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Rev Ass Med Brasil 1998; 44(4): 301-11 301 Artigo Especial Artigo Especial Artigo Especial Artigo Especial Artigo Especial Raciocínio clínico – o processo de decisão diagnóstica e terapêutica A.RÉA-NETO Departamento de Clínica Médica da Universidade Federal do Paraná, Curitiba, PR. RESUMO — O objetivo desta revisão é expor as RESUMO — O objetivo desta revisão é expor as RESUMO — O objetivo desta revisão é expor as RESUMO — O objetivo desta revisão é expor as RESUMO — O objetivo desta revisão é expor as fases e os principais constituintes do processo fases e os principais constituintes do processo fases e os principais constituintes do processo fases e os principais constituintes do processo fases e os principais constituintes do processo cognitivo que os médicos empregam no raciocínio cognitivo que os médicos empregam no raciocínio cognitivo que os médicos empregam no raciocínio cognitivo que os médicos empregam no raciocínio cognitivo que os médicos empregam no raciocínio clínico das decisões diagnósticas e terapêuticas. clínico das decisões diagnósticas e terapêuticas. clínico das decisões diagnósticas e terapêuticas. clínico das decisões diagnósticas e terapêuticas. clínico das decisões diagnósticas e terapêuticas. O processo de solução dos problemas clínicos uti- O processo de solução dos problemas clínicos uti- O processo de solução dos problemas clínicos uti- O processo de solução dos problemas clínicos uti- O processo de solução dos problemas clínicos uti- liza-se do método científico hipotético-dedutivo liza-se do método científico hipotético-dedutivo liza-se do método científico hipotético-dedutivo liza-se do método científico hipotético-dedutivo liza-se do método científico hipotético-dedutivo de resolver problemas. Tão logo um médico en- de resolver problemas. Tão logo um médico en- de resolver problemas. Tão logo um médico en- de resolver problemas. Tão logo um médico en- de resolver problemas. Tão logo um médico en- contra um paciente, várias hipóteses diagnós- contra um paciente, várias hipóteses diagnós- contra um paciente, várias hipóteses diagnós- contra um paciente, várias hipóteses diagnós- contra um paciente, várias hipóteses diagnós- ticas surgem-lhe na mente, as quais são avaliadas ticas surgem-lhe na mente, as quais são avaliadas ticas surgem-lhe na mente, as quais são avaliadas ticas surgem-lhe na mente, as quais são avaliadas ticas surgem-lhe na mente, as quais são avaliadas e refutadas ou corroboradas. A decisão diagnós- e refutadas ou corroboradas. A decisão diagnós- e refutadas ou corroboradas. A decisão diagnós- e refutadas ou corroboradas. A decisão diagnós- e refutadas ou corroboradas. A decisão diagnós- tica é realizada quando uma hipótese atinge um tica é realizada quando uma hipótese atinge um tica é realizada quando uma hipótese atinge um tica é realizada quando uma hipótese atinge um tica é realizada quando uma hipótese atinge um certo grau de verossimilhança. A decisão tera- certo grau de verossimilhança. A decisão tera- certo grau de verossimilhança. A decisão tera- certo grau de verossimilhança. A decisão tera- certo grau de verossimilhança. A decisão tera- pêutica depende dos objetivos pretendidos e da pêutica depende dos objetivos pretendidos e da pêutica depende dos objetivos pretendidos e da pêutica depende dos objetivos pretendidos e da pêutica depende dos objetivos pretendidos e da efetividade esperada entre as diversas alternati- efetividade esperada entre as diversas alternati- efetividade esperada entre as diversas alternati- efetividade esperada entre as diversas alternati- efetividade esperada entre as diversas alternati- vas disponíveis. vas disponíveis. vas disponíveis. vas disponíveis. vas disponíveis. UNITERMOS: Raciocínio clínico. Solução de problemas. Tomada de decisão. Competência clínica. Diagnóstico. Relação médico-paciente. O raciocínio clínico é uma função essencial da atividade médica 1 . Embora o desempenho médico seja dependente de múltiplos fatores, seu resulta- do final não poderá ser bom se as habilidades de raciocínio forem deficientes 2 . A eficiência do aten- dimento médico é altamente dependente da análi- se e síntese adequadas dos dados clínicos e da qualidade das decisões envolvendo riscos e benefí- cios dos testes diagnósticos e do tratamento. Tem havido, nas duas últimas décadas, um grande crescimento na nossa capacidade de com- preensão do raciocínio humano e, em particular, do raciocínio clínico. As pesquisas realizadas nas disciplinas da ciência cognitiva, teoria de decisão e ciência da computação têm fornecido uma ampla visão do processo cognitivo que forma a base das decisões diagnósticas e terapêuticas em medicina 3 . O MÉTODO CIENTÍFICO O MÉTODO CIENTÍFICO O MÉTODO CIENTÍFICO O MÉTODO CIENTÍFICO O MÉTODO CIENTÍFICO HIPOTÉTICO-DEDUTIVO HIPOTÉTICO-DEDUTIVO HIPOTÉTICO-DEDUTIVO HIPOTÉTICO-DEDUTIVO HIPOTÉTICO-DEDUTIVO O método hipotético-dedutivo também pode ser chamado de método crítico ou da tentativa e erro e foi descrito por Popper no início do século 4 . Apre- sentado o problema, o investigador lança uma hipótese para explicá-lo. Depois, deduz-se da hipó- tese os testes com potencial para refutá-la. Se o resultado dos testes refutar a hipótese, ela é elimi- nada. Se o resultado dos testes não refutar a hipótese, ela é suportada ou corroborada. É importante definir exatamente o que significa uma hipótese e o método hipotético-dedutivo 5 . Uma hipótese é uma declaração afirmativa relacionada a uma situação que pode ser verdadeira ou falsa (embora uma incerteza sobre sua verdade ou falsi- dade sempre exista na prática). O método hipoté- tico-dedutivo é o procedimento de testagem da hipótese. A hipótese permite a dedução de quais testes podem ou devem ser realizados para avaliar sua verossimilhança (grau de verdade ou falsidade de uma hipótese). O PROCESSO DE SOLUÇÃO DOS O PROCESSO DE SOLUÇÃO DOS O PROCESSO DE SOLUÇÃO DOS O PROCESSO DE SOLUÇÃO DOS O PROCESSO DE SOLUÇÃO DOS PROBLEMAS CLÍNICOS PROBLEMAS CLÍNICOS PROBLEMAS CLÍNICOS PROBLEMAS CLÍNICOS PROBLEMAS CLÍNICOS Várias pesquisas têm mostrado que quando o médico se defronta com um paciente que apresenta um problema, ele se utiliza de um método cognitivo de resolver problemas muito semelhante ao méto- do científico hipotético-dedutivo 6,7 . Recentemente, vários trabalhos procurando identificar os passos cognitivos que os médicos realizam no processo diagnóstico têm demonstrado uma rápida geração de hipóteses diagnósticas 8,9 . Na seqüência, os mé- dicos realizam testes para corroborar ou refutar cada hipótese até obter uma que tenha forte veros- similhança e que possibilite uma tomada de ação, como, por exemplo, o início de um tratamento. O processo de solução dos problemas clínicos é constituído por dois grandes componentes que necessitam ser considerados separadamente, em- bora eles não possam ser separados na prática. O primeiro deles é o conteúdo, uma base de conheci- mento rica e extensa que reside na memória do médico. O outro é o processo, o método de aplicação do conhecimento utilizado pelo médico na busca de

Raciocínio Clínico – O Processo De Decisão Diagnóstica E Terapêutica

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RACIOCÍNIO CLÍNICO

Artigo EspecialArtigo EspecialArtigo EspecialArtigo EspecialArtigo Especial

Raciocínio clínico – o processo de decisão diagnóstica eterapêuticaA.RÉA-NETO

Departamento de Clínica Médica da Universidade Federal do Paraná, Curitiba, PR.

