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O raciocínio com frases condicionais do tipo “Se p, então q” tornou-se claramente o modo de investigação privilegiado para a compreensão do raciocínio dedutivo. Tal deve-se também ao facto deste tipo de frase ser comum no discurso do quotidiano (sendo também familiar para as crianças), bem como o de poderem ter diferentes interpretações e expressarem conteúdos de natureza diferente. Mas não é apenas à psicologia que esta pequena palavra (o “se”) tem interessado, já antes tinha despertado o interesse dos lógicos, e também dos linguistas, pelo que se compreende a afirmação de Johnson-Laird (2006, p. 296), acerca do “if”, de que “Nenhuma outra palavra tão pequena gerou tantos livros”. A presente investigação sobre raciocínio também irá recorrer a frases condicionais, com particular interesse pelo conteúdo deôntico, para expressar permissões e obrigações. Neste domínio, iremos distinguir ainda obrigações de dois tipos, consoante sejam facilmente violáveis (e.g., “Se o jovem comprar bebidas alcoólicas, então tem de ter completado 16 anos”), ou praticamente impossíveis de violar (e.g., “Se o jovem votar, então tem de ter completado 18 anos”), na expectativa de que possam gerar diferentes interpretações por parte dos partici- pantes reclusos. Serão as práticas de violação da lei, que levam à reclusão, fonte de conheci- mentos capaz de modular ou de moderar o raciocínio com condicionais deônticas? Iremos também utilizar frases condicionais que geram diferentes interpretações (condicional e capacitante), independentemente de serem de conteúdo deôntico ou epistémico, e que são explicadas pela teoria dos modelos mentais como resultado da modulação semântica (Johnson-Laird & Byrne, 2002; Quelhas & Johnson-Laird, 2005; Quelhas, Johnson-Laird, & Juhos, 2010). Finalmente, será também avaliado o nível de desenvolvimento moral (na amostra de reclusos e na de não-reclusos), na expectativa de que esta medida possa distinguir os dois grupos em estudo. Assim, e para uma melhor compreensão do enquadramento teórico desta investigação, iremos nesta introdução posicionar o estudo do raciocínio condicional, de acordo com a teoria dos modelos mentais, bem como do raciocínio deôntico, e finalmente o modo de avaliar o desenvolvimento do juízo moral. Antes da descrição do método iremos ainda clarificar os objectivos e as hipóteses em estudo. Raciocínio condicional e modelos mentais De acordo com a teoria dos modelos mentais (e.g., Johnson-Laird, 2006; Johnson-Laird & Byrne, 2002), as frases condicionais básicas, i.e., o mais possível independentes de pistas 597 Análise Psicológica (2010), 4 (XXVIII): 597-618 Raciocínio deôntico em reclusos ANA CRISTINA QUELHAS (*) JOÃO GUERREIRO (**) (*) ISPA-IU, Rua Jardim do Tabaco, 34, 1149-041 Lisboa; E-mail: [email protected] (**) Doutorando em Criminologia na Universidade de Montreal, Canadá; E-mail: joao.da.silva. [email protected]. Agradecimentos: À Fundação para a Ciência e Tecnologia – FCT, por ter parcialmente subsidiado esta investigação.

Raciocínio deôntico em reclusos - SciELO · 2014. 4. 14. · A presente investigação sobre raciocínio também irá recorrer a frases condicionais, com particular interesse pelo

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O raciocínio com frases condicionais do tipo“Se p, então q” tornou-se claramente o modo deinvestigação privilegiado para a compreensão doraciocínio dedutivo. Tal deve-se também aofacto deste tipo de frase ser comum no discursodo quotidiano (sendo também familiar para ascrianças), bem como o de poderem ter diferentesinterpretações e expressarem conteúdos denatureza diferente. Mas não é apenas àpsicologia que esta pequena palavra (o “se”) teminteressado, já antes tinha despertado o interessedos lógicos, e também dos linguistas, pelo que secompreende a afirmação de Johnson-Laird(2006, p. 296), acerca do “if”, de que “Nenhumaoutra palavra tão pequena gerou tantos livros”.

A presente investigação sobre raciocíniotambém irá recorrer a frases condicionais, comparticular interesse pelo conteúdo deôntico, paraexpressar permissões e obrigações. Nestedomínio, iremos distinguir ainda obrigações dedois tipos, consoante sejam facilmente violáveis(e.g., “Se o jovem comprar bebidas alcoólicas,então tem de ter completado 16 anos”), oupraticamente impossíveis de violar (e.g., “Se ojovem votar, então tem de ter completado 18

anos”), na expectativa de que possam gerardiferentes interpretações por parte dos partici-pantes reclusos. Serão as práticas de violação dalei, que levam à reclusão, fonte de conheci-mentos capaz de modular ou de moderar oraciocínio com condicionais deônticas?

Iremos também utilizar frases condicionais quegeram diferentes interpretações (condicional ecapacitante), independentemente de serem deconteúdo deôntico ou epistémico, e que sãoexplicadas pela teoria dos modelos mentais comoresultado da modulação semântica (Johnson-Laird& Byrne, 2002; Quelhas & Johnson-Laird, 2005;Quelhas, Johnson-Laird, & Juhos, 2010).Finalmente, será também avaliado o nível dedesenvolvimento moral (na amostra de reclusos ena de não-reclusos), na expectativa de que estamedida possa distinguir os dois grupos em estudo.

Assim, e para uma melhor compreensão doenquadramento teórico desta investigação,iremos nesta introdução posicionar o estudo doraciocínio condicional, de acordo com a teoriados modelos mentais, bem como do raciocíniodeôntico, e finalmente o modo de avaliar odesenvolvimento do juízo moral. Antes dadescrição do método iremos ainda clarificar osobjectivos e as hipóteses em estudo.

Raciocínio condicional e modelos mentais

De acordo com a teoria dos modelos mentais(e.g., Johnson-Laird, 2006; Johnson-Laird &Byrne, 2002), as frases condicionais básicas,i.e., o mais possível independentes de pistas

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Análise Psicológica (2010), 4 (XXVIII): 597-618

Raciocínio deôntico em reclusos

ANA CRISTINA QUELHAS (*)JOÃO GUERREIRO (**)

(*) ISPA-IU, Rua Jardim do Tabaco, 34, 1149-041Lisboa; E-mail: [email protected]

(**) Doutorando em Criminologia na Universidadede Montreal, Canadá; E-mail: [email protected].

Agradecimentos: À Fundação para a Ciência eTecnologia – FCT, por ter parcialmente subsidiadoesta investigação.

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semânticas ou pragmáticas, e.g., “Se há umtriângulo, então há um quadrado”, tem um signi-ficado nuclear que admite três possibilidades:

¬� ¬�¬� ¬�¬� ¬�

Cada linha representa uma possibilidade emque o antecedente (o triângulo) se verifica ounão (quando não se verifica é precedido pelosinal “¬”), bem como o consequente (oquadrado). O que estas três possibilidadesrepresentam é a ideia de que se há um triângulohá um quadrado, e se não há um triângulo podeou não haver um quadrado.

Mas, as condicionais do tipo “Se p, então q”,quando usadas no quotidiano, raramente sãoneutras ou descontextualizadas, pelo que osignificado das suas orações, as suas ligações co--referenciais, e os conhecimentos sobre ocontexto, irão modular o significado nuclear dascondicionais básicas (Johnson-Laird & Byrne,2002). Assim, prevê-se que haja diferentesconjuntos de possibilidades consideradascongruentes com as diferentes frases condi-cionais (embora idênticas do ponto de vistaformal). Por exemplo, a frase “Se o animal é umcavalo, então a fêmea é uma égua”, deverá serinterpretada como sendo congruente com duaspossibilidades apenas:

¬cavalo ¬égua¬cavalo ¬égua

uma que corresponde à situação em que se tratade um cavalo e a fêmea uma égua, e outrapossibilidade em que o animal não é um cavalo ea fêmea não é uma égua.

Note-se que a segunda possibilidade dainterpretação da condicional básica anterior-mente descrita (¬� �) corresponderia, nopresente exemplo, à situação: (¬cavalo égua),quer dizer, teríamos um animal que não é umcavalo e cuja fêmea é uma égua, situação quenão é considerada possível dados os nossosconhecimentos. Este é um dos efeitos damodulação, que consiste justamente em bloqueara construção de certas possibilidades que fazemparte do significado nuclear, dado que essaspossibilidades vão contra os nossos conheci-mentos. Outro efeito da modulação é o de

enriquecer os modelos com informação sobrerelações temporais, espaciais ou de causalidade.Por exemplo a frase “Se a Teresa cair dabicicleta, então esfola o joelho”, a congruênciada possibilidade em que a Teresa cai e tem ojoelho esfolado obriga a uma ordem temporal(primeiro cai e depois esfola o joelho).

Johnson-Laird e Byrne (2002) distinguem deztipos de interpretação das frases condicionais,como resultado da modulação semântica epragmática sobre o significado básico, desde ainterpretação condicional (equivalente ao quevimos na condicional básica), passando pelainterpretação bicondicional, como no exemplo docavalo, e outras interpretações que não sãoprevistas nem explicadas por nenhuma outrateoria, como é o caso da interpretação de rele-vância. Por outro lado, Quelhas e Johnson-Laird(2005), e Quelhas Johnson-Laird e Juhos (2010),têm fornecido evidência empírica sobre asconsequências destas diferentes interpretações noraciocínio condicional, mostrando que é possívelprever os padrões inferenciais com base nasdiferentes interpretações. Já vimos como a inter-pretação de uma frase condicional pode levar aconsiderar um conjunto de possibilidades que édiferente consoante a interpretação. Vejamosagora o que acontece no raciocínio, por exemplo,na inferência denominada Negação do Antece-dente, onde a premissa menor (a premissa maior éa própria frase condicional) nega o antecedente dafrase condicional, como por exemplo:

Se há um triângulo, então há um quadradoNão há um triânguloPortanto ………………………………….

