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A presente edição segue a grafia do novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa [email protected] www.marcador.pt facebook.com/marcadoreditora © 2015 Direitos reservados para Marcador Editora uma empresa Editorial Presença Estrada das Palmeiras, 59 Queluz de Baixo 2730-132 Barcarena © 2011 by BASTEI LÜBBE AG Publicado por acordo com Ute Körner Literary Agent Título original: Die Insel Der Tausend Quellen Título: A Ilha das Mil Fontes Autora: Sarah Lark Tradução: Rita Custódio e Àlex Tarradellas Revisão: Silvina de Sousa Paginação: Maria João Gomes Capa original: cedida por EDICIONES B, S.A. Arranjo de capa: Bruno Rodrigues/Marcador Editora Imagens de capa: © Thinkstock Impressão e acabamento: Multitipo – Artes Gráficas, Lda. ISBN: 978-989-754-188-9 Depósito legal: 397 983/15 1.ª edição: outubro de 2015

Queluz de Baixo Título: A Ilha das Mil Fontes Autora ... · achava graça ao facto de a rapariga namoriscar um dos empregados. Mas Peppers tinha apreço pela jovem patroa ― que

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A presente edição segue a grafia do novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa

[email protected]/marcadoreditora

© 2015Direitos reservados para Marcador Editorauma empresa Editorial PresençaEstrada das Palmeiras, 59Queluz de Baixo2730-132 Barcarena

© 2011 by BASTEI LÜBBE AGPublicado por acordo com Ute Körner Literary Agent

Título original: Die Insel Der Tausend QuellenTítulo: A Ilha das Mil Fontes Autora: Sarah LarkTradução: Rita Custódio e Àlex TarradellasRevisão: Silvina de SousaPaginação: Maria João GomesCapa original: cedida por EDICIONES B, S.A.Arranjo de capa: Bruno Rodrigues/Marcador EditoraImagens de capa: © Thinkstock Impressão e acabamento: Multitipo – Artes Gráficas, Lda.

ISBN: 978-989-754-188-9Depósito legal: 397 983/15

1.ª edição: outubro de 2015

SONHOS

Londres

Final do verão – outono de 1729

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Que tempo!Nora Reed estremeceu antes de sair à rua e correr até à car-

ruagem que a esperava em frente da casa do seu pai. O velho cocheiro sorriu quando a viu evitar as poças dando saltos, apesar dos sapatos de seda e salto alto, para não sujar o vestido. A volumosa saia de balão deixava à mostra muito mais do que a decência permitia, os tornoze-los e a barriga das pernas, mas Nora não se sentia coibida perante Peppers. Há anos que estava ao serviço da família e conhecia a rapari-ga desde que a levara ao seu batizado.

― Então, aonde vamos?Sorridente, o cocheiro segurou a portinhola do veículo alto e laca-

do a preto. As portas estavam decoradas com uma espécie de brasão, umas iniciais artisticamente entrelaçadas: o T e o R de Thomas Reed, o pai de Nora.

A rapariga abrigou-se e tirou o capuz do seu casaco largo. Nessa manhã, a criada entrançara-lhe no cabelo castanho-dourado umas fi-tas verde-escuras a condizer com o casaco verde-forte. A chuva tam-bém não conseguiria estragar a grossa trança que caía sobre as costas da rapariga, mesmo se não estivesse protegida. Nora não costumava polvilhar o cabelo de branco tal como ditava a moda. Preferia-o natu-ral e ficava contente quando Simon comparava os seus caracóis com o âmbar. Ao pensar no amado, sorriu, sonhadora. Talvez devesse passar pelo escritório do pai antes de fazer uma visita a Lady Wentworth.

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― Primeiro vamos descer até ao Tamisa, por favor ― indicou, com alguma imprecisão, ao cocheiro. ― Quero ir a casa dos Wentworth… O senhor sabe qual é, aquela casa grande no bairro comercial.

Lorde Wentworth instalara-se nas margens do Tamisa, na zona dos escritórios e casas comerciais. O contacto com comerciantes e impor-tadores de açúcar parecia-lhe mais importante do que uma mansão senhorial num distinto bairro residencial.

Peppers assentiu. ― Não quer fazer uma visita ao seu pai? ― perguntou. O velho criado conhecia bem Nora para ler no seu delicado e ex-

pressivo rosto aquilo em que pensava. Nas últimas semanas, a rapariga pedira-lhe com uma estranha frequência que a conduzisse ao escritó-rio do senhor Reed, mesmo que isso significasse dar uma volta maior. E, como é evidente, o que a movia não era tanto cumprimentar o pai, mas sim ver Simon Greenborough, o mais jovem dos secretários de Thomas Reed. Peppers desconfiava de que Nora também se encon-trava com o rapaz quando ia passear ou andar a cavalo, mas não tinha qualquer intenção de se intrometer. De certeza que o seu patrão não achava graça ao facto de a rapariga namoriscar um dos empregados. Mas Peppers tinha apreço pela jovem patroa ― que sempre soubera conquistar os empregados do pai ― e ficava contente ao vê-la entu-siasmada com o bem-parecido secretário de cabelo negro. Até ao mo-mento, a rapariga nunca escondera do pai qualquer segredo digno de consideração. Thomas Reed criara-a praticamente sozinho depois da morte prematura da mãe e os dois tinham uma relação próxima e afe-tuosa. Peppers não acreditava que um namorico a pusesse em perigo.

― Depois vemos ― respondeu Nora, e o seu rosto adquiriu uma expressão marota. ― Em todo o caso, não faz mal a ninguém se eu passar por lá. Vamos só dar um passeio rápido!

Peppers assentiu, fechou a porta atrás da rapariga e subiu até à boleia enquanto abanava a cabeça mal-humorado. Apesar de toda a sua compreensão pelo entusiasmo juvenil de Nora, a verdade era que o tempo não convidava a passear. Chovia a cântaros e a enxurrada inundava a cidade, arrastando entulho e imundície. A chuva e a sujida-de das ruas uniam-se formando um caldo pestilento que borbulhava por baixo das rodas da carruagem, em cujos raios se enredavam várias vezes tábuas arrancadas dos letreiros das lojas ou até animais mortos.

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O cocheiro conduzia devagar para prevenir acidentes e respeitar os moços de recados e transeuntes que circulavam apesar do mau tempo. Estes evitavam os salpicos das carruagens, mas nem sempre conseguiam escapar de um indesejado e malcheiroso banho. No entanto, naquele dia, Peppers nem precisava de refrear os cavalos. Os animais avançavam sem vontade e pareciam encolher-se debaixo da chuva, tal como o magro rapaz, à primeira vista um moço de re-cados, que saía do escritório de Thomas Reed quando Peppers enca-minhou a carruagem até lá. O cocheiro sentiu compaixão pelo pobre diabo, mas Nora chamou a sua atenção ao bater com insistência na pequena janela que separava o veículo da boleia.

― Peppers! Pare, Peppers! É…

Simon Greenborough esperara que o tempo melhorasse. Mas quando saiu da penumbra do escritório para a rua, a visão dos cava-los encharcados diante da carruagem fechada mostrou-lhe que estava enganado. O jovem tentou subir a gola do casaco gasto para proteger o peitilho de renda da última camisa que podia aproveitar. Costumava passá-la a ferro todas as noites para a manter mais ou menos em boas condições. Contudo, agora molhara-a num instante, tal como o seu cabelo, escassamente polvilhado. A água escorria pelo curto rabo de cavalo onde apanhara o grosso cabelo negro. Simon estava ansioso por comprar um chapéu, mas ainda não sabia bem qual era o mais adequado à sua nova condição de escrivão. Em caso algum o tricór-nio de jovem nobre, mesmo que esse fosse o seu único chapéu ainda apresentável. Nem sequer a luxuosa peruca que o pai usara e com que o meirinho…

Simon tentou não pensar nisso. Tossiu quando a água lhe deslizou pelas costas. Se não se protegesse rapidamente daquele aguaceiro, o casaco e os calções pelo joelho também ficariam ensopados. Os ve-lhos sapatos de fivela já não aguentavam a humidade, o couro rangia a cada passo que dava. Tentou caminhar mais depressa. Afinal de con-tas, só estava a dois quarteirões de Thames Street e talvez pudesse aguardar ali pela resposta à carta que se oferecera para levar. Esperava que a chuva amainasse entretanto…

Simon não reparou na carruagem que se aproximava atrás de si até que ouviu a voz clara de Nora.

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― Simon! Por amor de Deus, o que estás aqui a fazer? Com este tempo, vais morrer! Como é que o meu pai se lembrou de te pedir que faças de moço de recados?

O cocheiro parara o elegante veículo ao pé de Simon, sem dúvida seguindo as indicações de Nora. A rapariga não esperou que Peppers descesse da boleia para lhe abrir a portinhola: empurrou-a com ímpeto por dentro e deu algumas palmadas convidativas no banco ao seu lado.

― Sobe, Simon, depressa! Com este vento, a chuva entra e o estofo está a ficar molhado.

Simon olhou indeciso para dentro da carruagem. O cocheiro observou o confuso jovem que, molhado da cabeça aos pés, estava ao lado da berma. Por fim, este decidiu falar.

― O teu pai não ia gostar…― De certeza que o seu pai não ia gostar, Miss Reed…Simon e o cocheiro falaram quase ao mesmo tempo e tiveram uma

reação igualmente ofendida quando ela soltou uma risada cristalina. ― Sê razoável, Simon! Não me importo para onde vais, nem se-

quer se o meu pai gostaria ou não de que a sua mensagem chegasse ao destino como se acabasse de atravessar o Tamisa a nado. Além disso, o Peppers não vai dizer nada, pois não, Peppers?

Nora sorriu ao cocheiro procurando a sua aprovação. O homem suspirou resignado e escancarou a portinhola para o convidado.

― Por favor, senhor… humm… milord… ― Tudo em Peppers o impedia de se dirigir com um título de nobreza a uma personagem tão desgraçada.

Simon Greenborough também mostrou um gesto de impotência. ― Basta «senhor». De qualquer forma, o assento na Câmara dos

Lordes já foi vendido, tanto me faz se se dirige a mim chamando-me lorde, visconde ou o que quiser.

Na sua voz havia um laivo de amargura, e Simon repreendeu-se por ter deixado que o criado ficasse a conhecer os assuntos da sua família. No entanto, era possível que Peppers já soubesse mais sobre ele do que era normal. Nora tratava o pessoal da sua casa em Mayfair como um prolongamento da família. Vá-se lá saber o que teria contado às criadas.

Simon deixou-se cair no assento ao lado da rapariga, suspirando. Voltou a tossir, o tempo afetava os seus pulmões. Nora contemplou o

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jovem com um misto de severidade e de aflição. De seguida, pegou no xaile e secou-lhe o cabelo. As marcas do pó de arroz húmido ficaram na lã e Nora olhou-as abanando a cabeça.

― Não percebo porque usas esta coisa! ― censurou-o. ― Que moda tão absurda; tens um cabelo negro tão bonito… porque o branqueias como um velhote? Felizmente não te lembraste de usar peruca…

Simon sorriu. Não se poderia ter permitido uma peruca, mas Nora negava-se obcecadamente a tomar sequer consciência do quão pobre ele era. Da mesma forma, não queria ver as restantes diferenças entre a sua posição e a de Simon. Não queria saber que ele fosse um nobre e ela uma burguesa, que ele estivesse arruinado, enquanto o pai dela se encontrava entre os comerciantes mais ricos do império, que ele vivesse num castelo ou trabalhasse como escrivão mal pago no escritório do pai dela. Nora Reed amava Simon Greenborough e não tinha a menor dúvida de que um dia esse amor seria plenamente vivido. Naquele momento apoiava-se, confiante, no ombro do jovem, enquanto a carruagem abanava pelas empedradas ruas de Londres.

Simon, por sua vez, lançou um olhar inquieto para a boleia antes de a apertar, sorridente, entre os braços e de a beijar. Nesse dia chuvoso, Nora optara por um coche fechado. A janela que lhe permitia comu-nicar-se com Peppers era pequena e estava embaciada. O cocheiro não se aperceberia do que acontecia lá dentro. Nora correspondeu ao beijo de Simon sem reservas. Quando se soltou do abraço do jovem estava resplandecente.

― Tive tantas saudades tuas! ― sussurrou, encostando-se a ele, sem se importar se o casaco se molhava ou se a renda do decote do vestido se amarrotava. ― Quanto tempo passou?

― Dois dias ― respondeu Simon, acariciando-lhe com ternura a testa e as têmporas. Não se cansava de contemplar os traços físicos e o sorriso da delicada rapariga, e os dias em que não se viam pareciam---lhe tão sombrios e tristes como a ela.

Nora e o pai tinham passado o fim de semana na residência de verão de uns amigos, mas lá também chovera sem parar. Dessa for-ma, os apaixonados não tinham conseguido encontrar-se às escondi-das, pois não havia nenhum espaço, nem público nem privado, onde um casal tão pouco conveniente pudesse conversar, muito menos

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acariciar-se inadvertidamente. Quando estava bom tempo, por nor-ma, encontravam-se em St. James Park, embora isso implicasse alguns riscos. Nas vias mais transitadas, os amigos e conhecidos de Nora podiam apanhá-los, enquanto nos recantos retirados, atrás das sebes sombrias, costumavam estar à espreita figuras inquietantes… E agora, ainda por cima, chegava o outono.

