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Rafael Lucas de Lima SOBRE O CONCEITO DE PSEUDOCONCR ETICIDADE

Rafael Lucas de Lima

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Rafael Lucas de Lima SOBRE O CONCEITO DE PSEUDOCONCRETICIDADE

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EM KAREL KOSIK

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Rafael Lucas de Lima SOBRE O CONCEITO DE PSEUDOCONCRETICIDADE EM KAREL KOSIK

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Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como

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parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em Filosofia. Orientador: Prof. Dr. Alípio de Sousa Filho Natal, RN

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2011

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Rafael Lucas de Lima SOBRE O CONCEITO DE PSEUDOCONCRETICIDADE EM KAREL KOSIK

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Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como

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parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em Filosofia. Aprovada em: 23/03/2011 __________________________

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__________________________________ Orientador – Prof. Dr. Alípio de Sousa Filho Universidade Federal do Rio

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Grande do Norte - UFRN ____________________________________________________________ Membro interno – Prof. Dr.

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Eduardo Aníbal Pelejero Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN _______________________________________

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_____________________ Membro externo – Prof. Dr. Pedro Leão da Costa Neto Universidade Tuiuti do Paraná - UTP

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À minha mãe, dona Antônia, pelo carinho e pela incansável dedicação. À Hylarina, minha amiga e companheira de todas as horas.

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A Alípio, pelas orientações e pela ajuda bibliográfica. A Eli e Aílton, que mesmo longe estiveram sempre presentes.

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A Maydson e Bruno, pelas conversas que fizeram brotar algumas das idéias aqui expostas.

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Quem deixa que o mundo, ou uma porção deste, escolha seu plano de vida não tem necessidade senão da faculdade de

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imitação dos símios. Quem escolhe para si mesmo o próprio plano emprega todas as suas faculdades. John Stuart Mill

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RESUMO Para o filósofo tcheco Karel Kosik (1926-2003), o mundo contemporâneo é o mundo da pseudoconcreticidade, lugar onde

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vigora um “claro-escuro de verdade e engano”. Nesse mundo, a praxis, enquanto atividade transformadora da natureza e

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criadora do mundo humano-social, foi convertida em mera atividade abstrata, calculadora, técnica, e desvinculada do

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trabalho como processo criativo. Essa ruptura assinala algo ainda mais significativo – a consciência e compreensão dos indivíduos

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acerca dos fenômenos, processos e relações que povoam a vida cotidiana ocorrem como representação, e não como um

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conhecimento conceitual, solidamente alicerçado no pensamento crítico. Partindo da investigação dialético-materialista,

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empreendida por Kosik, acerca das condições a partir das quais são formados tanto o modo de ser dos homens nas sociedades atuais como o

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seu pensamento, colimamos analisar e discorrer – à luz da principal obra daquele pensador: a Dialética do concreto (1963)

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– sobre o que seja esse conceito de pseudoconcreticidade, procurando mostrar como ele é engendrado,

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como são produzidos os fenômenos pseudoconcretos e, enfim, como é possível, ou mesmo se é possível, destruir a

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pseudoconcreticidade. Palavras-chave: Karel Kosik. Praxis utilitária. Pseudoconcreticidade. Destruição.

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RÉSUMÉ Pour le philosophe tchèque Karel Kosik (1926-2003), le monde contemporain c‟est le monde de la

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pseudoconcreticité, lieu où prévaut « un claire-obscur de vérité et d‟illusion ». Dans ce monde, la praxis, tandis qu‟activité de

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transformation de la nature et de création du monde humain-social, a été converti en une simple activité abstraite, calculatrice,

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technique, et séparée du travail comme processus créatif. Cette séparation signale quelque chose plus significatif – la

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conscience et la compréhension des individus sur les phénomènes, processus et relations de la vie quotidienne se produisent comme

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représentation, et non comme une connaissance conceptuelle, solidement fondée sur la pensée critique. En partant de

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l‟enquête dialectique-matérialiste, faite par Kosik, de las conditions de formation de la façon d’être des hommes dans les sociétés

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actuelles et de leur pensée, nous objectivons analyser et disserter – à la lumière du travail principal de ce penseur : Dialectique du

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concret (1963) –, sur le concept de pseudoconcreticité, comme il est engendré, comme sont produits les phénomènes

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pseudoconcrets et, finalement, comme c‟est possible, ou s'il est possible, détruire la pseudoconcreticité.

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Mots-clés : Karel Kosik. Praxis utilitaire. Pseudoconcreticité. Destruction.

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SUMÁRIO I. Introdução § 1. Do escopo desta dissertação e do esboço de uma caracterização histórica da vida e da filosofia de

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Kosik........................................................... 9 § 2. Sobre a Dialética do concreto ........................................................................ 15

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§ 3. Da estipulação do tema, dos objetivos, do problema e do método, e da condução da abordagem do tema...................

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...........................

...................... 18 II. Das relações de intercâmbio material e do engendramento da praxis utilitária

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§ 4. A realidade concreta. Dos mundos natural e social e da ação do homem sobre eles ..........................................................................

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...........................

... 22 § 5. A praxis utilitária ou fetichista e o engendramento da pseudoconcreticidade...................

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...........................

...........................

............. 28 III. O mundo da pseudoconcreticidade § 6. O lugar do homem no

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universo ou a coisa em si ............................................ 34 § 7. Sobre a necessidade de percorrer desvios para conhecer a coisa

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em si. Da filosofia e da ciência como instrumentos para traçar e percorrer desvios ....................................................................

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...........................

............. 37 § 8. Da essência, do fenômeno e da relação entre eles. Sobre o processo de conhecimento da realidade – o

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conceito e a representação ............................ 38 § 9. Do conhecimento como fundamento dos usos prático e

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teórico do pensamento. Transição da concepção de ciência como conhecimento conceitual para a consideração da mesma como

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praxis e conhecimento fetichista.......................................................................................................... 41 A. O homem-preocupado

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§ 10. Mundo da pseudoconcreticidade e fisicalismo positivista ............................ 47 § 11. Consequências da apropriação

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cientificista da realidade objetiva. Sobre a economia política ............................................................................ 51

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§ 12. Considerações em torno da compreensão pré-teórica, do poder objetal, da cura, e das transformações históricas que

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contribuíram para o engendramento do homem-preocupado ....................................................... 54 § 13. Do trabalho à

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preocupação ou o trabalho estranhado ................................... 58 § 14. Engajamento do homem-preocupado na

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praxis fetichista cotidiana ............ 63 B. O homo oeconomicus § 15. Conceitos de sistema e de homo oeconomicus

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...........................

.................. 70 § 16. Concepção científica da realidade objetiva como sistema econômico ......... 74

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§ 17. Do uso da analogia na investigação da natureza e da sociedade .................. 77 § 18. Formalismo matemático e

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ontologismo metafísico. Transição da investigação acerca do mundo da pseudoconcreticidade para a investigação das

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formas de efetivação da sua destruição ............................. 79 IV. A destruição da pseudoconcreticidade

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§ 19. A destruição como método dialético crítico ou o outro lado da dialética ..................................................................

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...........................

........... 82 § 20. O pensamento dialético ou crítico ................................................................ 84

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§ 21. A crítica revolucionária da praxis da humanidade ....................................... 87 § 22. Processo ontogenético de realizações da

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verdade e de criação da realidade ....................................................................................................... 92 V. Conclusões

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§ 23. Acerca dos objetivos estipulados e do problema formulado ........................ 95 § 24. Outras conclusões ...................................

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...........................

........................... 96 Índice onomástico .................................................................................

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...........................

....... 98 Referências ............................................................................................................................ 100 9

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I. Introdução § 1. Do escopo desta dissertação e do esboço de uma caracterização histórica da vida e da

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filosofia de Kosik. O escopo desta dissertação é investigar acerca do conceito de pseudoconcreticidade no pensamento do

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filósofo tcheco Karel Kosik. Para isso, debruçar-me-ei sobre sua principal obra – Dialektika Konkrétního (Dialética do

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Concreto), que foi publicada originalmente em tcheco no ano de 1963. Nela se encontram expostas as linhas gerais do

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pensamento de Kosik acerca do problema da pseudoconcreticidade. Digo as linhas gerais porque as especificidades, as discussões

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pontuais através das quais podem ser percebidas mais distintamente as manifestações e desdobramentos daquele problema, se

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tornam bem mais evidentes a partir de outros textos, tais como La dialectique de la morale et la morale de la dialectique, La morale au temps

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de la globalisation ou Victoire de la méthode sur l’architectonique. Esses textos, assim como vários outros contidos na

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coletânea francesa La crise des temps modernes (2003), servem-me como fonte suplementar na abordagem

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daquele problema. Kosik nasceu em Praga, capital da então Tchecoslováquia, em 26 de junho de 1926, no seio de uma família

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de operários.1 Desde a juventude esteve envolvido em movimentos político-sociais e cedo se filiou ao Partido Comunista

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Tchecoslovaco, o que ensejou a alta estima que, para alguns, os membros desse partido nutriam por ele.2 De 1945 a 1947, Kosik estudou

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filosofia e sociologia na Universidade Charles, em Praga, onde conheceu o fenomenólogo tcheco Jan Patočka, que lhe

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iniciou nos estudos da fenomenologia de Edmund Husserl e Martin Heidegger.3 Em 1947, Kosik continuou seus estudos na

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universidade de Leningrado, onde permaneceu até 1948, e, no período de 1949 a 1950, concluiu seus estudos na universidade de

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Moscou, retornando em seguida a Praga para a 1 A propósito, o nome Tchecoslováquia era utilizado para designar o

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Estado então constituído por dois povos: os tchecos e os eslovacos, Estado que existiu até 1992. A partir de 1º de janeiro de 1993,

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e em virtude do chamado Divórcio de Veludo, essas nações passaram a existir como dois Estados distintos – a República

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Tcheca e a Eslováquia. Após essa pacífica separação, Praga permaneceu como capital, mas da

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República Tcheca. 2 Segundo Costa Neto, Kosik era tido como “membro promissor da nova geração do Partido

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Comunista da Tchecoslováquia” – COSTA NETO, Pedro Leão da. Karel Kosik e o marxismo no leste europeu: notas

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introdutórias, pp. 5-6; artigo a ser publicado pela revista Novos Rumos. Agradeço ao Sr. Pedro pela gentileza de ter me enviado,