Neste caso, é possível concluir que pode ounão haver um quadrado, dado que a interpretaçãodesta frase comporta duas possibilidades emque não há um triângulo (ver acima), sendo quenuma tem associado o quadrado e na outra não.No entanto, para o exemplo “Se o animal é umcavalo então a fêmea é uma égua” a interpre-tação só contempla uma possibilidade em que oanimal não é um cavalo (¬cavalo ¬égua).Deste modo prevê-se que haja um maior númerode inferências Negação do Antecedente (onde aconclusão é a negação do consequente da frasecondicional, i.e., o que vem depois do “então”)no segundo caso do que no primeiro.

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Até agora temos referido o conjunto completode possibilidades congruentes com determinadainterpretação de uma frase condicional, mas seráque o sujeito, quando raciocina, considera todasessas possibilidades? Ou melhor, será que essaspossibilidades serão todas representadasmentalmente, constituindo os modelos mentaisque são o alicerce para o raciocínio? Múltiplasinvestigações no âmbito da teoria dos modelosmentais têm apoiado a ideia de que os sujeitostendem a construir um modelo inicial derepresentação de uma frase, e só mediante certascircunstâncias desenvolvem essa representaçãoinicial (o que é congruente com o princípiogeral de economia cognitiva). Um corolário dateoria dos modelos é que quanto mais modelosuma inferência requer, maior a sua dificuldade,demora mais tempo e está mais sujeita a erros,podendo mesmo ultrapassar a capacidade damemória de trabalho dos sujeitos (Guerreiro,Quelhas, & García-Madruga, 2006).

Mas então qual é a representação/modeloinicial de uma frase condicional? De acordocom a teoria dos modelos será o modelo em queo antecedente e o consequente se verificam, esão alguns princípios que conduzem a estarepresentação inicial. Um deles é o princípio deverdade, de acordo com o qual nós represen-tamos o que é verdadeiro e não o que é falso (anão ser que alguma pista pragmática faça realçara impossibilidade, o que é falso, ou, no domíniodeôntico, o que é não permissível). Por exemplo,para a frase “Se há um triângulo, então há umquadrado”, a possibilidade falsa (ou impossibi-lidade), seria o caso em que há um triângulo enão há um quadrado (� ¬�), pelo que estacontingência não fará parte da representaçãomental. Restam então três possibilidades (veracima), mas a teoria dos modelos assume que arepresentação inicial assenta nos modelos emque o antecedente é satisfeito, pelo que, e nocaso da interpretação condicional acima referida,resta apenas um modelo em que há um triânguloe um quadrado (� �), ou, como referimos, emque o antecedente e o consequente se verificam(para uma revisão da teoria dos modelos verJohnson-Laird, 2006). Uma questão quepodemos colocar é a seguinte: será que tudo istose passa do mesmo modo quando o conteúdo dascondicionais é do domínio do deôntico?

Raciocínio deôntico

Uma frase deôntica pode ser formulada naforma condicional ou categórica, e o seuconteúdo remete para os conceitos de permissão,obrigação, ou proibição, referindo-se normal-mente a regras sobre o que podemos, devemosou não devemos fazer. Em Psicologia, a maiorparte da investigação sobre o raciocínio deônticofoi feita em redor da tarefa de selecção de Wason(1966, ver e.g., Cheng & Holyoak, 1985;Cosmides, 1989; e para uma revisão ver, e.g.,Evans, Newstead, & Byrne, 1993).

Fiddick (2004) tenta unir dois domínios deinvestigação, no que diz respeito ao raciocíniodeôntico: o do raciocínio cognitivo e o doraciocínio moral. Aponta também algumasdivergências, como o facto de a literatura nodomínio do raciocínio moral considerar aexistência de diferentes domínios de regras: regrasmorais, regras convencionais sociais, regras deprudência e regras pessoais, e advogar que aspessoas pensam de diferente modo as diferentesregras. Por outro lado, a literatura do raciocíniocognitivo considera que, e apesar das diversasteorias existentes, as pessoas pensam do mesmomodo as obrigações, permissões e proibições.Note-se que o autor se baseia, neste último caso,na investigação dominante, que, como referimos,gira em redor da tarefa de selecção. No entanto, éde assinalar uma excepção, no que respeita atrabalhos mais recentes no âmbito da teoria dosmodelos mentais (e.g., Bucciarelli & Johnson-Laird, 2005; Johnson-Laird & Byrne, 2002;Quelhas & Byrne, 2003), que iremos aquidescrever um pouco, dada a importância dascondicionais deônticas no presente trabalho.

O antecedente de uma condicional deônticarefere-se a uma possibilidade factual, enquantoque o consequente se refere a uma possibilidadedeôntica (Johnson-Laird & Byrne, 2002). Acondicional “Se a enfermeira limpou o sangueentão teve de usar luvas de borracha” tem comomodelos explícitos as seguintes possibilidadesverdadeiras:

Possibilidades Possibilidadesfactuais: deônticas:não-sangue não-luvasnão-sangue não-luvasnão-sangue não-luvas

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mas, a praxis da boa gestão das regras passa porsaber não só o que é permitido como tambémpor saber o que não é permitido, pelo que estetipo de conhecimentos deverão também fornecero complemento dos modelos acima:

Possibilidades Impossibilidadefactuais: deôntica:sangue não-luvas

Vemos assim uma das excepções ao princípiode verdade (segundo o qual representamos o queé verdadeiro), dada a relevância pragmática dasituação não permissível. Segundo Quelhas eByrne (2003), os sujeitos deverão ter comomodelos iniciais, os seguintes:

Possibilidades Possibilidadesfactuais: deônticas:sangue luvasPossibilidades Impossibilidadefactuais: deôntica:sangue não-luvas

Com base nestes modelos as autoras propõemduas vias para a inferência MT, o que faz preveruma superioridade destas inferências no domíniodeôntico versus o domínio epistémico, que éconforme os resultados encontrados. No caso dascondicionais no modo conjuntivo, como “Se aenfermeira tivesse limpo o sangue então teria deter usado luvas de borracha”, não é esperada ainterpretação contrafactual (o antecedente e oconsequente são falsos) que habitualmente omodo conjuntivo evoca, i.e., embora as pessoaspossam pensar que o antecedente é falso, não sedetêm a pensar no consequente, pelo que ascondicionais deônticas deverão ter a mesmainterpretação, independentemente de serem nomodo conjuntivo ou indicativo, ao contrário doque acontece com as condicionais epistémicas, oque também é concordante com os resultadosencontrados por Quelhas e Byrne (2003, parauma revisão em particular do pensamentocontrafactual ver Byrne, 2005). Note-se quetambém Bucciarelli e Johnson-Laird (2005) seinteressaram em investigar o significado dasfrases deônticas, o modo como esses signifi-cados são representados, e suas consequênciaspara o raciocínio, tendo também verificado queno caso das proibições (mas não nas permissõese obrigações) os sujeitos tendem a pensarprimeiro sobre o que é não permissível.

Relativamente ao presente estudo, tínhamoscomo objectivo saber até que ponto diferençasindividuais poderiam moderar ou modular oraciocínio com condicionais deônticas, para oque recorremos a uma amostra de sujeitosreclusos, dado serem aqueles que reconhecida-mente infringiram regras sociais importantes, eque iremos comparar com uma amostra de nãoreclusos o mais equivalente possível em termos deinstrução, idade e género. Note-se que a naturezapragmática do raciocínio tem sido mostradasobretudo no domínio do raciocínio deôntico,mas quase invariavelmente o faz recorrendo amanipulação do material que é apresentado aossujeitos. Por exemplo, Kilpatrick, Manketelow eOver (2007), manipulando o poder inerente doagente que refere a regra, verificam que quantomaior é o poder da fonte (e.g., regra enunciadapelo pai vs. pelo irmão) maior a confiança dossujeitos na ocorrência do consequente (dado oantecedente). Por outro lado, Over, Manktelow eHadjichristidis (2004) estabelecem uma pontecom a literatura sobre julgamento e tomada dedecisão, para melhor compreender o discursodeôntico. Recorrem nomeadamente ao julgamentoque as pessoas fazem sobre os esperados custos ebenefícios de possíveis acções, mostrando que aspreferências das pessoas têm um efeito correspon-dente no julgamento que fazem sobre condicionaisdeônticas. Outro trabalho recente, de Beller(2008), vem chamar a atenção para a necessidadede distinguir entre a formulação específica deuma regra deôntica (e.g., sobre a forma de umafrase condicional), e a representação mental danorma deôntica a que a formulação se refere,argumentando que o raciocínio deôntico operaessencialmente sobre a representação das normassociais.

No presente estudo também se faz variar omaterial apresentado, nomeadamente recorrendoa regras deônticas que são fácil e frequentementevioladas versus outras que dificilmente o são, erecorrendo a regras de permissão e de obrigação,mas o interesse central está na exploração dediferenças individuais (decorrentes de diferentespráticas no cumprimento de regras sociais/legais) no modo como os sujeitos raciocinamcom condicionais deônticas. Essas diferençasindividuais deverão ter expressão no nível dedesenvolvimento de juízo moral, pelo que foifeita uma avaliação de todos os participantesnesse domínio.