― Temos de falar urgentemente com o meu pai! ― declarou Nora, que dava voltas a esses mesmos pensamentos. ― Não podemos con-tinuar a passear pelo parque, o tempo vai piorar em breve. O meu pai tem de aceder a que me faças a corte em público! E sobretudo porque te quero mostrar a toda a gente. Meu maravilhoso lorde…

Dirigiu-lhe um sorriso maroto e ele abandonou-se como sempre à contemplação do seu rosto delicado e inteligente e àqueles olhos verdes nos quais parecia brilhar um caleidoscópio de luzinhas claras e escuras quando ela se emocionava. Amava o seu cabelo castanho--dourado, sobretudo quando o enfeitava com flores. Flores de laran-jeira… Simon e Nora nunca tinham visto uma laranjeira, mas conhe-ciam as suas flores através das ilustrações e sonhavam colhê-las juntos um dia.

― O teu pai nunca permitiria… ― respondeu um Simon pessi-mista, apertando Nora contra si. Gostava de a sentir perto dele, de imaginar que levava a amada numa carruagem para sua casa, para um palácio banhado pelo sol…

― Onde desejam ir? A concisa pergunta de Peppers afastou de repente os dois apaixo-

nados, embora difícilmente visse alguma coisa. Virara-se só um pouco para os passageiros, pois o tráfego das ruas, sobretudo com aquele tempo, pedia a sua atenção.

― Para… para Thames Street ― respondeu Simon. ― Para o escri-tório do senhor Roundbottom.

Nora sorriu com agrado ao cocheiro e também a Simon. ― Ah, fica-nos quase de caminho ― disse, alegre. ― Vou a casa de

Lady Wentworth devolver-lhe este livro. Tirou um pequeno exemplar com uma bonita encadernação da

sua mala enfeitada de renda e estendeu-o a Simon. ― Barbados. ― A ruga que aparecia sempre na testa de Simon

quando estava preocupado desapareceu. ― Também gostava de o ler.

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Nora assentiu. ― Eu sei. Mas tenho de o devolver, os Wentworth vão amanhã

para as ilhas Virgens. Têm lá uma plantação, sabias? Estavam aqui só para…

Simon já não a ouvia. Folheava o livro, concentrado. Imaginava porque estavam os Wentworth em Londres. Era provável que tives-sem abandonado circunstancialmente a sua residência nas Caraíbas para comprarem um assento no Parlamento, ou para ocuparem algum que já pertencia à família. Os proprietários das plantações da Jamaica, de Barbados e outros terrenos agrícolas das Caraíbas velavam zelo-samente para que se fixassem os preços dos seus produtos e para que fossem proibidas as importações desde outros países. Com esse objetivo, consolidavam o poder através da compra de assentos na Câmara dos Lordes a famílias nobres falidas, como a de Simon. Segundo sabia, um membro da família Codrington, que possuía uma grande parte da pequena ilha Barbuda, tinha a representação do con-dado de Greenborough.

Mas Nora nem sequer perdeu tempo com histórias sobre a famí-lia Wentworth. Em vez disso, voltou a contemplar o livro que já lera várias vezes.

― Não é bonita? ― perguntou, mostrando uma imagem. Simon acabava de abrir uma página cujo texto estava ilustrado

com a gravura de uma praia de Barbados. Palmeiras, uma praia de areia que se transformava de repente numa selva virgem… Nora inclinou-se em cima do livro, aproximando-se de tal forma de Simon que ele conseguiu cheirar o aroma do seu cabelo: nada de pó de arroz, mas sim água de rosas.

― E ali está a nossa cabana! ― exclamou, sonhadora, enquanto apontava para uma espécie de clareira. ― Coberta de folhas de pal-meira…

Simon sorriu. ― Em relação a isso, um dia vais ter de te decidir ― disse ele, tro-

cista. ― Queres viver numa cabana como os indígenas ou ser dona de uma plantação de tabaco para o teu pai?

Nora e Simon concordavam em que nem Inglaterra nem Londres eram os lugares onde queriam passar o resto da vida. Nora devorava todos os livros que vinham parar às suas mãos sobre as colónias e

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Simon sonhava com as cartas que escrevia para o senhor Reed so-bre Jamaica, Barbados ou a ilha Cooper. Thomas Reed importava cana-de-açúcar, tabaco e algodão de todas as partes do mundo que o Império Britânico anexara no último século. Estava em permanente contacto com os proprietários das plantações e Nora já concebera um plano para ver os seus desejos realizados. Bem, talvez em Inglaterra não houvesse futuro para ela e para Simon, mas se se abrisse uma filial do negócio de Thomas Reed em alguma colónia… Barbados era agora o país dos seus sonhos, embora estivesse pronta para se instalar em qualquer lugar onde o sol brilhasse todos os dias.

― Já chegámos… Miss Nora, senhor… ― Peppers parou a car-ruagem e fez tenção de abrir a porta a Simon. ― Quarenta e oito de Thames Street.

Ao pé da porta do prédio, uma placa brilhante anunciava o escri-tório do senhor Roundbottom. Contrariado, Simon fechou o livro e saiu para a chuva.

― Muito obrigado por me acompanhar até aqui, Miss Reed ― despediu-se cordialmente de Nora. ― Espero voltar a vê-la dentro de pouco tempo.

― Foi um prazer, visconde Greenborough ― respondeu Nora com a mesma formalidade. ― Mas fique no escritório até deixar de chover. Não gostava que se constipasse no regresso.

Peppers fez uma careta expressiva revirando os olhos. Até ao mo-mento, achava a paixão de Nora mais divertida do que preocupante, mas se a história continuasse, a sua jovem patroa ia arranjar proble-mas. Thomas Reed nunca casaria a filha com um escrivão, pouco importava que tivesse possuído ou possuísse um título de nobreza.

A mesma ideia atormentava Simon quando regressou ao traba-lho. Embora já não chovesse tanto, a sua roupa ainda não secara, e no corredor onde o senhor Roundbottom o mandara esperar havia correntes de ar e estava frio. O jovem sentia-se enregelado, e a per-sistente constipação que apanhara na primavera, no quarto diminuto e infestado de bichos que alugara em East End de Londres, ainda o atormentava. Que descida de categoria depois de Greenborough Manor; além disso, era uma casa inadequada para o empregado de um escritório de renome.

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Thomas Reed não pagava ao escrivão um salário elevado, mas também não era um explorador. O salário de Simon seria suficiente para pagar um alojamento pequeno e limpo, até os secretários mais velhos alimentavam uma família com o salário, de forma modesta, sim, mas aceitável. Simon nem podia aspirar a formar família: se não acontecesse um milagre, trabalharia até morrer para pagar as dívidas do pai, e isso apesar de os Greenborough já terem vendido quase tudo o que possuíam de valor.

A queda apanhara a mãe e a irmã de Simon desprevenidas, bem como o próprio rapaz, embora fosse verdade que a família sabia que as finanças de Lorde Greenborough já tinham tido melhores dias. Ha-via algum tempo que pensara na venda do assento parlamentar, mas Simon chegara à conclusão de que isso só beneficiaria a Câmara dos Lordes. O pai ocupara o seu posto em poucas ocasiões e, quando o fi-zera, entendia tão pouco do que ali se debatia, segundo diziam, como em casa os sermões da mulher, que nunca se cansava de o censurar pela sua inclinação para a bebida e para o esbanjamento. John Peter Greenborough costumava estar mais embriagado do que sóbrio, mas a família ignorava que, além disso, tentara voltar a normalizar a mal-parada economia através do jogo.

Quando por fim morreu ― oficialmente de uma queda durante uma caçada, mas na realidade como consequência de uma bebedei-ra que só lhe permitia andar a cavalo a passo ―, foram muitos os credores que apresentaram as dívidas. Lady Greenborough vendeu o assento do Parlamento e com ele, em princípio, também as terras e o título do filho. Despediu-se de joias e de faqueiros de prata, hipotecou a casa e acabou por ter de a vender. Movida por pura compaixão, a família Codrington cedeu aos Greenborough um cottage nos arredores da aldeia que continuava a ter o seu nome. Mas Simon não conseguia ganhar dinheiro ali. Entretanto, às dívidas do pai juntara-se o dote da irmã, que, graças a Deus, casara-se mais ou menos em consonância com a sua classe social. Já o futuro de Simon estava arruinado. Nas suas horas mais negras, perguntava-se se devia considerar o amor de Nora, essa jovem tão bela como rica, uma alegria, ou se só represen-tava mais uma prova.

Nora Reed estava convencida de que a concretização dos seus sonhos era apenas uma questão de tempo. No entanto, Simon não

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partilhava as suas expectativas de que Thomas Reed o recebesse como genro de braços abertos. Pelo contrário, o abastado comerciante con-siderá-lo-ia um caçador de fortunas e expulsá-lo-ia de casa ao ponta-pé. Contudo, Simon estava disposto a trabalhar arduamente para que os seus sonhos se tornassem realidade. Era um jovem sério, sempre desejara um posto numa das colónias e preparara-se para isso. Não era nenhum ginete, caçador, nem espadachim excecional, e, mesmo sem contar com a situação financeira da família, também não mostrava inclinações especiais nem talento para as diversões da nobreza, mas era inteligente e muito culto. Falava várias línguas, era amável e cordial e, ao contrário da maioria dos colegas, também tinha aptidão para os números. Em todo o caso, considerava-se capaz de representar uma sociedade comercial como a de Thomas Reed no ultramar. Estava disposto a trabalhar diligentemente pela sua ascensão social e não era arrogante. Só precisava de uma oportunidade! Mas será que Thomas Reed veria o seu amor por Nora como uma forma de conseguir o que queria? O mais provável era que achasse que Simon pretendia utilizar a filha como trampolim para se promover a nível profissional.

Independentemente de tudo isso, Simon duvidava de que fosse correto ser sincero com Thomas Reed tão cedo. Em todo o caso, era melhor esperar para ganhar a sua confiança e subir na profissão. Nora só tinha dezassete anos e o pai ainda não mostrava intenção de a casar. Simon calculava dois anos mais para se estabelecer, e aí o comerciante poderia tê-lo em consideração como genro.

Oxalá soubesse o que fazer para o conseguir.

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Além de plantar cana-de-açúcar ou tabaco, o que se pode fazer mais? ― perguntou Nora.

Estava sentada no divã de Lady Wentworth e segurava de forma afetada uma chávena de chá entre o indicador e o polegar. Desde que, poucas décadas antes, a rainha Ana dera a conhecer essa infusão quen-te, esta era servida nos melhores salões de Inglaterra. Como a maioria das damas, Nora pusera açúcar em abundância, para grande satisfação da anfitriã, que via em cada chá bem açucarado de Inglaterra uma contribuição para a manutenção da sua fortuna.

― Bem, o tabaco não deu especialmente bons resultados ― res-pondeu, de forma paciente, Lady Wentworth.

As inúmeras perguntas da jovem filha do comerciante divertiam- -na. Nora Reed parecia decidida a que o seu futuro passasse pelas co-lónias. Lady Wentworth lamentava que os filhos não tivessem mais de oito e dez anos. A pequena Reed seria um ótimo partido, e o facto de ser burguesa não lhe desagradava. Afinal de contas, também o marido comprara o título. Para pertencer aos pares de Inglaterra, havia algum tempo que não se precisava de casamento ou de que o rei ordenasse pomposamente um cavaleiro, embora esta última hipótese também fosse possível no caso dos barões do açúcar. Fazendo as doações apropriadas ― obséquios, proteção da frota ou outros serviços à Co-roa ―, o rei premiava o quão aplicadamente se trabalhava para a pros-peridade do império na outra ponta do mundo…

― Quanto ao tabaco, a Virgínia e outras colónias do Novo Mundo são as que obtêm as qualidades mais elevadas. Mas a cana-de-açúcar

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não cresce em nenhum outro lugar melhor do que nas nossas ilhas. Embora também tenhamos despesas… ― Lady Wentworth lembrou---se a tempo de que estava diante da filha de um comerciante. Se se vangloriava do demasiado fácil que era cultivar cana-de-açúcar na Jamaica, em Barbados e nas ilhas Virgens, talvez o pai de Nora tentasse descer os preços. ― Já só com os escravos!

― Bem, na verdade nós não queremos ter escravos ― disse Nora, delicada mas sinceramente. Também falara sobre isso com Simon e tinham os dois a mesma opinião. ― É… é pouco cristão.

Lady Wentworth, uma mulher resoluta de cerca de trinta anos, cujas formas opulentas quase rebentavam o espartilho e a saia de balão, soltou uma risada.

― Ai, minha filha, não faz ideia! ― exclamou. ― Mas felizmente a Igreja é realista em relação a isso: se Deus não quisesse que os negros trabalhassem para nós, não os teria criado. E quando estiver lá, Miss Reed, será da mesma opinião. Aquele clima não é para os brancos. Demasiado calor, demasiada humidade. Para os negros, pelo contrá-rio, é normal. Além disso, tratamo-los bem; damos-lhes de comer, vestimo-los… ― Lady Wentworth calou-se. Aparentemente não se lembrava do que mais faziam pelo bem-estar dos escravos. ― O reve-rendo até lhes prega o Evangelho! ― declarou, no fim, em tom triun-fal, como se só por isso valesse a pena viver. ― Embora nem sempre o saibam apreciar. Ali ainda perduram os rituais, minha querida… É horrível… Quando invocam os velhos ídolos… Não há dúvida de que Deus vê com bons olhos que limitemos essas práticas. Mas não falemos de coisas desagradáveis, Miss Reed. ― Lady Wentworth pegou num bolinho de chá. ― Já há algum plano concreto de a casar numa das nossas belas ilhas? O que diz o seu pai sobre o seu projeto de emigrar?

Nora não queria tocar nesse assunto, por isso tentou ficar a par de outras alternativas.

― E como é a vida nas ilhas para os comerciantes? Há algum tipo de… humm… de intermediários ou de algo parecido que…?