RESUMO — O objetivo desta revisão é expor asRESUMO — O objetivo desta revisão é expor asRESUMO — O objetivo desta revisão é expor asRESUMO — O objetivo desta revisão é expor asRESUMO — O objetivo desta revisão é expor asfases e os principais constituintes do processofases e os principais constituintes do processofases e os principais constituintes do processofases e os principais constituintes do processofases e os principais constituintes do processocognitivo que os médicos empregam no raciocíniocognitivo que os médicos empregam no raciocíniocognitivo que os médicos empregam no raciocíniocognitivo que os médicos empregam no raciocíniocognitivo que os médicos empregam no raciocínioclínico das decisões diagnósticas e terapêuticas.clínico das decisões diagnósticas e terapêuticas.clínico das decisões diagnósticas e terapêuticas.clínico das decisões diagnósticas e terapêuticas.clínico das decisões diagnósticas e terapêuticas.O processo de solução dos problemas clínicos uti-O processo de solução dos problemas clínicos uti-O processo de solução dos problemas clínicos uti-O processo de solução dos problemas clínicos uti-O processo de solução dos problemas clínicos uti-liza-se do método científico hipotético-dedutivoliza-se do método científico hipotético-dedutivoliza-se do método científico hipotético-dedutivoliza-se do método científico hipotético-dedutivoliza-se do método científico hipotético-dedutivode resolver problemas. Tão logo um médico en-de resolver problemas. Tão logo um médico en-de resolver problemas. Tão logo um médico en-de resolver problemas. Tão logo um médico en-de resolver problemas. Tão logo um médico en-contra um paciente, várias hipóteses diagnós-contra um paciente, várias hipóteses diagnós-contra um paciente, várias hipóteses diagnós-contra um paciente, várias hipóteses diagnós-contra um paciente, várias hipóteses diagnós-ticas surgem-lhe na mente, as quais são avaliadasticas surgem-lhe na mente, as quais são avaliadasticas surgem-lhe na mente, as quais são avaliadasticas surgem-lhe na mente, as quais são avaliadasticas surgem-lhe na mente, as quais são avaliadase refutadas ou corroboradas. A decisão diagnós-e refutadas ou corroboradas. A decisão diagnós-e refutadas ou corroboradas. A decisão diagnós-e refutadas ou corroboradas. A decisão diagnós-e refutadas ou corroboradas. A decisão diagnós-

tica é realizada quando uma hipótese atinge umtica é realizada quando uma hipótese atinge umtica é realizada quando uma hipótese atinge umtica é realizada quando uma hipótese atinge umtica é realizada quando uma hipótese atinge umcerto grau de verossimilhança. A decisão tera-certo grau de verossimilhança. A decisão tera-certo grau de verossimilhança. A decisão tera-certo grau de verossimilhança. A decisão tera-certo grau de verossimilhança. A decisão tera-pêutica depende dos objetivos pretendidos e dapêutica depende dos objetivos pretendidos e dapêutica depende dos objetivos pretendidos e dapêutica depende dos objetivos pretendidos e dapêutica depende dos objetivos pretendidos e daefetividade esperada entre as diversas alternati-efetividade esperada entre as diversas alternati-efetividade esperada entre as diversas alternati-efetividade esperada entre as diversas alternati-efetividade esperada entre as diversas alternati-vas disponíveis.vas disponíveis.vas disponíveis.vas disponíveis.vas disponíveis.

UNITERMOS: Raciocínio clínico. Solução de problemas.Tomada de decisão. Competência clínica. Diagnóstico.Relação médico-paciente.

O raciocínio clínico é uma função essencial daatividade médica1. Embora o desempenho médicoseja dependente de múltiplos fatores, seu resulta-do final não poderá ser bom se as habilidades deraciocínio forem deficientes2. A eficiência do aten-dimento médico é altamente dependente da análi-se e síntese adequadas dos dados clínicos e daqualidade das decisões envolvendo riscos e benefí-cios dos testes diagnósticos e do tratamento.

Tem havido, nas duas últimas décadas, umgrande crescimento na nossa capacidade de com-preensão do raciocínio humano e, em particular,do raciocínio clínico. As pesquisas realizadas nasdisciplinas da ciência cognitiva, teoria de decisãoe ciência da computação têm fornecido uma amplavisão do processo cognitivo que forma a base dasdecisões diagnósticas e terapêuticas em medicina3.

O MÉTODO CIENTÍFICOO MÉTODO CIENTÍFICOO MÉTODO CIENTÍFICOO MÉTODO CIENTÍFICOO MÉTODO CIENTÍFICOHIPOTÉTICO-DEDUTIVOHIPOTÉTICO-DEDUTIVOHIPOTÉTICO-DEDUTIVOHIPOTÉTICO-DEDUTIVOHIPOTÉTICO-DEDUTIVO

O método hipotético-dedutivo também pode serchamado de método crítico ou da tentativa e erro efoi descrito por Popper no início do século4. Apre-sentado o problema, o investigador lança umahipótese para explicá-lo. Depois, deduz-se da hipó-tese os testes com potencial para refutá-la. Se oresultado dos testes refutar a hipótese, ela é elimi-nada. Se o resultado dos testes não refutar ahipótese, ela é suportada ou corroborada.

É importante definir exatamente o que significauma hipótese e o método hipotético-dedutivo5. Umahipótese é uma declaração afirmativa relacionada

a uma situação que pode ser verdadeira ou falsa(embora uma incerteza sobre sua verdade ou falsi-dade sempre exista na prática). O método hipoté-tico-dedutivo é o procedimento de testagem dahipótese. A hipótese permite a dedução de quaistestes podem ou devem ser realizados para avaliarsua verossimilhança (grau de verdade ou falsidadede uma hipótese).

O PROCESSO DE SOLUÇÃO DOSO PROCESSO DE SOLUÇÃO DOSO PROCESSO DE SOLUÇÃO DOSO PROCESSO DE SOLUÇÃO DOSO PROCESSO DE SOLUÇÃO DOSPROBLEMAS CLÍNICOSPROBLEMAS CLÍNICOSPROBLEMAS CLÍNICOSPROBLEMAS CLÍNICOSPROBLEMAS CLÍNICOS

Várias pesquisas têm mostrado que quando omédico se defronta com um paciente que apresentaum problema, ele se utiliza de um método cognitivode resolver problemas muito semelhante ao méto-do científico hipotético-dedutivo6,7. Recentemente,vários trabalhos procurando identificar os passoscognitivos que os médicos realizam no processodiagnóstico têm demonstrado uma rápida geraçãode hipóteses diagnósticas8,9. Na seqüência, os mé-dicos realizam testes para corroborar ou refutarcada hipótese até obter uma que tenha forte veros-similhança e que possibilite uma tomada de ação,como, por exemplo, o início de um tratamento.

O processo de solução dos problemas clínicos éconstituído por dois grandes componentes quenecessitam ser considerados separadamente, em-bora eles não possam ser separados na prática. Oprimeiro deles é o conteúdo, uma base de conheci-mento rica e extensa que reside na memória domédico. O outro é o processo, o método de aplicaçãodo conhecimento utilizado pelo médico na busca de

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uma solução do problema do paciente. Os médicosexperientes empregam esses dois componentes deforma totalmente entrelaçada. A presente revisãoprocura descrever o processo de utilização do co-nhecimento segundo o método científico hipoté-tico-dedutivo.