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A avaliação do juízo moral

A avaliação da maturidade moral das pessoasdepende sobretudo da perspectiva teórica que afundamenta. O juízo moral tem vindo a serestudado pela psicologia sobretudo a partir deuma perspectiva desenvolvimentista. A revisãodo modelo de raciocínio moral publicado porPiaget em 1932 (Piaget, 1978) foi o ponto departida das investigações de Kohlberg (1981,1984). Piaget utilizou a observação naturalistaenquanto as crianças jogavam ao típico “jeu desbilles”, e alguns dos seus colaboradores repli-caram os seus estudos através da apresentação decenários hipotéticos a crianças de diferentesidades, sobre a obediência, a mentira, a respon-sabilidade ou o castigo. Kohlberg substituiu-ospor nove dilemas morais. Depois da apresen-tação dos dilemas era pedido aos participantesque tomassem uma posição e justificassem osseus argumentos com vista a esclarecer que tipode raciocínios estariam na base das suasdecisões, i.e., as estruturas do raciocínio moralenvolvidas no raciocínio, mais do que osconteúdos do raciocínio per se.

Colby e Kohlberg (1987) seguiram longitudi-nalmente cerca de três quartos dos rapazesinicialmente estudados, e depois de múltiplasrevisões introduzidas aos dilemas e ao protocoloda entrevista de juízo moral, revolucionaram aliteratura neste domínio. Por um lado,verificaram que as crianças raciocinam de ummodo consistente de acordo com determinadasestruturas de raciocínio, independentemente dosconteúdos poderem ser diferentes, e por outrolado, identificaram seis estádios de desenvol-vimento moral que ocorreriam de acordo comuma sequência invariável (Kohlberg, 1984). Oraciocínio moral é para este autor construtivista,

resultado do desenvolvimento (cognitivo) dojuízo moral. Estes seis estádios organizar-se-iamcomo partes de um todo que se vai transformadoao longo do desenvolvimento, tornando-seobsoletos à medida que as novas estruturas vãotomando o seu lugar. Na Tabela 1, vemos umabreve descrição de cada um dos estádiosdefinidos por Kohlberg, depois das reformula-ções de que a sua teoria foi alvo, nomeadamenteno que se refere à eliminação do estádio 6 (cf.Colby & Kohlberg, 1987).

Um dos aspectos que marcou a popularidadedesta abordagem cognitiva do juízo moraldeveu-se à existência de metodologias deavaliação que, depois de sucessivas reformula-ções, têm permitido uma operacionalização desteconceito (Palmer, 2003). Existem fundamental-mente dois tipos de medida do juízo moral: osinstrumentos de produção e os de reconheci-mento. No primeiro caso são usados dilemasmorais que servem de ponto de partida para aprodução de justificações morais que repre-sentam processos de raciocínio de acordo com ashipóteses kohlberguianas. No caso das medidasde reconhecimento, os mesmos dilemas moraissão apresentados, mas desta vez é pedido àspessoas que avaliem a importância de uma listade afirmações padronizadas para cada estádio deraciocínio moral. No que se refere às medidas deprodução são de referir a entrevista de juízomoral (Colby & Kohlberg, 1987), a medida dereflexão sócio-moral (Gibbs, Widaman, &Colby, 1982) e a versão simplificada do mesmoinstrumento: “Sociomoral Reflection Measure-Short Form” (v. Gibbs, Basinger, & Fuller,1992). No que se refere às medidas de reconhe-cimento, o instrumento mais estudado é o Testede Definir Valores Morais (DIT).

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TABELA 1

Níveis e estádios de raciocínio moral segundo Kohlberg (1984)

Nível Estádio Orientação Moral

Pré-convencional 1 Punição/castigo e obediência2 Recompensa; calculismo

Convencional 3 Aprovação social e interpessoal (i.e., “Bom menino”/“boa menina”)4 Autoridade, manutenção da lei, da ordem e progresso social

Pós-convecional 5 Contrato social6 Princípios éticos universais

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O teste de definir valores morais de Rest(1979; Rest, Thoma, & Edwards, 1997; Rest,Narvaez, Bebeau, & Thoma 1999) foidesenvolvido em resposta à complexidade do“teste de Harvard”, como também é conhecida aentrevista de juízo moral. Ambos pressupõemque o juízo moral evolui de acordo com critériosdesenvolvimentistas (Lourenço & César, 1991),mas, e apesar de as duas se destinarem àavaliação do raciocínio moral, fazem-no sobpontos de vista diferentes. Em primeiro lugar,trata-se de metodologias com um formatodiferente. Ao contrário do que se passa com ametodologia de Kohlberg, em que existe umatarefa de produção verbal e espontânea, o DIT éuma tarefa de reconhecimento, compreensão epreferência (Lourenço, 2002). Começa por seapresentar às pessoas um dilema moral, numtotal de seis. Três desses dilemas são directa-mente importados de Kohlberg: Dilema deHenrique e da mulher doente; do médico e amorte misericordiosa e o do criminoso evadidoda prisão. Em termos de conteúdo, os outros trêsreferem-se a temas tão diversos como aocupação de instalações por estudantes quelutam por uma causa “justa”; questões ligadas aoracismo, retratando a situação de um patrão quese recusa a dar trabalho a um empregadocompetente, mas de etnia diferente da sua; e umúltimo que aborda a questão da liberdade deimprensa reivindicada por estudantes universi-tários após a publicação de um artigo.

Depois de ser pedido aos indivíduos para seposicionarem relativamente à questão funda-mental abordada no dilema, i.e., se deveria ounão assaltar a farmácia para salvar a mulher, nocaso do dilema de Henrique; denunciar ou nãoum prisioneiro evadido depois de anos desocialização, ou dar uma dose letal a uma doenteem estado terminal, etc., segue-se a tarefa deavaliação, em que é pedido aos indivíduos queavaliem um conjunto de doze afirmações morais.Os participantes deverão avaliar cada uma dasafirmações de acordo com a importância que lheatribuem: Muita, Bastante, Alguma, Pouca ouNenhuma, em relação à tomada de posição quepara si lhes pareça mais justa.

Cada afirmação corresponde a tomadas deposição frequentes de um determinado estádio dedesenvolvimento moral (i.e., 2, 3, 4, 5 ou 6),

havendo por vezes frases sem sentido, ou semgrande relação com o problema em causa cujopapel discutiremos no capítulo do Método.

Em seguida transcrevemos as doze afirmaçõespara o dilema de Henrique que apresentámosatrás na descrição dos estádios de raciocíniomoral (adaptado do original português porLourenço & César, 1991):

1) Deve-se ter em conta se as leis devem ounão ser cumpridas (afirmação de estádio 4).

2) Deve-se ter em conta se não é natural queum marido se preocupe com a sua mulher,a ponto de roubar (estádio 3).

3) Deve-se ter em conta se o Henrique estádisposto a roubar para ajudar a sua mulher,correndo o risco de ser atingido a tiro, ou irpara a cadeia (estádio 2).

4) Deve-se ter em conta se o Henrique é umprofissional de luta livre, ou tem contactoscom profissionais da luta livre (afirmaçãosem relação ao problema em causa).

5) Deve-se ter em conta se o Henrique está aroubar para si ou para ajudar outra pessoa(estádio 4).

6) Deve-se ter em conta se os direitos dofarmacêutico em relação à sua invençãodevem ser respeitados (estádio 4).

7) Deve-se ter em conta se a essência de viveré mais abarcante que a terminação demorrer, social ou individualmente(afirmação sem sentido).

8) Deve-se ter em contar quais os valores quedevem estar na base da conduta daspessoas na sua relação com os outros(estádio 6).

9) Deve-se ter em conta se vai ser permitidoao farmacêutico ficar protegido por uma leiindigna que apenas defende os ricos (fraseorientada para a ordem estabelecida nahistória).

10) Deve-se ter em conta se neste caso a leiestá a impedir o direito mais elementar dequalquer cidadão (estádio 5).

11) Deve-se ter em conta se o farmacêuticomerece ser roubado por ser tão avarento ecruel (estádio 3).

12) Deve-se ter em conta se o roubo, nestecaso, traria ou não um bem maior para todaa sociedade (estádio 5).

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Terminada a avaliação nos termos em que adescrevemos, é pedido aos participantes queseleccionem as quatro afirmações queconsiderem mais importantes. A partir destadescrição torna-se portanto evidente que o DIT éuma tarefa de reconhecimento, compreensão epreferência.

O DIT permite o cálculo de diversos índicesquantitativos relacionados com o raciocínio moral.De todos, aquele que, de acordo com Lourenço(2002), se tem relevado a medida de raciocíniomoral empiricamente mais válida é o Índice P.Nas palavras dos seus autores, este índice (em que“P” está para princípios) representa “a importânciarelativa que um indivíduo confere àsconsiderações morais orientadas por princípios, natomada de decisões acerca de dilemas morais(Rest, 1979, p. 5.2. do manual). Numa revisãomais recente, Rest, Narvaez, Bebeau e Thoma(1999) propõem uma nova “significação” para oÍndice P, ao nível da moralidade pós-convencional. De acordo com Lourenço (2002),esta diferença não encontra grande tradução emtermos práticos uma vez que o índice é calculadoda mesma forma, i.e., reflecte o número de vezesque o indivíduo ordena como mais importantesafirmações de estádio 5 e 6. Quanto maior for onúmero de vezes que isso acontecer, maior é oíndice P – que pode variar entre 0-57 (em termosde pontuações brutas) e entre 0-95 em termos depercentagem, sendo raras as pontuações acima de60. Lourenço e César (1991) testaram umaadaptação portuguesa do DIT, tendo obtidoresultados consistentes com os de Rest (1979,1986a,b), o que, de acordo com os autores desteestudo, apesar da amostra utilizada não serrepresentativa, torna-se viável utilizá-la para finsde investigação.

Outro índice introduzido mais tardiamentefoi o Índice U (em que “U” está para ‘utilizer’) erefere-se ao “grau de correspondência entre aordenação das afirmações tidas como maisimportantes, e a acção advogada no dilema”(Rest et al., 1999, p. 105), i.e., a correspondênciaentre a tomada de posição do participanterelativamente àquilo que deveria ser ocomportamento do protagonista, e a classificaçãoque faz de cada uma das doze afirmações. Ocálculo deste índice vai ao encontro de umadiscussão polémica na literatura do raciocínio

moral – a relação entre a acção moral e oraciocínio moral, que já tivemos oportunidade deabordar anteriormente.