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antes de publicá-lo, o artigo supracitado, assim como outros textos, que contribuíram para o desenvolvimento

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desta dissertação. 3 Acerca da relação de amizade entre Patočka e Kosik, Michael Löwy e Horacio Tarcus dizem, em artigo

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intitulado Karel Kosik, philosophe critique, o seguinte: “Malgré leurs differences philosophiques, Patocka avait

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beaucoup d‟estime pour son « ami marxiste », dont il dira plus tard qu‟il est « le plus important représentant de la philosophie

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tchèque de l‟époque actuelle »”. KOSIK, Karel. La crise des temps modernes. Paris: Les Éditions de la

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Passion, 2003, p. 10. 10

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defesa de sua tese de doutoramento, cujo título é Některé otázky lidové demokracie jako zvláštní formy diktatury

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proletariátu (Algumas questões sobre democracia popular como forma particular da ditadura do proletariado).4

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4 De acordo com Löwy e Tarcus, era costume nos países do leste europeu, à época do curso de graduação de Kosik, que

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estudantes universitários fizessem parte dos seus estudos em Moscou e Leningrado – v. KOSIK, 2003, p. 10. Sobre a tradução do

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título da tese de doutorado de Kosik, cf. COSTA NETO, Karel Kosik e o marxismo no leste europeu: notas

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introdutórias, p. 6. 5 Sobre a apreensão desses manuscritos, cf. KOSIK, 2003, pp. 95-98 – Correspondence avec Jean-Paul

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Sartre. Segundo Costa Neto, tais manuscritos foram devolvidos a Kosik – v. COSTA NETO, Karel Kosik e o marxismo no

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leste europeu: notas introdutórias, p. 10. 6 A Primavera de Praga foi a tentativa de encontrar um sistema político-

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econômico alternativo, que rompesse com as únicas opções que até agora se apresentam: o socialismo e o capitalismo. “La norme et la

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normalité contemporaines rejettent elles aussi le Printemps de Prague en tant qu‟anormalité, qui, cette fois, est

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complètement insensée, parce qu‟elle s‟essayait à l‟impossible : trouver « une troisième voie » entre le capitalisme et le

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socialisme”; a Primavera de Praga “[...] mettait en doute la légitimité du « socialisme réel », mais [...] faisait aussi tomber une lueur

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de doute sur le paradigme de l‟époque moderne dans sa totalité, sous ses deux formes au pouvoir (isto é, sobre o capitalismo e o

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socialismo)” – KOSIK, 2003, p. 153; grifos e parênteses meus. 7 Idem, ibidem, p. 9 – Karel Kosik, philosophe critique. No que

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tange às situações descritas acima e a outros detalhes da vida de Kosik, cf. KOSIK, 2003, pp. 9-16, e o site «http://volny.cz/

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enelen/kkosik/» (acesso em 10 fev. 2011), onde podem ser encontradas várias informações biográficas e uma lista dos

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livros, artigos, entrevistas e estudos desenvolvidos e publicados por Kosik. A vida de Kosik foi marcada por várias situações

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em que seus pensamentos críticos “saltaram” de sua cabeça e ganharam a força inerente à praxis; isso pode ser confirmado,

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por exemplo, pelo fato dele ter sido preso pela Gestapo – em 1944, quando tinha apenas dezoito anos – por participar ativamente da

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resistência clandestina tchecoslovaca anti-nazista, o que ocasionou sua deportação ao campo de concentração de Terezin

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(Theresienstadt); confirma-se ainda pelo seu empenho em promover uma renovação nas esferas da leitura e interpretação do pensamento

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de Marx, o que culminou com sua rotulação, por parte dos marxistas ortodoxos, como revisionista; pela perseguição que sofreu por parte

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do socialismo real, o que ensejou a perda de seu cargo de professor de filosofia na Universidade Charles bem como a

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confiscação, em 28 de abril de 1975, pela polícia tchecoslovaca, de quase mil páginas de dois de seus manuscritos: De

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la pratique e De la vérité, até hoje desconhecidos;5 e, principalmente, pelo seu envolvimento nos eventos da

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Primavera de Praga (1968).6 Corrobora com esses fatos a seguinte afirmação de Löwy e Tarcus, para os quais

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Karel Kosik […] fut non seulement un des plus importants philosophes de la deuxième moitié du XXe siècle, mais

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aussi un de ceux qui ont le mieux incarné l‟esprit de résistance de la pensée critique. Il fut aussi un des rares qui ont combattu, dans

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leur succession, les trois grandes forces d‟oppression de l‟histoire moderne : le fascisme, au cours des années 1940, le régime

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bureaucratique stalinien, à partir de 1956, et la dictature du marché, depuis 1989.7 11

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Tentarei agora esboçar uma caracterização histórica da situação do leste europeu no período em que Kosik desenvolveu

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seus estudos de graduação em filosofia e sociologia. No começo do século XX foram travadas na União Soviética

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vigorosas disputas político-filosóficas, notadamente no que tange às interpretações e leituras do pensamento de

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Marx e Engels. Segundo Costa Neto: No campo da filosofia, ao longo da década de 1920, desenvolveu-se na União

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Soviética uma intenso debate, entre duas distintas correntes – mecanicistas e dialéticos, que disputavam a

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hegemonia filosófica.8 8 COSTA NETO, Karel Kosik e o marxismo no leste europeu: notas

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introdutórias, p. 3. 9 Idem, ibidem, pp. 3-4; aspas e grifos do autor, parênteses meus. 10 Cf. idem, ibidem, p. 5. Costa Neto

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refere também a outra proposta de periodização, que foi desenvolvida pelo filósofo italiano Guido Neri – loco citado.

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Costa Neto desenvolveu ainda uma caracterização dessas duas correntes e descreveu o surgimento da filosofia

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marxista-leninista como síntese filosófica oficial da URSS a partir da crítica àquelas referidas correntes: Os mecanicistas defendiam que a

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filosofia era uma forma de metafísica mística e escolástica – se comparada as (sic) ciências particulares, ciências estas

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que possibilitariam a resolução dos diferentes problemas teóricos; a estes se opunham os dialéticos, que afirmavam ser o

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materialismo dialético uma concepção de mundo integral que englobaria a natureza e a sociedade. Este debate se encerrou em

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1929, com o êxito do grupo dialético, que assumiria a direção das principais instituições filosóficas. Entretanto, já

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em 1930, (sic) aparece o artigo “Sobre as novas tarefas da filosofia marxista-leninista”, assinado por três jovens filósofos

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que criticavam tanto os mecanicistas como os dialéticos, condenados como “idealistas mencheviques”. Defendiam o

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caráter partidário da filosofia e a necessidade de procurar a raiz política e de classe de todo fenômeno ideológico. Com

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a resolução do CC do PCUS, em janeiro de 1931, esta tendência se tornaria – através de uma decisão político administrativa

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que marcaria o nascimento oficial da nova síntese filosófica e que encontraria, posteriormente, sua versão canônica no

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opúsculo de J. Stalin: Materialismo Dialético e Materialismo Histórico – a filosofia oficial da URSS. Esta filosofia

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posteriormente seria implantada, nos diferentes países do leste europeu (dentre eles a Tchecoslováquia), através de diferentes

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métodos burocráticos e coercitivos, e perduraria em traços gerais, como filosofia de partido e estado (sic), até o colapso do

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Socialismo Real.9 De acordo com Costa Neto, o desenvolvimento do marxismo no leste europeu foi tema abordado por alguns

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pensadores. Segundo ele, Leszek Kołakowski, na obra Główne Nurty Marksizmu (Tendências Principais do

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Marxismo), “identifica” quatro “períodos” desse desenvolvimento.10 A fim de melhor caracterizar aquela situação

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histórica, passo a referir à periodização de Kołakowski, conforme a apresenta Costa Neto. O primeiro de tais períodos,

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que compreende os anos entre 1945 e 1949, 12

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se caracteriza, no tocante ao pensamento filosófico e social, pela existência de elementos de um pluralismo político e

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cultural que se expressava na presença de diferentes professores estranhos à tradição marxista nas diferentes

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instituições universitárias, particularmente importantes na Polônia e na Tchecoslováquia.11 11 COSTA NETO, Karel

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Kosik e o marxismo no leste europeu: notas introdutórias, p. 4; grifos meus. Ainda segundo Costa Neto, “na Tchecoslováquia

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a difusão da filosofia marxista na universidade se deparou com um conjunto de obstáculos, dentre os quais – cabe destacar – a

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ausência de intelectuais marxistas na Universidade, no período entre as guerras, agravada ainda mais por uma forte tradição

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intelectual e filosófica estranha ao marxismo. A vida intelectual, nas décadas de 1920 e 1930, era dominada pela importante

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figura de Thomas Masaryk (presidente da República Tchecoslovaca entre 1918 e 1935), que já no final do século

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XIX tinha anunciado a „crise do marxismo‟. Cabe igualmente lembrar a existência na capital tcheca de duas importantes

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instituições intelectuais: o Círculo Lingüístico de Praga, que reunia os representantes do estruturalismo

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lingüístico […] e o Círculo Filosófico de Praga, que refletia a forte presença em Praga da fenomenologia husserliana

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[…]” – idem, ibidem, p. 6; aspas e grifos do autor. 12 Idem, ibidem, p. 4; aspas do autor. 13 Cf. «http://volny.cz/

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enelen/kkosik/bio.html» (acesso em 10 fev. 2011). Segundo Costa Neto, foi também a partir dessa época que Kosik começou a desenvolver

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estudos acerca da tradição política de seu país: “Durante os anos 1950, Kosik, assim como outros filósofos dos países do leste-

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europeu desenvolveu uma série de estudos relacionados a (sic) tradição democrática e revolucionária de seu país,

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tradição esta muitas vezes influenciada pela filosofia clássica alemã e pelo hegelianismo” – COSTA NETO, Pedro Leão da.

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A questão da manipulação e da dominação anônima e universal no pensamento de Karel Kosik. Texto

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disponibilizado pelo autor, p. 1. 14 Idem. Karel Kosik e o marxismo no leste europeu: notas introdutórias, p. 4.