O modelo que os médicos utilizam para solucio-nar problemas clínicos é muito semelhante à abor-dagem dos detetives diante de um crime ou doscientistas quando confrontados com fenômenosinexplicados10. Em cada uma dessas situações, umproblema surge para o qual uma explicação segu-ra não é imediatamente evidente e várias hipóte-ses são levadas em consideração. As informaçõesnecessárias à decisão sobre qual das hipóteses écorreta requer a coleta de outras informações, ainterrogação de testemunhas e a busca de pistaspelo detetive; a observação e a experimentaçãopelo cientista; e a entrevista, o exame físico etestes laboratoriais pelo médico.

Com esse método, tenta-se resolver um proble-ma, quer seja ele clínico, uma pesquisa científicaou um crime, sempre começando com uma hipótese.O detetive levanta sua lista de suspeitos; o cientis-ta, suas hipóteses a serem pesquisadas; e o médico,seus diagnósticos possíveis. Cada um sabe que amaioria de suas hipóteses é incorreta e que seutrabalho é eliminar as hipóteses incorretas e esco-lher a correta, dois processos complementares masmuito diferentes. Por exemplo, o detetive usa oálibi na eliminação e o motivo ou a evidência dapresença na cena do crime, ou ambos, na incri-minação. O cientista propõe uma hipótese, definesuas implicações e delineia experimentos paratestar a hipótese. Se o experimento contradiz suahipótese, ela é eliminada; se confirma as expecta-tivas, a hipótese é suportada.

O número de locais possíveis onde os detetivespodem procurar pistas é virtualmente infinito.Os delineamentos, seleções de amostras, aferi-ções e análises que os cientistas podem utilizarnas suas pesquisas são inúmeros. Da mesmaforma, os médicos poderiam fazer milhares deperguntas, realizar várias manobras no examefísico e solicitar centenas de testes laboratoriais.No entanto, nenhum desses profissionais fazisso. Haveria um gasto enorme de tempo, esforçoe dinheiro antes que informações relevantespudessem ser coletadas para resolver o proble-ma. O que esses profissionais fazem é usar hipó-teses sugeridas pelo problema para, a partirdelas, determinar exatamente quais informa-ções são necessárias para deduzir qual das hipó-teses é a mais correta7,8. Um típico método hipo-tético-dedutivo (fig. 1).

Essa abordagem seqüencial de testagem demúltiplas hipóteses no processo de solução dosproblemas clínicos é mais eficiente que o acúmulode dados sem propósito, um processo no qual todosos dados coletados são revisados de uma só vez naesperança de reconhecer um padrão diagnóstico11.Essa última abordagem é altamente sujeita a er-ros, ineficiente e custosa, além de não permitir aformulação de conceitos, elementos fundamentaisna compreensão do problema do paciente.

O PROCESSO DE SOLUÇÃO DOSO PROCESSO DE SOLUÇÃO DOSO PROCESSO DE SOLUÇÃO DOSO PROCESSO DE SOLUÇÃO DOSO PROCESSO DE SOLUÇÃO DOSPROBLEMAS CLÍNICOSPROBLEMAS CLÍNICOSPROBLEMAS CLÍNICOSPROBLEMAS CLÍNICOSPROBLEMAS CLÍNICOS

O processo de solução de um problema clínicocomeça quando o paciente se apresenta ao médi-co12. O sucesso na resolução do problema do pacien-te, que é o objetivo de todo o processo, é a obtençãode um diagnóstico correto e de um tratamentoefetivo. A solução desse problema é caracterizadapor duas grandes fases de tomada de decisão: adesignação de um diagnóstico num nível de espe-cificidade adequado para as considerações tera-pêuticas e a seleção de um tratamento que afete oproblema de forma a resolvê-lo ou aliviá-lo. Alémdessas duas grandes fases de tomada de decisão, oprocesso de resolver problema clínico é repleto demuitos outros estágios de tomada de decisão demenor ordem (seleção de que perguntas fazer,decidir que respostas são confiáveis, interpretarum sinal físico, selecionar um ou mais testes delaboratório, escolher uma das formas alternativasde tratamento etc.). Como veremos, a tomada dedecisão está tão envolvida no processo de soluçãodos problemas clínicos que é essencial a ele. Noentanto, é preciso reconhecer que, embora as to-madas de decisões sejam necessárias para se resol-ver o problema, o objetivo final não está nelas (natomada de decisão em si), mas sim na melhorsolução possível do problema.

A formulação de um conceito inicialA formulação de um conceito inicialA formulação de um conceito inicialA formulação de um conceito inicialA formulação de um conceito inicial

O primeiro elemento na tentativa de solucionarum problema clínico é obter informações relacio-nadas ao problema do paciente. Quando o médicoencontra o paciente pela primeira vez e após umaou duas perguntas abertas, o paciente começa a

Problema Hipóteses Teste(s) ResultadosClínico Diagnósticas

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Fig. 1Fig. 1Fig. 1Fig. 1Fig. 1 – O método hipotético-dedutivo aplicado nasolução dos problemas clínicos.

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descrever seus sintomas ou suas preocupações, eleoferece ao médico várias informações, além desuas respostas e comentários iniciais, como suaaparência, sexo, idade, postura, expressão facial,linguagem, aflições etc. Outras informações jápodem estar disponíveis também nessa fase, comoo prontuário antigo ou notas de referência. Comesses dados bem iniciais, o médico percebe que háum problema e qual a sua natureza inicial, pontode partida na procura de outras informações quelhe parecem mais importantes na busca de umasolução. Esse é o conceito inicial ou a sínteseinicial do problema13.

Esse conceito inicial formulado pelo médico éfortemente influenciado pela circunstância doatendimento (consultório ou serviço de emergên-cia), pelas características demográficas do pacien-te, pela sua aparência, pela capacidade de percepçãoe da especialidade do médico, além da queixainicial. Por exemplo, um paciente agitado, com 50anos de idade, levemente obeso, queixando-se deuma dor precordial que se iniciou há uma hora,poderá ter o seguinte conceito inicial: “um homemde meia-idade com uma dor precordial por prová-vel insuficiência coronariana”. E uma pacientecom 32 anos de idade, olhar cabisbaixo, com poucaexpressão facial, voz vagarosa, queixando-se deuma dor precordial que se iniciou há uma hora,poderá ter como conceito inicial “uma mulher jo-vem, deprimida, com uma provável dor precordialde origem psicossomática”. Embora as queixasprincipais sejam essencialmente as mesmas, osconceitos iniciais foram muito diferentes paraambos os pacientes porque o médico percebeu ou-tros elementos que mudaram seus conteúdos.

A geração de múltiplas hipóteses diagnósticasA geração de múltiplas hipóteses diagnósticasA geração de múltiplas hipóteses diagnósticasA geração de múltiplas hipóteses diagnósticasA geração de múltiplas hipóteses diagnósticas

Tão logo o médico formula seu conceito inicial,várias hipóteses brotam-lhe na mente8,11. Isto ocor-re bem precocemente no encontro com o paciente.Pelo menos uma hipótese é inicialmente gerada;freqüentemente, três a cinco hipóteses e raramen-te mais de cinco hipóteses são geradas após aformulação do conceito inicial. Esses resultadosestão em conformidade com as avaliações realiza-das por psicólogos sugerindo que a nossa memóriade trabalho não suporta mais de quatro a seteidéias ou conceitos separados ao mesmo tempo14.