Acentuamos a terminar a descrição destametodologia, as diferenças entre o DIT e aEntrevista de Juízo Moral. Ao contrário do que sepassa com o sistema de Kohlberg, em que oresultado da avaliação do juízo moral é dado emtermos de um estádio dominante ou de doisestádios de desenvolvimento adjacentes, a partirda descrição que apresentámos, o índice P é umavariável contínua (de “maturidade” moral comorefere Lourenço, em 2002) e o que está funda-mentalmente em causa é saber em que medidauma pessoa manifesta determinados tipos deorganização de pensamento moral (Rest, 1979).

As diferenças que descrevemos em termos deformato têm ainda reflexos nos níveis de juízomoral obtidos. Nesse sentido, pelo facto de nãoser pedido no DIT que as pessoas produzam oujustifiquem as suas respostas aos dilemas morais,e apesar de haver uma correlação de .5 entre asduas metodologias (Rest, 1986a), os resultadosneste teste são inflacionados relativamente àEntrevista de Juízo Moral – razão pela qual, aonível da metodologia de Harvard (v. Colby &Kohlberg, 1987), se renunciou ao estádio 6. Omesmo não acontece com o DIT, ondeafirmações deste estádio poderão contribuir parao cálculo do índice P. Será com base nesteinstrumento que avaliaremos o juízo moral dosparticipantes na parte empírica do nosso estudo.No capítulo que se segue apresentaremos osseus objectivos e hipóteses, com base noenquadramento teórico que aqui termina.

Objectivos e hipóteses em estudo

A nossa investigação tem um duplo objectivo,que é o de mostrar os efeitos de modulaçãosemântica e efeitos de modulação pragmática nainterpretação de frases condicionais deônticas, esuas consequências no raciocínio condicional.

No que diz respeito à modulação semântica, anossa hipótese é de que o conjunto depossibilidades que os sujeitos avaliam comopossíveis/permissíveis irá ser diferente de acordocom o tipo de interpretação (Condicional ouCapacitante) que as frases induzem, e conformese pode observar na Tabela 2.

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Dado o conjunto diferente de possibilidades nasduas interpretações, uma das consequências espe-radas é de que os padrões inferenciais tambémserão diferentes. Concretamente, é de esperar ummaior número de inferências Modus Ponens (MP)e Modus Tollens (MT) na interpretaçãoCondicional, e um maior número de inferênciasNegação do Antecedente (NA) e Afirmação doConsequente (AC) na interpretação Capacitante.

Note-se que este tipo de efeitos de modulaçãosemântica tem sido já demonstrados noutrosestudos (Johnson-Laird & Byrne, 2002; Quelhas& Johnson-Laird, 2005; Quelhas, Johnson-Laird,& Juhos, 2010), ao contrário dos efeitos demodulação pragmática que iremos explorar nopresente estudo.

Será que, o facto de se estar privado daliberdade por se ter infringido um preceitodeôntico produz algum efeito em termos demodelos mentais salientes, acerca do que épermissível ou não permissível? E, será que ofacto de se estar privado da liberdade por se terinfringido um preceito deôntico se traduz numadiferença em termos de nível de juízo moral?

Ao nível da tarefa de juízo moral, esperam-sediferenças entre indivíduos reclusos e nãoreclusos relativamente ao índice P, i.e., dife-renças em termos da importância relativa que aspessoas conferem às considerações moraisorientadas por princípios, na tomada de decisãoacerca de dilemas morais. Assim, esperamosque os indivíduos reclusos obtenham pontuaçõesno Índice P mais baixas, que os participantes quenão tenham tido qualquer experiência dereclusão prisional.

Outra questão que iremos explorar, e quetanto quanto sabemos não foi até ao presenteinvestigada, é se perante condicionais deônticas

que remetem para obrigações, o facto de setratar de obrigações que no quotidiano sãofacilmente violáveis (e.g., “Se o jovem comprarbebidas alcoólicas, então tem de ter completado16 anos”), ou, se tratar de obrigações dificil-mente violáveis (v. “Se o jovem votar, então temde ter completado 18 anos”), irá influenciar oconjunto de possibilidades consideradas comopermissíveis e não permissíveis.

Assim, esperamos que a forma como osindivíduos avaliam determinadas possibilidadesdas frases de conteúdo deôntico, seja moderadapelo seu nível de juízo moral. Concretamente, osindivíduos com pontuações inferiores no índiceP, aceitarão a violação das permissões, bemcomo das obrigações, em maior frequência, doque os participantes com pontuações maiselevadas em termos de juízo moral. Esperamosainda que a associação entre a medida de juízo moral e a aceitação da possibilidade corres-pondente à violação da condicional deôntica,será mais evidente no caso das obrigaçõesinvioláveis, do que nas obrigações violáveis.

MÉTODO

Participantes

Seleccionámos uma amostra composta por60 indivíduos adultos de ambos os sexos. Parafacilitar o emparelhamento, i.e., a fim dehomogeneizar características como sexo, idade ehabilitações literárias, seleccionámos osindivíduos da população não reclusa a partirdas características dos indivíduos reclusos. Osindivíduos não reclusos eram, na sua totalidade,alunos de um estabelecimento de ensino doEnsino Recorrente do centro de Lisboa em

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TABELA 2

Possibilidades compatíveis com os três tipos de interpretações das frases condicionais utilizadas com a forma gramatical: Se A então C

Tipos de interpretação Possibilidades congruentes com cada tipo de frase condicional

Condicional A C não-A C não-A não-CEnabling/capacitante A C A não-C não-A não-C

Nota. A negrito está assinalado o que corresponde aos modelos mentais explícitos das proposições,construídos de acordo com o princípio de verdade.

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regime pós-laboral: 15 homens com uma idademédia de 25,9 anos e desvio-padrão de 5,9 anos,e 15 mulheres, com uma média de 24,6 anos deidade e um desvio-padrão de 5,5 anos. Osparticipantes recluídos num estabelecimentoprisional feminino da região de Lisboa tinhamuma média de 31,4 anos de idade e um desvio-padrão 8,3 anos. Os indivíduos detidos numestabelecimento prisional masculino tinham, emmédia, 29,9 anos de idade e um desvio-padrão5,5 anos. Nenhum dos participantes foi treinadoem lógica formal e todos participaram de formavoluntária. Os participantes não reclusos nãotinham tido até à data da recolha de dadosqualquer experiência de reclusão prisional.

Tarefas

Tarefa de aferição de interpretação

Utilizou-se uma tarefa de aferição deinterpretação com o objectivo de se estudar omodo como as pessoas interpretam determinadotipo de frases condicionais. Esta consistia emapresentar aos participantes frases condicionaisdeônticas do tipo: “Se o jovem conduzir, entãotem de ter carta de condução”, pedindo-se aosindivíduos em seguida para, a partir dessas frases,avaliarem como “permissível” ou “nãopermissível” cada uma das quatro contingênciasde uma frase condicional, isto é, as possibilidadesde combinar o antecedente com o consequente.

Frase-exemplo:

Leia com atenção a frase seguinte:

Se o estafeta viajou de mota,

então usou um capacete.

A partir desta frase é possível imaginar quatrosituações, tal como encontra mais abaixo. O que lhepedimos é que avalie cada uma dessas situações,indicando se se trata de uma situação Permissívelou Não permissível, ou seja, se é uma situaçãopermitida, ou não, pela frase que leu em cima.

O estafeta não viajou de mota e usou um capacete.Permissível � Não Permissível �

O estafeta não viajou de mota e não usou um capacete.Permissível � Não Permissível �

O estafeta viajou de mota e usou um capacete.Permissível � Não Permissível �

O estafeta viajou de mota e não usou um capacete.

Permissível � Não Permissível �

Indique a sua resposta com uma cruz no quadradocorrespondente.

Ao virar esta página, vai começar realmente a suatarefa. Verifique sempre que respondeu às quatrosituações antes de passar à página seguinte.

A tarefa era composta por 8 frases (v. AnexoA), apresentadas em folhas separadas. Utilizámosfrases com quatro conteúdos diferentes (v. duasfrases para cada tipo de conteúdo): Duasobrigações violáveis (cf. definição proposta nocapítulo dos Objectivos e Hipóteses deInvestigação); duas obrigações não-violáveis eduas permissões. A fim de criarmos um termo decomparação entre condicionais deônticas econdicionais não deônticas, recorremos a duasfrases de tipo epistémico. No caso das frasesepistémicas, foi pedido aos participantes paraavaliar as contingências das frases condicionaiscomo “possíveis” ou “impossíveis”. No que serefere aos tipos de interpretação, utilizámosduas, de acordo com os 10 tipos de interpretaçãosistematizados por Johnson-Laird e Byrne(2002): as frases epistémicas e as obrigações(violáveis e invioláveis) correspondiam àinterpretação Condicional (congruente com aspossibilidades: a c; ¬a c; ¬a ¬c, cf. Tabela 2),ou seja, frases em que o antecedente é suficientepara o consequente, e o consequente necessáriopara o antecedente. Já para as permissões,utilizámos frases correspondentes ao tipo deinterpretação Capacitante (a c; a ¬c; ¬a ¬c),onde o antecedente é necessário para oconsequente.

Para evitar um eventual enviesamentoprovocado pela ordem de apresentação dasquatro possibilidades, recorremos a duas ordensdiferentes: Contrabalanceámos a ordem deapresentação das formas de combinar o ante-cedente com o consequente (i.e., ora: a c; a ¬c;¬a c; ¬a ¬c, ora: ¬a c; ¬a ¬c; a c; a ¬c).

Os diferentes tipos de frase foram apresen-tados aos participantes de forma aleatória. Paraisso, utilizámos um programa de computadorque, através do algoritmo “simple randomsample”, nos permitiu efectuar uma apresentaçãoaleatória das oito frases.