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Foram esses “professores estranhos à tradição marxista”, representantes de um “pluralismo político e

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cultural” que começava a ser suprimido pelo avanço político-ideológico soviético, que ministraram aulas na Universidade

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Charles durante a parte da formação filosófica e sociológica de Kosik que se deu em Praga, e é de se acreditar que essa

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diversidade acadêmica ensejou o caráter singular da filosofia kosikiana, caráter percebido, por exemplo, ao se

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verificar, no núcleo de tal filosofia, elementos do materialismo histórico-dialético e da fenomenologia.

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O segundo período definido por Kołakowski, segundo Costa Neto, abrange os anos de 1949 a 1954. Esse período foi marcado pela

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“unificação do „campo socialista‟ nos aspectos políticos e ideológicos”, por um processo de “stalinização da cultura” e

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pelo afastamento dos “professores estranhos à tradição marxista”12 das universidades, o que provocou uma verdadeira diáspora entre os

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intelectuais tchecos, assim como aconteceu com muitos intelectuais alemães durante a Segunda Guerra. Foi nessa época que

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Kosik começou a lecionar na Universidade Charles e se tornou assistente da Secretaria Regional do Partido Comunista

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Tcheco em Praga.13 Foi ainda nesse período que Kosik começou a se afastar do comunismo, pelo menos nos moldes em que

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ele era pensado e praticado pelos soviéticos. Para Kołakowski, o terceiro período do desenvolvimento do marxismo no

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leste europeu vai de 1955 a 1968. De acordo com Costa Neto, nesse período “surgem, por efeito da desestalinização, diferentes

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tendências anti-stalinistas e revisionistas”.14 Entre os que desenvolveram e sustentaram tais “tendências” encontra-se Kosik, que

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participou ativamente 13

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da Primavera de Praga, ocorrida entre janeiro a agosto de 1968. Acerca dessa participação e do “clima político” desse período,

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Néstor Kohan diz o seguinte: En ese singular y enrarecido clima político que conjugaba la represión interna y la penetración del imperialismo

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norteamericano con el pegajoso aliento soviético en la nuca, Karel Kosík participa de la llamada primavera de Praga. No salió inmune a la

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invasión de los tanques rusos. De allí en adelante, no aparece más públicamente. Pierde todos sus cargos en la docencia y no

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sólo ello. Según Sánchez Vázquez: “Kosík há pagado duramente su contribución a esa experiencia, no sólo con las

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medidas persecutorias dictadas contra él sino, sobre todo, con el silencio y el aislamiento forzosos impuestos a su

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pluma y su palabra, es decir, a su labor teórica marxista como trabajador docente y como investigador”.15 15 KOHAN, Néstor. La

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filosofía militante de Karel Kosík (1926-2003). Maracaibo, Venezuela: Utopía e Praxis Latinoamericana, 2004, ano 9, nº

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27, p. 90; aspas do autor. 16 Carta publicada na edição do dia 29-30 de junho de 1975. V. KOSIK, 2003, p. 95.

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17 “Quelle sera sa situation dans le processus historique et politique ouvert en 1989? Grâce à la « révolution de velours » et la fin de la

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dictature, Kosik retrouve son poste de professeur à l‟Université. Mais après vingt années d‟opposition au régime

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bureaucratique, il devient assez vite un opposant aux nouveaux gouvernements de droite qui arrivent au pouvoir. [...] Résultat : le

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nouveau régime, d‟inspiration néo-libérale, va l‟exclure, un an plus tard, de son poste universitaire, exactement comme, en

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1969, les autorités imposées par l‟invasion soviétique...” – cf. KOSIK, 2003, pp. 14-15. 18 COSTA NETO, Karel

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Kosik e o marxismo no leste europeu: notas introdutórias, p. 5. No período em questão, Kosik publicou, mais

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especificamente em 1958, sua primeira obra – Česká radikální demokracie. Příspěvek k dějinám názorových sporů v české

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společnosti (Democracia radical tcheca. Contribuição para a história das disputas ideológicas na sociedade tcheca);

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publicou ainda a Dialética do Concreto (da qual tratarei a seguir) e fez várias viagens para participar de eventos de filosofia e

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ministrar conferências na Itália, na Alemanha, na França, no México, nos Estados Unidos, ocasiões em que conheceu

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filósofos como Adolfo Sánchez Vázquez e Jean-Paul Sartre. Com esse último, trocou correspondências, uma das quais, onde denuncia o

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confisco dos dois manuscritos supracitados, chegou a ser publicada no jornal francês Le Monde.16 O quarto e último período

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do desenvolvimento do marxismo nos países do leste europeu iniciou, de acordo com Kołakowski, em 1969.

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Entretanto, no artigo de Costa Neto que serve de base para essa caracterização, não há referência a uma data que

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marcaria o encerramento desse período. Apesar da ausência explícita desse marco cronológico, penso que tal

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período seria encerrado com o esfacelamento da URSS, em 1989, uma vez que foi a partir de então que Kosik pôde recuperar seu

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cargo de professor na Universidade Charles, ainda que um ano depois viesse a ser novamente destituído do cargo.17 Para

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Costa Neto, esse período foi marcado pela “derrota e expurgo das diferentes correntes criticas, com o afastamento da

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vida pública ou o exílio de seus principais representantes”.18 Todavia, apesar da tentativa de 14

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silenciar os opositores do socialismo real, o pensamento crítico de Kosik e de outros não se deteve, e, em 1977, os “silenciados”

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publicaram, na imprensa estrangeira, a chamada Carta 77, que denunciava as violações, cometidas pelos dirigentes

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soviéticos, dos direitos humanos, da constituição tchecoslovaca e dos tratados e acordos de direito internacional.

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Costa Neto destaca ainda a análise de György Márkus quanto à existência de outras correntes marxistas no leste europeu.

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Segundo Costa Neto, citando Márkus, à exceção da filosofia marxista-leninista – que é “a „tendência extensional‟,

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segundo a qual a „teoria marxista se aplica ao conjunto da realidade, ou seja, à natureza, a (sic) sociedade e ao pensamento‟”19

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– há que se falar ainda em três outras correntes, a saber: uma que possui um caráter “cientificista” e “que privilegia uma reflexão

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metodológica sobre as ciências naturais”;20 outra “ideológica-crítica”, “que identificaria a filosofia como uma visão do

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mundo voltada à crítica das ideologias”;21 e outra denominada de “ontologia social”, à qual estaria vinculado Georg Lukács.

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Assim como Lukács, Kosik teria tentado, segundo Costa Neto, “superar as limitações, tanto da síntese filosófica oficial, como destas

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duas correntes opostas, que se aproximavam do existencialismo e o (sic) neo-positivismo, então hegemônicos no ocidente”.22

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Ante o exposto, pode-se dizer que o pensamento de Kosik não estaria inserido especificamente em nenhuma dessas correntes

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filosóficas, embora possamos igualmente afirmar que seu fundamento comum seja o materialismo de Marx e Engels.

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19 COSTA NETO, Karel Kosik e o marxismo no leste europeu: notas introdutórias, p. 5; aspas e grifo do autor; a

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citação dentro da citação é de Márkus – MÁRKUS, György. Teoria do conhecimento no jovem Marx. Rio de Janeiro: Paz e Terra,

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1974, Discussões e Tendências na Filosofia Marxista, pp. 113-129. 20 COSTA NETO, Karel Kosik e o

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marxismo no leste europeu: notas introdutórias, p. 5. 21 Idem, loco citado. 22 Idem, loco citado.

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23 KOSIK, 2003, p. 16 – Karel Kosik, Philosophe Critique; parênteses meus. A propósito do pensamento de Kosik, Löwy e

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Tarcus apresentaram aquilo que eles pensam serem suas linhas gerais: Audelà des inflexions qui correspondent

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aux transformations historiques et à la propre évolution interne de sa pensée (do pensamento de Kosik), on peut percevoir

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quelques lignes de force qui traversent l‟ensemble de son oeuvre, en lui donnant une profonde cohérence, et un caractère

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singulier, unique même, dans le paysage intellectuel de la deuxième moitié du XXe siècle : 1. Une critique de la civilisation moderne sous sa

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forme capitaliste ou pseudo-socialiste, qui puise au marxisme, au romantisme, à la phénoménologie, mais qui est véritablement

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originale. 2. Un point de vue éthique, humaniste et radical, qui met en question les formes fétichistes de l‟économie, de

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la société et de la politique modernes. 3. Un Principe de Résistance, inspiré par le « non » de Jan Hus aux pouvoirs

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ecclésiastiques de son temps, face aux religions totalitaires de l‟État, du Parti ou du Marché. 4. Une sensibilité profonde pour la

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richesse des formes culturelles du passé, que ce soit l‟Antiquité grecque ou le Siècle des Lumières, comme source

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d‟inspiration pour un avenir nouveau.23 15

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Foi, pois, num ambiente de ferrenha perseguição política, que esteve alicerçado sobre uma aberração ideológica – a

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filosofia marxista-leninista ou leninismo –, ambiente onde imperou a quase completa privação das liberdades mais

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fundamentais (como a de expressão do pensamento e da opinião), que germinou, floresceu e deu frutos a filosofia de Karel Kosik,

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pensador que morreu em 21 de fevereiro de 2003. § 2. Sobre a Dialética do Concreto. A Dialética do Concreto é uma

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obra crítica. Nela Kosik erige uma crítica mordaz aos problemas do mundo contemporâneo, que, para ele, são engendrados

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pelo que denominou, em La crise des temps modernes, de simbiose entre a técnica, a economia e a ciência. Segundo ele,

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cette symbiose a le pouvoir magique de réveiller et d‟organiser des forces titanesques pour les mettre au service d‟une

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partie de l‟humanité et, par ailleurs, elle inaugure l‟ère d‟un mouvement dynamique qui s‟exprime dans des termes

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comme : absorber, accumuler, emmagasiner, consommer. Ainsi commence l‟époque d‟une mobilisation universelle où,

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sur l‟ordre du commandement central, tout pourra être mis en mouvement et soumis à la mobilité, où pourra être créé, dirigé et contrôlé

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un flux continu de produits, d‟informations et de personnes.24 24 KOSIK, 2003, pp. 182-183 – La démocratie et le

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mythe de la caverne; grifo meu. 25 A partir daqui, passo a utilizar, para referir à Dialética do Concreto,

