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Love this PDF? Add it to your Reading List! 4 joliprint.com/mag vitruvius.com.br minhacidade 145.02 cidades brasileiras: Quantidade e qualidade abstracts p ortuguês O autor discute o problema da moradia popular brasileira no contexto da diversidade de atores e interesses envolvidos, refletindo sobre limites, de- safios e soluções. how to quote GHIONE, Roberto. Quantidade e qualidade. Re- flexão sobre a casa popular brasileira. Minha Ci- dade, São Paulo, 13.145, Vitruvius, aug 2012 <http:// www.vitruvius.com.br/revistas/read/minhaci- dade/13.145/4402>. Este artigo é uma reflexão acerca dos processos de produção da casa popular brasileira, suas limita- ções e desafios. Quantidade e qualidade são conceitos que nem sempre caminham de mãos dadas. O primeiro im- plica racionalização, economia, massificação, repe- tição; o segundo, exclusividade, personalidade, pri- vacidade, identidade. Integrar conceitos tão díspares representa um desafio que deve ser enfrentado com inteligência, dedicação e sensibilidade. No campo da arquitetura e do urbanismo, esta dialética esteve sempre presente, particularmente desde a modernidade nas primeiras décadas do século 20. A intenção de socializar a arquitetura, de estimular processos produtivos racionalizados e sistematizados para atingir o grande número de pessoas que a sociedade industrial vislumbrava, de prever o desenvolvimento das cidades em condições higiênicas, funcionais e igualitárias, de assumir a estética da máquina como modelo de contempora- neidade, provocou a maior revolução na historia do urbanismo, com resultados questionados durante as últimas décadas do século passado. A negação das estruturas históricas das cidades, a mudança nos hábitos de convivência social e a massificação dos projetos resultantes foram o calcanhar de Aquiles dessas propostas. A escritora e ativista política Jane Jacobs (1916–2006) desvendou estas questões no célebre livro intitulado Morte e vida das grandes cidades americanas (1), editado em 1961, ferindo de morte os conceitos que vinham até então construindo-destruindo as cidades com operações urbanas assentadas nas idéias de tábua rasa e projetos de arquitetura que tinham se tornado burocráticos e carentes de humanidade. Novos conceitos surgiram a partir dos anos 1960 (2), todos eles reivindicando as características sociais e espaciais das cidades históricas e a consideração das suas estruturas urbanas nos projetos contem- porâneos, na tentativa de preservar e integrar as qualidades habitacionais consagradas socialmente com as demandas quantitativas do avassalante cres- cimento demográfico. Hoje, o Brasil vive um processo que reaviva o debate entre quantidade e qualidade. Em propagandas ofi- ciais e nas periferias das cidades brasileiras podem verificar-se os resultados de algumas operações ur- banas dos programas do Governo Federal denomi- nados Minha Casa Minha Vida e de Aceleração do Crescimento, inspirados numa louvável iniciativa de superação das carências habitacionais e de in- tegração urbana e social, assim como outras inter- venções de governos estaduais ou de prefeituras. 21/11/2012 23:11 http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/13.145/4402 Page 1 André de Oliveira Torres Carrasco

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minhacidade 145.02 cidades brasileiras: Quantidade e qualidade

abstracts

português O autor discute o problema da moradia popular brasileira no contexto da diversidade de atores

e interesses envolvidos, refletindo sobre limites, de-safios e soluções.

how to quote

GHIONE, Roberto. Quantidade e qualidade. Re-flexão sobre a casa popular brasileira. Minha Ci-dade, São Paulo, 13.145, Vitruvius, aug 2012 <http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/minhaci-dade/13.145/4402>.

Este artigo é uma reflexão acerca dos processos de produção da casa popular brasileira, suas limita-ções e desafios.

Quantidade e qualidade são conceitos que nem sempre caminham de mãos dadas. O primeiro im-plica racionalização, economia, massificação, repe-tição; o segundo, exclusividade, personalidade, pri-vacidade, identidade. Integrar conceitos tão díspares representa um desafio que deve ser enfrentado com inteligência, dedicação e sensibilidade.

No campo da arquitetura e do urbanismo, esta dialética esteve sempre presente, particularmente desde a modernidade nas primeiras décadas do século 20. A intenção de socializar a arquitetura, de estimular processos produtivos racionalizados e sistematizados para atingir o grande número de pessoas que a sociedade industrial vislumbrava, de

prever o desenvolvimento das cidades em condições higiênicas, funcionais e igualitárias, de assumir a estética da máquina como modelo de contempora-neidade, provocou a maior revolução na historia do urbanismo, com resultados questionados durante as últimas décadas do século passado. A negação das estruturas históricas das cidades, a mudança nos hábitos de convivência social e a massificação dos projetos resultantes foram o calcanhar de Aquiles dessas propostas.