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Tarefa de inferência

Utilizámos uma tarefa de raciocíniocondicional com as quatro inferências: ModusTollens (MT); Modus Ponens (MP); Afirmaçãodo Consequente (AC); e Negação doAntecedente (NA). Esta consistiu naapresentação de um enunciado condicional, porexemplo: “se o estafeta viajou de mota, entãousou um capacete”, seguido de uma premissacategórica que nega ou afirma o antecedente (v.Negação do Antecedente e Modus Ponens,respectivamente), ou, por uma premissa quenega ou afirma o consequente (v. Negação doConsequente e Modus Tollens, respectivamente).Em seguida vemos a frase-exemplo apresentadaaos participantes (exemplo retirado de um estudode Quelhas & Byrne, 2003).

Leia com atenção as duas frases seguintes:

Se o estafeta viajou de mota,

então usou um capacete.

O estafeta viajou de mota.

Portanto...

A partir destas duas frases pedimos que escolha umaconclusão. O que é que se pode concluir em suaopinião? Dê a sua resposta assinalando com uma cruz afrase que considera a opção correcta.

Usou um capacete. �

Não usou um capacete. �

Não posso concluir nada. �

Quando virar a página vai começar realmente a suatarefa. Se tiver alguma dúvida, por favor coloque-a aoexperimentador.

Dado que, para cada uma das oito frases (v.anexo A), havia quatro problemas (i.e., MP, MT,NA, e AC), apresentámos um total de 32problemas. A apresentação dos quatro problemasdentro de cada frase foi feita de forma aleatória,bem como a disposição das frases dos quatroconteúdos diferentes (v. obrigações violáveis,obrigações não-violáveis, permissões e episté-micas). No que se refere à ordem de apresen-tação das opções dadas ao participante, esta foiparcialmente contrabalanceda. Em todas asfrases apresentadas, a última opção que era dadaa escolher era “não posso concluir nada”,

optando nós por contrabalancear as duas outrasopções (i.e., negação ou afirmação do antece-dente ou, por outro lado, negação ou afirmaçãodo consequente). Concluída esta segunda tarefa,era apresentada a tarefa de juízo moral.

Teste de definir valores morais (DIT)

No que se refere grosso modo à avaliação dojuízo moral, a tarefa desenvolvida por Kohlberg(1981, 1984) tornou-se um ponto de referêncianesta área de investigação. Consiste na apresen-tação de um conjunto de nove dilemas hipotéticos,seguidos de uma série de questões a que oparticipante deverá responder. Contudo, devido àcomplexidade desta metodologia, quer em termosde codificação, quer em termos da sua aplicação,James Rest e seus colaboradores (Rest, 1979,1986a,b; Rest, Thoma, & Edwards, 1997) desen-volveram uma alternativa que viesse dar contadestas limitações (Lourenço, 2002). O Teste deDefinir Valores Morais foi a resposta encontrada(que, abreviado do seu título em inglês, DefiningIssues Test, é vulgarmente designado por DIT). ODIT possui uma codificação previamenteprogramada e foi adaptado para a língua portu-guesa por Lourenço e César (1991). À semelhançada metodologia proposta por Kohlberg, o DIT foiconcebido para estudar o nível de desenvolvi-mento moral dos indivíduos, porém, este instru-mento avalia-o sob uma perspectiva diferente.

O participante no DIT é confrontado com umexercício de reconhecimento, compreensão epreferência, em relação a determinadasconsiderações morais (Lourenço, 2002).

A metodologia de Rest comporta três partes.Depois de serem confrontadas com um de seisdilemas morais, como apresentamos em anexo(cf. Anexo B), é pedido às pessoas para seposicionarem relativamente ao dilema, de umaforma mais geral, e para avaliarem a importânciade determinadas frases de conteúdo moral.Depois de avaliar o grau de importância paracada uma das doze afirmações, associadas porsua vez a cada um dos seis dilemas, é pedido aoparticipante que seleccione as quatro maisimportantes, ordenando-as de forma decrescentesegundo a sua importância.

No que se refere à cotação, o avaliadoratribui-lhes um determinado índice de desenvol-vimento moral, designado por Índice P. Trata-se

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no fundo de um índice numérico relacionadocom a importância que se atribui à moralidadeorientada por princípios (i.e., ao nível dedesenvolvimento moral mais evoluído de acordocom o teste de definir valores morais).

Procedimento

Todos os participantes realizaram as tarefasem sessões individuais. A recolha foi feita pelomesmo investigador numa sala fornecida peladirecção do estabelecimento prisional com oconhecimento e autorização prévia da DirecçãoGeral dos Serviços Prisionais. No caso daamostra de indivíduos não reclusos, a recolha foifeita numa sala calma no interior das instalaçõesdo estabelecimento de ensino que manteve assuas características – tal como se passou nos doisestabelecimentos prisionais. Todas as tarefasforam precedidas de instruções-chave às quaisnos referimos anteriormente. O anonimato e aconfidencialidade dos dados recolhidos foramigualmente assegurados aos participantes atravésde indicações específicas para esse efeito.

O experimentador questionou o participantesobre eventuais dúvidas, e uma vez esclarecidasas instruções gerais, deu-se início à recolha dosdados. A tarefa foi apresentada em cadernos A5,no caso das duas primeiras tarefas, e num cadernoA4, para o teste de definir valores morais. Nessescadernos repetiam-se as instruções dadasoralmente pelo investigador e as instruções espe-cíficas para cada tarefa. Com base no manual doteste de definir valores morais, eliminámos osprotolocos que não observavam os requisitos defidelidade que teremos oportunidade de apre-sentar no capítulo seguinte. Em primeiro lugar,foi apresentada a tarefa de aferição de interpre-tação das frases condicionais, seguida da tarefacom inferências condicionais e, a terminar, atarefa de juízo moral. Cada participante demorouaproximadamente uma hora para completar astrês tarefas.

RESULTADOS

No que se refere à forma como organizámos opresente capítulo, optámos por apresentar os

resultados com base nos objectivos e hipótesesdefinidas anteriormente.

Tarefa de aferição da interpretação:Condicional e capacitante

A primeira hipótese em estudo referia-se, comovimos, à forma como os indivíduos interpretam aspossibilidades congruentes com cada tipo defrases condicionais (do tipo “Se a, então c”) utili-zadas: interpretação Condicional (“a c”; “¬a c”e “¬a ¬c”) e interpretação Capacitante (“a c”, “a ¬c” e “¬a ¬c), sendo a possibilidade que nãoseria congruente na interpretação Condicional:“a ¬c”; e na Capacitante: “¬a c”.

Nas tabelas que se seguem1, vemos a percen-tagem de aceitação das quatro contingências (“ac”; “¬a c”; “a ¬c” e “¬a ¬c”) para cada umadas frases estudadas nos participantes reclusos(Tabela 3) e não reclusos (Tabela 4). Recordamosque as frases de conteúdo epistémico e as obri-gações violáveis e não violáveis correspondem aotipo de interpretação Condicional, e as permissõesao tipo de interpretação Capacitante.

A partir das Tabelas 3 e 4 apercebemo-nos que,de um modo geral, se registam diferenças naforma como os participantes avaliam algumasdas contingências, com excepção para as contin-gências “a c” e “¬a ¬c”, registando-se, na maiorparte das frases estudadas, valores na ordem dos100%, que é de resto, congruente com as hipótesesque avançámos. A contingência “a c” é congru-ente com os dois tipos de interpretação, e deacordo com os nossos resultados não existemdiferenças (χ2F=11,103; p=.134, n=60) na formacomo esta contingência é aceite pelos partici-pantes nos dois tipos de interpretação. Resultadossemelhantes obtivemos na contingência “¬a ¬ c”(χ2F=6,364; p=.498, n=60).

607

1 Apesar do primeiro conjunto de hipóteses emestudo resultar do tipo de interpretação das frasescondicionais (i.e., Capacitante e Condicional) naamostra total, e por esse motivo não tomar emconsideração, por agora, o facto dos indivíduos seremou não reclusos, optámos ainda assim por apresentar,em separado, os resultados dos dois grupos departicipantes. Pretendemos com esta opção,proporcionar uma visão de conjunto dos resultados danossa amostra. No entanto, as análises inferenciais queapresentaremos em seguida incidirão sobre a amostratotal (i.e., n=60).

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No que se refere às duas outras possibilidades,i.e., “a ¬c” e “¬a c”, não esperávamos o mesmopadrão de resultados para as frases do tipo deinterpretação Capacitante e Condicional. Aspercentagens de aceitação mais elevadas nacontingência “a ¬c” foram registadas nas frasesde interpretação Capacitante. Também congruentecom as nossas hipóteses foi o padrão de resul-tados, no caso da contingência “¬a c”, ondeencontrámos diferenças altamente significativas

(χ2F=281,644; p<.001, n=60) na superioridade deaceitação desta possibilidade na interpretaçãoCondicional vs. na interpretação Capacitante.

Relativamente à contingência “¬a c” verifi-cámos que existem diferenças altamente signifi-cativas (χ2F=146,342; p=.001, n=60) entre aaceitação desta contingência como possível oupermissível. Registam-se ainda diferenças(χ2F=208,115; p=.001, n=60) entre a aceitaçãodesta contingência como permissível, quando

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TABELA 3

Percentagem de aceitação das quatro possibilidades como permissíveis/possíveis, e respectivo tipo de interpretação: Condicional e Capacitante, nos participantes reclusos

a c a ¬c ¬a c ¬a ¬c

Int. Cond.Epistémica 1 097 06 090 80

Epistémica 2 097 06 090 87

Obrigação v1 100 00 077 90

Obrigação v2 093 03 100 93

Obrigação i1 100 03 063 83

Obrigação i2 097 10 097 90

Int. Capac.Permissão 1 100 53 000 93

Permissão 2 097 57 013 93

Nota. A negrito estão assinaladas as percentagens que se esperavam serem elevadas. Obrigaçãov=violável; Obrigação i=inviolável.