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apenas a palavra Dialética. 26 Entendo por técnica (ηέσνη) o(s) procedimento(s) ou ação(ões) de um indivíduo com o intuito de

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alcançar determinado(s) fim(ns). Tais modos de proceder podem ainda ser entendidos como um método. Assim, a crítica

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de Kosik à técnica contemporânea deve ser entendida como crítica dos procedimentos através dos quais o mundo

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humano-social e os diversos produtos do engenho humano são criados e/ou transformados, isto é, crítica da distância em que

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o trabalho (enquanto meio através do qual são engendradas as criações e transformações) se encontra do processo criativo, uma

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vez que, para Kosik, o trabalho esteja reduzido a mero procedimento de manipulação. 27 Segundo Irons, Kosik tece críticas também

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a Heidegger e à discussão heideggeriana sobre a preocupação, acusando Heidegger de não se desvincular de

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uma concepção dualista e mística do mundo: “Kosik charges that in Heidegger‟s philosophy the everyday world is split into a

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duality of care and procure which reflects „in a mystified fashion the process of intensified fetishization of human relations

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… The individual moves about in a ready-made system of devices and implements, procures them as they in turn

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procure him, and has long ago lost awareness of this world being a product of man. Procuring permeates his entire life‟” –

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IRONS, L. Roland. Apesar de referir a essa simbiose, Kosik, na Dialética,25 direciona sua análise mais específica e

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demoradamente para o âmbito da ciência da economia política, investigando, como veremos detalhadamente ao longo deste

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trabalho, a contribuição dessa ciência para a manutenção de um sistema global de produção e consumo que

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engendra, ao final e como resultado nefasto, a pseudoconcreticidade; ele realiza ainda, com efeito, a crítica de cada um dos

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elementos daquela simbiose: crítica da economia, da técnica26 e da ciência, tomada na totalidade de suas áreas.27 16

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Dialectics of the Concrete – The Text and its Czechoslovakian Context. In: New German Critique, nº. 18, 1979, p. 171; grifos meus. Já

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para Kohan, Kosik não endereça críticas apenas a Heidegger, mas também a Husserl, chegando a afirmar que,

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“Junto a la crítica de Edmund Husserl y sus derivados, Kosík también arremete sin piedad contra Martín Heidegger

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(padre inconfesado del actual posmodernismo)” – KOHAN, 2004, p. 93. Segundo Kohan, Kosik põe em cheque a

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“pretensão fenomenológica” de ir às coisas mesmas: “[…] la mirada crítica de Kosík pone en discusión la pretensión fenomenológica

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de „ir a las cosas mismas‟ a través de la intuición inmediata. No existe mundo pre-ideológico ni pre-discursivo y, si existe, este mundo

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antepredicativo no es otro que el mundo histórico de la praxis” – idem, loco citado. Kohan afirma ainda que a crítica de Kosik a

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Heidegger não está atrelada ao inegável vínculo desse ao nazismo; segundo ele: “El checo le reprocha al alemán que

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conciba la praxis humana sólo como actividad manipuladora pero no bajo su verdadera dimensión de apertura un nuevo mundo: el

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mundo humanizado por el propio ser humano por sobre el mundo de las cosas y la naturaleza. […] Si el aristocratismo

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antimodernista de Heidegger depreciaba la vida cotidiana de las grandes urbes por su supuesto „olvido del ser‟, Karel Kosík descentra

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completamente ese abordaje. Para el autor de Dialéctica de lo concreto el problema no pasa por el desprecio de las grandes masas

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trabajadoras (típico del elitismo tradicionalista de Heidegger) sino por la crítica impiedosa del „mundo de la

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pseudoconcreción‟ que impide a esas masas vivir una vida plena, auténtica y autónoma. En otras palabras: el problema de las masas no reside

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en „el olvido del ser‟, metafísico y recluído en el corazón recóndito del hombre, sino en la alienación histórica que genera el

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capitalismo fetichista. ¡El problema a resolver no es metafísico sino histórico y político! Para Kosik la solución no

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consiste en refugiarse, mediante un lenguaje críptico repleto de neologismos académicos, en una aproximación

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mítico-poética y metafísica de la vida. La apertura a un nuevo tipo de vida cotidiana vendrá de la mano de la revolución entendida como

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praxis desalienante y proceso ininterrumpido y continuado” – idem, ibidem, pp. 93-94. Ademais, Kosik parece

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considerar Heidegger um romântico – “Heidegger descreve a problemática do moderno mundo capitalista do Séc. XX [...] no

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espírito próprio à mania romântica de confundir e esconder tudo […]” (KOSIK, 1976, p. 65). 28 No que tange à implantação da

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filosofia marxista-leninista na Tchecoslováquia, Löwy e Tarcus dizem o seguinte – “Lors de la «normalisation» du pays en

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automne 1969, les nouvelles autorités imposées par les chars soviétiques [...] ont exigé de tous les membres du Comité Central

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de légitimer l‟invasion des troupes du Pacte de Varsovie. Kosik [...] a annoncé qu‟il refusait de se rétracter. Il fut bientôt exclu du

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Comité Central, du Parti Communiste et, par la suite, de son poste à l‟Université, sous l‟accusation de «déviationnisme

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de gauche». À partir de ce moment, commencent pour Kosik vingt années difficiles de philosophe proscrit et citoyen sans

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droits” – KOSIK, 2003, p. 14 – Karel Kosik, Philosophe Critique; aspas dos autores. 29 Para Costa Neto, “as raízes

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da crise da sociedade tchecoslovaca de 1968, (sic) eram comuns a uma crise mais profunda que afetava toda a modernidade”.

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Essa crise teria origem no domínio do saber técnico-científico no mundo contemporâneo. Cf. COSTA NETO, Karel

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Kosik e o marxismo no leste europeu: notas introdutórias, pp. 9-10. Num outro sentido, a Dialética é

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também uma crítica à filosofia marxista-leninista, que fora implantada à força nos Estados anexados à extinta União

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Soviética, sendo, consequente e especificamente, uma crítica à implantação do chamado socialismo real na então Tchecoslováquia

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.28 Com efeito, a supracitada obra, de um lado, apresenta uma investigação sócio-político-filosófica acerca dos problemas

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enfrentados pelos tchecos e eslovacos nos anos após a Segunda Guerra Mundial, problemas que culminaram na Primavera de

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Praga e se estenderam até o esfacelamento da URSS; do outro, nos mostra que tais problemas não são específicos do contexto

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daquele país, mas dizem respeito a todo o mundo contemporâneo, pelo menos desde o começo do século

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passado aos nossos dias.29 Além disso, a Dialética apresenta ainda, conforme afirma Irons, uma nova e profícua leitura

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do pensamento de Marx: Dialectics of the Concrete was published in 1963 and set the pace for the events in Czechoslovakia

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during the Prague Spring of 1968. […] the social and political upheavals of that spring in 1968 are not entirely forgotten, and

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Dialectics of the 17

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Concrete remains its philosophical manifesto. The overall task of the work has been characterized as a “rigorous

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recasting of Marx‟s entire theoretical framework, incorporating new developments while at the same time

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accounting for their genesis”.30 30 IRONS, 1979, p. 167; a citação dentro da citação é de PICCONE, Paul. Czech Marxism: Karel Kosik. In:

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Critique, nº 8, Summer, 1977, p. 43. Ainda de acordo com Irons, “Kosik‟s approach, of course, was severely criticizes by the

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orthodoxy of Marxism-Leninism for „Hegelianizing pseudo-materialist tendencies‟” (loco citado). Corroboram

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com essa afirmação Löwy e Tarcus: “À partir de 1956, toutes les interventions de Kosik sont engagées dans ce combat pour

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le renouveau critique du marxisme [...] Ces écrits et ses conférences suscitent un intérêt croissant de la part des secteurs

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rénovateurs, mais aussi le rejet de la part des gardiens de l‟orthodoxie bureaucratique” – KOSIK, 2003, p. 10 – Karel Kosik,

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Philosophe Critique. 31 Idem, ibidem, p. 85; grifos e parênteses do autor. 32 Na edição brasileira da Dialética não

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consta o subtítulo da mesma, o qual é bastante esclarecedor no que tange à temática da obra. Eis, pois, o subtítulo,

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conforme consta em uma edição alemã – Eine Studie zur Problematik des Menschen und der Welt. KOSIK, Karel. Die Dialektik

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des Konkreten. Frankfurt: Suhrkamp Verlag, 1967. 33 Utilizo-me aqui de expressões de Michel Foucault. A ideia da

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produção, pelo sistema capitalista, de indivíduos economicamente úteis e politicamente dóceis é amplamente

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analisada por Foucault, particularmente na Terceira Parte de Vigiar e Punir – Disciplina –, na qual discorre sobre o

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surgimento do que denominou de sociedade disciplinar. Acredito ser pertinente utilizar essas expressões foucaultianas

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para referir à produção de indivíduos e relações sociais em Kosik, posto que Foucault também aponte, ao empregá-las, para a existência

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dessa mesma produção. Por outro lado, o próprio Kosik afirma que expõe na Dialética uma nova leitura de uma antiga

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problemática abordada por Hegel: Ma Dialectique du concret (1963) fut seulement une tentative de penser, dans les

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nouvelles conditions et en termes de praxis, la problématique que Hegel a concentrée dans le concept d‟ « esprit » : l‟unité du denken,

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dichten und tun.31 Na obra em questão, Kosik investiga os problemas que ele acredita serem os do homem e do

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mundo contemporâneos.32 Tais problemas derivariam de uma determinada disposição ou configuração da

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realidade social, que imporia à cotidianidade dos indivíduos relações de preocupação – relações essas que serão elucidadas mais

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à frente. Por meio daquela disposição seriam coisificados os homens e personificadas as coisas; seriam reproduzidos

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indivíduos criticamente apáticos, “politicamente dóceis” e “economicamente úteis”;33 seria no seio dela que a história

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cotidiana de cada um se esvairia, obscurecida pela história das ideias, dos conceitos, dos Estados, dos entes

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econômicos e políticos, das instituições seculares, das tradições, leis e costumes ancestrais, das grandes obras, personagens e

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feitos de uma história pretensamente universal. Para investigar esses problemas, Kosik esquadrinha filosoficamente

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o mundo contemporâneo, se debruçando sobre os papéis que nele seriam desempenhados pela tríade simbiótica (técnica,

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economia, ciência); seu intuito é o de conhecer o modo de estruturação e configuração da realidade humano-social e

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os modos de ser (ethos) dos homens nessa realidade, bem como estabelecer critérios para se chegar a alguma forma de

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rompimento com 18

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as práticas utilitárias e fetichistas, isto é, alienadas e alienantes, veladas ou descaradamente cerceadoras da liberdade e do

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desenvolvimento humano, que seriam produzidas, reproduzidas e perpetuadas pelo e dentro do sistema capitalista de

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produção.34 Sendo um pensador marxista, Kosik entende que as respostas ou soluções para os problemas humanos devem

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ser buscadas, sobretudo, na própria realidade empírica, nas relações de intercâmbio material (Verkehr) que os homens

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desenvolvem uns com os outros e com o meio natural, uma vez que apenas pela transformação das condições materiais de

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existência e, por conseguinte, do mundo humano-social e da própria consciência, seja possível encontrar respostas ou

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soluções para aqueles problemas. 34 Apesar de aqui referir exclusivamente ao sistema capitalista, outros sistemas

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também engendraram praxis fetichistas – o feudal tinha seu jus primae noctis, por exemplo, e os gregos antigos consideravam as

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mulheres seres inferiores. 35 O conceito de ideologia que fundamenta minha pretensão de investigação é dado pelo próprio Kosik.