As hipóteses geradas nessa fase dependem, fun-damentalmente, da natureza do conceito inicial eda capacidade do médico em conceber explicaçõesplausíveis8. Nesse processo, o médico pode basearsuas hipóteses em dados estatísticos de preva-lência das possíveis explicações para cada dado ouconjunto de dados clínicos obtidos. Entretanto,

mais freqüentemente, os médicos utilizam-se deheurísticas15. Heurísticas são associações rápidasque os médicos fazem entre dados (manifestaçõesclínicas) e explicações potenciais (processo fisio-patológico, síndrome ou uma doença específica),baseadas nas suas experiências pregressas comsituações similares. Elas surgem mediante associa-ções entre o conceito inicial formulado e os conheci-mentos que os médicos têm na memória, a longoprazo. As heurísticas são essenciais para reduzir anecessidade de fazer muitas perguntas ou realizartestes supérfluos de laboratório e para tornar prá-tica e eficiente a tarefa de analisar e sintetizardados.

A base de conhecimentos que os médicos utili-zam para gerar hipóteses pode ser dividida emconhecimento centrado no dado e conhecimentocentrado na doença12. O conhecimento centrado nodado capacita o médico a avaliar um sintoma, ouum sinal, ou um resultado laboratorial em particu-lar. Com esse conhecimento, quando um determi-nado dado qualquer (fadiga, esplenomegalia ouuma elevação da fosfatase alcalina) é observado,suas possíveis causas são lembradas e avaliadas. Oconhecimento centrado na doença permite ao mé-dico conhecer as manifestações clínicas que, tipi-camente, caracterizam uma doença. Esse conheci-mento pode ser dividido em de protótipo e desistemas. O conhecimento de protótipo é o dasdoenças como elas estão descritas na maioria doslivros de textos e se compõem do conjunto demanifestações que um doente freqüentementeapresenta quando portador de determinada doen-ça. O conhecimento de sistemas consiste em prin-cípios fisiopatológicos que explicam as relaçõesdos dados com as doenças incluídas nos protótipos.O conhecimento mais utilizado pelos médicos, nafase de geração de hipóteses, é o centrado no dado.

A fase de geração das hipóteses diagnósticas éfortemente dependente da memória e do conhe-cimento dos médicos16. Tanto a disponibilidadequanto a recuperação dos conhecimentos relevan-tes guardados na memória são variáveis críticasno processo de raciocínio clínico e se relacionamintensamente com a qualidade da solução dos pro-blemas clínicos.

As hipóteses geradas no início são freqüen-temente abertas ou pouco específicas e estrutu-radas em bases anatômicas ou fisiopatológicas13.Cada uma das hipóteses iniciais é deduzida apartir dos dados ou conjunto de dados do conceitoinicial. E, principalmente, se a queixa inicial formuito vaga, o médico fará questionamentos paraclarificar a natureza do conceito inicial e estreitarsuas hipóteses. Os questionamentos iniciais são

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focos de pesquisa para avaliação dos sintomas.Eles auxiliam na compreensão acurada e precisadas queixas, no entendimento do possível processofisiopatológico de base e na obtenção de infor-mações adicionais, todos úteis na elaboração dashipóteses.

Devido à grande incerteza que caracteriza a faseinicial do encontro clínico, as hipóteses têm umafunção primordial: elas estruturam o problemaclínico e fornecem um contexto para a progressãodo raciocínio clínico e da exploração diagnóstica6-8,13.O contexto estrutura o problema e restringe onúmero de explicações possíveis, limita as açõesnecessárias na busca da solução do problema efornece uma base para as expectativas. Essasexpectativas são predições de achados clínicos ba-seados no modelo mental da síndrome ou da doençado contexto. Por isso, a representação mental queo médico tem das síndromes e das doenças é umfator crítico na eficiência do processo de soluçãodos problemas clínicos.

Cada hipótese diagnóstica evoca um modelo como qual as manifestações clínicas do paciente podemser comparadas11. Uma hipótese diagnóstica de“síndrome nefrótica”, por exemplo, demanda apresença de proteinúria maciça, tipicamenteacompanhada de hipoalbuminemia e edema, comfatores predisponentes (diabetes melito, amiloi-dose, lúpus eritematoso sistêmico), complicaçõespotenciais (trombose venosa, aterosclerose), asso-ciações fisiopatológicas (ingesta de sódio, pressãooncótica diminuída e edema) e correlações histo-patológicas (nefropatia membranosa) característi-cas. Então, quando síndrome nefrótica se tornauma hipótese, suas características formam umcontexto para avaliar outros dados clínicos dopaciente. Dentro desse contexto, novos dados sãocoletados e avaliados, preservando e refinando ahipótese ou rejeitando-a.

Clinicamente, as hipóteses devem ser vistascomo rótulos pessoais que os médicos aprenderama usar para identificar um conjunto de elementosque caracterizam uma doença, um conceito fisio-patológico, etiologias etc.13. São idiossincrasiasusadas para um arquivo pessoal de fatos ou concei-tos clínicos de forma a facilitar o acesso à memória.Embora dois médicos possam chamar a mesmahipótese pelo mesmo nome, suas definições e com-preensões daquela hipótese podem ser muito dife-rentes. O contrário também é verdadeiro. Os con-ceitos relacionados com cada termo em particularsão produto do estudo e da experiência passada comoutros pacientes, vivenciados de forma pessoal porcada médico. O nome que o médico dá a cada umade suas hipóteses não tem valor nesta fase da

solução do problema médico. O que interessa sãoos seus conteúdos. Como as hipóteses científicas,uma vez que as hipóteses médicas sejam claras (namente do médico que a gera) e estabeleçam rela-ções entre seus elementos (manifestações clíni-cas), elas serão válidas e úteis neste momento doprocesso de solução dos problemas clínicos.

A formulação de uma hipótese inicial baseadaem apenas umas poucas observações clínicas édependente da habilidade cognitiva em relacionarsituações novas com as experiências anteriores.Experiência clínica, claramente, aumenta a quali-dade das hipóteses geradas. Um grande conheci-mento das informações de livro é insuficiente parauma eficiente geração de hipóteses, em parte por-que, no mundo real, as doenças e as síndromesvariam mais em seus atributos constituintes quenas descrições típicas dos livros. Mas habilidadescognitivas bem desenvolvidas são, também, insufi-cientes para se atingir eficiência na geração dehipóteses, se o médico não possui conhecimentoteórico suficiente. Mesmo o uso brilhante do racio-cínio não é capaz de reconhecer uma doença ou umasíndrome desconhecida.

O diagnóstico de um problema médico é fre-qüentemente comparado com a resolução de umcomplicado jogo de quebra-cabeça ou com as histó-rias de ficção de detetives17. Mas uma análiseatenta desses processos mostra que o processodiagnóstico é diferente. Quando compramos umjogo de quebra-cabeça, junto com as peças vemuma figura, elemento importante como orientaçãona montagem lógica das peças. Nas histórias dedetetive, o final está na mente do autor. Emboraem ambas as situações haja sempre um problemaa ser resolvido no começo, o fim já é conhecido,servindo de guia para a montagem do jogo ou parao desenrolar da história. Quando o médico se de-fronta com um problema clínico, as soluções empotencial são desconhecidas. Somente uma hipó-tese pode lhe permitir encontrar o final correto.