TABELA 4

Percentagem de aceitação das quatro possibilidades como permissíveis/possíveis e respectivo tipo de interpretação: Condicional e Capacitante, nos participantes não reclusos

a c a ¬c ¬a c ¬a ¬c

Int. Cond.Epistémica 1 100 03 093 93

Epistémica 2 100 10 097 87

Obrigação v1 100 03 097 87

Obrigação v2 093 10 100 90

Obrigação i1 097 10 080 93

Obrigação i2 097 03 093 97

Int. Capac.Permissão 1 100 57 003 93

Permissão 2 100 80 010 90

Nota. A negrito estão assinaladas as percentagens que se esperavam serem elevadas. Obrigaçãov=violável; Obrigação i=inviolável.

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estão em causa obrigações (interpretação Condi-cional) e permissões (interpretação Capacitante).Por fim, no que se refere à contingência “a ¬c”,verificámos que, de uma forma mais geral,existem diferenças significativas (χ2F=177,235;p=.001, n=60) na forma como esta é avaliadapelos indivíduos, quando estão em causa frases deinterpretação Condicional (i.e., obrigações eepistémicas) e de interpretação Capacitante (i.e.,permissões). À semelhança do que se passou nacontingência anterior, explorando estes resultadosnovamente através do teste de Friedman,verificámos que existem diferenças (χ2F=78,349;p=.001, n=60) quanto à forma como esta contin-gência é aceite, quando estão em causa frasesepistémicas (interpretação Condicional) e permis-sões (v. interpretação Capacitante) e, no mesmosentido, verificou-se a existência de diferençasaltamente significativas (χ2F=137,832; p<.001,n=60) entre a aceitação desta contingência, nocaso das obrigações (i.e., interpretação Condi-cional) vs. permissões (i.e., interpretação Capa-citante).

Em resumo, a partir dos resultados, registaram--se os efeitos de modulação semântica previstospela teoria dos modelos mentais para as frases detipo condicional e capacitante, i.e., os participantesavaliam como possíveis (no caso das epistémicas)

e permissíveis (no caso das deônticas) as possibili-dades congruentes para cada tipo de interpretação.

Tarefa de inferência

Tal como se passou na tarefa anterior,levantámos hipóteses específicas relativamenteao padrão inferencial dos participantes nasquatro inferências (v. Modus Ponens, ModusTollens, Afirmação do Consequente, Negação doAntecedente). Começaremos a nossa análisepelos desempenhos dos participantes na tarefa deraciocínio a partir das percentagens com quecada inferência foi aceite nos dois tipos deinterpretação, conforme pode ser visto nasTabelas 5 e 62.

A partir das Tabelas 5 e 6, evidenciam-sediferenças ao nível da aceitação das quatroinferências, de acordo com o tipo de inter-pretação. Tendo em conta os resultados dos 60participantes (i.e., sem analisar os resultados decada sub-amostra individualmente) e recorrendoao teste de Wilcoxon, estudámos a forma como

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2 Tal como aconteceu para a tarefa da aferição dainterpretação, optámos por apresentar em separado osresultados dos dois grupos que participaram no nossoestudo para uma visão mais abrangente. No entanto, asanálises inferenciais que apresentaremos nesta secçãoterão em conta a dimensão total da amostra (n=60).

TABELA 5

Percentagem de aceitação das quatro inferências e respectivos tipos de interpretação:Condicional e Capacitante, nos participantes reclusos

MP AC MT NA

Int. Cond.Epistémica 1 100 70 083 43Epistémica 2 100 67 080 50Obrigação v1 097 80 093 67Obrigação v2 090 70 093 57Obrigação i1 100 80 100 60Obrigação i2 100 67 097 57

Int. Capac.Permissão 1 097 97 057 90

Permissão 2 097 97 070 93

Nota. A negrito estão assinaladas as percentagens que se esperavam serem elevadas. Obrigaçãov=violável; Obrigação i=inviolável.

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cada tipo de inferência foi aceite nos dois tiposde frases estudadas (i.e., Condicional e Capaci-tante). A escolha deste teste não paramétricoficou a dever-se ao nível de mensuração ordinaldas variáveis em estudo (Bryman & Cramer,2003; Maroco & Bispo, 2003; Siegel, 1956).

No que se refere à inferência Modus Tollenspodemos, a partir dos nossos resultados afirmarque, tal como previmos, esta ocorre com mais fre-quência quando estamos perante frases de tipo deinterpretação Condicional, do que quando a frasecorresponde ao tipo de interpretação Capacitante.No que se refere à inferência Modus Ponens,encontrámos diferenças significativas entre aaceitação desta inferência, quando estão em causafrases de tipo de interpretação Condicional,comparativamente a frases de tipo de interpretaçãoCapacitante. No que se refere à inferênciaAfirmação do Consequente, encontrámos em regrageral, um padrão de resultados congruentes comas nossas hipóteses. Esperávamos níveis deaceitação desta frequência superiores em frases detipo de interpretação Capacitante e corroborámosparcialmente essa hipótese.

Na inferência Negação do Antecedente (NA),obtivemos uma diferença altamente significativaentre a aceitação desta inferência nas frases detipo de interpretação Capacitante, comparativa-

mente às frases de interpretação Condicional(independentemente de se tratarem de frases deconteúdo epistémico ou de conteúdo ligado aobrigações violáveis e invioláveis) – comestatísticas de teste a variarem entre U=-3.225;p=.001, n=60 e U=-5.085; p<.001, n=60.

Modulação pragmática e a tarefa de juízomoral

Uma das hipóteses nucleares da presenteinvestigação relaciona-se com o estudo do nívelde juízo moral dos participantes, com o objectivode perceber se os resultados das duas tarefas aque nos referimos até agora (i.e., tarefa deaferição de interpretação e tarefa de raciocínio)são moderados por esta variável (nos termos emque nos referimos no capítulo das hipóteses). Emseguida apresentamos os principais resultadosobtidos neste âmbito.

Com base na nossa amostra, e tendo em contaos critérios de fidelidade que descrevemos atrás,a percentagem de protocolos eliminados foi de18%, valor que, em nosso entender, está deacordo com os valores de 15% referidos peloautor do instrumento (Rest, 1986a,b), e peloestudo que serviu de adaptação do DIT à popula-ção portuguesa (Lourenço & César, 1991) –com índices também na ordem de 15%. Na

610

TABELA 6

Percentagem de aceitação das quatro inferências e respectivos tipos de interpretação:Condicional e Capacitante, nos participantes não reclusos

MP AC MT NA

Int. Cond.Epistémica 1 100 57 73 40Epistémica 2 097 60 90 43Obrigação v1 093 80 93 63Obrigação v2 087 70 93 57Obrigação i1 097 73 93 70Obrigação i2 100 67 97 60

Int. Capac.Permissão 1 083 90 60 97

Permissão 2 083 90 77 93

Nota. A negrito estão assinaladas as percentagens que se esperavam serem elevadas. Obrigaçãov=violável; Obrigação i=inviolável.

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Tabela 7 vemos os resultados obtidos na tarefade juízo moral, para os dois grupos de partici-pantes.

A partir de uma abordagem descritiva dosnossos resultados vemos que os indivíduos nãoreclusos apresentam um Índice P ligeiramentesuperior (31.9) ao dos indivíduos reclusos (29.9).Isto significa que, para as amostras estudadas, osindivíduos não reclusos orientam a avaliação decada uma das afirmações que lhe são dadas aavaliar, de forma mais próxima a princípioséticos universais, comparativamente ao grupo dereclusos.

A fim de se estudar até que ponto estadiferença é ou não significativa, e depois deverificarmos os pressupostos da normalidade dadistribuição da variável (K-S=.092 p>.200) e arespectiva homogeneidade das variâncias(F=.015 p=.903), recorremos ao teste T-student.Os resultados mostram-nos que não existemdiferenças significativas entre os resultadosobtidos por estes dois grupos de participantes[t(60)=-.578; p=.566], ou seja, as duas amostrasrecolhidas pertencem, estatisticamente, a uma sópopulação.

Não sendo possível distinguir os dois gruposde indivíduos em termos do nível de juízo moral,não deixámos de testar as hipóteses aventadasespecificamente para cada grupo departicipantes, ou seja, fomos ao encontro dosnossos objectivos de investigação no sentido deperceber de que forma os indivíduos avaliavam,ao nível da tarefa da interpretação das frases, aviolação das frases condicionais de conteúdodeôntico (i.e., as obrigações violáveis einvioláveis, e as permissões).

Para o efeito recorremos ao teste de Cochranpara explorar os dados de acordo com osobjectivos que definimos inicialmente. Trata-sede uma extensão do teste de Friedman, maisindicado para variáveis com nível de mensuração

nominal, como era o caso da tarefa deinterpretação, e sobretudo para comparações emque existem menos variáveis em análise (cf.Bryman & Cramer, 2003; Maroco & Bispo,2003; Siegel, 1956).

Uma das hipóteses que avançámos especifica-mente para os grupo de indivíduos reclusos (osparticipantes que, segundo avançámos nasnossas hipóteses, obteriam pontuações maisbaixas no Índice P), relaciona-se com a formacomo esperávamos que este grupo avaliasse aviolação das obrigações, i.e., a contingência “a¬c” (e.g., “O jovem conduz e não tem carta decondução). Esperámos que esta contingênciafosse aceite com maior frequência pelosparticipantes reclusos do que pelos não reclusos.Relativamente às obrigações violáveis, nãoencontrámos diferenças nos dois gruposestudados, quanto à forma como aceitavam estacontingência (Q=1.000; p=.317, n=30). Omesmo se pode dizer para as obrigaçõesinvioláveis, em que não se registaramigualmente quaisquer diferenças entre os partici-pantes reclusos e os não reclusos (Q=1.000;p=.317, n=30).