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Para ele, ideologia é “une fausse conscience transformée en système” (KOSIK, 2003, p. 45). Sabe-se, no entanto, que

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há muita polêmica em torno desse conceito, uma vez que vários pensadores buscaram definí-lo, cada um ao seu modo.

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Assim, para Destutt de Tracy, que, segundo Louis Althusser (cf. ALTHUSSER, Louis. Ideologia e aparelhos ideológicos do

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Estado. Lisboa: Editorial Presença / Martins Fontes, 1980, p. 69) e Marilena Chauí, foi o primeiro a utilizar a palavra ideologia, essa

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corresponderia ao nome de uma “ciência da gênese das ideias”, ideias que seriam tratadas “como fenômenos naturais que

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exprimem a relação do corpo humano, enquanto organismo vivo, com o meio ambiente” (CHAUÍ, Marilena. O que

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é ideologia. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1981, p. 22); para Marx e Engels, ideologia é o conjunto das ideias

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dominantes em uma determinada época, às quais é atribuída existência autônoma, isto é, existência por si mesmas,

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desvinculada dos produtores de tais idéias, a saber, a classe dominante; tais ideias serviriam para justificar e legitimar um dado estado ou

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ordem do mundo social (v. MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã. Rio de Janeiro: Civilização

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Brasileira, 2007, pp. 71-74); já para Althusser, a análise encaminhada por Marx e Engels acerca do fenômeno da ideologia n‟A

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Ideologia Alemã é limitada e “não-marxista”. Althusser tomou para si, então, a tarefa de elaborar o que denominou de “teoria da

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ideologia em geral”, teoria essa que está fundada sobre três teses: uma tese central – a de que a ideologia em geral não tem

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história, ao passo que as ideologias particulares, determinadas pelas lutas de classes, têm história –, e duas teses que se

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poderia chamar de complementares, a saber: tese 1 – “A ideologia representa a relação imaginária dos indivíduos com

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as suas condições reais de existência”; tese 2 – “A ideologia § 3. Da estipulação do tema, dos objetivos, do

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problema e do método, e da condução da abordagem do tema. Pretendo, nesta dissertação, investigar como ocorre o

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processo de criação das diversas perspectivas que visam apreender, compreender, interpretar e falar acerca da existência e da

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configuração do mundo humano-social; mais especificamente: pretendo saber como tão somente uma perspectiva – a do sistema

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vigente – é capaz de constituir-se em única verdade e manter-se enquanto tal, a despeito da análise crítica dos seus

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fundamentos, instituindo, segundo seus interesses, padrões de pensamento e de ação, normas morais, sociais, comerciais,

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coerções, sistematizações, que culminam na criação e reprodução massivas de ethos, relações e práticas que corroboram com

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a sua manutenção enquanto discurso ou sistema hegemônico.35 Tenho também o interesse de

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investigar acerca do agir 19

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tem uma existência material” (cf. ALTHUSSER, 1980, p. 69 e ss.). Não é o intuito desta dissertação tratar do conceito de

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ideologia; por isso, que sejam suficientes esses breves apontamentos. 36 A excentricidade é uma qualidade tida em alta

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conta por John Stuart Mill, conforme se pode perceber no seguinte trecho de A Liberdade – “Nesta época, o mero exemplo de

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dissidência, a mera recusa a ajoelhar-se diante do costume, é por si só um serviço. Precisamente porque a tirania da opinião é tal

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que torna a excentricidade censurável, é desejável, a fim de transpor essa tirania, que o povo seja excêntrico. A excentricidade

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sempre é abundante onde e quando a força de caráter é abundante e o montante de excentricidade numa sociedade sempre é

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proporcional ao montante de gênio, vigor mental e coragem mental que ela encerra. O que caracteriza o principal perigo

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de nossa época é tão poucos ousarem ser excêntricos” – MILL, John Stuart. A Liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2000,

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pp. 102-103; grifos meus. Penso que esse perigo ao qual Mill refere, apesar de ser relativo à Inglaterra vitoriana, mais

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especificamente, e ao mundo do século XIX, pode ser estendido, sem grandes distorções e com certa propriedade, aos

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nossos dias. Ainda hoje muitos indivíduos não ousam ser excêntricos, isto é, não ousam se desviar do centro dos

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padrões socialmente estabelecidos; isso faz com que aceitem passivamente intervenções do Estado ou da opinião pública

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sobre áreas da vida privada que não podem ser objeto de deliberação de outrem sem que com isso seja provocado um

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dano à liberdade individual. 37 Segundo Kosik, “Pour Marx, la dialectique matérialiste était un instrument servant à

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dénoncer et décrire d‟une façon critique les contradictions de la société capitaliste” – KOSIK, 2003, p. 21 – La

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dialectique de la morale et la morale de la dialectique; grifos meus. humano e seus efeitos dentro do mundo pseudoconcreto.

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Com efeito, a temática desta pesquisa é a pseudoconcreticidade e suas multifacetadas manifestações na realidade social. Meu

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objetivo geral é investigar o que seja essa pseudoconcreticidade – a partir da obra de Karel Kosik. Meus objetivos específicos

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dizem respeito a saber: I. como a pseudoconcreticidade é engendrada; II. como, a partir dela, são produzidos os fenômenos

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pseudoconcretos; III. como, enfim, é possível, ou mesmo se é possível ao homem destruir a pseudoconcretici

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dade – nos moldes propostos por Kosik –, restaurar em alguma medida sua autonomia nos âmbitos da ação (praxis

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concreta) e do pensamento (praxis abstrata), e fundar, pela praxis e pelo pensamento críticos, um estilo de vida singular, na

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medida do possível original e, por que não, quiçá excêntrico.36 Ora, ante o tema e os objetivos estipulados, temos o seguinte

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problema: poderá o indivíduo ter acesso – a partir do que propõe Kosik em sua investigação sobre a pseudoconcretici

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dade – à realidade social naquilo que ela é em si mesma, isto é, poderá ele conhecer os seus processos e fundamentos, aquilo que os

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configura, e, assim, esquivar-se, na medida do possível, da pseudoconcreticidade? Com o fito de tentar elucidar esse problema,

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encaminharei esta dissertação acerca da pseudoconcreticidade a partir da perspectiva que serve de alicerce ao pensamento de Kosik, a

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saber, a do materialismo histórico-dialético.37 Todavia, devo admitir que não concordo com todas as premissas do

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método dialético-materialista. Acredito que tal método possui muitos pontos interessantes e mesmo louváveis, tais

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como o interesse pelo conhecimento das causas que determinam o modo de ser dos homens em sociedade, assim como das causas

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que determinam os modos de organização das sociedades em cada etapa histórica; a compreensão de que a realidade concreta é o

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meio no qual e a partir do qual são 20

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travados os embates humanos pelos seus víveres, a partir do que tanto a natureza quanto os próprios homens são modificados;

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a utilização do pensamento dialético como forma de cindir e perscrutar a realidade humano-social; a busca por uma filosofia cuja

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raiz seja o homem concreto, real, e não ideias, conceitos, abstrações. Não obstante todos esses pontos positivos,

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acredito que alguns outros são bastante problemáticos, tais como a crença de que o poder se assemelharia a um objeto, que

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poderia, portanto, ser possuído e utilizado por alguém ou alguns (a classe dominante), que manipulariam os diversos

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aparelhos e instituições estatais, assim como o próprio Estado, para a consecução de seus interesses de classe;38 a ideia de que a

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ideologia seria um instrumento que serviria exclusivamente à burguesia, e se constituiria em um meio para essa classe se manter no

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poder;39 a crença de que uma sociedade comunista seria a resposta concreta e a superação de todos os problemas da

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sociedade capitalista;40 a concepção de que os trabalhadores, enquanto componentes das classes não-dominantes,

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seriam os portadores do embrião da transformação revolucionária desta sociedade em alguma outra.41 Em virtude desses

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problemas, procurarei destacar e justificar as discordâncias que porventura surjam entre minha leitura e interpretação do

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materialismo histórico-dialético e as de Kosik.42 38 Devo dizer que estou plenamente de acordo com a análise

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foucaultiana do poder. É nessa análise que fundamento minha objeção à discussão dialético-materialista em torno do poder.

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Para conhecer os meandros da análise foucaultiana, cf., na Microfísica do poder, os textos Genealogia e poder e

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Soberania e disciplina, mais particularmente esse último, onde Foucault apresenta as precauções metodológicas das quais ele

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lançou mão naquela análise. 39 Acerca dessa ideia, cf. MARX e ENGELS, 2007, pp. 71-74. Partindo da definição kosikiana de

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ideologia, mencionada anteriormente, não há porque se falar na existência de apenas uma ideologia (a da classe

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dominante, por exemplo), mas em várias. Isso me parece se evidenciar quando nos voltamos, por exemplo, para o cenário da

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Guerra Fria: de uma lado o socialismo, do outro, o capitalismo, ambos os sistemas com suas próprias sistematizações

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de ideias e de compreensão do mundo; ambos engendrando falsas consciências que se transformam em sistemas.