Lady Wentworth fez um gesto de rejeição. ― Não num número significativo. Há alguns capitães que impor-

tam por sua conta, mas, tirando esses casos, lidamos diretamente com a metrópole.

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O que não representava qualquer dificuldade, pois a maior parte dos proprietários das plantações mantinha uma ou várias residências em Inglaterra. Os Wentworth, por exemplo, não só possuíam aque-la mansão senhorial na cidade, mas também uma casa de campo em Essex. Em famílias maiores, um dos seus membros varões per-manecia quase sempre na metrópole e dirigia as negociações com os comerciantes. Sempre que o cartel não estabelecesse logo os preços vinculativos para tudo.

Nora mordeu os lábios. A mulher tinha razão, no âmbito da cana---de-açúcar, não fazia falta qualquer casa comercial na Jamaica ou em Barbados.

― Claro que há alguns comerciantes ― continuou Lady Went-worth. ― Em especial nas ilhas maiores, nas cidades. As pessoas da nossa condição, claro está, abastecem-se dos artigos mais importantes na metrópole… ― Com um conciso movimento, abrangeu o valioso mobiliário da casa, o qual de certeza não ficava atrás do da plantação, os quadros pendurados e o seu não menos dispendioso vestido cujos volumosos folhos cresciam sobre os braços da poltrona. ― Mas, na-turalmente, nas ilhas também há costureiros, padeiros, lojistas… ― A sua expressão demonstrava o que pensava sobre essa camada da população. ― Claro que isso não tem nada que ver com um negócio como o do senhor seu pai! ― apressou-se a acrescentar.

Nora reprimiu um suspiro. As perspetivas não eram boas para ela e para Simon, e menos ainda porque o seu amado não era decerto a pessoa mais adequada para trabalhar como padeiro, costureiro ou so-lícito lojista. Em caso de necessidade, Nora imaginava-se atrás de um balcão a conversar com as mulheres de Kingston ou Bridgetown enquanto apresentava os seus produtos. Mas e o tímido e extrema-mente formal Simon? Assim que lhe contassem um mexerico subs-tancial, retirar-se-ia, indignado.

Simon entrou ofegante no venerável escritório de Thomas Reed, na margem norte do Tamisa. Era bastante lúgubre; as salas dos escri-vães e dos secretários eram pequenas e as escrivaninhas estavam mal iluminadas. Os empregados mais antigos achavam com frequência difícil decifrar os números dos livros de contas. Só o escritório pri-vado de Thomas Reed, que tinha poltronas confortáveis para visitas

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e clientes, dispunha de grandes janelas com vista para o rio. Aparen-temente, naquele dia, Thomas Reed também estava com um cliente. Quando Simon passou pelo corredor em frente do escritório, tirando o casaco, ouviu retumbar a voz do comerciante e distinguiu outra, não menos estridente, com sotaque escocês.

― Reed, por amor de Deus, não me venha com esses escrúpulos morais. Nós somos moderados; noutras ilhas, as leis são bem mais severas. Até os dinamarqueses permitem queimar vivos os negros insubmissos! Como é evidente, esta não é a forma de agir de um bri-tânico que se preze, mas tem de haver disciplina. Então, até como es-cravo, a vida em Barbados seria fácil de aguentar. ― O homem riu-se. ― Sei isso de fonte segura, afinal de contas, eu também fui um deles.

Simon franziu o sobrolho. Que interessante… Nunca ouvira falar de escravos brancos nas ilhas. Entretanto, graças ao brasão que ador-nava de forma um pouco vistosa um saco colocado no corredor, des-cobrira a identidade do visitante: Angus McArrow, recentemente con-vertido em Lorde de Fennyloch. Simon lembrava-se de que Thomas Reed intercedera na compra do assento. Agora o escocês, que possuía uma plantação em Barbados, agradecia o favor. O saco continha duas garrafas de um soberbo rum escuro e, pelo tom em que os homens falavam, podia-se deduzir que uma já estava aberta.

― Posso entrar agora? ― perguntou Simon, nervoso, a um dos empregados mais antigos. Afinal de contas, tinha de entregar a carta.

O homem assentiu, indiferente. ― Não me parece que estejam a contar algum segredo um ao

outro ― balbuciou. Simon bateu à porta com prudência, o que passou inadvertido ao

patrão e ao cliente, porque Reed soltou justamente nesse momento uma sonora gargalhada.

― Você, senhor Arrow? Escravo dos campos de cana? Entre um bando de jovens negros? ― Era inacreditável.

― Tal como lhe estou a dizer! Simon ouviu o tilintar do vidro. Aparentemente, voltavam a en-

cher os copos. ― Como é natural, antes não lhe chamavam assim, falava-se de

servidão. E também não havia negros; chegaram mais tarde. Mas acontecia a mesma coisa: andei a vergar a espinha durante cinco anos

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para um dos primeiros proprietários de uma plantação e no fim con-segui uma parcela. Inicialmente muitos faziam isso, antes de levarem tantos negros para a ilha. Acredite, alguns dos atuais barões do açúcar começaram por ser uns pobres desgraçados. A maioria já não reco-nhece isso, e os descendentes menos ainda; afinal de contas, grande parte dos escravos recompensados não chegou à velhice. Os tempos da servidão foram duros e acontecia o mesmo nos campos. Muitos trabalharam um par de anos, até que a cana-de-açúcar cresceu e as crianças também. Algum tempo depois, estavam acabados. Literal-mente, tinham-se matado a trabalhar. Mas agora os netos portam-se como reis!

― Que interessante ― interveio Reed. ― Não fazia ideia… Um momento, por favor. Entre!

Era a terceira vez que Simon batia à porta e por fim tinham-no ouvido. Hesitante, o jovem entrou na divisão e inclinou-se diante do senhor Reed e de Angus McArrow.

― Milorde… ― disse, diligente.O rosto rechonchudo de McArrow iluminou-se. ― Bom dia, meu rapaz! Simon… Green não-sei-quê, não é? Foi

você quem redigiu o meu discurso inaugural na corte. Excelente, exce-lente, meu rapaz! Venha cá e tome também um copo! Parece precisar. O que esteve a fazer, a nadar? ― Riu-se da própria piada.

Com o cabelo ainda molhado e as dobras do peitilho que com tanta dedicação passara a ferro de manhã penduradas sem vida, Simon apresentava uma imagem lamentável.

― Esteve no escritório do senhor Roundbottom, não foi, Simon? ― perguntou Reed, lembrando-se do que lhe pedira. ― Mas, por amor de Deus, foi a pé com este tempo?! Meu rapaz, podia ter apanhado uma carruagem.

Thomas Reed, um homem corpulento e pesado, de traços faciais surpreendentemente delicados, dirigiu ao jovem secretário um olhar ao mesmo tempo compassivo e de desaprovação. Por vezes, Simon parecia-lhe um rapaz sem capacidade para enfrentar a vida. Bem-edu-cado, sem dúvida, e um escrivão e contabilista excelente, mas tirando isso… Só pelo seu aspeto… Podia comprar um fato novo! E recorrer a um veículo se chovesse. Dava a impressão de que Reed não pagava aos empregados como devia!

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Simon baixou o olhar perante os lampejos de indignação dos olhos verdes de Reed. Eram tão atentos como os da filha, mas mais escrutadores do que doces, e não estavam rodeados pelas rugas que se formam ao rir. De certeza que Nora as teria com a idade…

Simon sorriu sonhador quando pensou em como seria vê-la enve-lhecer. Em determinado momento, também apareceriam alguns cabe-los brancos entre a sua melena cor de âmbar, tal como agora acontecia no abundante topete do pai. Simon brincaria com ela porque já não precisaria de empoeirar o cabelo. E ainda a amaria…

― Para onde está a olhar, Simon? Trouxe a resposta do senhor Roundbottom, não trouxe? Está à espera de quê? Dê-ma! ― Thomas Reed estendeu a mão, exigente.

― Beba primeiro qualquer coisa! ― interveio McArrow, apazigua-dor, e, para horror de Simon, estendeu-lhe um copo cheio de um líquido, de aroma fascinante e cor de âmbar. Rum de Barbados, sem dúvida alguma excelente.

Mas Simon não podia beber com Thomas Reed como se fossem da mesma classe social! E menos ainda dentro do horário de traba-lho. Hesitou e tirou primeiro, de forma desajeitada, a missiva do co-merciante Roundbottom. Metera-a no bolso interior do casaco para a proteger da chuva.

― Faça o que lhe dizem!Thomas Reed pegou na carta e solucionou o dilema de Simon

apontando com um ligeiro gesto para McArrow e para o copo que segurava em direção ao rapaz. Claro que não era apropriado oferecer um copo ao escrivão, mas não queria desagradar ao escocês. Simon tomou um pequeno trago. Foi invadido por uma agradável sensação de calor quando a bebida, forte e com um sabor um pouco doce lhe desceu pela garganta. Muito agradável, muito boa e com um gosto suave, tal como costumava ser o rum.

― Passa por brandy, não acha? ― perguntou McArrow, reclamando um elogio. ― Da minha plantação. Um método de destilação especial. Nós…

― Mas agora continue a contar-me esse estranho modo de adquirir terras, McArrow ― interrompeu-o Reed, para satisfação de Simon, que achava mais interessante a «escravização» dos escoceses do que a pro-dução do rum. ― Ainda se pratica hoje em dia? Bem, é que com essa…

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― Servidão recompensada? ― perguntou McArrow, voltando a pegar no copo. ― Bem, não há muito mais que explicar. Geralmente, funcionava de forma correta, os patrões não eram maus tipos. Claro que pegavam em tudo o que podiam. Esses cinco anos não foram pera doce. Mas tive sorte. No terceiro ano, apareceram os primeiros negros e eu tive de os ensinar e de os vigiar. Não era um trabalho tão duro como no começo. E também tive sorte com o patrão, pois entregou-me uma boa parcela e dois escravos, além da possibilidade de comercializar a minha colheita com a dele. Claro que isso foi só no início, hoje em dia tenho mais terras do que ele… Ou melhor, do que os filhos. Infelizmente, não fazem grande coisa, e tive de lhes dar uma mão com o assento. Os jovens Drew estão a levar o trabalho de toda a vida do pai à ruína…

― E ainda se pratica hoje em dia? Simon interveio com a mesma pergunta que Reed acabava de colocar

e arrependeu-se de imediato. Na verdade, ele não devia assistir àquela conversa entre sócios, e menos ainda participar nela. Mas Reed ouviu com o mesmo interesse que o seu escrivão quando McArrow respondeu.

― Hoje quase não existe ― disse. ― Em primeiro lugar porque não há interesse em que surjam mais plantações. Se a oferta aumentar muito, os preços descem… Lamento, senhor Reed, mas nós, proprie-tários, queremos evitar que tal aconteça. Ainda se ouve falar desse tipo de acordos de forma esporádica, mas os patrões esperam pelo menos sete anos de serviços e, com frequência, vendem gato por lebre. Não, não, isso foi resolvido quando chegaram os negros. Por conseguinte, voltamos ao assunto em que estávamos: para eles não é assim tão mau, não se matam a trabalhar como nós.

A diferença era que trabalhavam toda a vida e depois de cinco ou sete anos nada lhes pertencia, pensou Simon, mas mordeu a língua. Tinha outra pergunta, mas Reed acabava de assinar a carta de resposta e estendeu-lha. Uma clara indicação para que saísse. Era preciso arqui-var a carta e redigir o acordo nela estipulado.

Agradeceu o rum a McArrow e saiu para ir ocupar o seu lugar à mesa na sala contígua. De qualquer forma, ouvia as vozes e quando percebeu que o escocês se despedia foi até ao corredor.

― Senhor McArrow… eh… milord… Posso… posso fazer-lhe mais uma pergunta?

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― Até dez, meu rapaz! ― McArrow riu-se, jovial. ― Pergunte com calma, tenho tempo. Até amanhã não tenho mais compromissos.

Simon encheu-se de coragem. ― Se um… Bem, se um jovem está nas ilhas, num lugar no ultra-

mar como Jamaica ou Barbados… Bem, se alguém quer prosperar lá… há… há alguma possibilidade?

McArrow observou o jovem e contraiu o rosto noutro sorriso irónico.

― Está farto da chuva, não é verdade? ― perguntou, compreensi-vo. ― Percebo, para mim também já chega. Mas as ilhas… Sim, claro que pode começar a trabalhar numa plantação. Neste momento, já não empregamos os brancos como trabalhadores do campo, pois pre-cisamos de capatazes. Seria do seu agrado? Embora um jovem como senhor… Pelo seu aspeto, dir-se-ia que uma pequena rajada de vento derrubá-lo-ia!

Simon corou. Nunca fora um homem forte, mas nos últimos me-ses emagrecera ainda mais. Comia muito pouco e aquela tosse persis-tente consumia todas as suas forças. Mas se estivesse num lugar mais quente… E de certeza que os proprietários das plantações davam alo-jamento aos capatazes. Poderia investir o dinheiro que agora gastava no quarto cheio de percevejos de East End em comida.

― Está… Está enganado, milord! ― replicou com firmeza. ― Posso trabalhar, eu…

― Não tens aspeto de ser capaz de brandir um chicote. Simon estremeceu, não só por aquelas palavras, mas porque de

repente passou a tratá-lo por tu. No entanto, entendeu que, como trabalhador de uma plantação, não poderia pedir que lidassem com ele como se fosse um cavalheiro.

― E é preciso fazê-lo com os negros ― continuou McArrow, impávido. ― Quando a situação se torna bicuda, é preciso enforcar alguns deles. E tu, meu rapaz, não farás uma coisa dessas!

