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Quinta da Regaleira por José Rodrigues dos Santos em "O Codex"632

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Quinta da Regaleira por José Rodrigues dos Santos em “O Codex 632”

O palácio erguia-se por cima do nevoeiro, como se estivesse suspenso sobre as nuvens,

pairando melancolicamente na sombria encosta da serra de Sintra. A fachada de pedra ançã

clara, repleta de esfinges, figuras aladas e estranhos animais assombrosos, todos inscritos em

nós manuelinos ou envoltos em folhas de acanto, fazia lembrar um monumento quinhentista em

toda a sua magnificência de gótico manuelino, mas aqui com um toque tenebroso, sinistro até, de

fortaleza maldita, um monstro maciço a espreitar por entre os fumos pardacentos da neblina.

Flutuando sobre os flocos cerrados de vapor que se colavam ao verde do monte, o palacete

resplandecia sob o cinzento da luz refractada da tarde brumosa, parecia um castelo fantástico,

uma mansão assombrada, um solar misterioso com o seu rendilhado de coruchéus, pináculos,

mertões, torres e torreões, um lugar irreal e perdido no tempo.

De olhos fixos no palacete pendente sobre o nevoeiro, Tomás ainda não tinha decidido o que

pensar sobre aquele enigmático lugar. Havia momentos em que a Quinta da Regaleira lhe parecia

um local belo, transcendente, sublime; mas, sob o manto toldado das brumas, a beleza que

irradiava daquele espaço místico transformava-se em algo assustador, lúgubre, um abrigo de

sombras e um labirinto de trevas. Sentiu um calafrio percorrer-lhe o corpo e consultou o relógio.

Eram três e cinco da tarde, Moliarti já estava atrasado. A quinta encontrava-se deserta, era dia de

semana e Março ia a meio, decididamente naquela altura do ano e da semana não podia esperar

que houvesse visitantes a deambularem pela quinta. Desejou ardentemente que o americano se

despachasse, não lhe apetecia permanecer muito mais tempo sozinho naquele sítio que noutros

momentos lhe parecia prazenteiro e que agora se lhe afigurava tão aterrador.

Sentado num banco diante do jardim, junto à loggia central que ligava a quinta à rua, arrancou

os olhos do palácio sinistro e mirou por instantes a estátua à sua frente. Era Hermes, o

mensageiro do Olimpo, o deus da eloquência e da arte de bem falar, mas também a divindade

capciosa e sem escrúpulos que levava para o inferno as almas dos mortos, o nome que fundou o

hermetismo, o símbolo dos domínios do inacessível. Tomás olhou em redor e pensou que aquele

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era, sem dúvida, um dos deuses mais apropriados para vigiarem a Quinta da Regaleira, o sítio de

Hermes, o local onde as próprias pedras guardavam segredos, onde até o ar se fechava em

enigmas.

"Hi Tom", saudou Moliarti, a cabeça emergindo gradualmente das escadas do jardim. "Me

desculpe o atraso, mas tive dificuldade em achar esse sítio."

Tomás ergueu-se do banco e cumprimentou o recém-chegado, aliviado por ter, enfim,

companhia.

"Não faz mal. Aproveitei para admirar a paisagem e aspirar este ar puro da serra."

O americano olhou em redor.

"Que lugar é esse? Me dá os... creeps. Como se diz em português?"

"Arrepios."

"Isso. Me dá os arrepios."

"Aqui a Quinta da Regaleira é, talvez, o local mais esotérico de Portugal."

"Really?", admirou-se Moliarti, olhando para o palacete deserto. "Porquê?"

"Na viragem do século xix para o século XX, ainda no tempo da monarquia, esta propriedade

foi adquirida por um homem chamado Carvalho Monteiro. Ele era conhecido pelo Monteiro dos

Milhões porque, com os seus negócios no Brasil, era uma das pessoas mais ricas do país.

Carvalho Monteiro era também um dos homens mais cultos do seu tempo e decidiu transformar a

quinta num lugar esotérico, alquímico, o sítio onde poderia fundar um fantástico projecto de

ressuscitar a grandeza de Portugal com base na tradição mítica nacionalista e na gesta dos

Descobrimentos, indo às raízes das fundações do Quinto Império." Apontou para o palacete, à

direita, que espreitava por entre a névoa, taciturno, altivo, quase ameaçador. "Olhe para esta

arquitectura. O que lhe faz lembrar?"