A avaliação e regeneração das hipótesesA avaliação e regeneração das hipótesesA avaliação e regeneração das hipótesesA avaliação e regeneração das hipótesesA avaliação e regeneração das hipóteses

As hipóteses geradas no início do encontro como paciente representam possíveis causas expli-catórias do conceito inicial. À medida que a avalia-ção ocorre ao longo da entrevista, inicialmentecom perguntas abertas e, posteriormente, comperguntas fechadas, as hipóteses são freqüen-temente eliminadas e substituídas por novas, semserem alteradas ou modificadas ao longo da avalia-ção. Uma hipótese é uma constelação fixa de fatosou idéias guardada na memória dos médicos.Quando ela se mostra incapaz de explicar o concei-to inicial é substituída por outra ou simplesmente

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eliminada. O que se transforma ao longo da avalia-ção é o conceito inicial, a representação que omédico faz do problema a ser resolvido, a qualcresce e se desenvolve durante o processo de solu-ção do problema clínico13.

Durante a avaliação, o médico processa um con-ceito do problema, o qual reúne um conteúdo quese amplia continuamente a partir dos dados cole-tados, guiados pelas hipóteses. Os novos fatos quesão acrescentados ao conceito inicial são continua-mente usados para reformular esse conceito que é,então, sucessiva e repetidamente comparado comas hipóteses, suportando-as, refutando-as ou subs-tituindo-as. Cuidado especial deve ser tomadopara que não seja forçada a conveniência do con-ceito dentro da hipótese. O conceito é confrontadocom a hipótese, e não forçado a se encaixar nela.

No início do processo de avaliação das hipóteses,quando somente um pequeno número de dadosclínicos significativos estão disponíveis, as hipóte-ses tendem a ser mais numerosas e abertas3,8.Nesse estágio, a entropia diagnóstica (incerteza) éalta, a diferenciação entre as hipóteses é pequenae o número de expectativas do médico é enorme. Aeficiência do processo requer que os caminhosescolhidos pelo médico (perguntas, manobras noexame físico, testes) sejam os mais prováveis dereduzir a incerteza diagnóstica. Isso requer quecada dado novo obtido consiga aumentar ou dimi-nuir consideravelmente a verossimilhança de pelomenos uma das hipóteses consideradas. No finaldo processo, a discriminação entre as hipótesesrestantes pode exigir testes específicos e custosos.As hipóteses diagnósticas iniciais são empíricas ouplausíveis. Ao longo do processo, apenas a(s)hipótese(s) validada(s) sobrevive(m).

Esse processo de geração, avaliação e regenera-ção das hipóteses médicas assemelha-se em muitoao racionalismo crítico na avaliação das hipóteses,como descrito por Popper, e à seleção natural naevolução biológica, como descrito por Darwin18. Ateoria de Darwin repousa na afirmação de que aseleção natural é a força criativa da evolução, namedida em que somente as variações casuais (mu-tações) mais aptas ao ambiente são preservadas etransmitidas às gerações futuras. A “luta” da evo-lução seria a busca de uma melhor adaptaçãoambiental e só. O mesmo ocorre com as hipótesesmédicas. Uma hipótese gerada só “sobrevive” seestiver adaptada ao seu ambiente (conjuntode manifestações do paciente). Modificações noambiente (novas manifestações clínicas) alteram aadaptação da hipótese; enquanto as hipótesesadaptadas são mantidas, as hipóteses não adapta-das são eliminadas.

A formulação de uma estratégia de avaliaçãoA formulação de uma estratégia de avaliaçãoA formulação de uma estratégia de avaliaçãoA formulação de uma estratégia de avaliaçãoA formulação de uma estratégia de avaliação

Após o médico ter construído seu conceito iniciale várias hipóteses terem surgido na sua cabeça,por associação ou de forma criativa, é necessárioiniciar um processo de avaliação (ou testagem)das hipóteses. Quais informações são necessárias(advindas da entrevista, do exame físico, do labo-ratório ou de procedimentos) para estabelecer umahipótese apropriada?

Diante de praticamente todos os problemas, oclínico necessita, após ter construído seu conceitoinicial e gerado inúmeras hipóteses, de novas in-formações para testar essas hipóteses e chegar aodiagnóstico. Ele tem que decidir quais informaçõesadicionais são necessárias a partir da históriaclínica, do exame físico e do laboratório, paraentão tomar uma decisão diagnóstica. Essa deci-são, a escolha da hipótese correta, é o caminhopara a seleção do tratamento apropriado para opaciente. A seqüência de perguntas a serem feitas,de manobras semiológicas a realizar no exame físi-co e de testes laboratoriais a solicitar para decidir ahipótese correta é a estratégia de avaliação13.

A estratégia de avaliação pode ser descrita comotendo dois grandes componentes que se inter-relacionam constantemente: a investigação e orastreamento.

A estratégia de investigação

A investigação é uma atividade orientada pelashipóteses. Novas informações são deliberadamen-te procuradas para avaliar as hipóteses ativas.Perguntas, pontos específicos do exame físico eresultados laboratoriais são pesquisados na buscade dados significativos para suportar ou refutarhipóteses. O conhecimento utilizado nessa fase é ocentrado na doença. A investigação é planejadacom dedução a partir da hipótese para atingir seusobjetivos. Ou seja, com uma hipótese em mente, omédico deduz quais dados são significativos parasuportá-la ou refutá-la.

Dedução é o processo de análise e síntese dosdados que serão usados para fortalecer e suportarou enfraquecer e refutar uma hipótese. O sucessoda dedução depende de a informação produzidaser ou não um bom teste para avaliar as hipóte-ses. A nova informação produzida aumenta oudiminui a probabilidade de uma ou várias hipóte-ses? Se a informação produzida pela avaliaçãonão altera a verossimilhança de qualquer dashipóteses, a estratégia de avaliação utilizada é debaixa qualidade.

Informações clínicas englobam dados obtidospela anamnese, exame físico, testes de laboratórioe procedimentos. Embora diferentes técnicas sejam

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necessárias para a coleta desses diferentes tipos deinformações, muitas são as características comunsna avaliação de todas essas informações. Como nãoé possível nem desejável obter todos os dados pos-síveis em todos os pacientes, é necessária umaseletividade na determinação de quais informaçõessão necessárias. Essa decisão é dependente dosatributos comuns a tais informações, como os se-guintes: acurácia, precisão, sensibilidade, especi-ficidade, valor preditivo, benefícios, custos e riscos19.

A maior utilidade dos testes diagnósticos ocorrenos pacientes com a probabilidade pré-teste dadoença intermediária20. Nesses pacientes, a proba-bilidade pós-teste da doença aumenta considera-velmente com o teste positivo (principalmente se oteste for bem específico) e diminui notavelmentecom o teste negativo (principalmente se o teste forbem sensível). Nos pacientes com probabilidadepré-teste alta, a probabilidade pós-teste tem poucoaumento com o teste positivo. Porém, se o teste fornegativo, não há grande queda na probabilidadepós-teste e a probabilidade de falso-negativo doteste é alta. Nos pacientes com probabilidade pré-teste baixa, a probabilidade pós-teste não diminuinotavelmente com o teste negativo, e se o teste forpositivo, não há grande aumento na probabilidadepós-teste e a probabilidade de falso-positivo doteste é alta.