McArrow quis retirar um pouco de dureza às palavras dando umas palmadas otimistas no ombro de Simon, mas o jovem nobre olhava-o desconcertado. Chicotear? Enforcar? Dir-se-ia que era o trabalho de um carrasco!

― Não, se conseguisses alguma coisa, seria na administração. Mas na Coroa não se dão postos de trabalho de graça, tens de comprar um

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ou, pelo menos, conhecer alguém que conheça alguém… ― McArrow abanou a cabeça ao ver o rosto dececionado de Simon. ― Também podes tentar como marinheiro ― sugeriu no fim. ― Mas insisto em que querem tipos fortes e duros, não jovenzinhos como tu. Esquece, fica onde estás, e faz as tuas contas. E talvez de vez em quando algum discurso para o velho McArrow! Foi excelente, meu rapaz… quase como se tu próprio fosses um par!

A seguir, o dono da plantação pegou no tricórnio e lembrou-se a tempo de não o colocar em cima da sua volumosa peruca, mas sim de o meter elegantemente debaixo do braço, antes de sair para a chuva. A carruagem com o seu brasão já estava à espera. O mais recente lorde não se ia molhar.

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Não temos outro remédio senão contar ao meu pai! ― excla-mou Nora.

O tempo voltara a melhorar, parecia quase um dia de verão, embora as cores de outono já tingissem as folhas de St. James Park. Apesar disso, estava de novo frio àquela hora da tarde, depois de Simon ter saído do escritório para se encontrar às escondidas com a amada. Escurecia, e Nora reconhecera quase demasiado tarde as duas damas que se aproximavam, conversando animadamente, pelo afastado tri-lho. Mesmo antes de Lady Pentwood e a amiga os verem, arrastou Simon para trás de uma sebe.

Nora soltou uma pequena risada quando passaram ao seu lado, mas Simon ficou inquieto. Não considerava o seu amor secreto uma aventura, mas sim um desafio. Abatido, contou a Nora a desenco-rajadora conversa com McArrow. Ela ficou surpreendida, mas não demasiado. Contou-lhe também a sua conversa com Lady Wentworth.

― Esse McArrow tem razão! ― declarou, estremecendo. Um bom motivo para se aproximar mais de Simon, que com um gesto protetor lhe passara o braço pelos ombros e não parava de se inclinar para lhe beijar o cabelo. ― Claro que és incapaz de bater a um negro! Era só o que faltava, que tipo de pessoas são essas que querem que lhes chamem lordes, ladies e cavalheiros?! Não acredito que Deus criou os negros para cultivarem cana-de-açúcar. Nesse caso tê-los-ia enviado para as ilhas e não seria necessário ir buscá-los a África. O meu pai diz que sofrem coisas inimagináveis nos barcos. Andam acorrenta-dos!

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Thomas Reed não participava no comércio de escravos, embora, naturalmente, beneficiasse de forma indireta do trabalho dos negros. Afinal de contas, comercializava açúcar, tabaco e outros produtos das colónias, e sem escravos não se exploraria nenhuma plantação. Mas comprar e vender seres humanos, mantê-los em cativeiro, metê-los à força nos porões dos barcos e nos calabouços, e bater-lhes… Thomas não considerava isso compatível com a sua fé cristã. Pouco lhe impor-tava se os outros estavam ou não de acordo com ele.

― Mas já não há trabalho ― replicou Simon, desanimado, pelo que Nora insistiu em que era preciso «confessá-lo» ao pai.

― Temos de dizer ao meu pai que nos amamos. Tens de pedir a minha mão e logo encontraremos uma solução. Estou convencida de que se lembrará de alguma coisa. Se lhe disser que quero ir para as colónias, ele consegue-o!

Nora estava convencida de que não só teriam possibilidades, mas também de que o pai estaria disposto a satisfazer os seus desejos. Não restava qualquer dúvida de que era uma menina mimada. Após a mor-te precoce da mulher, Thomas Reed depositara nela todo o seu amor.

― Olha, vai ser já amanhã! Compras algumas flores… No Cheap-side não são assim tão caras, e se não tiveres dinheiro…

Simon sorriu com ternura. Nora era sempre prática. Se ele não se podia permitir ser romântico, ela renunciaria sem se queixar. Ela pró-pria estaria disposta a comprar o seu ramo de flores. Simon apertou-a mais contra si.

― Querida, não será por falta de um ramo de flores. Mas dá-me mais duas semanas, está bem? Talvez ainda surja uma oportunidade… O McArrow, por exemplo. Se lhe passar pela cabeça ficar agora em Londres e envolver-se no Parlamento, talvez precise de um secretário privado. E como tal levar-me-ia para Barbados… Além disso, daqui a dois meses pelo menos terei liquidado esse maldito crédito para o casamento da Samantha. Então vou dispor de mais dinheiro mensal. Por amor de Deus, Nora, não posso chegar ao pé do teu pai e pedir a tua mão com este fato andrajoso.

Nora beijou-o, sorridente. ― Querido, não me vou casar com o teu casaco e com as tuas calças! Simon suspirou. De certeza que Thomas Reed teria alguma coisa

a acrescentar a essa observação. Porém, conseguira adiar um pouco

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as pretensões de Nora. Em algum momento tinha de acontecer um milagre… Simon pegou na mão da rapariga e levou-a até ao pequeno lago no meio do parque sobre o qual já flutuava alguma neblina. As árvores projetavam sombras compridas.

― Vou alugar um barco! ― decidiu. ― Algum pence terei por aqui, e vamos remar até à ilha. Imaginaremos que é a nossa ilha nos mares do Sul, as ondas a rebentar na praia…

― E vamos poder beijar-nos com toda a calma! ― exclamou Nora, radiante. ― Que ideia maravilhosa, querido! Sabes remar, não sabes? Todos os lordes e viscondes remam, não é?

Se tivesse de ser sincero, a experiência de Simon nessa discipli-na limitava-se a duas tentativas não muito entusiastas de atravessar o lago da aldeia de Greenborough com uma jangada construída por si próprio. Nunca aprendera corretamente a técnica do remo, mas esfor-çava-se por atravessar o lago mais ou menos em linha reta. Embora não chegassem a naufragar, a tosse, que o rapaz mal conseguia conter devido ao esforço, preocupou Nora.

Nas semanas seguintes, a situação não melhorou para os apaixo-nados. Pelo contrário, o final do verão deu lugar a um outono desa-gradável, e Simon ficava gelado no seu húmido quarto sem aqueci-mento. Pelo menos nas lareiras do escritório de Thomas Reed ardia constantemente um generoso lume, o que não era comum em todo o lado. Não eram poucos os escrivães que nas grandes casas comerciais pegavam na pena com os dedos hirtos de frio e enluvados e ficavam a sofrer de gota. Aliviado, Simon enviou à mãe o último montante para o dote de Samantha, mas isso não o deixou mais sossegado. Quase ao mesmo tempo, chegou-lhe uma carta de Greenborough na qual a mãe lhe comunicava, alvoroçada, que Samantha estava grávida. Até o bebé nascer, esperava, então, ter tempo para recuperar, com os magnâni-mos envios de Simon, o castiçal de prata que sempre transportara a vela de batismo de todos os descendentes dos Greenborough.

Dessa forma, Simon continuou a enviar dinheiro, ainda que Nora o censurasse severamente.

― Estão no seu direito, é parte da herança familiar ― replicou Simon, defendendo a mãe e a irmã. ― Além disso, também é para nosso benefício. Quando tivermos filhos… ― Os seus olhos escuros,

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que tinham tido até esse momento uma expressão desanimada, nesse dia cinzento e ventoso de novembro, iluminaram-se.

Nora suspirou e agasalhou-se com o seu casaco. Apesar do clima instável, acompanhara o amado aos Docks londrinos. Thomas Reed encarregara o jovem escrivão do controlo de um carregamento de tabaco procedente da Virgínia. O capitão do barco não tinha fama de ser um homem de fiar, pelo que o proprietário da plantação pedira a Reed que comparasse com rigor a entrega efetiva com os documentos da carga. Simon acabava de o fazer conscientemente, apesar de o seu velho casaco mal o proteger da chuva e do vento. Nora, abrigada na sua capa forrada de pele, estava melhor, mas apercebeu-se de que ele tremia de frio, e as pretensões da mãe e da irmã ainda a indignaram mais.

― Quando tivermos filhos, de certeza que vão nascer nas ilhas Virgens, na Jamaica ou em Barbados! ― retorquiu. ― E achas que a tua mãe vai enviar o castiçal de prata a tempo de ser exibida, conforme a posição social deles, a vela de batismo?! Ah, não, Simon, isso vai ser herdado pela família da maravilhosa Samantha, para que os Carring-ton não pensem mal de Lady Greenborough. E tu vives num buraco sem aquecimento e nem sequer te podes permitir comprar um casaco que passados três minutos não esteja ensopado. Já basta teres de pagar as dívidas do teu pai.

Também não se mostrava compreensiva com esta última ques-tão, pois os credores de Lorde Greenborough não eram em absoluto homens de honra, mas sim corretores de apostas e jogadores peri-gosos. Sem qualquer escrúpulo, Nora recomendou-lhe que adiasse o pagamento durante dois meses e que depois partissem para uma das colónias com o dinheiro poupado. Talvez os vigaristas tivessem uma certa influência em Inglaterra ― Nora estava convencida de que, no máximo, se limitava a Londres ―, mas de certeza que não chegava a Barbados ou à Virgínia. Porém, Simon encarava as dívidas de jogo como dívidas de honra, e um cavalheiro não descurava as obrigações pondo em risco o seu caráter e o da família. Não fazia comentários so-bre as observações que Nora costumava repetir quanto a essa questão.

― Em todo o caso, tens de falar agora com o meu pai ― decidiu a jovem, enquanto pegava no braço de Simon e o conduzia discreta-mente à sua carruagem. Chegara outra vez a pé para poupar a despesa de um coche.

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Peppers, o paciente cocheiro, aguentou-lhes a portinhola aberta.― Obrigada, Peppers! ― Nora nunca se esquecia de dirigir um

sorriso ao criado, motivo também pelo qual o pessoal doméstico con-tinuava a encobrir o seu amor secreto. ― O meu pai vai encontrar uma solução. E ele gosta de ti. Confia em ti. Isso vê-se porque te deixa controlar os carregamentos e todas essas coisas. Quem sabe, talvez esteja a dar voltas a alguma proposta. É urgente que peças agora for-malmente a minha mão. Ou, no inverno, mal nos poderemos ver.

Simon assentiu, dando-se por vencido. Ela tinha razão quanto à última questão, mas, ainda assim, o encontro com Reed provocava-lhe um medo aterrador. Se não corresse tão bem como Nora esperava, perderia não só a amada, mas também o emprego e um lugar res-guardado e quente no escritório. Não voltaria a encontrar um patrão que, em comparação, fosse tão bom: Thomas Reed não o admoestara quando, no início do mês, faltara dois dias. Simon tentava ignorar a sua persistente constipação, mas tivera tanta febre que quase não saíra da cama. Claro que se arrastara até ao escritório, mas Reed mandara-o de imediato para casa.

― Assim não nos é de grande utilidade, meu jovem, mal consegue segurar na pena e nem quero imaginar as contas que fará.

Simon valorizava essa generosidade. Reed podia tê-lo despedido e descontar-lhe o salário dos dois dias em que faltara. Não havia tantas diferenças entre a escravatura paga nas ilhas e um emprego normal em Londres. No entanto, agora intuía que Nora não se deixaria en-ganar por mais tempo. Ela tinha a certeza de que o pai aprovaria o compromisso.

― Na semana que vem, Simon! Neste sábado celebra-se o grande baile da União de Comerciantes e o meu pai está distraído com isso… e eu tenho de provar o vestido e discutir o penteado… E depois ainda temos o tal tipo de dança… quem precisa de La Bourgogne nas coló-nias?

Nora agia sempre assim, como se não estivesse interessada nos bailes e receções aos quais acompanhava o pai, já que Simon nunca era convidado, embora no fundo ficasse contente. Adorava os vestidos bonitos e praticava de bom grado as danças da moda. Mas negava-se a namoriscar com os jovens cujos nomes enchiam o seu carnet de baile. Nora Reed já escolhera e desejava ardentemente o dia em que Simon

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Greenborough pegasse nela entre os braços para dançar pela primeira vez um minueto. E, quem sabe, talvez daí a um ano dançassem os dois debaixo das palmeiras! Em Londres, falava-se das luxuosas festas celebradas nas residências dos proprietários das plantações de cana- -de-açúcar nas ilhas das Caraíbas.

― Mas a próxima semana será mais calma e teremos tempo para planear o compromisso: de certeza que o meu pai organiza uma festa! E tens de comprar roupa nova. Olha, quando conheceres as pessoas certas, também vais encontrar trabalho nas colónias. Ai, imagina, Simon! Assomar-te à janela e ver um sol radiante em vez da chuva a cair a cântaros!

Nora encostou-se ao amado e julgou que o coração dele batia com força em sinal de alegria. Era impossível que o pedido de casamento fosse um fracasso.

Nora desfrutou o baile da União de Comerciantes enquanto Simon, durante o seu domingo de folga, tentava curar a tosse que arrastava. Comprou tília e lenha suficiente para fazer chá e aquecer um pouco o quarto gelado. A resmungona senhoria, a senhora Paddington, fez um pérfido comentário a esse respeito.

― Com que então, milord, tornou-se rico de repente? Vamos lá ver se dentro de pouco tempo tenho de recorrer ao título para me dirigir a si!

