Quando o Trabalho Obriga a Vender o Coração e o Sorriso

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  • 8/17/2019 Quando o Trabalho Obriga a Vender o Coração e o Sorriso

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    Quando o trabalho obriga a vender o coração e o sorriso

    JOSÉ VÍTOR MALHEIROS 

    06/08/2013 - 00:00

    1."I"m lovin" it!" A frase vem estampada nos uniformes, nos cartazes, nas embalagens e no

    material publicitário da cadeia de fast food McDonald"s. O slogan foi criado em 2003 pelaagência Heye & Partner (diz-nos a Wikipedia) e desde essa altura que invadiu os milhares de

    restaurantes da cadeia em todo o mundo. A Heye & Partner tem sede na Alemanha, perto deMunique, e o slogan ecoa num tom moderno esse outro lema alemão famoso: "Arbeit macht

    Frei." A primeira versão do "I"m lovin" it!" foi, por isso, "Ich liebe es". Gosto disto. Estou aadorar! Isto é mesmo porreiro, pá! Este Arbeit dá gozo, meu!

    A particularidade do slogan é que não se trata da declaração de um atributo da marca, de umcompromisso da empresa, de uma garantia de qualidade, de uma promessa de bom serviço ou

    de qualquer outra coisa. Este slogan foi criado pela empresa mas é posto na boca dos

    trabalhadores. Foi criado para que fossem eles a dizê-lo, como se eles o pensassem e o

    sentissem. A empresa defenderá que se trata de um contrato livre entre duas partes e queninguém é obrigado a ir trabalhar para a McDonald"s e, portanto, ninguém é obrigado a

    ostentar o slogan, o que é formalmente verdade, mas todos sabemos o grau de liberdadeexistente na negociação de contratos de trabalho. Quem vai trabalhar para a McDonald"s tem

    de fazer o seu trabalho, depressa e bem, e tem de dizer que adora trabalhar ali, ainda que oseu trabalho seja duro, mal pago e precário.

    Pode defender-se que isto não é muito diferente de tantas outras obrigações profissionais emque se incorre ao assinar um contrato de trabalho e é evidente que existe da parte de qualquer

    trabalhador um dever geral de protecção do bom nome da empresa onde se trabalha, mas este

    "I"m lovin" it!" vai um passo à frente. Este"I"m lovin" it!" não é uma mera defesa da reputação

    da empresa. Nem é sequer uma mera publicidade da marca, que seria entendível semprecomo uma declaração da própria empresa. Este"I"m lovin" it!" obriga todos os trabalhadores a

    declararem activamente a todo o momento o seu gosto pelo trabalho que fazem e a suaadoração pela empresa que os emprega e a fazê-lo em nome pessoal. É uma usurpação da

    consciência individual que aqui tem lugar. É um abuso em termos de direitos individuais e umatropelo da liberdade de expressão porque limita a liberdade do indivíduo e se apropria, em

    benefício do empregador, de algo que é da esfera privada do trabalhador: o seu gosto pessoal,a sua liberdade de declarar aquilo de que gosta ou não gosta. Se cada empregado da

    McDonald"s trouxesse um autocolante na camisa que dissesse "Os nossos hambúrgueres são

    os melhores do mundo!" isso seria entendido como uma alegação da empresa, que não

    comprometeria a identidade de cada trabalhador. Mas ao impor aquele"I" e aquele"lovin"", aMcDonald"s visa apropriar-se da alma e do coração das pessoas que trabalham para si. Estas

    pessoas pertencem-me. Não apenas o seu Arbeit, mas o seu Eu. A questão levanta problemas jurídicos interessantes: se declarar que se adora o seu trabalho faz parte dos deveres de um

    http://www.publico.pt/autor/jose-vitor-malheiroshttp://www.publico.pt/autor/jose-vitor-malheiroshttp://www.publico.pt/autor/jose-vitor-malheiros

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    trabalhador da McDonald"s, será que esse mesmo trabalhador da McDonald"s, nas suas horaslivres, pode dizer que detesta o seu trabalho? Repare-se que não se trata de difamar ou de

    fazer sequer uma crítica ao seu empregador, mas de fazer um comentário que é da estrita

    esfera pessoal ("não gosto de").

    2.Há muitos exemplos de como as empresas limitam de uma forma cada vez mais insidiosa as

    liberdades dos seus trabalhadores, impondo ditaduras de facto que restringem o exercício dasliberdades cívicas constitucionais a escassas horas da vida dos cidadãos - as que decorrem

    entre o trabalho e o sono - e se apropriam de uma forma cada vez mais invasiva de espaços

    reservados da sua vida social e privada.

    Uma das formas de repressão laboral que se tornaram mais comuns - em particular nos

    trabalhadores que têm de atender o público - é a obrigação... de sorrir. Porquê? Pela mesma

    razão por que os empregados da McDonald"s têm de dizer que adoram o que fazem: porque osmagos do marketing descobriram que, assim, os clientes se sentem mais felizes e, quando os

    clientes se sentem mais felizes, compram mais. E porque, cada vez mais, os patrões pensam

    que são donos dos seus trabalhadores. Nos Estados Unidos, o sorriso pode ser uma obrigaçãocontratual e a sua falta, justa causa de despedimento. Haverá coisa mais triste? É evidente quetodos preferimos ser atendidos por empregados naturalmente alegres e sorridentes, mas será

    lícito impor, como condição contratual, o sorriso constante? Fará o sorriso parte das obrigaçõesprofissionais, como pesar a farinha ou dar informações sobre um frigorífico? Ou fará parte

    daquele eu íntimo que não queremos e não devemos pôr à venda? Que não se pode pôr à

    venda porque não é uma mercadoria, porque não foi feito para ser vendido?

    Impor um sorriso como ferramenta de trabalho é dizer a uma pessoa que não é dona dos seus

    sentimentos nem da sua expressão, que eles pertencem "à companhia", que são meras

    ferramentas de produção. Impor um sorriso como ferramenta de trabalho é uma forma de

    proxenetismo, de esclavagismolight, aquele que a gestão moderna se tem empenhado emimpor em substituição dos campos de trabalho.

    [email protected] Escreve à terça-feira