A escritora e ativista política Jane Jacobs (1916–2006) desvendou estas questões no célebre livro intitulado Morte e vida das grandes cidades americanas (1), editado em 1961, ferindo de morte os conceitos que vinham até então construindo-destruindo as cidades com operações urbanas assentadas nas idéias de tábua rasa e projetos de arquitetura que tinham se tornado burocráticos e carentes de humanidade. Novos conceitos surgiram a partir dos anos 1960 (2), todos eles reivindicando as características sociais e espaciais das cidades históricas e a consideração das suas estruturas urbanas nos projetos contem-porâneos, na tentativa de preservar e integrar as qualidades habitacionais consagradas socialmente com as demandas quantitativas do avassalante cres-cimento demográfico.

Hoje, o Brasil vive um processo que reaviva o debate entre quantidade e qualidade. Em propagandas ofi-ciais e nas periferias das cidades brasileiras podem verificar-se os resultados de algumas operações ur-banas dos programas do Governo Federal denomi-nados Minha Casa Minha Vida e de Aceleração do Crescimento, inspirados numa louvável iniciativa de superação das carências habitacionais e de in-tegração urbana e social, assim como outras inter-venções de governos estaduais ou de prefeituras.

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Em muitos deles, aqueles conceitos esclarecedores de Jane Jacobs e de numerosos críticos e urbanistas que lhe sucederam parecem ter virado pó. Projetos burocráticos, repetitivos, sem misturas de usos nem espaços estimulantes do convívio social dominam as soluções. Blocos coloridos (para ficar bem nas fotos da obra recém acabada) tentam dissimular uma per-sistente falta de imaginação nas soluções plásticas e urbanas resultantes. O pretexto das quantidades solicitadas por uma demanda social que não dá tré-gua parece ter anestesiado a capacidade criativa de arquitetos e urbanistas. Ou talvez o persistente interesse «prático» e lucrativo das construtoras ou o interesse político de nossos administradores em fazer rápido e vistoso antes das eleições, cortam qualquer iniciativa que fuja das soluções burocrá-ticas e sem riscos.

A casa popular brasileira: produto ou processo?

O problema da casa popular brasileira resulta complexo pela diversidade de atores e interesses envolvidos, situação que define modelos operati-vos diferenciados. Numa aproximação genérica à produção de casas populares, podemos definir um sistema que a considera um produto comercial que se compra como mais um objeto de consumo, dentro das leis de oferta e demanda do mercado imobiliário, ou como um processo de integração social de comunidades carentes, onde a casa e o ambiente urbano constituem uma etapa dele.

Para grupos sociais em ascensão (a nova classe média categorizada como “classe C”, definida pelo Programa Minha Casa Minha Vida como aquela com renda entre três e seis salários mínimos), cujas expectativas são as de integrar-se aos padrões de consumo das classes definidas como A e B, o conceito da casa como produto talvez resulte o mais ade-quado. As experiências realizadas comprovam, nestes conjuntos, o predomínio de critérios quan-titativos acima dos qualitativos, especialmente os

da relação custo-benefício, visando sempre o lucro das construtoras acima de qualquer interesse de integração urbana e qualificação habitacional. O pragmatismo destes empreendimentos leva a solu-ções repetitivas, com tipos padronizados, sem consi-deração dos aspectos culturais, climáticos e sociais, e com a transferência das pautas de exclusão social dos condomínios das classes A e B, como os muros de fechamento e as guaritas que impedem a inte-gração social e urbana. As soluções normalmente passam pelo interesse comercial do empreendedor deixando escassa margem de manobra para a ação do arquiteto, que acaba refém de imposições que pouco contribuem para aperfeiçoar as unidades habitacionais e o ambiente urbano. A carência de legislação adequada para estas intervenções nos municípios contribui para a proliferação de casos deficitários em qualificação e integração urbana.

Para os grupos sociais de menor poder aquisitivo, que constituem a grande maioria de pessoas sem casa própria, o caminho é mais complexo que uma simples operação de compra-venda de um bem imóvel. A necessidade de integração social num contexto estimulante e participativo torna-se prioridade e a qualificação urbana e habitacional uma conseqüência de um processo onde o arquiteto intervém num trabalho multidisciplinar. Nestes ca-sos, a casa e o ambiente urbano que promovem a solidariedade e a convivência resultam no símbolo de uma conquista social, muito mais importante que um objeto que se compra como se fosse um automóvel ou um eletrodoméstico. Aplicar as leis de oferta-demanda do mercado imobiliário a este tipo de operações só resulta em unidades repetiti-vas, sem qualificação habitacional nem conside-rações sociais ou culturais, em terrenos baratos, normalmente afastados e desintegrados de contex-tos urbanos medianamente consolidados, situação que resulta no aprofundamento da segregação e exclusão social, cujas conseqüências repercutem em toda a sociedade.