Simon evitou responder-lhe que isso seria o mais correto, sen-do rico ou pobre. Na verdade, a senhora Paddington fazia-o sempre, embora na sua boca as palavras milord ou visconde soassem mais a in-sulto do que a título nobiliário. Era evidente que a mulher sentia uma extrema satisfação ao verificar que um membro da nobreza podia cair naquele imundo bairro que, após o incêndio de Londres, fora recons-truído com casas feias e baratas.

Simon arrastou a cama para o mais perto possível do lume e pas-sou o domingo debaixo de umas mantas ásperas e tesas. Isso não contribuiu muito para que melhorasse, já que havia algum tempo que não acendia a lareira, e sobretudo que não tirava a fuligem. A tiragem não funcionava e o rapaz teve de escolher entre o frio e o fumo. Escolheu o primeiro. A fumarada agravava a tosse e, pelo menos, o frio era grátis.

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Nora decidiu que na terça-feira seria o dia do compromisso oficial. Simon tinha de visitar o pai assim que terminasse o trabalho no es-critório. Thomas Reed já estaria confortavelmente instalado em casa, pois costumava sair antes dos escrivães, que com frequência concluíam as últimas tarefas à luz das velas.

O jovem adiou a partida o máximo possível. Queria evitar que Reed pensasse que logo nesse dia saía mais cedo do escritório ou que não cumpria as suas obrigações. Mas, no fim, o último empregado do escritório também queria sair depois de varrer, de afiar as penas e encher os tinteiros para o dia seguinte. O rapaz ainda tinha a respon-sabilidade de apagar as lareiras e as velas quando o último escrivão estivesse pronto. Simon já não podia fazê-lo esperar mais tempo fin-gindo desempenhar tarefas importantes.

Felizmente, não chovia e Simon pôde ir a pé até Mayfair. Caso contrário, apanhava um coche; nem sequer queria pensar em apresentar---se perante o futuro sogro todo molhado e com o peitilho enrugado. Investira o dinheiro poupado num ramo de flores digno desse nome, mas apesar disso ficou quase desanimado ao chegar à sumptuosa resi-dência situada no recém-inaugurado bairro de Mayfair. Reed mandara construir a casa senhorial poucos anos antes. A fachada estava dividi-da em três partes através de pilastras e o frontão triangular lembrava o de um templo romano. Por trás do edifício estendia-se um pequeno jardim. Tudo isso era muito mais luxuoso do que alguma vez fora Greenborough Manor.

Até nos tempos mais prósperos da sua família, Simon não teria sido um pretendente digno da mão da herdeira daquela família. Por fim, recuperou a serenidade e bateu à porta com a aldraba. Abriram quase de imediato. Uma jovem e graciosa rapariga vestida com um impecável uniforme de criada parecia estar à sua espera. Lançou-lhe um olhar cúmplice quando ele lhe disse o nome e lhe pediu para ver o dono da casa. Seria provavelmente uma «confidente» do pessoal ao qual Nora pusera ao corrente da sua história de amor.

― Vou comunicar a sua presença ao mordomo ― anunciou cordial-mente a pequena jovem ruiva. ― Se me permite guardar-lhe o casaco…

Simon deu por ele num hall elegantemente mobilado e à espera, desta vez, de outro empregado com uma categoria superior. Contudo, quem apareceu foi Nora.

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― Simon! ― Estava resplandecente. ― Que bom aspeto! Se não estivesses com essa cara de medo…

O rapaz tentou sorrir-lhe. Nora não falava a sério, tinha consciên-cia de que estava pálido e de que nas últimas semanas ainda perdera mais peso. No entanto, vestira-se de forma impecável. Cada vez cui-dava melhor das rendas e dos peitilhos das suas duas últimas camisas, pegara em agulha e linha para apertar o casaco e as calças e no dia anterior gastara um pence em sebo para devolver o lustre aos sapatos. Voltara a polvilhar o cabelo. Não poupara em pó de arroz e, com um pouco de boa vontade, até podia parecer que usava uma das perucas da moda.

― E tu estás maravilhosa ― disse, devolvendo-lhe o elogio, com toda a sinceridade.

Ela sorriu lisonjeada e alisou o tecido sobre a saia de balão. Para celebrar o dia, optara por um vestido de brocado dourado enfeitado com laços e fitas. Entrançara deliciosamente o cabelo e, como sempre, sem o polvilhar. Tinha as faces ruborizadas de emoção e de feliz almejo.

― Entra, o meu pai está de bom humor! E que flores tão boni-tas…! Mas não, talvez… seja melhor esperares primeiro que chegue o mordomo.

À última hora, Nora assustava-se com a própria ousadia. Apesar disso, não se privou de dar um breve beijo na face de Simon. Ambos coraram quando o mordomo apareceu à porta e com um pigarreio os alertou para a sua presença. Num abrir e fechar de olhos, a rapariga desapareceu. Simon seguiu devagar o digno mordomo, cujo uniforme parecia bem mais caro do que o traje de gala que com tanto esforço o pretendente conservava.

Thomas Reed refastelara-se na sala dos cavalheiros, um pouco surpreendido com facto de a sua filha lhe fazer companhia a bordar. Geralmente, ela não gostava daquela divisão e franzia sempre o nariz quando se apercebia do cheiro familiar a tabaco, couro velho e rum.

No entanto, naquela ocasião, Nora estava sentada em frente do pai e tentava concentrar-se na conversa, embora não fizesse mais do que levantar-se continuamente para ir buscar alguma coisa ou olhar ner-vosa pela janela. Quando o mordomo anunciou a visita do escrivão

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Simon Greenborough, ficou nervosa. Nora fez tenção de se levantar, como se supusesse que Thomas Reed ia receber o recém-chegado num salão mais solene. Contudo, o seu pai não viu razão para isso. Era evidente que não considerava aquela visita como de cortesia, mas sim profissional. Inclusivamente se o anúncio do mordomo sugeria alguma coisa diferente.

― Senhor Reed, o visconde Simon Greenborough deseja apresen-tar-lhe os seus cumprimentos.

Thomas Reed sorriu. Digno do jovem empregado: sempre cor-reto até cair no ridículo… A não ser ele, quem se apresentaria com todos os títulos para entregar uma carta ou um processo urgente? O escrivão assomou-se à divisão por trás do mordomo, hesitante mas direito, segurando um ramo de flores. Thomas achou-o atencioso mas exagerado.

― Senhor Reed… Miss Nora… ― Simon inclinou-se formalmente. ― Entre, Simon! ― convidou-o Thomas com um tom alegre. ― O

que o traz por aqui a estas horas tão tardias? O Morrisburg por fim respondeu? Entrega a mercadoria? Ou será que traz alguma notícia do tal barco que supostamente se perdeu?

Simon negou com a cabeça, desconcertado com as palavras do seu chefe. E agora, o que fazia com o ramo de flores?

― Que flores tão bonitas! ― interveio Nora, sorrindo-lhe, anima-da. ― São para mim?

Thomas Reed revirou os olhos. ― Isto é óbvio, minha filha, eu próprio acharia estranho que o se-

nhor Greenborough me trouxesse uma oferenda floral. De qualquer forma, não era necessário, Simon, afinal de contas, esta visita não é de cortesia e o senhor também não tem assim tanto…

O jovem corou quando o olhar do comerciante percorreu o seu casaco gasto.

― Pelo contrário ― replicou. ― Bem, trata-se de uma… ― Mas primeiro dê-me as flores ― disse Nora, sorridente. Simon precisou de algum tempo para se recompor. Naturalmente,

aquele era o seu primeiro pedido de casamento e improvisar não era o seu forte. O amado de Nora escrevia cartas maravilhosas, e quan-do estavam sozinhos ela desfrutava as suas lisonjas. Mas geralmente costumava achar Simon um pouco tímido, talvez algo normal para

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alguém submetido a tanta pressão como ele. A rapariga acariciou a fria mão do jovem ao pegar no ramo.

Thomas Reed ficou um pouco perplexo quando reparou nos seus olhares.

― Está bem, Nora ― afirmou. ― Agora se calhar é melhor ires colocar o ramo numa jarra. Nós vamos falar de assuntos sem dúvida aborrecidos e que são o motivo pelo qual o senhor Greenborough percorreu um caminho tão longo a esta hora.

Nora corou. ― Não, pai ― respondeu. ― Queria dizer… humm… eu não vou

achar nada aborrecido, porque, isto… ― Porque eu… ― O jovem não podia consentir de forma alguma

que a sua amada se antecipasse ao pedido. Thomas Reed franziu o sobrolho. ― O que se passa, Simon? Diga-me o que o traz aqui. E o que

tem para dizer que seja tão edificante para uma jovem como a Nora? Desde quando te interessam os barcos extraviados procedentes da Virgínia?

Os olhos de Nora reluziam. ― Desde sempre! Já sabes que me interessa tudo o que vem do

ultramar. As colónias, os barcos… Eu e o Simon… ― Tu e o Simon? ― perguntou Thomas Reed, perdendo a sua

cordialidade afável. Endireitou-se na poltrona. Simon respirou fundo, reprimindo um ataque de tosse. Precisava

de lho dizer naquele momento. Além disso, o pai de Nora também não tinha um aspeto assim tão ameaçador com o copo de rum ao lado, o charuto e o roupão de seda com o qual, como qualquer senhor da sua casa, costumava substituir o casaco e o colete após o dia de trabalho.

― Senhor Reed, eu… vim pedir-lhe a mão da sua filha. ― Estava dito.

Nora irradiava um resplendor sobrenatural, mas Thomas Reed fi-cou mudo. Simon supôs que devia quebrar esse silêncio incómodo e continuou a falar.

― Eu… sei que não sou um bom partido, mas… amo a sua filha com toda a minha alma e a Nora deu-me a entender que partilha os meus sentimentos. Não sou rico, mas farei tudo o que estiver ao meu

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alcance para lhe proporcionar um lar de acordo com a sua classe social, e…

O riso de Thomas Reed interrompeu o seu discurso. ― E como pensa fazê-lo? ― inquiriu. Simon fez um gesto compungido. ― Pensávamos nas colónias, pai! ― intrometeu-se Nora, sorrindo,

radiante, para o pai. Pensava que, de momento, as coisas não estavam a correr assim tão mal. ― Se o Simon encontrasse um emprego na Jamaica ou em Barbados, ou se talvez tu… Bem, pensávamos que talvez estivesses interessado em abrir uma sucursal em algum lugar, e então nós… Queremos os dois…

― Cala-te! ― ordenou o pai. ― É melhor ires guardar as flores, ou fazer outra coisa qualquer. De momento não preciso de ti aqui… Nora!

Pronunciou o nome com severidade quando viu que ela não fazia tenção de sair. A jovem deixou a sala de imediato, mas antes lançou um olhar de ânimo a Simon. Este não sabia se se devia sentir aliviado ou desesperado.

― Senhor… sei que é um pouco inesperado. E a Nora… a Nora imagina tudo mais simples do que é na realidade. Mas sou jovem, pos-so trabalhar… Podia ser contratado por alguma plantação…

― O senhor está sempre doente, Simon ― interrompeu-o Reed, com rispidez. ― O chefe de escritório já me aconselhou a despedi-lo porque não tem qualquer rendimento. E agora pretende ir para as ilhas espancar uns negros com o dobro do seu tamanho? Sem contar com o facto de que não permitirei que a minha filha seja esposa de um comerciante de escravos.

O escrivão pareceu ofendido. ― Sempre recuperei as horas que faltei, senhor ― defendeu-se.

― E… e o senhor… o senhor pode confiar em mim. Se me permitisse trabalhar no ultramar…

― Simon, não estou a ver a minha filha nas colónias. Isto não pas-sa de sonhos de crianças. Mas como se atrevem? Ela só tem dezassete anos. Tem todo o tempo do mundo para se apaixonar por um jovem da esfera comercial londrina… Quero ver os meus netos crescer, se-nhor Greenborough. E não ter dores de cabeça ao pensar se têm comida suficiente ou não.

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O jovem endireitou-se. ― Os membros da família Greenborough nunca passaram fome ―

replicou dignamente. Thomas Reed exalou uma profunda baforada de ar e deu um trago

no rum. ― Mas quase, Simon. E, quando o vejo, duvido de que tenha sufi-

ciente para pôr alguma coisa na boca. Em todo o caso, e se estou bem informado, o seu pai perdeu as terras e o título no jogo. E o senhor sobrevive a muito custo, por isso aprecio a sua dedicação e capacidade de resistência. Ouvi dizer que assumiu as dívidas do seu pai. Tem o meu respeito, jovem, outro já se teria posto a milhas. Mas estas não são as condições em que casarei a minha filha.

― Seria sempre uma Lady Greenborough ― opôs-se Simon. Thomas Reed esfregou as têmporas. ― Nem sequer isso, Simon, e o senhor sabe. Bem, ninguém lhe

negará o tratamento de visconde, mas se os filhos da Nora tiverem de herdar o título, então devia casá-la com um Codrington, não é verdade?

Simon baixou a cabeça. Claro, Thomas Reed tinha a função de mediador na compra e venda de condados e assentos parlamentares. Sabia o que acontecera aos Greenborough.

― Senhor Reed… amo a sua filha! ― Simon não se lembrou de outra coisa para dizer.

Thomas Reed fez um gesto de resignação. ― Eu percebo ― respondeu, lacónico. ― A Nora é uma rapariga

lindíssima, inteligente e muito digna de ser amada. Mas não é justifica-ção para um casamento que não considero apropriado.