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40 Tal crença parece-me não passar de utopia. Mesmo sociedades comunistas enfrentariam problemas que colocariam em

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cheque o alcance prático de suas aspirações, o que pode ser verificado através dessa simples e clássica objeção: como distribuir

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igualmente os frutos do trabalho entre trabalhadores desiguais? Aqueles que produzem quantitativamente mais, ou os

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que são mais habilidosos, não teriam direito a receber um salário maior do que o daqueles que produzem menos ou do que o dos que

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fabricam produtos qualitativamente inferiores? Assim, percebemos que o problema da justa remuneração do

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trabalhador não é relativo unicamente ao capitalismo, e, além disso, que tal problema permaneceria sem solução até mesmo numa

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sociedade comunista. 41 Compreendo bem o papel central que é atribuído à classe operária na filosofia social e política

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de Marx e Engels. Todavia, devo indagar: somente os trabalhadores, isto é, os integrantes das classes dominadas,

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podem transformar as condições do mundo em que vivem? Não seriam todos os indivíduos, proletários ou capitalistas,

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potenciais transformadores do mundo? À primeira questão, respondo que não, à segunda, que sim. Considerar que

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somente os trabalhadores poderão transformar esse modelo social em algum outro é, no mínimo, tentar tapar o sol com uma

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peneira, na medida em que a praxis, através da qual a realidade é transformada, é inerente a todos os seres humanos.

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42 Àqueles que consideram problemático se apropriar apenas parcialmente de um método ou de um conjunto de ideias, alterando-os de

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acordo com um sentido e propósito diferentes daqueles originariamente a eles atribuídos pelo(s) seu(s) criador(es), digo

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que, na história da filosofia e mesmo na das ciências, muitas foram as vezes em que isso ocorreu. Marx, por exemplo, como é sabido,

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alterou profundamente, ou mesmo inverteu a dialética de Hegel, a ela atribuindo novos sentido e utilização; o

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positivismo tentou trazer para as ciências do homem, 21

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fundamentando-se numa analogia, o método investigativo das ciências da natureza. É lícito pensar que, se não fosse por

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essas imbricações e fusões de pensamentos e perspectivas as mais diversas, o conhecimento humano estaria aquém do

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patamar onde se encontra hoje. 43 A investigação que empreendo no primeiro parágrafo dessa segunda parte não foi abordada

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por Kosik, se constituindo, assim, em uma investigação independente por mim desenvolvida. Ora, intentando melhor

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esquadrinhar o tema que aqui propus, dividi esta dissertação em cinco partes. A primeira constitui-se desta Introdução, na

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qual apresento as linhas gerais deste trabalho. Na segunda, teço algumas considerações acerca das relações de intercâmbio

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material dos homens com a natureza e consigo mesmos, e sobre o surgimento da praxis utilitária ou fetichista no seio do sistema

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capitalista, procurando mostrar a transição daquelas relações para essa praxis, que caracteriza o problema da

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pseudoconcreticidade.43 Na terceira, exponho o raciocínio de Kosik acerca do que ele denominou de mundo da

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pseudoconcreticidade, e investigo acerca dos fenômenos do homem-preocupado e do homo oeconomicus, formas através

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das quais se manifesta a praxis utilitária. Na quarta, discorro sobre os momentos da destruição da pseudoconcreticidade, isto é,

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sobre os modos através dos quais seria possível, segundo Kosik, um rompimento com aquela praxis utilitária. Enfim, na quinta e última parte,

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apresento as conclusões às quais pude chegar durante a pesquisa. 22

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II. Das relações de intercâmbio material e do engendramento da praxis utilitária § 4. A realidade concreta. Dos mundos natural

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e social e da ação do homem sobre eles. A realidade concreta – a ϕςζιρ, considerada no sentido específico de

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natureza – existe empiricamente para o homem sob dois aspectos (ειδορ): o do mundo natural e o do mundo humano-social. Também

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existe abstratamente, e isso na medida em que ela pode ser cindida, conceituada e conhecida por meio do pensamento. A

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natureza em sua totalidade compreende em si mesma tanto o mundo natural em estado originário – isto é, ambiente ainda intocado

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ou minimamente alterado pela ação humana –, como o mundo humano-social: ambiente sobremaneira transformado pela ação dos

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homens, de modo que passa a não mais ser visto como propriamente natural mas como sociedade.44

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44 Devo dizer que não compartilho do pensamento de que o mundo humano-social, entendido como sociedade, seja algo separado

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do mundo ou meio natural. Entendo por mundo ou realidade humano-social a parcela da natureza que foi transformada

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pela ação do homem. 45 É conhecido o desejo de Descartes de apoderar-se da natureza a fim de melhorar as condições da

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vida humana, como podemos constatar através do seguinte trecho: “[…] essas noções (gerais sobre física, adquiridas pelo uso do

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método cartesiano) mostraram-me que é possível chegar a conhecimentos muito úteis à vida e que em vez dessa

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filosofia especulativa que se ensina nas escolas se pode encontrar uma outra prática que, conhecendo o poder e as acções do fogo,

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da água, do ar, dos astros, dos céus e de todos os outros corpos que nos cercam tão distintamente como conhecemos os

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diversos misteres dos nossos artífices, os poderíamos utilizar de igual modo em tudo aquilo para que servem, tornando-nos

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assim como que senhores e possuidores da natureza” – DESCARTES, René. Discurso do Método. Lisboa: Livraria Sá da Costa Ed.,

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1980, p. 49; grifos e parênteses meus. Esse mesmo intento também pode ser constatado na Primeira Regra para a orientação

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do uso da razão, na qual está exposto que as ciências “nos são úteis com vistas ao bem-estar da existência ou com vistas ao

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prazer que se encontra na contemplação do verdadeiro […]” – idem. Regras para a orientação do espírito. São Paulo: Martins

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Fontes, 2007, p. 3. Por isso Kosik pôde afirmar que “Le système moderne est une transformation continue dans laquelle la réalité se change

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en réalité calculable et disponible, mise au service de l‟homme” – KOSIK, 2003, p. 150 – Le Printemps de Prague, la fin de

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l’Histoire et le Schauspieler. Com relação ao desenvolvimento da ciência e à previsão de Descartes acerca do futuro dessa, veja-se o

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seguinte trecho – “Ora, tendo resolvido dedicar toda a minha vida à descoberta duma ciência tão necessária, e tendo

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encontrado um caminho que a ela deve infalivelmente conduzir, se o seguirmos, a não ser que disso sejamos impedidos ou

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pela curta duração da vida ou por falta de experiências, pensei eu que não havia melhor remédio contra esses obstáculos que

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comunicar fielmente ao público todo o pouco que já tivesse descoberto e incitar os bons espíritos a esforçarem-se

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por ir mais longe, contribuindo para isso cada qual, segundo a sua inclinação e poder, para as experiências que seria necessário

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fazer, e comunicando por sua vez ao público tudo o que aprendessem, começando os últimos onde os precedentes

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tivessem acabado, e assim, juntando as vidas e os trabalhos de muitos, fôssemos todos juntos mais longe do que

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cada um poderia ir”. DESCARTES, 1980, p. 50; grifos meus. Kosik tem uma leitura muito interessante acerca do uso

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prático dos princípios do método cartesiano na ciência contemporânea: “[…] la méthode progresse pas après pas; pas

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après pas, elle assure la progression d‟ensemble en avant et devient ainsi le préssupposé d‟un processus certain et

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infaillible qui assure la maîtrise non seulement Como pretendia e previu Descartes, o desenvolvimento da ciência e da

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técnica tem proporcionado ao homem um poder crescente sobre a natureza, de modo que o conhecido intento

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cartesiano de tornar o homem como que “senhor e possuidor” dessa tem se consolidado cada vez mais como o escopo

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norteador de todo desenvolvimento técnico-científico.45 Todavia, a escalada daquele poder só é capaz

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de proporcionar aos homens 23

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sur la nature mais sur tout ce qui est. La méthode est l‟assurance d‟une maîtrise certaine et progressive de toute la réalité”

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– KOSIK, 2003, p. 173 – Victoire de la méthode sur l’architectonique. 46 Exemplo do mundo natural quase

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completamente intocado pelo homem temos no continente antártico. Exemplos do mundo natural transformado em mundo humano-

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social podem ser encontrados onde quer que haja uma cidade. Para que essa possa surgir ou expandir suas fronteiras, o ambiente natural

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que a circunda terá que passar por várias alterações: derrubada de árvores nativas, terraplenagem, construção de usinas e

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barragens etc. As características originais às quais refiro são aquelas encontradas pelos homens antes de iniciada

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qualquer intervenção sua num ambiente natural qualquer. 47 KOSIK, Karel. Dialética do concreto. Rio de Janeiro: Paz e

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Terra, 1976, p. 18; grifos meus. 48 MARX e ENGELS, 2007, p. 52. conhecimento e controle limitados sobre a natureza. Não é

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possível ao homem assenhorear-se da natureza em sua totalidade. Contudo, a ele é possível engendrar conhecimentos

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mais ou menos profundos e abrangentes acerca de diversas áreas e fenômenos naturais, os quais podem lhe permitir alcançar

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certo senso de previsão e certa possibilidade de manipulação de alguns processos causais – por exemplo, é possível modificar

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geneticamente alguns organismos, e daí surgem os organismos transgênicos –, enquanto que outra gama de fenômenos e

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áreas permanece alheia a qualquer tentativa de conhecimento e manipulação – não há como impedir que a terra seja chacoalhada por

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terremotos, pouco se conhece acerca da energia escura. Por sua vez, o mundo humano-social é a parcela do

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mundo natural que sofreu significativas modificações em virtude da atividade humana, perdendo, com isso, grande

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parte de suas características originais.46 Da realidade social, entretanto, pode-se dizer que o homem seja de fato e plenamente

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senhor, uma vez que tudo o que nela existe seja produto de uma ação racional, isto é, seja produto da ππαξιρ (praxis), por mais que

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nem todos os homens tenham consciência de si mesmos como produtores desta realidade, ainda que a maior parte deles esteja na condição de

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objeto de uma determinada configuração social da realidade. Kosik assinalou muito bem a diferença entre esses dois aspectos da