A estratégia de rastreamento

Além da investigação, a outra estratégia deavaliação é o rastreamento. Assim como o radarrastreia um segmento do espaço aéreo na procurade objetos significativos, não facilmente detecta-dos de outra forma, os médicos também utilizamuma estratégia similar na busca de informações.Rastreamento é uma estratégia de avaliação nãodiretamente orientada pela hipótese. Nesse caso,procuram-se fatos, sintomas e achados semioló-gicos que possam estar relacionados com o proble-ma ou possam representar um outro problema quetambém necessite ser investigado. Revisão de sis-temas, palpação do abdome em pacientes com quei-xas respiratórias e alguns testes de laboratório derotina podem se prestar para essa estratégia.Aqui, os atributos de benefícios, riscos e custostambém devem servir de guia.

Rastreamento é especialmente útil quando oprocesso de raciocínio encontra-se encalhado. Aprodução de novas informações pode gerar novashipóteses ou sugerir novos caminhos de investiga-ção. Rastreamento também é utilizado para aumen-tar a confiança do médico na hipótese escolhidapor descobrir novos fatos que lhe dão suporte oupor não fornecer qualquer dado adicional que

pudesse estar escondido, assegurando que todos osdados fundamentais estão sendo considerados.

O desenvolvimento da síntese do problemaO desenvolvimento da síntese do problemaO desenvolvimento da síntese do problemaO desenvolvimento da síntese do problemaO desenvolvimento da síntese do problema

Guiado por múltiplas hipóteses, o médico dese-nha uma estratégia para avaliar os dados necessá-rios para solucionar o problema clínico. Através desuas habilidades, ele colhe dados e os adicionacontinuamente ao conceito inicial. Durante esseprocesso, novas hipóteses são geradas e novasestratégias são desenhadas no caminho da decisãodiagnóstica e terapêutica. Quando a análise suge-re que uma nova informação é relevante, positivaou negativa, ela deve ser adicionada ao conceitoinicial. Essa adição de um novo dado ao conceitoprévio aumenta e modifica o conteúdo significativodo problema clínico. Como um processo contínuo ecíclico de raciocínio, a adição de novos dados trans-forma o conceito inicial na direção de uma síntesedo problema13.

A síntese do problema é o elemento resultanteda análise e síntese científica do problema e é umproduto essencial do bom uso do raciocínio clínico.Quando um médico experiente é questionado sobreum determinado problema, ele oferece um resumocom dados altamente significativos que estão sen-do usados no processo de solução de problemasmédicos. Esse resumo, a síntese do problema, ra-ramente tem dados sem importância e está, ge-ralmente, organizada dentro de um contexto fisio-patológico. Os dados incluídos nessa síntese são oresultado da avaliação orientada pelas hipóteses.

Mesmo que a síntese do problema seja muitosugestiva de um diagnóstico, a hipótese dessediagnóstico é somente um rótulo conveniente. Asíntese do problema é a verdadeira representaçãodo paciente. O conteúdo da síntese do problemadeve ser descrito e guardado na memória durantetodo o processo. Quando novos dados são disponí-veis, eles podem mudar esse conteúdo e sugerirnovos diagnósticos.

A decisão diagnósticaA decisão diagnósticaA decisão diagnósticaA decisão diagnósticaA decisão diagnóstica

A solução do problema clínico passa por duasgrandes decisões: a diagnóstica e a terapêutica12.Uma decisão diagnóstica sempre tem que ser feitaantes do tratamento. Na maioria das vezes, nemtodos os dados desejados estão disponíveis no mo-mento que uma decisão terapêutica precisa ser to-mada. Mesmo assim, o médico tem que decidir pelomais provável, mesmo que um diagnóstico seguroainda não seja possível. A decisão deve ser semprefeita em favor do paciente. Existe risco e responsabi-lidade em jogo nessa tarefa. A decisão diagnóstica éum dos maiores desafios da prática médica.

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RACIOCÍNIO CLÍNICO

Após estabelecer a síntese do problema, o médicodeve decidir qual das hipóteses ativas tem maiorpoder explicativo para solucionar o problema clí-nico10,11. Para se chegar a essa decisão, o médicoavalia se a síntese do problema se encaixa em umadas hipóteses ativas. Esse “encaixe” ocorre quandoo paciente apresenta um número suficiente deachados positivos e negativos esperados em umadeterminada hipótese diagnóstica, suficientespara dar ao médico a segurança de que a hipóteseexplica o problema do paciente. Um encaixe perfei-to raramente ocorre, já que a expressão das doen-ças é variável. Cada paciente é único em respostae estilo. A aferição da integridade funcional dosórgãos é limitada e muito suscetível a erros (ne-nhuma aferição tem acurácia e precisão absolu-tas). Mesmo assim, o papel do médico é interpretaros sintomas, sinais e resultados de exames labo-ratoriais e de procedimentos de maneira individuale avaliar seus resultados nos termos das mani-festações das doenças. Uma decisão diagnósticatem de ser feita! O médico deve praticar para estarconfortável em tomar decisões, ainda que diantede dados inadequados e conflitantes, mais regraque exceção no processo de solução de problemasclínicos.

Os princípios lógicos do diagnóstico diferencial

O processo diagnóstico é realizado tão freqüen-temente pelos médicos que se torna espontâneo einconsciente. A experiência torna nossas tarefasordinárias tão fáceis de reconhecer quanto os ros-tos que nos são familiares. Mas, mesmo sendo oprocesso de reconhecimento uma parte essencialdo diagnóstico, ele falha quando o problema écomplicado ou não habitual. O diagnóstico porestereótipo restringe o diagnóstico apenas aoscasos comuns, como quando a avó reconhece osarampo no neto.

Para usarmos o raciocínio dedutivo com ummínimo de erro, é preciso conhecer as faláciaslógicas que o médico pode cometer21. Diagnósticoscorretos são baseados em raciocínios adequados eem informações válidas. O médico que descarta alógica pode assumir ingenuamente que provou umdiagnóstico, quando apenas estabeleceu um diag-nóstico provável ou possível. O conhecimento dabase lógica da prova ou da refutação pode nãosomente dar maior precisão ao diagnóstico indivi-dual como, também, fornecer uma base racionalpara avaliar as decisões diagnósticas.

A lógica estuda as formas corretas de raciocí-nio10. Existem regras para guiar o uso de argumen-tos válidos e sólidos por caminhos que nos condu-zam ao encontro da verdade. O que se deseja

evitar, a todo custo, é o estabelecimento de falsasconclusões a partir de evidências verdadeiras.

Entretanto, o uso do raciocínio lógico não é umagarantia de conclusões verdadeiras. A lógica pos-sui regras úteis para processar as informaçõesclínicas na busca de uma solução adequada para oproblema clínico, mas não integra nenhuma segu-rança de que as informações clínicas e suas inter-pretações estão corretas. A lógica estuda somenteas formas de raciocínio e, não, os seus conteúdos.O médico necessita obter, analisar, sintetizar eavaliar adequadamente informações clínicas pre-cisas e acuradas para, depois, processá-las de for-ma lógica. Somente assim ele estará próximo doraciocínio correto e da decisão certa.

Com esses conceitos em mente, o clínico, usandoa lógica no diagnóstico diferencial, testa uma desuas hipóteses de cada vez, tentando refutar asincorretas e suportar a correta. Ele faz isto respon-dendo a duas perguntas: 1ª) o diagnóstico explicatodos os achados clínicos?; e 2ª) todos os achadosclínicos esperados estão presentes?