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Um caminho percorrido com certo sucesso é a qua-lificação dos próprios assentamentos legalmente irregulares, onde os grupos consolidam a relação de pertencia a um território físico que os identifica e a preservação de vínculos sociais que reforçam a participação comunitária. Estes processos são de longo prazo, preferencialmente com participação ativa de governos e ONGs, e os resultados normal-mente ficam fora dos procedimentos convencionais da prática projetual arquitetônica e urbanística. As explorações da autoconstrução e de processos ra-cionalizados e apropriados constituem fontes de pesquisa técnica e aplicação pelos próprios mora-dores na construção de suas casas. A organização social e comunitária nos trabalhos de construção do próprio habitat acrescenta o valor de conquista do espaço, nestes casos muito mais integrador e efi-ciente que a operação de compra-venda imobiliária. O aprendizado do oficio de construir, assim como outras atividades recreativas e didáticas, melhora a condição social das pessoas e as torna aptas para entrar no mercado de trabalho. A construção das casas e do ambiente urbano constitui parte de um processo de integração e promoção social que tende a melhorar a cultura e a convivência entre todos os habitantes da cidade. Por tanto, não é um pro-blema que atinge só as pessoas necessitadas, mas ao conjunto da sociedade na procura de cidades urba-nisticamente integradas e socialmente civilizadas.

A casa como produto ou a casa como processo são caminhos alternativos para a solução do déficit ha-bitacional brasileiro dirigidos a parcelas de popula-ção com diferentes pautas econômicas e sociais que precisam, da iniciativa privada e dos governos, ações coordenadas sob o mesmo desafio: resolver quan-titativa e qualitativamente a crescente demanda de habitação popular.

Desafios e conclusões

Na relação entre quantidade e qualidade, como conciliar aspetos aparentemente contraditórios?

Uma adequada planificação urbana e de promoção social integrada, com horizontes de médio e longo prazo, imune às mudanças das administrações políticas, assumida e gerenciada por equipes téc-nicas competentes e persistentes aparece como um primeiro passo para transformar a realidade de amplos setores da sociedade. Uma consciência profissional orientada a dignificar e qualificar as condições de habitabilidade, com tipos arquite-tônicos adaptados às variáveis culturais, sociais, geográficas e climáticas, que evite as soluções bu-rocráticas e repetitivas, aparece como ingrediente substancial para a transformação do mapa urbano e social das nossas cidades. O estímulo para o desen-volvimento de tecnologias apropriadas ao desafio de construir muito e bom, com sistemas altamente racionalizados, adaptados aos diferentes sistemas de produção (da auto-ajuda de pequena escala ao empresarial de grandes empreendimentos) constitui o suporte técnico imprescindível para a qualifica-ção das moradias populares brasileiras. A imple-mentação de mecanismos de financiamento ágeis e desburocratizados contribuirá com o sucesso financeiro de empreendedores e o acesso à casa própria das classes menos favorecidas. O estímulo aos processos de urbanização formalizados com adequados sistemas de acessibilidade, saneamen-to, equipamentos sociais, sustentabilidade e novas centralidades permitirá obter uma cidade social e urbanisticamente integrada. O apoio de políticas participativas, o respeito às necessidades e dese-jos das famílias beneficiadas, a democracia como sistema de decisão, a imaginação e a criatividade como métodos de ação constituem mecanismos de efetividade comprovada para iniciar processos de profundas transformações urbanas e sociais.

Fazer arquitetura significa fazer cidade e melho-rar as condições sociais, mais ainda nos programas comentados, que oferecem uma oportunidade impar de integração social e de desenvolvimento urbano. Significa também mudar certos paradigmas, entre eles o da qualidade e dignidade dos projetos para as

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classes sociais menos favorecidas. Ao contrário do que muita gente pensa, pobre tem direito, mais que ninguém, a arquitetura de qualidade, que estimula a integração da cidade e a promoção social dos seus habitantes. Vale à pena refletir numa perspectiva de longo prazo para evitar construir bombas relógios de conseqüências sociais irreversíveis, que serão sofridas por toda a sociedade.

notas

1 JACOBS, Jane. Morte e vida de grandes cidades. Tra-dução de Carlos S. Mendes Rosa. São Paulo, Martins Fontes, 2000.

2 Entre os postulados teóricos mais difundidos estão o de Aldo Rossi, que valoriza a estrutura histórica da cidade; o de Kevin Lynch, que marca os elemen-tos urbanos referenciais; o de Gordon Cullen, que analisa a paisagem urbana; o de Francoise Choay, que contrapõe as diferencias entre a cidade conven-cional e a cidade moderna; o de Rob e Leon Krier, que estuda as configurações do espaço urbano; o de Philippe Pannerai e Jean Castex, que estuda os elementos de analise urbana, o de Jan Gehl, que determina os processos de apropriação dos espaços públicos, etc. Entre as experiências práticas, pode-mos destacar o IBA de Berlin (1979, 1987), coorde-nada por Joseph Paul Kleihues sob o conceito de renovação urbana cuidadosa e com a participação dos mais destacados arquitetos do momento.

sobre o autor

Roberto Ghione, arquiteto, formado pela Universi-dad Nacional de Córdoba, Argentina. Pós-graduado em Preservação do Patrimônio, Crítica Arquitetônica e Planejamento Urbano pela Universidad Católica de Córdoba. Titular do Escritório Vera Pires Roberto Ghione Arquitetos Associados, Recife.

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