Moliarti estudou a estrutura argêntea e rendilhada da mansão.

"Hmm", murmurou. "Talvez a Torre de Belém..."

"Precisamente. Estilo neomanuelino. Sabe, a quinta foi construída numa época de revivalismo,

de recuperação de valores antigos. Por toda a Europa imperava então o neogótico. Ora, o gótico

português era o manuelino, pelo que o neogótico só podia ser o neomanuelino. Mas este lugar foi

mais longe e procurou recuperar também as fundações dos Descobrimentos. Encontramos, por

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isso, múltiplas referências à Ordem Militar de Cristo, que em Portugal sucedeu à Ordem dos

Templários e foi fundamental na expansão marítima. Os símbolos mágicos por aqui espalhados,

segundo uma fórmula alquímica, emergem do cristianismo templário e da tradição clássica

renascentista, com raízes profundas em Roma, na Grécia, no Egipto." Fez um gesto largo para a

esquerda. "Está a ver essas estátuas?"

O americano contemplou a fila de silenciosas figuras esculpidas em pedra ançã, assentes em

estruturas que bordejavam um jardim geométrico francês, cheio de rectas e ângulos.

"Sim."

"Apresento-lhe Hermes, o deus que deu origem à palavra hermetismo", disse, apontando para

a estátua mais próxima. Foi depois afastando o dedo cada vez mais para a esquerda, à medida

que nomeava cada uma das estátuas. "Este é Vulcano, o filho disforme de Júpiter e Juno, aquele

é Dioniso, o outro é o deus Pã, um sátiro habitualmente representado com pés de bode e cornos

na cabeçjt, como se fosse o diabo, aqui felizmente mais humanizado. Depois estão Deméter,

Perséfone, Vénus, Afrodite, Orfeu e, lá ao fundo, em último lugar, Fortuna. Todos eles são

guardiães dos segredos esotéricos deste lugar, sentinelas vigilantes que protegem os mistérios

encerrados aqui na Quinta da Regaleira." Fez um gesto. "Vamos andando?"

Começaram os dois a percorrer o caminho diante das estátuas, em direcção à loggia do fundo

do jardim.

Passaram diante de Orfeu e Fortuna e, já junto ao alpendre rendilhado da loggia, viraram à

direita e escalaram o declive. O jardim geométrico deu lugar a um jardim romântico, onde se

misturavam a relva, as pedras, os arbustos, as árvores, numa integração contínua, harmoniosa.

Viam-se magnólias, camélias, fetos arbóreos, palmeiras, sequóias, plantas exóticas trazidas de

todo o mundo. Por entre a verdura viçosa emergiu um lago estranho, a superfície coberta por um

denso manto verde-esmeralda, parecia uma sopa de musgo que dois patos, entretidos com

melancólicos grasnares, rasgavam enquanto deslizavam pela superfície, abrindo sulcos escuros

que logo se fechavam atrás de si, selados pela espessa cobertura vegetal.

"O Lago da SSudade", anunciou Tomás. Apontou para uns enormes arcos escuros contíguos

ao lago e por baixo da terra, pareciam as cavidades sombrias de uma caveira, com fios de heras

e fetos pendentes do alto. "A Gruta dos Cátaros, por onde o lago se estende."

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"Assombroso", comentou Moliarti.

(…)

Percorreram o caminho que bordejava o lago, rodeado de pedras esverdeadas de musgo.

Cruzaram uma pequena ponte arqueada sobre as águas, tapada por uma magnólia gigante, e

depararam com uma casota coberta de quartzo e outras pedrinhas embuchadas na parede. Ao

centro, uma concha gigante sustentava um caldo de água límpida.

"Esta é a Fonte Egípcia", disse Tomás, apontando para a concha invertida, como se fosse uma

bacia. "Está a ver estes desenhos?" Indicou dois pássaros pintados na parede pelas pedras

embuchadas. "São íbis. Na mitologia egípcia, o íbis personifica Thot, o deus da palavra criadora e

do saber oculto, aquele que deu origem aos hieróglifos. Sabe qual o nome de Thot no Olimpo

grego?"