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realidade concreta: A diferença entre a realidade natural e a realidade humano-social está em que o homem pode

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mudar e transformar a natureza; enquanto pode mudar de modo revolucionário a realidade humano-social porque ele

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próprio é o produtor desta última realidade.47 Marx e Engels também apontaram para esse duplo aspecto:

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A produção da vida, tanto da própria vida no trabalho quanto da vida estranha na procriação, parece já se mostrar desde logo na condição

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de relação dupla – de um lado, como relação natural, e de outro como uma relação social […].48 A partir do trecho citado da

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Dialética, entendo que Kosik afirme que a natureza pode ser transformada pela atividade humana, pela intervenção do

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homem sobre ela; 24

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entretanto, isso não pode ser feito de forma revolucionária, isto é, os homens não podem transformar radicalmente a natureza, uma

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vez que eles não sejam a raiz da mesma. Os homens podem alterar parcialmente o mundo natural, podem transformar uma

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dada área duma montanha num garimpo, ou parte de um rio numa usina hidroelétrica, porém não podem criar nem um rio nem uma

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montanha tais como os encontraram na natureza. Apesar disso, eles podem transformar radicalmente a realidade social,

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isto é, podem transformá-la em sua totalidade, e isso porque e na medida em que eles a produzem e sejam, por isso, sua raiz. É

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nesse sentido que Marx pôde dizer que “ser radical é agarrar as coisas pela raiz. Mas, para o homem, a raiz é o próprio homem”.49

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Nesse sentido, a filosofia, as ciências, os Estados, os poderes executivo, legislativo e judiciário, as religiões, a

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moralidade, a economia etc. não são encontrados em lugar algum da natureza em estado originário, tal como

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encontramos uma floresta ou um desfiladeiro; todos eles são produtos, criações, invenções, convenções que visam dar certa

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forma à realidade social e à existência humana dentro dessa realidade. 49 MARX, Karl. Crítica à filosofia do direito de Hegel

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– Introdução. São Paulo: Boitempo Editorial, 2005, p. 151. O fato de todas essas coisas serem produtos da praxis

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humana, serem expressões do seu modo de produção, isto é, expressarem a forma de vida própria da espécie humana, é a razão pela

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qual elas podem ser ou completamente abolidas da sociedade, ou parcialmente suprimidas ou mesmo alteradas a qualquer

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tempo, quer no que tange ao seu modo de funcionamento, quer ao seu significado, quer ao seu objetivo sócio-político etc.,

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independentemente de se elas existem e funcionam de determinado modo há vários séculos ou há alguns dias. A existência de tais

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produtos não tem para nós o mesmo caráter que envolve as coisas, fenômenos e processos naturais, uma vez que esses

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obedecem a leis causais universais, ao passo que aqueles estão submetidos aos desígnios instáveis dos homens.

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Destarte, pode-se afirmar que os homens são causa eficiente de todas as coisas, fenômenos e processos sociais – já que

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esses podem ser controlados e alterados por eles –, bem como de todas as coisas, fenômenos e processos resultantes de

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sua atividade técnico-científica sobre a natureza – posto que os diversos conhecimentos por eles engendrados

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permitam algum nível de previsão, controle e manipulação do mundo natural. Diferentemente do que ocorre com o mundo

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natural, que existe independentemente da nossa vontade e das nossas ações, o mundo humano-social começa a ser engendrado a

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partir do momento em que os homens agem sobre a natureza com o intuito de produzir seus víveres ou meios de vida

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(Lebensmittel). Como Marx e Engels demonstraram claramente, na medida em que o homem produz seus víveres

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produz também a 25

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si mesmo – distinguindo-se assim dos animais –, e, pela alteração do mundo natural, produz o mundo humano social.50 Com

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efeito, para Marx e Engels o modo de produção em geral e, mais especificamente, a produção de víveres são atividades que

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estão intrinsecamente atreladas ao homem concreto e ao seu modo de ser no mundo, isto é, são características

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dos seres humanos enquanto espécie animal. 50 “Ao passo que produzem seus víveres, os homens também produzem

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indiretamente sua vida material” – MARX e ENGELS, 2007, p. 42. 51 Idem, loco citado; grifos dos autores. No

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que tange à referência aos seres humanos como espécie, penso que Marx e Engels anteciparam, em alguma medida, alguns aspectos

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da teoria da evolução das espécies de Charles Darwin e das considerações igualmente evolucionistas de Alfred Russel

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Wallace. Esses aspectos podem ser percebidos quando Engels e Marx, ao analisarem o fato situacional constatado quando da

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análise do primeiro pressuposto de toda a história humana, isto é, a existência orgânica ou corporal dos homens e a

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relação desse corpo com a natureza, dizem: “Aqui (isto é, n‟A Ideologia Alemã), naturalmente não poderemos abordar nem a

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constituição física do homem em si nem as condições naturais, geológicas, oro-hidrográficas, climáticas e outras condições

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que os homens encontraram no mundo. Mas essas condições implicam não apenas a organização original e naturalística dos

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homens, em particular as diferenças entre as raças, mas também todo o seu desenvolvimento ou seu não-desenvolvimento

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sucessivo até os dias de hoje” – loco citado; parênteses meus. Seria interessante investigar mais aprofundadamen

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te esses aspectos. 52 Cada filósofo considera sua própria concepção, a respeito daquilo que diferencia os homens dos

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outros animais, como a mais acertada. Prova disso temos em afirmações como as de Marx e Engels – “O primeiro ato histórico desses

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indivíduos (dos homens), através do qual eles se diferenciam dos animais, não é o fato deles pensarem, mas sim o de eles começarem a

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produzir seus víveres (MARX e ENGELS, 2007, pp. 41-42; grifos dos autores, parênteses meus) –, de Kant – “The human

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being is the only creature that must be educated. By education we mean specifically care (maintenance, support),

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discipline (training) and instruction, together with formation. […] Discipline or training changes animal nature into human

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nature” (KANT, Immanuel. Anthropology, History, and Education. New York: Cambridge University Press, 2007, p. 437, 9:

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441) –, de Feuerbach – “A religião repousa na diferença essencial entre o homem e o animal – os animais não têm religião”

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(FEUERBACH, Ludwig. A Essência do Cristianismo. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2008, p. 9) –, de

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Heidegger, para quem “[…] a presença, isto é, o ser do homem, caracteriza-se como ζῷον λόγον ἔσον, o ser vivo cujo modo de ser é,

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essencialmente, determinado pela possibilidade de falar” (HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Petrópolis:

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Vozes, 2009, p. 64), e em tantas outras desse tipo. Esse é um dos muitos pontos da filosofia que não permitem consenso, se é

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que há algum que permita. Penso, todavia, que a concepção de Marx e Engels seja a mais acertada, pelo menos das concepções que

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conheci até agora. Esse modo de produção não deve ser observado apenas sob o ponto de vista que faz dele a

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reprodução da existência física dos indivíduos. Ele é, muito antes, uma forma determinada de expressar sua vida, uma forma

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de vida determinada do mesmo. Assim como os indivíduos expressam sua vida, assim eles também são. O que eles são,

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coincide com sua produção, tanto com o que eles produzem, quanto com o como eles o produzem. O que os indivíduos são,

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portanto, depende das condições materiais de sua produção.51 Ora, produzir os meios de sua própria subsistência

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orgânica não é propriamente o que diferencia o homem dos outros animais, ainda que saibamos que esses não produzem seus

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próprios alimentos.52 A peculiaridade da vida humana se expressa tanto no ato mesmo da produção como nos produtos produzidos; a

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singularidade dos homens frente aos outros animais reside no fato de que a forma da sua existência ou o seu modo de ser no mundo se

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manifesta na e pela produção, a qual deve ser entendida no sentido mais abrangente possível, a começar pela produção

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daquilo que é mais premente (os víveres, os meios que permitirão a 26

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subsistência física), passando pela produção de vestimentas, abrigos, ferramentas, utensílios e objetos diversos, culminando na

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produção de coisas mais complexas, tais como aquelas compreendidas nas esferas da cultura (língua, mitos, tradições etc.), da política

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(leis, regimes e sistemas políticos etc.), das ciências e da tecnologia (teorias, fórmulas, equações, máquinas,

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instrumentos, aparelhos etc.), do pensamento e da arte (filosofia, pintura, escultura, literatura e assim por diante). Por

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isso Marx pôde afirmar que “a anatomia da sociedade civil deve ser procurada na economia política”53 – e isso porque essa

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ciência, enquanto produto humano através do qual é possível ter uma visão profunda da realidade humano-social e do modo de

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produção, expressa um determinado estágio da organização social dos homens e das relações materiais.

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Assim, a sociedade civil – expressão engendrada para designar a sociedade burguesa – é a manifestação das formas

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através das quais os homens se relacionam entre si e com a natureza no mundo capitalista, o que confirma a tese do

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condicionamento da realidade humano-social pelo modo de produção.54 53 MARX, Karl. Contribuição à crítica da economia

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política. São Paulo: Martins Fontes, 1983, p. 24. 54 “O modo de produção da vida material condiciona o desenvolvimento

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da vida social, política e intelectual em geral” – idem, loco citado. 55 Sobre esse ato histórico, cf. MARX e ENGELS, 2007,

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pp. 41-42 e pp. 50-51. 56 Acerca do desenvolvimento histórico das relações materiais de produção e de intercâmbio nas

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sociedades feudais, estatais e tribais, cf. idem, ibidem, pp. 44-47. Ainda no que tange a essas sociedades, Marx diz o

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seguinte, acerca da possibilidade de conhecê-las: “A sociedade burguesa é a organização histórica da produção mais desenvolvida e

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mais variada que existe. Por este fato, as categorias que exprimem as relações desta sociedade e que permitem compreender a

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sua estrutura permitem ao mesmo tempo perceber a estrutura e as relações de produção de todas as formas de sociedade

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desaparecidas, sobre cujas ruínas e elementos ela se Os homens expressam suas vidas através de seus produtos; tais produtos

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representam um determinado modo de produção, e esse, por seu turno, condiciona as formas da existência humana e as

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relações de intercâmbio material. O pressuposto segundo o qual “o que os indivíduos são coincide com sua produção”

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pode ser historicamente verificado. As diferentes formas de organização dos homens em sociedade ao longo da história