― A Nora ama-me ― disse Simon com a voz embargada. Thomas lançou um olhar ao escrivão e tentou descobrir o que a

filha via nele: sem dúvida, um cavalheiro com excelentes modos. Ti-nha muito bom porte para quem gostava de rapazes magros e com ar espiritual. Simon possuía uns olhos castanhos de expressão doce que na penumbra da sala dos cavalheiros quase pareciam negros, as maçãs do rosto salientes e os lábios carnudos e bem desenhados. As mãos, delicadas e de dedos compridos, eram quase graciosas, e provavel-mente teria sido um bom ginete e bailarino. Era possível que Nora se tivesse apaixonado por ele e talvez ele até a fizesse feliz. Mas, raios, já

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não se tratava de comprar o brinquedo que a filha lhe estava a pedir. Nora já era quase adulta. Tinha de pensar no futuro.

― Isso vai mudar ― respondeu com firmeza ao seu escrivão. ― Lamento, Simon, mas não posso conceder-lhe o que me pede. E a Nora também não tem capacidade para lhe dar o seu consentimento, é demasiado jovem e imatura. Resta a questão de como agir a partir de agora. Não o quero despedir só porque ama a minha filha, mas sugiro-lhe que procure rapidamente outro emprego. De preferência num escritó-rio cujo diretor não tenha uma filha quase casadoura. Como é eviden-te, dar-lhe-ei excelentes referências. Não lhe desejo mal algum, Simon Greenborough, mas tem de assumir a sua categoria e a sua condição.

E, com um gesto da mão, indicou-lhe que saísse da sala. Para ele, era óbvio que a conversa terminara. O rapaz inclinou-se uma vez mais, como mandava o protocolo, mas não voltou a pronunciar uma palavra que fosse. Reed não parecia esperar que o fizesse. O jovem tinha a sensação de sair da sala aos tropeções. Felizmente, o mordomo veio ter com ele à porta, depois de Reed o chamar. Não encontraria o caminho sozinho.

Chovia quando Simon saiu para a rua, mas desta vez não reparou nisso. Percorreu as ruas de Mayfair como que em transe, atravessou a ponte do Tamisa e regressou a East End. Subiu cabisbaixo as escadas degradadas e que rangiam até ao quarto, não ouviu a voz insolente da senhora Paddington, que uma vez mais lhe pedia alguma coisa, e tentou que os seus sentidos não se apercebessem dessa constante mis-tura de cheiros a cozinha, casa de banho e roupa molhada que reinava sempre ali. No fim, chegou ofegante às águas-furtadas. À medida da sua categoria e condição…

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Thomas Reed não ficou muito preocupado com o facto de Simon Greenborough não aparecer para trabalhar no dia seguinte.

Estava disposto até a desculpá-lo. Bem, o seu pedido fora pretensio-so, mas era preciso reconhecer a sua origem nobre e a sua educação. Um aristocrata poderia ter alimentado a esperança de se casar com Nora. Embora ele preferisse um comerciante para genro, chegaria a certos compromissos se Nora desejasse tanto aquela união, como era evidente que ansiava pelo seu enlace com Simon. Jamais vira a filha tão furiosa como na noite em que lhe comunicou que recusara o pedi-do. Nora chorou, gritou e suplicou. Ele mal reconhecia a sua afável e, geralmente, tão obediente filha. Foi-lhe difícil não ceder aos desejos, mas estava convencido de que era a atitude correta. Ela também o reconheceria no futuro.

Quando Simon também não foi trabalhar no segundo dia, a postu-ra razoável de Thomas começou a evidenciar uma certa deceção. Sem dúvida, o jovem era orgulhoso, mas estava a passar dos limites. Era só o que lhe faltava os empregados amuarem! Já lhe bastava Nora! Desde o dia da visita, fechara-se nos seus aposentos e não falava com o pai. Thomas Reed acabou por confiar as penas a uma velha amiga que já o ajudara em questões de educação.

― Vá lá, não exagere! ― sorriu Lady MacDougal, uma nobre rural escocesa cujo marido possuía um assento no Parlamento, motivo pelo qual a família passava frequentes temporadas em Londres. ― Essas ra-parigas e os seus sonhos! Tudo isto vem da corte francesa. Faire l’amour como o sentido da vida! Embora a sua filha tenha demonstrado ter

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um certo estilo, o jovem não deixa de ser um lorde falido. No ano passado, a nossa Eileen quis casar-se com um estribeiro. Imagine, esse rapaz mal sabia ler e escrever. Mas acompanhou-a duas vezes num passeio a cavalo e ela ficou apaixonadíssima. Felizmente passou-lhe rápido… e vai acontecer o mesmo com a Nora. Só precisa de pensar noutras coisas. Tenho uma ideia! Vamos levá-la connosco a Balmoral, à temporada de caça, e vai participar numa ou noutra caçada. Com-pre-lhe um cavalo novo, de certeza que a fará feliz. E sobretudo que não falte a nenhum baile. Conhecerá mais jovens cavalheiros do que os que consegue contar com os dedos das duas mãos, todos ginetes intrépidos e bons dançarinos… O que não posso garantir-lhe são as suas economias. ― A dama riu-se. ― Mas com isso o affaire Greenbo-rough será sem dúvida esquecido.

Thomas Reed sentiu-se confiante. No fundo, a dama tinha razão: embora Nora não parecesse ter toda a noção da realidade, ainda não perdera totalmente a capacidade de discernir. Ao contrário de Eileen MacDougal, pelo menos demonstrara dignidade no seu amor secreto. Estava quase de bom humor quando chamou a filha para jantarem juntos e lhe contar os planos. A deceção dela surpreendeu-o.

― Não quero cavalos, pai, quero o Simon! Já não sou uma criança a quem se pode fazer desistir dos desejos comprando-lhe uma casa de bonecas!

Nora atirou o guardanapo para cima da mesa e afastou o prato.― Há três dias, sugeriste-me que comprasse um cargo nas colónias

para o teu eleito ― observou Reed, que ia ficando encolerizado com a crescente rebeldia de Nora. ― Antes era uma casa de bonecas, agora é uma casa colonial. Continuas fiel ao teu estilo exuberante e, tal como gostas, lá, os proprietários das plantações costumam pintar as casas às cores.

― Com o Simon, viveria até numa cabana! ― replicou Nora. De facto, entre os seus sonhos estava o de uma choupana coberta de fo-lhas de palmeira. ― E, aconteça o que acontecer, vou casar-me com ele! Não quero saber da tua opinião!

Thomas Reed suspirou e, como castigo, proibiu-a de sair de casa, nem queria pensar se a filha fugisse mesmo, embora também não estives-se muito preocupado com isso: de certeza que Simon Greenborough não tinha dinheiro para comprar um bilhete para as ilhas. E estava a cavar

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a própria sepultura. Outro dia de ausência sem justificação e Reed cederia às pressões do seu chefe de escritório e despediria o rapaz. Depois queria ver como se ia desenrascar!

Apesar de tudo, esperou quase mais uma semana até decidir de uma vez por todas enviar a carta de despedimento a Simon Green-borough. Também pediu ao secretário a quem confiara a tarefa de a redigir que acrescentasse uma nota sobre as referências. Caso o se-nhor Greenborough as quisesse, devia aparecer a qualquer hora no seu antigo local de trabalho. O senhor Simpson, o chefe de escritório, resmungou; mas dessa forma Thomas Reed apaziguava um certo peso na consciência. Fizera o possível pelo seu rebelde empregado.

A filha de Thomas Reed, no fundo, muito mais rebelde do que o pai julgava, não levara a sério a ordem de não sair de casa. Durante os primeiros dias, o pessoal doméstico vigiara-a seguindo as instruções paternas, mas quando depois de uma longa semana entrou à socapa nos estábulos para ver Peppers, ninguém fez qualquer comentário.

O cocheiro estava sentado numa banqueta na divisão das selas e dava lustro a um arreio com uma mistura de cera e óleo de pinho.

― Está bem ― observou Nora depois de o cumprimentar. ― Mas custa muito deixá-lo mesmo brilhante, não custa?

O cocheiro, um homem baixo e rechonchudo, de bom caráter e cara redonda, sorriu e olhou para Nora com os seus perspicazes olhos azul-claros.

― Bah, não se preocupe, menina ― respondeu, tranquilo. ― Não quer na realidade falar sobre como dar brilho aos arreios, pois não? O que se passa, Miss Nora? Outro encontro secreto? Acho que não posso ajudá-la mais, o seu pai veio pedir-me explicações. Mas neguei com toda a franqueza: ver, nunca vi nada ― piscou-lhe o olho ―, mas agora, que ele já sabe e desaprovou expressamente a relação, já não posso fazer mais nada, Miss Nora.

A rapariga assentiu.― Eu… eu só queria perguntar… Nunca mais soube nada do Simon!

― deixou escapar. ― Nem parece uma atitude dele. É um… um ca-valheiro. Mas desapareceu sem se despedir, e… e lembrei-me de lhe perguntar se não lhe terá deixado uma nota…

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Peppers abanou a cabeça.― Ah, não, menina. E aos outros também não. O senhor Reed

perguntou a mesma coisa, mas ninguém viu nem ouviu nada. Acredi-te, Miss Nora. Se algum de nós tivesse referido…

Nora esfregou o nariz tal como fazia sempre que pensava e estava confusa. Peppers achou que tinha uma imagem comovedoramente terna e desconcertada; parecia uma criança. Suspirou.

― Olhe, minha menina, acho que o melhor será esquecê-lo ― su-geriu paternalmente. Esses conselhos iam muito além das suas com-petências, mas… que diabos! Conhecia a rapariga desde que ela nas-cera. ― O rapaz foi-se embora, e com ele a boa educação. Andava só atrás do seu dinheiro, Miss Nora…

― Foi-se embora? ― Ela franziu o sobrolho. ― O que significa isso? O meu pai despediu-o?

Peppers abanou a cabeça.― Não. Que eu saiba, não. De qualquer forma, ouvi isto por alto.

Mas, pelos vistos, desde o dia em que visitou o seu pai não voltou a aparecer no escritório.

Os olhos de Nora abriram-se aterrorizados. Não ficava surpreen-dida com o facto de os criados saberem que Simon pedira a sua mão em casamento. Algo assim nunca se mantinha em segredo, era pro-vável que o mordomo tivesse ouvido a conversa e espalhado logo a novidade. Mas que dissessem que não ia ao escritório? Sem dúvida, o pai dela ferira o seu orgulho, mas a dignidade de Simon Greenbo-rough já tivera de encaixar muitos golpes. Era um cavalheiro e tinha responsabilidades. Além disso, Nora era incapaz de acreditar que se rendesse tão depressa. Ele não a amava menos do que ela a ele. Devia ter acontecido alguma coisa…

Endireitou-se e tomou uma decisão.― Pode levar-me ao escritório, por favor? ― pediu a Peppers.

― Tenho… tenho de averiguar uma coisa…O cocheiro olhou-a compassivo.― Minha filha, esqueça o assunto. Esse rapaz não a ama de verdade.Nora abanou a cabeça. ― Ah, não, Peppers! ― respondeu, imitando a pronúncia do Che-

apside de Peppers. ― Não penso baixar os braços tão rápido. E se o Simon já não me ama, vai ter de me dizer isso na cara!

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Peppers acabou por atrelar as correias. O patrão não o proibira de levar a filha ao escritório. E nesse dia Thomas Reed não estava lá. Dera início a uma viagem com um colega ao continente que os levaria a Amesterdão e a Lubeque. Peppers conduzira-o nessa manhã a casa do homem. Tinham de discutir alguns assuntos prévios e o barco só zarparia à tarde. O cocheiro achava que era pouco provável que Reed passasse antes pelo escritório. Era uma sorte para Miss Nora, pois, independentemente do que fosse ali fazer, não pensava falar com o pai.

― Não insista, menina, não lhe posso dizer onde vive o senhor Greenborough! ― O senhor Simpson, o pequeno e roliço chefe de escritório, comportava-se como se o pedido de Nora fosse uma ofen-sa pessoal. ― O seu pai não ia gostar. Além disso, essa pessoa já não trabalha connosco. Não pode ir vê-lo.

― Talvez só lhe queira escrever uma carta ― respondeu ela. ― Mas preciso da morada dele!

O empregado riu-se com desdém. ― Não há carteiro que resista a uma zona daquelas ― disse. ― E

agora, por favor, vá-se embora, Miss Nora. Tenho de continuar a tra-balhar e não está nas minhas mãos ajudá-la.

― Embora também se possa sentar no escritório do seu pai e esperar por ele ― ofereceu-lhe de forma serviçal George Wilson, um dos se-cretários mais jovens, ao vê-la tão abatida. ― Talvez ainda passe por aqui. Será com todo o prazer que lhe sirvo uma chávena de chá.

Nora ia recusar o convite, mas decidiu prolongar a visita. Talvez conseguisse saber algo mais sobre Simon.

― O meu pai despediu o senhor Greenborough? ― perguntou quando Wilson lhe levou o chá.

O jovem sorriu enquanto contemplava, enfeitiçado, como a de-licada jovem ocupava o amplo trono do pai, o cobria com a sua saia de balão e deslizava os seus atentos e verdes olhos pelos livros e pro-cessos do escritório. Será que era verdade que Simon Greenborough ousara pedir a mão de Nora Reed?

― Sim, infelizmente ― respondeu. ― Uma semana depois de não vir trabalhar. Isto não pode ser. Nós…

― Wilson? ― A voz do chefe de escritório pareceu ríspida. ― O que está o senhor a fazer aqui? Não me parece bem que ande por aqui

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outro a namoriscar a filha do patrão. Pedi-lhe que fosse para casa, Miss Reed. E o senhor, Wilson, entregue ao Bobby de uma vez por todas o documento de autorização que tem de levar aos Docks.

O homem olhou tanto para Nora como para o subordinado. Pare-cia sentir-se muito seguro do seu cargo, nem toda a gente teria ousado falar daquela forma à filha do patrão.

