claro que tem o marketing, por-que os profissionais da área cap-tam o desejo da massa e o trans-formam em realidade”, afirmaJoão Cláudio.

Para a psicóloga e professora daPUC-Rio Madalena Sapucaya, háuma diferença entre quem faz equem assiste. Segundo ela, a erav i rtual permite às pessoas desafi-ar os padrões estabelecidos pelasociedade do conforto do sofá.

“Os espectadores assistem àqui-lo, pensando ‘isso eu faria, issonão’, mas sem nunca sair de casa.Quanto a quem realiza essasp roezas, acho que cada risco peloqual eles passam e sobre v i v e mlhes causa uma sensação de imor-talidade. Essas pessoas têm dificul-dade em admitir a transitoriedadede suas vidas. A autoflagelação écaracterística do sujeito pós-mo-d e rno. Sem referências sociais, co-mo o Estado, a família ou areligião, sua identidade está que-brada e a dor física é uma das saí-das para se encontrar, para se sen-tir vivo. Isso é sintomático da so-ciedade contemporânea, pois ador é um recurso do indivíduo queencontra poucas opções de sentirprazer”, analisa a psicóloga.

Será? Essa pode ser uma respos-ta. Mas, quem sabe, a mentehumana, ela própria, seja tãob i z a rra a ponto de encontrarprazer em atitudes que nemmesmo Freud explica.

Janeiro/Junho 200440

Jackass: o trash como marketing?