Tal como se passava nas obrigações,avançámos igualmente com previsões em relaçãoao modo como os dois grupos de indivíduosavaliavam a violação da permissão, i.e., a con-tingência “¬a c” (e.g., O senhor não é médico epassa receitas). Assim como se passou nasobrigações, esperámos que os participantesreclusos avaliassem como possível a possibili-dade correspondente à violação da permissãocom maior expressão do que os indivíduos nãoreclusos.

A partir dos resultados obtidos podemos dizerque existem diferenças relativamente à formacomo os indivíduos reclusos avaliam a violaçãoda permissão: “Se a senhora está grávida, entãopode pagar na caixa exclusiva para grávidas”,

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TABELA 7

Resultados dos dois grupos de participantes na tarefa de juízo moral

Grupo N Média Desvio-Padrão

Juízo Moral Reclusos 30 29,987 11,6970N/Reclusos 30 31,877 13,5789

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quando comparados com os participantes nãoreclusos (Q=4.555; p=.035, n=30). Porém, nãopodemos dizer o mesmo em relação à outrapermissão estudada: “Se o senhor for médico,então pode passar receitas”, em que se regis-taram diferenças, relativamente à forma como osindivíduos aceitam a possibilidade corres-pondente à violação (Q=.067; p=.796, n=30).

DISCUSSÃO GERAL

De um modo geral podemos dizer que osresultados deste estudo corroboram os efeitos damodulação semântica já anteriormente encon-trados (Quelhas & Johnson-Laird, 2005; Quelhas,Johnson-Laird, & Juhos, 2010) ao nível dainterpretação das frases condicionais e subse-quente raciocínio com as mesmas frases. Comose pode verificar, o significado básico de umafrase condicional (que corresponde à inter-pretação aqui designada como Condicional)sofre alterações mediante frases de diferentesconteúdos, o que leva a que o conjunto daspossibilidades consideradas congruentes com afrase condicional apresentada seja diferente. Talfacto, observado na tarefa de aferição da inter-pretação das frases, permite prever diferentespadrões inferenciais, dado que o conjunto derepresentações mentais (modelos mentais) não éo mesmo para as diferentes frases condicionais, edado que, de acordo com a teoria dos modelosmentais, as inferências são feitas com base nosmodelos mentais que os sujeitos representamsobre o significado da informação fornecida.

Por outro lado, não foi possível distinguir osparticipantes (i.e., reclusos e não reclusos) emtermos do seu nível de juízo moral. O que motivoua utilização desta medida foi a sua exploraçãocomo forma de operacionalizar os conhecimentosespecíficos acerca daquilo que é permitido eproibido, e o juízo que se opera acerca dedeterminados preceitos deônticos – a “meta-ética”,na expressão de Lourenço (2002). Vimos que, emtermos estatísticos, o grupo de indivíduos reclusose não reclusos pertencem a uma só população.

Uma das críticas recorrentes dos estudos dojuízo moral de acordo com o modelo de LawrenceKohlberg (Colby & Kohlberg, 1987; Kohlberg,1984), e segundo Heidbrink (1991), refere-se à

validade do instrumento. A entrevista de juízomoral foi desenvolvida com o objectivo de opera-cionalizar o modelo kohlberguiano do desenvol-vimento do juízo moral. Emler, Renwick eMalone (1983), por exemplo consideram que esteinstrumento serve apenas para aferir a atitudesocial relativamente a determinados assuntos, ou asua ideologia política – ambas com a função defacilitar o processo de adaptação social. ParaEmler et al. (1983), se o raciocínio moral fosseuma competência, nesse caso não seria possívelsimular um nível de juízo moral superior ao que aspessoas efectivamente possuem.

Nesta linha da correspondência entre o racio-cínio moral e a acção moral têm sido conduzidosdezenas de estudos que procuram associaçõesentre o nível de juízo moral e a delinquência. Nameta-análise conduzida por Stams, Brugman,Dekovic, Rosmalen, van der Laan e Gibbs(2006), pontuações mais baixas em tarefas dejuízo moral (entre as quais na tarefa queutilizámos), estão associadas à delinquênciajuvenil. No entanto, antes disso, Valliant,Gauthier, Pottier e Kosmyna (2000) nãopuderam concluir o mesmo. Dividiram umconjunto de 54 pessoas reclusas em quatro sub-grupos, de acordo com o crime cometido (essessub-grupos incluíam desde violadores, pessoasenvolvidas em crimes de incesto, pedófilos eindivíduos que participaram em crimes de delitocomum). Constituíram um grupo de controlo, eaplicaram aos participantes um conjunto detestes psicométricos que incluíam um teste deinteligência não-verbal, o teste de definir valoresmorais, entre outros. Os resultados evidenciaramque os violadores e os abusadores de criançasatingiram pontuações elevadas no teste definirvalores morais. De acordo com os referidosautores, os seus resultados reenviam-nos para aideia de que as pessoas que cometem estescrimes conservam “intactas” as suas capacidadesde entender questões de natureza moral, aindaque na sua prática, ignorem determinadosvalores sociais. Este estudo, como outros deresto o têm feito (e.g., O’Kane, Fawcett, &Blackburn, 1996), questiona no fundo a validadedo instrumento que utilizámos para medir onível de desenvolvimento moral dos partici-pantes, e pode ajudar-nos a perceber os motivos

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pelos quais não encontrámos diferenças entre osnossos grupos de participantes.

No entanto, o que nos parece importante reteré que, no caso do nosso estudo, além de termosverificado que os nossos participantes consti-tuíam apenas um grupo, no que se refere ao nívelde juízo moral, os resultados na tarefa deaferição da interpretação das frases condicionaismostram-nos que os indivíduos também não sedistinguem no que se refere à forma comoavaliam as violações das condicionais ligadas apermissões e obrigações. Dito de outro modo,independentemente da tarefa de juízo moral terou não sido uma alternativa viável à operaciona-lização das diferentes experiências de vida dosnossos participantes, os indivíduos reclusos enão reclusos avaliam as frases condicionaisdeônticas de forma semelhante.

A somar a estes argumentos da literatura maisrecente sobre o teste de definir valores morais, quevão no sentido de pôr em causa a validade daprópria metodologia, não nos parece ainda deignorar ocorrência de um possível efeito dedesejabilidade social. Este fenómeno, amplamentediscutido na psicologia social, consistebasicamente no viés que tem lugar quando osparticipantes de um determinado estudorespondem, não de acordo com o seu verdadeiroentendimento acerca do que lhes é perguntado,mas sim de acordo com aquilo que esperam que oexperimentador pretende ouvir (e.g., Vala &Monteiro, 2002). O teste de definir valores moraisprevê, pela forma como está construído, que esteefeito ocorra, definindo para isso critérios decontrolo interno. No entanto, ainda que apenastenhamos incluído na nossa amostra os indivíduosque reuniam estes critérios, como outros testes defidelidade interna, e que ainda assim tenhamosassegurado o anonimato, o facto da recolha dosdados ter sido feita de forma individual, poderánão ter impedido que o viés da desejabilidadesocial estivesse presente. Hains (1984) corroborouesta dimensão, ao pedir a dois grupos departicipantes (delinquentes e não-delinquentes)que primeiro respondessem à tarefa de juízo moralno seu papel e depois, imaginando-se comopolícias. Neste último cenário obtiverampontuações superiores. Isto levou Krebs e Denton(2005) a referir-se à componente utilitáriaassociada ao juízo moral. De acordo com estes

autores, o raciocínio moral assume acima de tudoum valor situacional, havendo nesse sentidocontextos que em é esperado que as pessoas secomportem de acordo com mais ou menosavançados relativamente ao modelo de Kohlberg,i.e., se ser bem sucedido no mundo dos negócios éguiado pelo estádio 2 (orientação para arecompensa), não se podendo dizer o mesmo deum casamento, por exemplo, cuja orientação éclaramente baseado na reciprocidade (estádio 3).

Outro aspecto que merece ser levado emconsideração em futuras investigações, prende-secom o desfasamento que pode ter havido entre aabordagem aos conhecimentos envolvidos naavaliação que se pedia aos indivíduos acerca doque é permitido ou proibido na tarefa de aferiçãoda interpretação, e as solicitações da tarefa dejuízo moral. No primeiro caso, tratava-se de umaavaliação simples acerca do que é permissível ounão permissível, em determinadas circunstânciasmais quotidianas (i.e., regras que regulam aentrada num casino, o consumo de bebidasalcoólicas, etc.), enquanto no segundo se pedia aosindivíduos para se posicionarem diante desituações sociais que os obrigavam a reflectirsobre uma tomada de posição justa, de acordocom o seu sistema de valores. Talvez fossepertinente explorar-se futuramente outrasmetodologias que se centrem mais sobre osconhecimentos envolvidos nos materiais verbaisutilizados de forma mais concreta, na tarefa deaferição da interpretação, e não sobre aspectosmetacognitivos para os quais esses conhecimentosreenviam.

No que se refere a outro objectivo explora-tório do nosso estudo – a procura de diferençasentre dois tipos de obrigações (violáveis e nãovioláveis), os resultados que obtivemos nãoforam conclusivos. Partindo do corolário dateoria dos modelos mentais, de acordo com oqual, as pessoas representam os seus conheci-mentos sob a forma de modelos explícitos, oobjectivo consistia em perceber se as pessoas,nas condicionais violáveis representavam o queera proibido com maior “saliência”. Esperá-vamos que, a partir das experiências de vida decada grupo de participantes, houvesse diferençasna avaliação destes dois tipos de obrigações. Defacto, também aqui não obtivemos diferenças.