Wilson suspirou quando Simpson saiu do escritório deixando a porta aberta. Um claro sinal de que não lhe tirava a vista de cima.

― Bem, então, Miss Reed…Nora ia levantar-se quando de repente teve um laivo de inspiração. ― Senhor Wilson, entregaram o despedimento ao meu… humm…

ao senhor Greenborough por escrito?O secretário assentiu. ― Claro, menina, tem de se fazer tudo de forma correta. Também

recebeu o resto do salário. O senhor Reed é irrepreensível nesse aspe-to. Até se ofereceu para lhe escrever uma carta de recomendação. Fui eu que redigi a carta… Mas… já não me lembro da morada.

O homem corou, mas Nora não lhe ligou. Thomas Reed ditara uma carta, e Bobby, o pequeno moço de recados, entregara-lha. Agora sabia a quem se dirigir!

Despediu-se rápida e formalmente de Wilson, que pareceu alivia-do. Ficou sem dúvida mais calmo quando Nora abandonou o escritó-rio sem fazer mais perguntas sobre o despedimento.

À entrada do prédio, fora do alcance da vista do cocheiro, esperou por Bobby, um rapaz de treze anos, ruivo e magro que fazia de men-sageiro no escritório de Reed. O jovem sorriu quando ela o chamou; tinha o rosto, ainda infantil, cheio de sardas.

― Posso ajudá-la, Miss Reed?Nora assentiu.― Lembras-te do lugar aonde levaste a carta de despedimento? ― Era mesmo seu namorado, Miss Reed? ― perguntou Bobby,

com insolência, em vez de responder à pergunta. ― É o que dizem no escritório, embora esse desgraçado e uma princesa como a senhora…

Nora esforçou-se por fingir indignação. ― Não tens nada que ver com isso, Bobby! ― repreendeu-o. ― Além

do mais, devias ter mais cuidado! O senhor Greenborough não é apenas o senhor Greenborough, também é visconde. Um par, um lorde…

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Bobby franziu o nariz. ― Pois o castelo vai desmoronar-se dentro de pouco tempo ― tro-

çou. ― A sério, Miss Nora, o sítio aonde levei a carta é uma espelunca. Comparativamente, eu vivo numa mansão. E o bairro atrás da Torre de Londres… os talhos…

― Vou ver com os meus próprios olhos ― interrompeu-o Nora. ― Podes fazer-me o favor de me acompanhar até lá?

― Assim? Ah, não, menina, não pode ser, não é lugar para uma dama. O seu pai… De certeza que o seu pai me…

― O meu pai não tem motivos para ficar a saber ― respondeu Nora, tirando uma moeda do bolso.

Bobby olhou para o pence com cobiça. ― O cocheiro vai contar-lhe ― observou, sagaz, enquanto olhava

para Peppers com desdém.Nora refletiu durante um instante. O rapaz tinha razão. O velho

criado também não precisava de saber de nada. ― Podemos passar por algum lugar sem que o cocheiro nos veja? ―

perguntou. O rapaz soltou uma risada marota. Era evidente que o facto de

aquela senhora tão elegante lhe propor uma aventura o divertia. ― Como vamos fazer isso se ele não deixa de olhar para aqui? Se

der um passo à frente, vai vê-la. Mas espere!Bobby piscou-lhe um olho, dirigiu-se à carruagem e trocou umas

palavras com Peppers. Antes de regressar, o cocheiro já pusera os cavalos em movimento. A carruagem partia.

― Disse-lhe que a miss ia esperar pelo seu pai no escritório ― explicou-lhe Bobby, e puxou pela saia de Nora para que saísse do ves-tíbulo. ― Mas agora a senhora também tem de se ir embora ou alguém vai vê-la por aqui… e a mim também. Além de que temos de dar uma volta e de ser rápidos para que o Simpson não nos apanhe. Esse conta cada passo que dou desde o escritório até aos Docks e, ai de mim… e já vou com dois segundos de atraso.

Nora esperava que Peppers tivesse acreditado na desculpa: na ver-dade, o pai não pensara voltar ao escritório antes da viagem, mas, por outro lado, podia ter mudado de ideias e não competia ao cochei-ro indagar sobre o assunto. Tentou não se preocupar muito enquan-to seguia Bobby pela margem do Tamisa, primeiro passando pelos

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escritórios e grémios convencionais, recém-construídos ou antigos, e depois pelas ruelas do bairro pobre. Nora esqueceu-se do receio de que o cocheiro a estivesse a seguir discretamente. De facto, as ruas eram tão estreitas, tão sujas e cheias de gente que se tornava impossí-vel os cavalos passarem por ali. Já não se viam carruagens nem coches velozes, de vez em quando passavam velhas carroças de duas rodas puxadas por pilecas ou burros adoentados.

O cenário parecia cada vez mais inquietante. Simon contara a Nora que vivia num quarto muito barato em East End, mas aquelas barracas e casebres estreitos e de materiais de construção precários nos quais brincavam crianças descalças e sujas, enquanto umas figu-ras escuras pareciam espreitar em cada esquina… Nora deu graças aos céus pelo facto de Bobby estar com ela, pois o rapaz movia-se com toda a naturalidade. Aparentemente, ele próprio não vinha de um ambiente melhor. Em todo o caso, percorria as ruas tão depressa que Nora quase não conseguia segui-lo. A jovem sentia-se insegura e deslocada com o seu vestido de tarde, sóbrio mas de um tecido exce-lente, com saia de balão e mantilha. Ainda bem que não tinha o cabelo polvilhado. Pelos vistos, ali ninguém o fazia. As mulheres que transi-tavam pelas ruelas ou que ofereciam mercadorias aos gritos pareciam tão desalinhadas como os filhos.

― O… o Simon, bem, o senhor Greenborough disse porque não ia ao escritório? ― perguntou Nora, tentando estabelecer conversa com o guia. Bobby era o único que, depois daquela funesta terça-feira à tarde, conseguira falar com Simon.

O rapaz abanou a cabeça. ― Não disse grande coisa ― respondeu. ― Estava na cama e

doente, menina. E não era pouco, se quer saber a verdade. Tam-bém parecia não ter comido durante três dias. Mesmo assim quis-me dar um pence pelo serviço… e Deus sabe que eu não lhe levava boas notícias. Depois dei-o à mulher que mora por baixo para que lhe levasse alguma coisa para comer. Espero que aquela bruxa o tenha feito.

Nora foi invadida pelo medo e, ao mesmo tempo, por um senti-mento de ternura para com o rapaz.

― Foste muito atencioso, Bobby ― elogiou-o. O ruivo encolheu os ombros.

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― O pastor disse: «Dai e ser-vos-á dado.» Ou alguma coisa assim… A minha mãe não acredita nisso, mas… fiquei com pena do seu lorde. ― Sorriu, desculpando-se.

De seguida parou em frente de um prédio de pedra de dois andares, sem dúvida construído após o Grande Incêndio. Contudo, já perdera o brilho e parecia abandonado, apesar das poucas décadas decorridas.

― É aqui. Mas é melhor não entrar sozinha…Como qualquer cavalheiro, Bobby segurou a porta que dava para

um corredor escuro e pestilento que devia pertencer às divisões do rés do chão. Uma das portas conduzia a um compartimento que Nora achou uma amostra de sala. Havia uma lareira e umas poltronas ve-lhas, cadeiras e uma mesa, mas tinha tudo um aspeto sujo, cinzento e gasto, e ali parecia que ninguém queria arrumar fosse o que fosse. Viam-se retalhos e vestidos velhos por todo o lado.

― Faz negócio com isso ― explicou Bobby à surpreendida rapa-riga. ― Refiro-me à velha Paddington, a senhoria. Compra e vende vestidos usados e leva-os ao Cheapside no dia de mercado. E também aluga a casa… Não faço ideia de como conseguiu.

Nesse momento saía da casa uma voz insolente. Bobby ficou alarmado. ― Suba depressa, Miss Nora, para a bruxa não a ver! ― E puxou--

-a em direção a umas escadas de madeira que mal se podiam chamar assim de tão estreitas que eram.

― Já vos vi! ― resmungou a mulher atrás deles. ― O filho da Fanny Deary e uma jovem e elegante menina. A vida corre-te assim tão bem para já não cumprimentares os velhos amigos? E aonde queres ir?

― Não lhe ligue! ― sussurrou Bobby, abatido. ― A minha mãe não é amiga dela, comprou aqui uns vestidos quando o meu pai morreu… Visita para o senhor Greenborough, senhora Paddington! ― gritou lá de cima à mulher, que já se encontrava ao pé das escadas e olhava para eles com curiosidade.

A senhora Paddington não era muito velha, mas sim extremamen-te gorda e corada. O seu cabelo caía desgrenhado e os olhos brilha-vam-lhe vítreos e desconfiados. Nora julgou reconhecer então de que era o fedor proveniente daquela casa: gin ou outra aguardente barata.

Os quartos do primeiro andar pareciam habitados, pois ouviam---se vozes atrás das portas fechadas. Contudo, Bobby subiu por umas

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escadas ainda mais estreitas e inseguras A cada passo, Nora temia que os degraus de madeira apodrecidos e rangentes cedessem. Lá em cima só havia uma porta, diminuta e, à primeira vista, feita de madeira velha. Dava a sensação de ter sobrevivido a mais de um incêndio.

Bobby bateu à porta com os nós dos dedos e o coração de Nora palpitou com tanta força que ela pensou que o seu som apagaria as pequenas pancadas que o rapaz dava.

Não veio resposta. Teria Simon saído? Dececionada, Nora pensou em ir-se embora; no entanto, o seu jovem companheiro decidiu entrar sem pedir licença.

― Senhor Greenborough? Sou eu de novo. Mas desta vez trago melhores notícias!

A voz do rapaz soou alegre e otimista. Nora entrou no quarto e a surpresa do que viu deixou-a sem fôlego.

As águas-furtadas situavam-se mesmo por baixo do telhado do prédio, sem uma única parede direita, e dois baldes distribuídos alea-toriamente permitiam deduzir que havia goteiras. Era evidente que no verão seria insuportável e no inverno estaria gelada, além de escura. À primeira vista, Nora não distinguia nada. A lareira estava apagada. Só quando os seus olhos se acostumaram à penumbra é que viu o austero mobiliário: uma mesa e uma cadeira, sobre a qual Simon dei-xara desarrumada a roupa utilizada naquela terça-feira à tarde. Não era algo comum nele. Num gancho pregado desajeitadamente na parede estava pendurada a sua segunda camisa, engomada com cuidado, e o ferro encontrava-se em cima da mesa. Nora recordou com vergonha o dia em que lhe confessara que era ele quem cuidava da sua roupa. Fizera troça do jovem dizendo que desempenhava as tarefas de uma lavadeira e de uma engomadeira e suspeitara de que talvez o seu ama-do fosse um pouco tacanho. No entanto, agora contemplava a dura realidade de Simon e, por fim, também o amado no modesto catre que, por razões incompreensíveis, se encontrava quase colado à lareira apagada. Há algum tempo que não se acendia ali lume. E Simon jazia encolhido debaixo das finas mantas, tentando conservar o parco calor que estas lhe proporcionavam.

Nora correu até ele e voltou a sobressaltar-se quando reparou no seu rosto abatido e com aspeto de ter febre.

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― Simon! Porque não disseste a ninguém que estás doente? Por-que não me disseste? Meu Deus, precisas de um médico!

Ele abriu os olhos, vermelhos e vítreos devido à febre, mas estes iluminaram-se quando viu a rapariga.

― Nora, és… és mesmo tu, ou é um sonho? Ela sorriu e tentou evitar ficar com os olhos marejados. Era uma

situação terrível. Muito pior do que imaginara.― Não, sou mesmo eu! ― respondeu, decidida, enquanto lhe aca-

riciava o cabelo. Estava húmido pelo suor, embora o jovem tremesse de frio. ― E venho cuidar de ti. Já devia ter feito isto há mais tempo… Por amor de Deus, Simon, estás a tremer…

― Está frio… Só envergava uma camisa, a que usava no dia da visita ao pai de

Nora. Naquela tarde, deitara-se na cama ensopado, humilhado e aba-tido, e de manhã acordara com febre. Conseguira tirar o casaco e as calças e voltara a meter-se na cama, a tossir. Não sabia como ultrapas-sara os primeiros dias, antes de Bobby chegar com a carta de despedi-mento. Julgava recordar vagamente que a filha da senhoria lhe levara comida algumas vezes. Desde que Bobby estivera ali, aquela rapari-guinha aparecia todos os dias no quarto. Como é evidente, sabia que Simon jazia doente na cama, a senhora Paddington controlava os mo-vimentos da filha. Consequentemente, a pequena e compassiva Joan levava-lhe às vezes, às escondidas, alguma sopa ou uma côdea de pão.

Nora tirou a mantilha e agasalhou Simon com ela. ― Temos de acender esta lareira! ― decidiu, surpreendida consigo

própria. Nos romances que lia, as protagonistas, perante tais circuns-tâncias, abraçavam primeiro o amado, que garantia que só com o amor se conseguia curar rapidamente. Mas para Nora a aventura fora entrar nas águas-furtadas. Agora enfrentava a realidade, e Simon precisava de menos beijos e carícias e de mais mantas, comida quente, uma lareira acesa e um médico.

― Podes ir buscar lenha a algum sítio, Bobby? Simon abanou a cabeça.― Deita muito fumo… ― murmurou. ― Deita muito fumo e fuli-

gem… Não aquece… ― acrescentou, a tossir. Nora olhou para Bobby procurando ajuda.― O que fazemos? ― perguntou.