Moliarti abanou a cabeça.

"Não faço ideia."

"Hermes. Da associação entre Thot e Hermes nasceram os misteriosos tratados esotéricos e

alquímicos de Hermes Trismegisto." Apontou para o bico do íbis da esquerda, que parecia

segurar uma minhoca gigante. "Este íbis tem no bico uma serpente, o símbolo da gnose, o

conhecimento." Esboçou um gesto largo. "Estou a mostrar-lhe isto para lhe explicar que aqui nada

foi colocado por acaso. Tudo encerra um significado, uma intenção, uma mensagem oculta, um

enigma que remonta aos primórdios da civilização."

"Mas o íbis não tem nada a ver com os Descobrimentos."

"Tudo, meu caro Nelson, tem aqui a ver com os Descobrimentos. O íbis representa, como lhe

disse, o conhecimento oculto. No Livro de Job, onde esta ave interpreta o poder da previsão,

pergunta-se: «Quem deu ao íbis a sabedoria?» Ora, o que era, afinal, o mundo dos séculos xv e

xvi senão um lugar oculto, um oráculo prestes a ser lido, um mistério por desvendar?" Mirou as

paredes do palacete, flutuando na bruma, lá ao fundo. "Os Descobrimentos estão relacionados

com os templários que encontraram refúgio em Portugal para as perseguições decretadas em

França e aprovadas pelo papa. Na verdade, os templários trouxeram para Portugal o saber

necessário para a grande aventura marítima dos séculos xv e xvi. É por isso que existe uma

cultura mística em torno dos Descobrimentos, um misticismo com raízes na idade clássica e na

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ideia do renascimento do homem." Ergueu quatro dedos. "Há quatro textos que são fundamentais

para ler a arquitectura deste lugar de mistério. A Eneida, de Virgílio. O seu correspondente

português, Os Lusíadas, de Luís de Camões. A Divina Comédia, de Dante Alighieri. E um texto

esotérico da Renascença, igualmente pleno de enigmas e alegorias, chamado Hypnerotomachia

Poliphili, de Francesco Colonna. Todos eles foram, de uma maneira ou de outra, eternizados nas

pedras da Quinta da Regaleira."

"I see."

O professor português indicou um banco diante do lago e ao lado da Fonte Egípcia.

"Vamos sentar-nos?"

"Sim."

Aproximaram-se do banco esculpido em mármore de lioz, com dois galgos instalados nas

pontas em posição de vigília, e uma estátua feminina ao centro, com um facho nas mãos.

"Este é o banco do 515", explicou Tomás, estacando diante da estrutura. "Sabe o que é o

515?"

"Não."

"É um código da Divina Comédia, de Dante. O 515 é o número que corresponde ao

mensageiro de Deus que virá vingar o fim dos templários e anunciar a terceira idade da

cristandade, a Idade do Espírito Santo, que trará a paz universal à Terra." Citou de memória. "«No

qual um quinhentos dez cinco, mensageiro de Deus, matar vai a barregã com o gigante que com

ela peca.»" Sorriu. "É um trecho do Purgatório, a segunda parte da Divina Comédia." Esboçou um

gesto na direcção do banco de pedra. "Como vê, tal como tudo o resto na Quinta da Regaleira,

também este banco é uma alegoria."

Acomodaram-se na superfície fria do mármore, o americano a estudar o galgo sentado ao seu

lado e a mulher da tocha, ao centro.

"Quem é essa?"

"Beatriz, a figura que conduziu Dante ao céu."

"Puxa vida! Aqui tudo é mesmo uma história."