Com a resposta da primeira pergunta, procura-mos saber se o problema se encaixa na hipóteseproposta. O problema de um paciente idoso, comdor óssea, emagrecimento, anemia e uma velocida-de de hemossedimentação acelerada se encaixa nahipótese de mieloma múltiplo? Para a segundapergunta, nossa perspectiva é invertida e exami-namos a hipótese para avaliar se os seus atributos(critérios diagnósticos) são congruentes com o pro-blema. O referido paciente tem lesões osteolíticasno esqueleto? A eletroforese de proteínas demons-tra um pico monoclonal das gamaglobulinas? Háproteínas de Bence-Jones na urina? Nesse proces-so lógico de raciocínio, o clínico precisa ter emmente que o problema é real e existe; a doença éapenas um construto lógico, um agrupamento con-veniente, sem nenhuma outra existência alémdessa.

O delineamento demonstrado na fig. 2 refere-seàs perguntas realizadas no suporte ou refutaçãodas hipóteses21. Baseia-se no uso de um teste espe-cífico positivo para suportar um diagnóstico e umteste sensível negativo para refutá-lo.

A validação diagnóstica

Antes que um diagnóstico seja aceito como basepara uma ação (terapêutica ou prognóstica), eledeve ser submetido a uma avaliação de sua valida-de. Esse processo de verificação da validade diag-nóstica compõe-se de uma comparação final entreos achados clínicos (presentes e ausentes) e adoença ou doenças suspeitas22. Quando o problemaclínico é idêntico a uma entidade clínica conhecida,

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pouca ou nenhuma investigação diagnóstica futu-ra, geralmente, é necessária e uma ação pode sertomada. Quando alguma manifestação difere dopadrão clínico conhecido, uma decisão sobre se amanifestação é meramente uma variação clínicaou se ela invalida o diagnóstico deve ser feita pelomédico. Esse dilema é mais provável de ser encon-trado quando o médico tem pouca experiênciapregressa com a hipótese diagnóstica. Em todasessas situações, uma revisão detalhada das mani-festações clínicas pode auxiliar a decidir se umachado clínico em particular é consistente com ahipótese ou a invalida definitivamente.

Essa fase de validação das hipóteses visa obterum diagnóstico que auxilie na planificação deações futuras. Como o processo diagnóstico éinferencial, ele reflete, necessariamente, umacrença ou uma convicção do médico com relação àsmanifestações clínicas do paciente. Em virtude danatureza das evidências clínicas, o médico devesempre manter uma dúvida saudável quanto aosdados clínicos, bioquímicos, radiológicos ou histo-lógicos dos dados disponíveis. Para diminuir aspossibilidades de erro, o médico deve buscar, en-tão, uma validação do seu diagnóstico. Esse testede validade envolve avaliar cada hipótese para apresença de coerência, adequação e parcimônia11.A coerência busca uma consistência entre as mani-festações clínicas do paciente e o modelo da doençahipotetizada (suas causas, relações fisiopatoló-gicas, achados clínicos, prognóstico etc). A ade-quação requer uma hipótese que explique todos osachados clínicos normais e anormais do paciente.E a parcimônia é a procura da hipótese maissimples para explicar os achados clínicos. A coe-rência é a resposta à primeira e a adequação é aresposta à segunda pergunta da lógica no diagnós-tico diferencial.

O processo de falsificação também é usado nessafase para eliminar hipóteses diagnósticas4. Umdado clínico que, claramente, é inconsistente com

uma hipótese é usado para descartá-la. A credibi-lidade de um diagnóstico é, também, uma funçãode sua probabilidade. O diagnóstico com maiorprobabilidade é o que mais, provavelmente, repre-senta o problema clínico do paciente1.

A aprovação de uma hipótese diagnóstica antesda sua validação é conhecida como “fechamentoprematuro”23. Isto, muitas vezes, ocorre quando omédico deixa de obter todos os dados clínicos rele-vantes ou quando, da decisão diagnóstica, não levaem consideração todo o conjunto de manifestaçõesclínicas significativas (presentes e ausentes).Quando, após uma validação adequada, o médiconão obtém um diagnóstico aceitável, ele deve con-tinuar à procura por novos dados clínicos oureexaminar todos os dados disponíveis e conside-rar novas hipóteses diagnósticas.

O resultado do processo de validação diagnós-tica, geralmente, resulta num diagnóstico simples(parcimônia) e altamente provável, capaz de expli-car as principais manifestações clínicas do pacien-te (adequação) e coerente nas suas relações cau-sais e fisiopatológicas1,11. E nenhuma manifes-tação clínica presente é inconsistente para invali-dá-lo completamente. Após a sua validação, o diag-nóstico clínico permite que decisões terapêuticas eprognósticas possam ser implementadas.

A decisão terapêutica

Uma vez feita a decisão diagnóstica, o médicodeve executar a tarefa de selecionar o tratamentoapropriado (fig. 3). O tratamento deve ser dirigidoao paciente com o diagnóstico em questão e não aodiagnóstico propriamente dito24. Apesar dos esfor-ços da medicina moderna em procurar estabelecero melhor tratamento para cada doença em particu-lar, a escolha terapêutica é influenciada pelascondições clínicas do paciente, pela presença dedoenças intercorrentes, complicações, riscos tera-pêuticos, disponibilidade de recursos, custos e ex-periência do médico25. Então, essa decisão repou-

achados específicos hipótese suportada1) O diagnóstico explica achados inespecíficos hipótese possível

os achados clínicos?somente uma doença provável hipótese refutadamais de uma doença provável hipótese não refutada

achados específicos hipótese suportada2) Os achados esperados achados inespecíficos hipótese possível

estão presentes?dado ausente sine qua non hipótese refutadadado ausente não sine qua non hipótese não refutada

→→→→→→→→→→

→→→→→→→→→→

→→→→→→→→→→→→→→→→→→→→→→→→→→→→→→→→→→→→→→→→

Fig. 2Fig. 2Fig. 2Fig. 2Fig. 2 – O delineamento da lógica diagnóstica (adaptado da referência 21).

sim

não

sim

não

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sa, principalmente, no conhecimento do médico ede sua avaliação da possível utilidade que cadatratamento alternativo teria para cada um dosproblemas do paciente.

As decisões terapêuticas, no processo de soluçãodos problemas clínicos, envolvem a idealização deplanos ou cursos de ação que tenham por objetivosmudar a situação atual do problema para umaoutra melhor. A mudança pode ser a cura, o alíviode um sofrimento, a prevenção de uma doençagrave iminente ou de uma complicação, a reduçãodas preocupações do paciente ou a compreensãorealista do problema. Em todas essas situações,entretanto, o médico deve ter uma síntese do pro-blema e uma hipótese diagnóstica adequada parapermitir a planificação do tratamento. A avaliaçãocuidadosa e científica do paciente é apenas ummeio para a escolha do tratamento apropriado13. Odiagnóstico, embora um caminho fundamental noprocesso da solução do problema clínico, não é oseu objetivo final. O objetivo final do processo é asolução do problema com a terapêutica dirigidapelo diagnóstico e pela síntese do problema.