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O rapaz encolheu os ombros. ― Chamar um limpa-chaminés ― respondeu, lacónico. ― Posso

ir buscar um. Mas… ― fez um gesto querendo dizer que isso custava dinheiro.

Nora deu-lhe algumas moedas. ― Isso chega? ― inquiriu, insegura. Bobby revirou os olhos. ― Para o chamar três vezes, menina… E também para algumas

coisas mais. Deixe tudo por minha conta… Agora tenho de ir. O senhor Simpson está à minha espera.

O rapaz foi-se embora, mas Nora ouviu-o a trocar algumas pala-vras com a senhora Paddington. Ela respondia, insolente, que aquilo não era um hotel e que ela não era uma criada. Então, a discussão terminou e Nora ficou sozinha com Simon. Não tendo nada para fa-zer, ajoelhou-se ao pé do catre. Recordou-se vagamente do que sabia sobre o cuidado de doentes. Não era muito, só se lembrava de quando ela própria se sentira indisposta. Se Nora ficava constipada ou sofria uma indigestão, a governanta envolvia-lhe a barriga das pernas em panos quentes e preparava chás. Ali nem sequer havia uma panela, e também não se via nenhum fogão. Rodeou Simon com o braço. Se o ajudasse a levantar-se, podia sacudir a almofada, se é que era possível chamar almofada àquela coisa endurecida.

Simon procurou o seu olhar. ― Lamento… ― murmurou. Nora mudou de ideias e apoiou a cabeça do jovem sobre o seu

peito. ― Não tens de pedir desculpa, meu amor… ― sussurrou. ― Não

podes remediar o facto de estares doente. E agora… agora já estou contigo.

Simon ficou inquieto. Tinha de tossir e queria afastar-se dela. ― Não podes ficar aqui, Nora. Nem sequer devias estar aqui,

tens de… Nesse momento a porta abriu-se e uma rapariguinha magra e de

cabelo escuro espreitou pela fenda. Trazia um jarro que cheirava a cal-do amargo. Nora julgou que era sopa de cerveja quente à qual talvez tivessem acrescentado alguma erva. Fez uma careta, mas o recipiente fumegava e, pelo menos, proporcionaria algum calor ao doente.

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A pequena fez uma reverência insegura perante uma visita tão distinta. ― Foi a minha mãe que mandou ― anunciou em voz baixa. ― O

rapaz dos Deary pagou-o. E ainda podem repetir, mas a minha mãe diz que custa outro pence… ― A menina manteve a cabeça baixa. Dir--se-ia que tinha vergonha da avareza da mãe.

Nora foi buscar a mala, mas mudou depressa de opinião. Era filha de um comerciante! E embora se tratasse apenas de algumas moedas, não ia permitir que a senhora Paddington tivesse o descaramento de a enganar.

― Diz à tua mãe que o Bobby já pagou pela comida ― avisou com a máxima firmeza possível. ― Mas se quer outro pence tem de me tra-zer mais duas mantas, das mais quentes, não duas esfarrapadas como estas. ― Apontou para os tecidos desfiados com que Simon se aquecia a grande custo. ― Ah, e uma almofada também.

A rapariga assentiu, deixou o jarro na mesa e desceu as escadas. Antes de sair, Joan lançou um olhar fascinado a Nora, que respirou aliviada quando a porta se fechou atrás da jovem.

― A Joan é boa rapariga ― disse Simon em voz baixa, como se quisesse chamar Nora à atenção pelas duras palavras.

Ela encolheu os ombros. ― E a mãe é uma bruxa! ― replicou. ― Mas eu qualquer dia dou-

-lhe o que ela merece…O rapaz sorriu levemente. ― É o príncipe quem deve aniquilar a bruxa… ― lembrou-lhe

carinhosamente. Ela suspirou. ― Amanhã, meu amor, amanhã vais cortar a cabeça àquele mons-

tro, mas primeiro tens de curar essa tosse. E não vais conseguir se não venceres o frio e a humidade, ou se aquela bruxa te matar à fome. Agora bebe…

Nora procurou uma chávena ou um copo e encontrou uma tigela lascada. Deitou um pouco de sopa de cerveja e entregou-a a Simon, mas ele tremia demasiado para poder segurá-la. Nora ajudou-o a comê---la e pôs as mãos dele à volta do recipiente para as aquecer.

― Também devíamos ter pedido rum… ― murmurou a jovem. Simon bebeu com vontade e de seguida pareceu sentir-se melhor. ― Não podes ficar aqui ― insistiu.

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Nora apertou os lábios como uma menina travessa. Depois sorriu. ― Tenta proibir-mo ― disse. Simon endireitou-se com esforço. ― Nora, não devias estar sozinha com um homem numa casa.

Isto… isto vai arruinar a tua reputação… Isto… ― Afundou-se de novo na cama.

― Não estou nada preocupada. Pelo contrário, até vem mesmo a calhar. O meu pai está em viagem. E, quando regressar, meia cidade já saberá que a Nora Reed fugiu com o amado. Então terá a possibilida-de de me expulsar de casa ou de me preparar um casamento. Acredita em mim, vai escolher a segunda opção…

Simon abanou a cabeça. ― Já te enganaste uma vez ― lembrou-lhe em voz baixa. ― Nora,

se imaginasses tudo o que me disse… Nunca dará o seu consentimen-to, nunca… e tem razão… ― A jovem quis abraçá-lo mais uma vez, mas ele afastou-se. Esse pequeno esforço provocou-lhe tosse. ― Tem toda a razão, Nora, eu nunca te vou oferecer uma vida digna da tua posição social. E agora… Minha querida, isto não é uma pequena constipação, dura há demasiado tempo. Isto é…

Simon não pronunciou a palavra, mas Nora também reconhecia os sintomas da tísica. Até nos melhores círculos morria gente com essa terrível doença. E ali, nas estreitas ruas de East End, a epidemia era omnipresente.

A jovem abanou a cabeça.― Vais curar-te quando estivermos no Sul ― disse, convencida. ― Não

fomos feitos para este frio, para esta humidade… Mas tens de ter coragem, querido! Espera até eu preparar a lareira e termos velas… Velas, é isso, precisamos de luz. Faremos deste quarto um lugar con-fortável e eu contar-te-ei coisas sobre a ilha Cooper. Lady Wentworth descreveu-ma detalhadamente. E ainda não te revelei tudo o que está relatado no livro que ela me emprestou. Sobre Barbados, a selva e a praia… mas também há uma cidade como deve ser. Chama-se…

Simon deu-se por vencido, já que nem sequer teve tempo de pro-testar, pois Joan apareceu com uma bacia de água quente. De repente ouviram barulho no telhado.

― O limpa-chaminés já chegou ― informou a menina. ― A minha mãe está à procura de roupa de cama. E a protestar porque tem de ir

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buscar a dela, e quer algumas moedas para a trazer limpa. Pensei que talvez o senhor se quisesse lavar…

A pequena comoveu Nora. Joan era uma menina bondosa e estava de facto preocupada com Simon. Ter-se-ia apaixonado por ele? Mas Nora achou-a demasiado jovem.

Contudo, em East End qualquer pessoa crescia depressa. Nora assustou-se quando, de repente, algo redondo e negro cheio de fu-ligem desceu pela tiragem da chaminé e caiu sobre a fria lareira. De início pensou num duende… ou no Pai Natal, para o qual se pen-duravam meias nas lareiras na noite de Natal. Mas depois essa coisa diminuta revelou a sua autêntica natureza: era um menino de cerca de cinco anos a agitar uma escova.

― E fá-lo bem, Tom, pois não quero voltar a ouvir nenhuma queixa!A voz de um homem ecoou desde cima. Aparentemente era o

limpa-chaminés, que descera o pequeno por uma corda para que fizes-se o seu trabalho. A tiragem era estreita e um adulto ou uma criança um pouco mais velha não conseguia descer por ela.

Nora olhou horrorizada para o menino que batia com força na fuligem das paredes da chaminé. Não parecia estar bem alimentado e tossia. Nora quis-lhe transmitir algumas palavras de consolo, mas não lhe passava nada pela cabeça. Será que lhe devia dar um pence? Mas, de acordo com Bobby, esse era o pagamento por todo o trabalho. E de certeza que o homem tiraria o dinheiro ao menino. Em casa tinha rebuçados, mas ali…

Antes de reagir, o limpa-chaminés já tinha subido o aprendiz, que, pendurado na tiragem, continuou a limpar as paredes. Pouco tempo depois, o homem gritou desde cima.

― Já está pronto! Quando sairmos podem acender o lume. Para isso faltava, naturalmente, lenha; mas Nora confiava em Bobby.

E em primeiro lugar tinha de ajudar Simon a lavar-se. Este insistiu em que ela se virasse de costas. Apesar da sua debilidade, endireitou-se e Nora ficou com o coração nas mãos quando voltou a ouvi-lo tossir. Depois de se refrescar, parecia mais esgotado do que reconfortado.

Nora procurou uma camisa de noite. Isso deixou-a um pouco per-turbada, já que nunca vira o pai com essa peça de roupa. Porém, não havia tempo para ter vergonha e, de qualquer forma, quando se casasse com Simon, partilhariam a mesma cama. Nora tinha umas ideias

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bastante precisas sobre o que a esperaria nessa altura. E, afinal de con-tas, as raparigas da alta sociedade passavam a vida a falar sobre isso. Na corte do Rei-Sol, faire l’amour era considerado uma espécie de jogo de sociedade, e agora essa questão começava a chegar lentamente a Inglaterra. A nobreza rural estava um pouco indignada com a falta de vergonha dos franceses, mas as pessoas jovens comentavam, corando, os excessos do país que ficava do outro lado do canal. Nora não tinha medo da noite de núpcias com Simon, até então sempre desfrutara deitando-se ao seu lado no parque. Recordou com nostalgia o passeio de barco que tinham dado juntos. Naquela altura, até se atrevera a deslizar a mão por baixo da camisa dele e a acariciar-lhe o peito nu. Não havia razão para não voltar a fazê-lo.

Enquanto olhava de novo para os escassos pertences de Simon, Joan chegou com a roupa de cama limpa, de facto trazia edredões de penas. Quanto aos lençóis… Nora não sabia se rir ou se chorar. De qualquer forma, tinha de os lavar. No dia seguinte, sem falta, quan-do… Meu Deus, ia precisar de uma bacia e de panelas para ferver a água e de todas essas coisas que nunca utilizara sozinha! A palavra enxoval adquiriu de repente um significado novo; até àquele momento só pensara em faqueiros de prata, pratos de porcelana, móveis delica-dos e jogos de toalhas.

Simon deixou que o ajudasse a vestir a camisa de noite limpa. Os novos edredões e outra tigela de sopa de cerveja reconfortaram-no tanto que deixou de tremer. Nora sentou-se ao seu lado, acariciou- -lhe a testa e esfregou-lhe as têmporas, e quando começou a falar de Barbados ele já dormia. O frio não o deixara dormir durante muito tempo.

Nora pensou em que lugar do pequeno quarto se podia instalar. Mas primeiro comeu um pouco da panela que Joan levara e de seguida apareceu Bobby com um enorme cesto carregado de lenha.

― Que grande confusão se armou no escritório, menina, o co-cheiro perguntou por si. Anda à sua procura ― explicou o rapaz en-quanto acendia a lareira. Nora observava-o com atenção. Ela nunca o fizera, mas tinha de aprender. ― Eu não disse nada, mas acho que suspeitam de alguma coisa. ― Com um movimento das suas expres-sivas mãos abrangeu as águas-furtadas. ― Acho que querem avisar o seu pai…

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Nora assentiu. Tudo bem, o pai encontrava-se naquele momento a navegar e, no máximo, a carta chegaria a Amesterdão no barco seguin-te. De qualquer forma, julgava que Peppers seria capaz de descobrir a morada de Simon. Apareceria por ali e levá-la-ia para casa? Sem ordens expressas do patrão? Nora não tinha a certeza absoluta dis-so. O cocheiro adorava-a, mas era um fiel servidor de Thomas Reed. Provavelmente tudo dependeria de como avaliasse a situação: se ele também considerasse que o seu amor por Simon não era mais do que um sonho infantil, então obrigá-la-ia a separar-se do amado.

No entanto, nessa noite não aconteceu nada. Será que Peppers ainda não descobrira a morada? O senhor Simpson costumava ir cedo para casa e talvez o senhor Wilson não tivesse traído Nora. Mas era possível que o velho cocheiro ainda estivesse indeciso. Nora agasa-lhou-se com o seu casaco em frente das acolhedoras chamas da lareira e pensou que se podia sentir satisfeita com tudo o que conseguira naquela tarde.

Ainda assim, não desfrutou o descanso durante muito tempo. Simon tossia e respirava com dificuldade, e depois assustou-se muito quando algo diminuto correu de um lado para o outro pelas suas per-nas nuas. Ratos! Ou talvez ratazanas. Teria de pôr veneno ou de arran-jar um gato. Esta última opção era-lhe mais simpática, mas já estava preocupada com o animal antes de o ter. Eram poucos os bocados de carne que encontrara na panela.

E depois, quando a noite avançou, começou a preocupar-se com o dinheiro. Em East End as coisas eram baratas, mas resolver os assuntos urgentes e fazer as compras básicas levavam um pence atrás de outro. A sua carteira ficaria rapidamente vazia. Horrorizou-se só de pensar nisso, embora se tenha lembrado de que existiam prestamistas. A primeira coisa que empenharia seria a saia de balão. As mulheres de East End faziam bem em não a usar. Essas volumosas saias impediam qualquer tarefa física. E com o dinheiro que ganhasse pagaria a um médico. Isso era o mais importante. Simon precisava de um médico.