(…)

Moliarti (…) caminhava com os olhos pregados no chão, meio cabisbaixo, os

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ombros descaídos e o semblante carregado. Subiram a rampa inclinada do caminho de terra com

ar meditativo, mergulhados nos mistérios que Toscano desencantara em velhos manuscritos,

segredos encerrados pelo tempo sob uma espessa camada de pó e de estranhos silêncios,

contradições e omissões. Magnólias vermelhas e amarelas coloriam o caminho verde, por entre

troncos de faias, palmeiras, pinheiros e carvalhos; o ar respirava-se fresco, leve, perfumado pelos

românticos canteiros de rosas e de tulipas, cuja graciosidade feminina contrastava com a beleza

carnal das orquídeas, sensuais e lascivas. A tarde prolongava-se, modorrenta, ao ritmo lento da

grande valsa da natureza; o bosque animava-se e pulsava de vida, com as copas das árvores a

farfalharem num rumor baixo sob a brisa que descia branda pela serra, como se fosse soprada

pelo manto rasteiro e pardacento de nuvens; dos galhos luxuriantes vinham notas mais agudas e

alegres, eram os pintassilgos que trilavam com exultação, envolvidos num intenso duelo de

resposta ao arrulhar baixo dos beija-flores e ao gorjear melodioso dos rouxinóis.

O estreito caminho entre a verdura abriu-se, de súbito, no que parecia ser uma espécie de

varanda cortada num patamar, com uma parede de um lado, donde jorrava uma fonte, e um

semiarco de pedra esculpida à frente.

"A Fonte da Abundância", anunciou Tomás. "Mas, na verdade, e apesar do nome, é outra

coisa bem mais dramática. Ora veja lá se consegue adivinhar..."

O americano analisou a estrutura aberta na floresta. O semiarco tinha um vaso em cada uma

das pontas, cada vaso com a cabeça de um sátiro e de um carneiro esculpida nos lados.

"São uns demónios?"

"Não. O sátiro é o ser que invade a ilha dos Amores, representa o caos. O carneiro é o símbolo

do equinócio da Primavera, representa a ordem. Com um sátiro e um carneiro lado a lado, cada

um destes vasos significa a ordo ab chão, a ordem depois do caos."

No meio do semiarco assentava um enorme cadeirão de pedra e, diante deste, uma grande

mesa. Do outro lado, a fonte ostentava uma concha incrustada, com o desenho de uma balança

embrechada.

"Não faço ideia do que seja isso."

"Isto, Nelson, é um tribunal."

"Um tribunal?" "*

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"Está ali o trono do juiz." Apontou para o grande cadeirão embutido na pedra. "Ali a balança da

justiça". Indicou o desenho embrechado na fonte. "No simbolismo templário e maçónico é no

equinócio da Primavera que a luz e a treva se igualam, representando a justiça e a equidade, e,

por isso, é justamente nesse dia que entra em funções o novo grão-mestre, que assume o

comando ao sentar-se no trono." Fez um gesto para a parede da fonte, onde eram visíveis outros

desenhos embrechados. "Este muro reproduz decorações do Templo de Salomão, em Jerusalém.

Nunca ouviu falar na justiça salomónica?" Ergueu os olhos para dois obeliscos piramidais

assentes sobre o topo da parede da fonte. "Os obeliscos ligam a Terra ao céu, como se fossem

as duas colunas à entrada do Templo de Salomão, verdadeiros pilares da justiça."

Meteram por um novo trilho aberto entre as árvores e foram dar a um novo largo, maior ainda

do que a Fonte da Abundância. Era o Portal dos Guardiães, protegido por dois tritões. Tomás

conduziu o seu convidado por um caminho que contornava esta nova estrutura e ziguezaguearam

pelo bosque inclinado na encosta da serra; escalaram o declive até depararem com o que parecia

ser uma anta, um conjunto megalítico formado por gigantescas pedras cobertas de musgo. O

professor guiou o americano até à anta, passaram por baixo de uns arcos formados pelas rochas

assentes umas nas outras, como em Stonehenge, e Tomás empurrou uma grande pedra. Para

surpresa de Moliarti, a pedra revi-rou-se, rodando sobre o eixo e revelando uma estrutura interior.

Cruzaram a passagem secreta e viram um poço emergir diante de si; debruçaram-se sobre a

balaustrada e olharam lá para baixo, viam-se as escadas em espiral com o corrimão escavado na

pedra, abrindo-se em arcos sustentados por colunas, zonas de sombra escavadas nas paredes, a

luz natural a despontar do topo.