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Estes resultados obrigam-nos a levantar umdeterminado conjunto de hipóteses alternativas.Em primeiro lugar, somos levados a repensar oscritérios que nos levaram à escolha das frases. Eminvestigações futuras, parece-nos pertinente que aescolha de frases de cada uma das categorias (v.violáveis e não violáveis), tenha em conta critérioscomo o da “violabilidade”. As frases que utilizá-mos dentro de cada categoria, i.e., obrigaçõesvioláveis e obrigações não violáveis, talvez nãofossem equivalentes sob ponto de vista da “viola-bilidade”, a saber: com que segurança se podeafirmar que a regra violável de conduzir commenos de 18 anos é mais fácil de violar do quecomprar bebidas com menos de 16 anos? Ou,dentro das condicionais invioláveis, jogar nocasino com menos de 18 anos é mais facilmenteviolável que votar com menos de 18 anos? Nessesentido, propomos que, em estudos futuros, aescolha das obrigações tenha em conta esteaspecto, pedindo-se, por exemplo, ao nível de umpré-teste, que as pessoas que avaliem o índice deviolabilidade das frases, para depois se operar umatriagem prévia.

Por outro lado, consideramos igualmenteimportante, que as condicionais deônticas seinscrevam de uma forma mais representativanaquilo que são as representações da genera-

lidade dos indivíduos estudados. Uma pessoacondenada por mais de cinco anos, por tercometido um homicídio involuntário não teráseguramente a mesma representação da violaçãode determinados preceitos deônticos que outrapessoa que se encontra a aguardar julgamento emprisão preventiva por furto agravado ou tráfico deestupefacientes. No futuro, talvez fosse pertinenteefectuar um levantamento daquilo que, para cadagrupo de participantes, representa efectivamente, aviolação de um preceito deôntico. Consideramosimportante acrescentar que, tendo em conta estafonte de variabilidade, numa fase preliminar dapreparação deste estudo, conjecturámos apossibilidade de escolher os indivíduos reclusos,de acordo com o tipo de ilícito cometido, mas issoveio a revelar-se insustentável em termoslogísticos. Com o objectivo de controlarmos osníveis de escolaridade dos participantes reclusos,tivemos de nos circunscrever aos indivíduosvoluntários com o nível igual ou superior ao 9.ºano de escolaridade. Ora, dada a escassez depessoas que reunissem estes pré-requisitos, nosdois estabelecimentos prisionais em que tivemosautorização para trabalhar, tivemos que nossujeitar ao baixo número de pessoas que reuniamtais condições, independentemente do motivoque as tinha conduzido ao sistema prisional.

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ANEXO A

Conteúdos e Tipos de Interpretação das Frases Condicionais

1 – Interpretação Condicional (a c; ¬a c; ¬a ¬c)

Condicionais epistémicas1 – Se o animal for um urso, então tem pêlo. 2 – Se o animal for um melro, então tem penas.

Obrigações Violáveis1 – Se o jovem conduzir, então tem de ter carta de condução.2 – Se o jovem comprar bebidas alcoólicas, então tem de ter completado 16 anos.

Obrigações Invioláveis1 – Se o jovem votar, então tem de ter completado 18 anos.2 – Se o jovem jogar no casino, então tem de ter completado 18 anos.

2 – Interpretação Capacitante (a c; a ¬c; ¬a ¬c)

Permissões1 – Se o senhor for médico, então pode passar receitas.2 – Se a senhora está grávida, então pode pagar na caixa exclusiva para grávidas.

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ANEXO B

Teste de Definir Valores Morais (Rest, 1986a,b) adaptado para a língua portuguesa por Lourenço e César (1991)

HENRIQUE E O MEDICAMENTONum país da Europa, uma mulher estava a morrer de cancro. Havia, porém, um medicamento que,segundo os médicos, podia salvá-la. Era um medicamento inventado recentemente por um farmacêuticoda cidade onde residia essa mulher. Ficou muito caro produzir o medicamento, mas o farmacêuticolevava dez vezes mais do que lhe tinha custado a sua produção. Custou-lhe 250 Euros e ele pedia 2500Euros por uma pequena dose de medicamento. Henrique, o marido da mulher doente, foi ter com aspessoas que conhecia para lhe emprestarem dinheiro, mas apenas conseguiu juntar 1250 Euros,metade do dinheiro que o farmacêutico pedia. Disse então ao farmacêutico que a sua mulher estava amorrer e pediu-lhe que vendesse o medicamento mais barato, ou que o deixasse pagar mais tarde. Maso farmacêutico disse: ‘Não! Inventei o medicamento e quero ganhar dinheiro com ele”. O Henrique ficoudesesperado e começou a pensar assaltar a farmácia para roubar o medicamento para a sua mulher.

Deveria o Henrique roubar o medicamento?Assinale com uma cruz a sua escolha

Deveria roubá-lo �

Não consigo decidir �

Não deveria roubá-lo �

AFIRMAÇÕES M B A P N

01. Deve-se ter em conta se as leis devem ou não ser cumpridas. � � � � �

02. Deve-se ter em conta se não é natural que um marido se preocupe com a sua mulher, a ponto de roubar. � � � � �

03. Deve-se ter em conta se o Henrique está disposto a roubar para ajudar a sua mulher, correndo o risco de ser atingido a tiro, ou ir para a cadeia. � � � � �

04. Deve-se ter em conta se o Henrique um profissional de luta livre, ou tem contactos com profissionais da luta livre. � � � � �

05. Deve-se ter em conta se o Henrique está a roubar para si, ou paraajudar outra pessoa. � � � � �

06. Deve-se ter em conta se os direitos do farmacêutico em relação à sua invenção devem ser respeitados. � � � � �

07. Deve-se ter em conta se a essência de viver é mais abarcante que a terminação de morrer, social e individualmente. � � � � �

08. Deve-se ter em conta quais os valores que devem estar na base da conduta das pessoas na sua relação com os outros. � � � � �

09. Deve-se ter em conta se vai ser permitido ao farmacêutico ficar protegido por uma lei indigna que apenas defende os ricos. � � � � �

10. Deve-se ter em conta se neste caso a lei está a impedir o direito mais elementar de qualquer cidadão.

11. Deve-se ter em conta se o farmacêutico merece ser roubado por ser tão avarento e cruel. � � � � �

12. Deve-se ter em conta se o roubo, neste caso, traria ou não umbem maior para toda a sociedade. � � � � �

Seleccione as quatro afirmações mais importantes, por ordem crescente:

Desta lista de 12 afirmações, seleccione as quatro mais importantes para si

A mais importante A 2ª mais importante A 3ª mais importante A 4ª mais importante

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RESUMO

A teoria dos modelos mentais (Johnson-Laird,1983, 2006; Johnson-Laird & Byrne, 1991) tem,recentemente, investido na compreensão do processode modulação (semântica e pragmática) do raciocíniocondicional (Johnson-Laird & Byrne, 2002; Quelhas &Byrne, 2003; Quelhas & Johnson-Laird, 2004, 2005;Quelhas, Johnson-Laird, & Juhos, 2010). O presenteestudo insere-se nesse âmbito, nomeadamente nacompreensão da modulação pragmática que deriva deconhecimentos relacionados com o modo de vida daspessoas. Para esse efeito seleccionamos uma amostrade participantes que cumpriam pena numestabelecimento prisional (reclusos), e fomos avaliar oseu modo de compreender frases condicionaisdeônticas (e.g., “Se o jovem votar, então tem de tercompletado 18 anos”), e de raciocinar com esse tipo defrases. Como grupo de controlo usamos uma amostrasem qualquer contacto com o sistema judicial, eavaliámos o juízo moral em ambas as amostras.

Os resultados replicam efeitos de modulaçãosemântica, i.e., frases condicionais idênticas na forma(Se p, então q), mas de diferentes conteúdos, sãointerpretadas de modo diferente. Como consequênciade as pessoas considerarem diferentes possibilidades,congruentes com cada frase, irão também representardiferentes modelos mentais e assim ter diferentespadrões nas inferências condicionais. Mas, no querespeita à modulação pragmática, que nos fazia esperardiferenças no grupo de reclusos, nenhum resultado vainesse sentido, i.e., os reclusos interpretam as frasesdeônticas do mesmo modo, fazem os mesmos padrõesinferenciais, e também não se diferenciam pelo nívelde juízo moral do grupo de controle.

Palavras chave: Condicionais deônticas, Juízomoral, Modelos mentais, Raciocínio.

ABSTRACT

Within the mental model theory (Johnson-Laird,1983, 2006; Johnson-Laird & Byrne, 1991), there hasbeen an effort to account for the modulation processes(semantic and pragmatic) involved in conditionalreasoning (Johnson-Laird & Byrne, 2002; Quelhas &Byrne, 2003; Quelhas & Johnson-Laird, 2004, 2005;Quelhas, Johnson-Laird, & Juhos, 2010). The presentstudy explores these same processes, envisaging therole of pragmatic modulation as a result of knowledgeassociated with certain life experiences. A sample ofindividuals sentenced to imprisonment were selected,and asked to evaluate and reason from a set of deonticconditional sentences (e.g., If a young man can vote,then he has to be at least 18 years old). For thecontrol group, individuals with no previous contactwith the legal system were selected.

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Results corroborate the effects of semanticmodulation, i.e., conditional sentences of the sameform (if p, then q) but of different content aredifferently interpreted. This means that a set ofdifferent possibilities are considered congruent byour participants according to the conditional sentencesthat were presented. Furthermore, individuals seemedto represent different mental models depending on thecontent of the conditional sentence and, therefore,

show distinct inferential patterns in a conditionalreasoning task. However, as far as pragmaticmodulation is concerned, no differences were detected.Inmates interpret deontic sentences similarly to thecontrol group, and also show the same inferentialpatterns, with no differences in a moral reasoning task.

Key words: Deontic conditionals, Mental models,Moral judgement, Reasoning.

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