A base científica das decisões terapêuticas

Muitos princípios científicos auxiliam o médicona tomada de decisão terapêutica. Deve-se evitaras decisões baseadas em descrições não controla-das de eficácia e risco terapêutico, porque fatorescomo efeito placebo e alterações espontâneas nasmanifestações clínicas obscurecem a interpre-

tação das respostas individuais. Para se evitarvícios de confusão, os médicos devem preferir ava-liações terapêuticas advindas de estudos controla-dos, randomizados e duplo-cegos. Esses estudossão caros, trabalhosos e também sujeitos a falhas,mas fornecem uma valiosa informação terapêuti-ca. Os resultados dos ensaios clínicos rando-mizados são guias importantes na seleção de trata-mentos individuais19,25. No entanto, devem ser uti-lizados de forma criteriosa pelo clínico. Muitasvezes, seus pacientes diferem em um ou maisaspectos dos pacientes incluídos no estudo, fazen-do a resposta do paciente ao tratamento variartambém em alguma extensão. Essas diferençasincluem o sexo, idade, raça, constituição genéti-ca, intensidade da doença, doenças e tratamentosconcomitantes, complicações presentes e estágiosde evolução clínica. Quando o paciente não seassemelha àqueles incluídos numa coorte de estu-dos controlados ou quando nenhum estudo é dis-ponível, o julgamento do médico se torna crítico,fazendo-o retornar aos princípios da tomada dedecisão em face da incerteza.

Antes de finalizar sua decisão quanto ao trata-mento, o médico deve tentar estreitar suas possí-veis alternativas terapêuticas, que são lançadas etestadas de modo semelhante à avaliação das hipó-teses diagnósticas. Nesse processo, a resposta aduas perguntas são úteis no auxílio da escolha damelhor alternativa13: 1ª) Qual é o objetivo do trata-mento? É a cura do paciente, correção do estadofisiopatológico alterado, alívio dos sintomas, pre-venção de complicações ou o prolongamento davida? Embora, freqüentemente, sejam distinçõesdifíceis de fazer, o médico deve sempre procurarestabelecer claramente seus objetivos. Sem conhe-cer seus objetivos previamente, o médico nuncasaberá se seu tratamento foi efetivo. 2ª) Qual é ograu de efetividade esperada? Só a definição doobjetivo não é suficiente. É preciso conhecer quantodo objetivo previamente definido se quer obter e emque se baseia essa efetividade esperada. Prolongarquanto a vida? Aliviar totalmente ou parcialmenteos sintomas? Qual a base de conhecimento quepermite esperar tal efetividade? Os estudos quemostraram uma determinada efetividade foramfeitos em pacientes semelhantes ao seu?

Além das duas questões anteriores, relaciona-das com o benefício potencial de uma escolha tera-pêutica, o médico também precisa levar em consi-deração seus custos e riscos. Estes envolvem ocusto financeiro do tratamento, efeitos colaterais eas inconveniências e desconfortos associados acada tratamento. Teoricamente, a alternativa como menor custo e risco e o com maior benefício deve

Percepção

Informações disponíveisno início do encontro

médico-paciente

Análise

Síntesedo

problema

Decisãoterapêutica

Decisãodiagnóstica

Múltiplashipóteses

Avaliação →→ →→→→→ →→→

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→→→→→

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→→→→ →

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Fig. 3Fig. 3Fig. 3Fig. 3Fig. 3 – As decisões diagnóstica e terapêutica (adapta-do da referência 13).

1) I n v e s t i g a ç ã o2)Rastreamento

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ser escolhida. Muitas vezes, isso não é tão simplese o médico tem de avaliar se benefícios adicionaiscompensam maiores custos e riscos.

Ainda, respeitadas todas as outras considera-ções, quando a eficácia do tratamento disponívelpara uma dada condição clínica é baixa ou o riscodo tratamento é alto, esse tratamento só deve serdado se a probabilidade da doença for alta. Se orisco do tratamento é insignificante e sua eficáciaé muito grande, a decisão pode ser iniciar o trata-mento mesmo quando a probabilidade da doençanão é muito ou tão alta26,27.

Outras vezes, o médico tem que decidir se umtratamento com significância estatística possuisignificância clínica. Quando, avaliando uma deci-são entre dois tratamentos, o clínico procura esta-belecer as vantagens de um sobre o outro. Algumasvezes, o benefício é grande e a decisão é fácil.Outras vezes, uma diferença de sobrevida dealguns poucos dias ou um controle melhor de umamanifestação clínica secundária (embora com sig-nificância estatística nos estudos) não são sufi-cientes para justificar a escolha de um dos trata-mentos (sem significância clínica). Se os riscos ecustos também são semelhantes, a decisão é consi-derada empatada. Nesses casos, a experiênciaprévia do clínico ou a preferência do paciente sãoessenciais para a escolha.

A educação do paciente

Nenhum plano de tratamento é completo se omédico não delineia um plano de educação indivi-dualizado para o paciente13. O sucesso do plano detratamento depende, muitas vezes e em grandeparte, do doente. Então, o plano educacional é umcomponente essencial de virtualmente qualquerprocesso de solução de problemas clínicos. Muitofreqüentemente, ele é o mais importante item dadecisão terapêutica e, algumas vezes, é a únicadecisão.

A monitorização

Dentro do processo de solução dos problemasclínicos, após as decisões diagnóstica e terapêuti-ca, a próxima demanda do médico é a monitori-zação dos efeitos do tratamento na progressão dadoença11. Isto é tipicamente feito por meio da ins-peção cuidadosa e repetida de um dado ou de umgrupo de dados, verificando sua estabilidade ousua tendência. Os dados clínicos selecionados paraa monitorização (sintoma ou sinal clínico, dadosvitais, exames de laboratório etc.) são deduzidos apartir das decisões diagnósticas e terapêuticas. Seas expectativas não são encontradas, uma decisãodeve ser reinvestigar as possibilidades diagnós-

ticas ou modificar o tratamento. A monitorizaçãoemprega o conhecimento do médico, suas habilida-des de observação e a memória dos dados recentesdo paciente, podendo levar a um aumento signifi-cativo do uso do laboratório.

Assim como o conhecimento científico cresce àscustas de hipóteses, leis e teorias que se suportamao longo do tempo, validadas pelos múltiplos tes-tes a que são submetidas, também as decisõesdiagnósticas mantêm seu caráter hipotético ouconjectural ao longo da monitorização clínica.Como um processo cíclico e dinâmico, os resultadosda monitorização modificam constantemente asíntese do problema. O médico deve se manter aten-to a essas modificações porque elas são essenciaisno suporte cada vez mais firme dos diagnósticos jáassumidos, na refutação de hipóteses anterior-mente tidas como certas, na identificação de novosdiagnósticos (p. ex. complicações) ou na manuten-ção ou modificação do esquema terapêutico esco-lhido. Visto dessa forma, a monitorização não é ofim do processo de solução dos problemas clínicos.É um meio para se atingir o fim do processo, ouseja, a solução do problema do paciente.

SUMMARYSUMMARYSUMMARYSUMMARYSUMMARY

Clinical reasoning – the diagnostic and thera-Clinical reasoning – the diagnostic and thera-Clinical reasoning – the diagnostic and thera-Clinical reasoning – the diagnostic and thera-Clinical reasoning – the diagnostic and thera-peutic decision processpeutic decision processpeutic decision processpeutic decision processpeutic decision process

The goal of this review is to demonstrate thesteps and the main items of the cognitive processused by doctors in clinical reasoning of diagnosticand therapeutic decisions. The clinical problem-solving process makes use of the hypothetic deduc-tive scientific method to solve problems. As soon asthe doctor meets his (her) patient, many diagnostichypotheses emerge in his (her) mind, which areevaluated and refuted or corroborated. The diag-nostic decision occurs when a hypothesis reach acertain degree of likelihood. The therapeutic deci-sion is based on the intended objectives and thewaited efectiveness among many available alter-natives. [Rev Ass Med Brasil 1998; 44(4): 301-11.]

KEY WORDS: Clinical reasoning. Problem solving. Decisionmaking. Clinical competence. Diagnosis. Physician-patient relations.

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