"O que é isso?", quis saber Moliarti.

"Um poço iniciático", explicou Tomás, a voz a reverberar pelas paredes cilíndricas. "Estamos

dentro de uma anta, de uma reprodução de um monumento funerário megalítico. Este lugar

representa a morte da condição primária do homem. Temos de descer o poço na demanda da

espiritualidade, do nascimento do homem novo, do homem esclarecido. Descemos no poço como

se descêssemos dentro de nós próprios, em busca da nossa alma mais profunda." Fez um gesto

com a cabeça, convidando o americano a segui-lo. "Ande, venha."

Começaram a descer as escadas estreitas, contornando as paredes do poço numa espiral,

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rodando no sentido dos ponteiros do relógio, sempre para baixo. O chão estava molhado e os

passos ecoavam pelos degraus de pedra como se emitissem um som metálico, raspado e

tilintante, misturando-se com o chilrear dos pássaros que invadia o abismo pela abertura celeste e

que retinia ao longo do buraco escuro e encaracolado. As paredes apresentavam-se cobertas de

musgo e humidade, e o mesmo acontecia com as balaustradas. Inclinaram-se no corrimão e

espreitaram para o fundo, o poço parecia-lhes agora uma torre voltada para baixo, Tomás pensou

na Torre de Pisa escavada na terra.

"Quantos níveis tem este poço?"

"Nove", disse o professor. "E esse número não é um acaso. O nove é um algarismo simbólico,

em muitas línguas europeias apresenta semelhanças com a palavra novo. Em português, nove e

novo. Em espanhol, nueve e nuevo. Em francês, neuf e neuve. Em inglês, nine e new. Em

italiano, nove e nuovo. Em alemão, neun e neu. Nove significa, por isso, a transição do velho para

o novo. Foram nove os primeiros templários, os cavaleiros que fundaram a Ordem do Templo, os

que estão na origem da Ordem portuguesa de Cristo. Foram nove os mestres que Salomão

enviou à procura de Hiram Abbif, o arquitecto do Templo. Deméter percorreu o mundo em nove

dias em demanda da filha Perséfone. As nove musas nasceram de Zeus por ocasião das nove

noites de amor. São precisos nove meses para o ser humano nascer. Por ser o último dos

algarismos singulares, o nove anuncia em simultâneo, e nessa sequência, o fim e o princípio, o

velho e o novo, a morte e o renascimento, o culminar de um ciclo e o começo de outro, o número

que fecha o círculo."

"Curioso..."

Chegaram, por fim, ao fundo e observaram o centro do poço iniciático. Desenhava-se ali um

círculo decorado por mármores brancos, amarelos e vermelhos cobertos por pequenos charcos

de lama. Dentro do círculo de mármore emergia uma estrela octogonal com uma cruz orbicircular

insinuada no interior; era a cruz dos templários, a ordem que trouxe a ala octogonal para os

templos cristãos do Ocidente. Uma das pontas amarelas da estrela indicava um buraco escuro

escavado no fundo do poço.

"Esta estrela é também uma rosa-dos-ventos", explicou Tomás. "A extremidade da rosácea

aponta para o Oriente. É no Oriente que nasce o Sol, é na sua direcção que se controem as

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igrejas. O profeta Ezequiel disse: «a glória do Senhor vem do Oriente». Sigamos, pois, por esta

gruta."

O professor mergulhou na treva aberta na parede de pedra e Moliarti, após uma curta

hesitação, seguiu-o. Caminharam cautelosamente, quase tacteando as paredes, movendo-se

como cegos nas entranhas sombrias do túnel irregular. Uma fileira de luzinhas amarelas emergiu

no chão, à esquerda, depois da curva, ajudando-os a caminhar. Progrediam agora com maior

confiança, serpenteando por aquele longo buraco escavado no granito. Uma outra sombra escura

abriu-se à direita, era um novo caminho na gruta, o indício de que aquilo, mais do que uma

ligação subterrânea, era um labirinto. Familiarizado com o percurso, todavia, Tomás ignorou esse

trajecto alternativo e seguiu em frente, man-tendo-se no caminho principal até uma nesga de luz

lhe anunciar o mundo exterior. Seguiram em direcção à luz e viram um arco de pedra sobre um

lago cristalino, com um fio de água a jorrar sobre a superfície líquida em cascata, produzindo um

som gorgulhante, molhado. Estacaram debaixo do arco, o caminho bifurcava diante do lago e

tinham uma decisão a tomar.

"Esquerda ou direita?", perguntou Tomás, querendo saber qual o percurso que deveriam

seguir.

"Esquerda?", arriscou Moliarti, pouco seguro de si.

"Direita", contrapôs o português, indicando o trajecto correcto. "Sabe, Nelson, o final do túnel é

uma reconstituição de um episódio da Eneida, de Virgílio. Esta pretende ser a cena em que

Eneias desce aos infernos à procura do pai e é colocado perante o dilema de escolher o rumo

diante de uma bifurcação. Quem vira à esquerda são os condenados, aqueles destinados ao fogo

eterno. Só o caminho da direita conduz à salvação. Eneias optou pelo da direita e atravessou o rio

Letes, que lhe permitiu atingir os Campos Elísios, onde se encontrava o pai. Devemos, por isso,

imitar--lhe os passos."

Seguiram pela direita e o túnel tornou-se aqui mais escuro, estreito e baixo. A dado ponto, a

treva abateu-se sobre ambos, completa, total, e viram-se obrigados a progredir pé ante pé,

apalpando as paredes húmidas, inseguros, hesitantes. O túnel abriu-se finalmente para o exterior,

inundando-se de luz num caminho de pedras sobre o lago, como degraus espreitando pela água.

Saltitaram pelas pedras até à outra margem e deram consigo de regresso ao bosque, rodeados

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de cor, respirando o ar perfumado da tarde e escutando o trinar suave dos pintarroxos que

esvoaçavam de ramo em ramo.

"Que sítio mais estranho", comentou Moliarti, que experimentava nesse instante um sentimento

de irrealidade. "Mas é legal."

"Sabe, Nelson, esta quinta é um texto." "Um texto? O que quer dizer você com isso?" Desciam

agora pelos carreiros abertos por entre as árvores. Foram dar novamente ao Portal dos

Guardiães e Tomás conduziu o seu convidado por uma escada em espiral construída dentro de

uma estreita torre em estilo medieval, com ameias no topo.

"Antigamente, no tempo da Inquisição e do obscurantismo, em que a sociedade vivia

dominada por uma Igreja intolerante, havia obras que se tornaram proibidas. Os artistas eram

perseguidos, os novos pensamentos silenciados, os livros queimados, os quadros rasgados. Daí

que tenha surgido a ideia de esculpir um livro na pedra. É isso, afinal de contas, a Quinta da

Regaleira. Um livro esculpido na pedra. É fácil queimar um livro de papel ou rasgar uma pintura

na tela, mas é bem menos fácil demolir uma propriedade inteira. Esta quinta é um espaço onde se

encontram construções conceptuais que reflectem pensamentos esotéricos, inspiradas no

labirinto de ideias sugerido por Francesco Colonna no seu hermético Hypnerotomacbia Polipbili e

sustentadas nos conceitos que jazem sob o projecto de expansão marítima de Portugal e nas

grandes lendas clássicas. Se quiser, e de alguma forma através dos mitos veiculados pela

Eneida, pela Divina Comédia e por Os Lusíadas, este é um grande monumento aos

Descobrimentos portugueses e ao papel que nele desempenharam os templários, em Portugal

rebaptizados cavaleiros da Ordem Militar de Cristo."

Chegaram à base da torre medieval e enfiaram por um caminho mais largo, passando pela

Gruta de Leda e dirigindo-se à capela. Marchavam agora em silêncio, atentos ao som dos seus

passos e ao marulhar delicado do bosque.

"E agora?", perguntou Moliarti.

"Vamos ali à capela."

(…)

Virou-se e recomeçou a andar, dirigindo-se para a catedral em miniatura que era a capela,

mais um local de mistério que a Quinta da Regaleira encerrava dentro dos seus muros, um novo

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capítulo naquele extraordinário livro escavado na pedra.