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– das comunidades tribais às metrópoles contemporâneas – expressam a sucessão e o desenvolvimento histórico dos

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diversos modos de produção e das variadas formas de intercâmbio material. A forma do primeiro ato histórico, isto é,

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a forma da atividade pela qual são produzidos os víveres e satisfeitas as necessidades materiais mais prementes, não

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permaneceu sempre a mesma.55 Penso que, nas sociedades contemporâneas, bem mais complexas do que as feudais,

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estatais e tribais, as relações mais imediatas aos homens são as relações de ordem econômica, as quais impõem uma forma

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específica de produção e, por conseguinte, uma forma específica de estar no mundo.56 Entretanto, para Marx, as

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relações mais imediatas aos homens são as travadas com outros homens – 27

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edificou, de que certos vestígios, parcialmente ainda não apagados, continuam a subsistir nela, e de que certos signos simples,

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desenvolvendo-se nela, se enriqueceram de toda a sua significação” – MARX, 1983, p. 223. 57 MARX, Karl. Manuscritos

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econômico-filosóficos. São Paulo: Boitempo Editorial, 2004, p. 104; grifos do autor. Nesse trecho dos Manuscritos, podemos

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perceber a influência de Feuerbach no pensamento de Marx. Para Feuerbach: “O eu começa por preparar o seu olhar nos olhos

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de um tu, antes de poder suportar a visão de um ser que não lhe reflecte a sua própria imagem. O outro homem é o vínculo entre

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mim e o mundo. Sou e sinto-me dependente do mundo, porque começo por me sentir dependente de outros homens. […] O primeiro

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objeto do homem é o homem” – FEUERBACH, 2008, p. 96; grifos do autor. 58 Sobre o papel do dinheiro na sociedade grega

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antiga, cf. ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: Edipro, 2009, especificamente o Livro V.

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A relação imediata, natural, necessária, do homem com o homem é a relação do homem com a mulher. Nesta

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relação genérica natural a relação do homem com a natureza é imediatamente a sua relação com o homem, assim como a relação com o homem é

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imediatamente a sua relação com a natureza, a sua própria determinação natural.57 Ao afirmar que as relações de ordem

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econômica são as mais imediatas, tenho em mente o fato de que o mundo capitalista colocou em primeiro lugar na vida dos

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indivíduos as relações econômicas de produção e consumo, de modo que é possível dizer que as relações do homem com

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o homem e, consequentemente, do homem com a natureza, foram colocadas em segundo plano. É certo, porém, que já na Antiguidade

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Aristóteles havia destacado a importância das relações comerciais na vida dos homens e nos negócios da πολιρ (polis); contudo, ao

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dinheiro não era atribuída a importância que hoje se lhe atribui, dado que existiam vários outros meios de comensurar as coisas.58 Com

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efeito, sob o capital, os homens obtêm seus víveres a partir da venda de sua força de trabalho, isto é, a partir de sua inserção nas

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relações e processos econômicos – isto é, eles dependem de outros indivíduos para sobreviver. Sob o domínio do

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capital, as atividades pelas quais os homens produzem seus meios de vida não se destinam mais, num primeiro momento, à

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satisfação das necessidades mais urgentes, mas, antes, estão intrinsecamente atadas às relações de compra e venda – relações nas

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quais todos os homens precisam entrar para poderem existir no mundo capitalista. Verifica-se aqui, então, uma completa

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inversão na forma de estabelecer relações com o ambiente – já não é mais a natureza que se mostra concretamente

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aos homens como uma força a ser vencida, como um verdadeiro imperativo natural que pode ser vencido pela praxis humana,

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que transforma a natureza; agora, é o próprio mundo social, na forma que lhe é atribuída pelo sistema capitalista e seu respectivo modo

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de produção, que aparece como algo dado, como um imperativo artificiosamente erigido, como um estado de coisas

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aparentemente pré-existente e definidor dos modos de existência humanos, do seu modo de produção e das relações de

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intercâmbio material, imperativo ao qual é preciso se submeter, posto que ele apareça como algo intrínseco ao modo próprio de

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ser das sociedades capitalistas; agora, a praxis humana 28

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não se destina a transformar o mundo, mas a transformar-se a si mesma em manipulação no seio de um sistema que aliena seu

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potencial de transformação da realidade. § 5. A praxis utilitária ou fetichista e o engendramento da

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pseudoconcreticidade. Desde o surgimento do sistema capitalista, os homens não se contentam em produzir apenas

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o indispensável à manutenção de suas vidas; desde então, produzir consiste em explorar predatoriamente não só o

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ambiente natural como também os próprios homens; a partir de então, os meios, os instrumentos pelos quais se assegura a

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produção quer de víveres quer de objetos e produtos, passaram ao controle de alguns poucos indivíduos (capitalistas), o

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que obrigou a grande massa de indivíduos destituídos dos meios de produção (proletários) a vender sua força de trabalho. O

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capitalista, por sua vez, que compra aquela força de trabalho, depende do trabalho alheio para assegurar e gerar a produção

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de sua riqueza, e assim todos os homens se tornaram dependentes do modo de produção capitalista. O útil, nesse

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sistema, não consiste apenas na maximização da produção de víveres e na célere satisfação das necessidades mais prementes; na perspectiva

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fetichista do capitalista, o útil consiste na maximização da reprodução do capital, de maneira que são considerados úteis tanto uma

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máquina que aumente a produção de uma mercadoria qualquer no menor lapso possível, como um sistema de produção que

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otimize a exploração da força de trabalho, gerando mais-valia crescente e maior diminuição dos custos de

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produção;59 é útil ainda, mas do ponto de vista utilitarista ou fetichista do trabalhador, a mercadoria que ele recebe em troca de sua

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força de trabalho, a saber, o dinheiro na forma de salário, com o qual poderá adquirir seus meios de vida, assim como quaisquer

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outras mercadorias que ele represente como sendo úteis à sua existência e ao bem-estar de sua família.

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59 São exemplos de tal sistema o Taylorismo, o Fordismo, o Toyotismo. Ora, tal forma de considerar a utilidade não é nada menos que

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fetichista, e caracteriza aquilo que Kosik chamou de praxis utilitária, a qual corresponde tanto à maneira como os homens

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agem no mundo pseudoconcreto, como àquela pela qual eles pensam esse mesmo mundo. Segundo Kosik, a utilização acrítica da

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palavra praxis, isto é, seu uso no sentido utilitário, designa quatro coisas: […] en premier lieu, l‟activité intentionnelle

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aussi bien que la supériorité de l‟activité sur la passivité ; en second lieu, le sens pratique et sa priorité sur la théorie et le raisonnement

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théorique ; en troisième lieu, l‟objectivité et l‟extériorité ainsi que leur caractère déterminant par rapport à la subjectivité et à

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l‟intériorité ; en 29

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quatrième lieu, le travail et son sérieux par opposition à la frivolité du jeu et la gratuité du rire.60 60 KOSIK, 2003, p. 89 –

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Gramsci et la philosophie de la praxis. 61 Idem, 1976, p. 15; aspas e grifos do autor. 62 Por isso Kosik pôde escrever, acerca

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da ideologia (como vimos acima), que essa é “[...] une fausse conscience transformée en système [...]” – idem, 2003, p.

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45 – Langue, Pouvoir, Intelligentsia. Para Kosik, sob a égide dessa praxis utilitária os homens não criam e atribuem sentido ao

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mundo e às coisas que nele estão – eles encontram mundo e coisas com sentidos já prontos e acabados; eles não agem por si

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mesmos, mas movidos pela carência material, pelas exigências sociais, por interesses alheios, pela alienação do

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presente em prol de um futuro incerto; eles não vêem a si mesmos como indivíduos presos e tragados pelas engrenagens do

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sistema, não se percebem como sujeitos enredados em jogos político-econômicos, mas pensam que o mundo sempre foi como é e que

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esse é o modo próprio dele. Por isso Kosik pôde dizer o seguinte acerca da praxis utilitária: A praxis utilitária cotidiana cria “o

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pensamento comum” – em que são captados tanto a familiaridade com as coisas e o aspecto superficial das coisas quanto a

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técnica de tratamento das coisas – como forma de seu movimento e de sua existência. O pensamento comum é a forma ideológica

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do agir humano de todos os dias. Todavia, o mundo que se manifesta ao homem na praxis fetichizada, no tráfico e na

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manipulação, não é o mundo real, embora tenha a “consistência” e a “validez” do mundo real: é “o mundo da aparência”.61

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Ora, para Kosik, a praxis utilitária se vale do pensamento comum, do pensamento acrítico ou representacional, isto é, do

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pensamento que não atinge a compreensão acerca do modo de ser das coisas, como meio de perpetuar-se a si mesma. Segundo

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Kosik, para o pensamento acrítico, quanto mais conhecida possa parecer uma dada realidade, uma determinada situação na qual

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o indivíduo porventura se envolva cotidianamente; quanto mais familiarizado ele acredite estar com uma atividade

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qualquer; quanto mais se julgue conhecedor da sociedade, do homem e daquilo que lhe seja concernente, mais esse

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indivíduo se torna uma peça de engrenagem, mais ele se afunda na superficialidade e banalidade de uma cotidianidade

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engendrada por um sistema para o qual ele não passa de um acessório, um objeto cuja única função é manter o funcionamento do produto que

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ele mesmo criou e que agora o domina. Uma falsa consciência – eis o que esse indivíduo acrítico toma para si para pensar a

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realidade na qual ele está inserido; uma tal consciência que lhe permite pensar e agir somente segundo uma praxis

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utilitária.62 Porém, Kosik diz mais: 30

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À travers les relations utilitaristes quotidiennes se construit une certaine familiarité avec le caractère humain, avec ses

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penchants et ses habitudes, et cette connaissance devient établie comme sagesse populaire ou comme vérité

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pratique et générale [...].63 63 KOSIK, 2003, p. 33 – L’homme et la Philosophie. 64 No que tange ao uso da palavra essência,

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para que não soe como um eco idealista e essencialista, saliento que a utilizo com um cunho exclusivamente materialista,

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segundo o qual essência significa a “soma de forças de produção, capitais e formas de intercâmbio social com que cada indivíduo e

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cada geração se encontram como se fosse com algo dado” – MARX e ENGELS, 2007, p. 62. Logo se percebe que tal concepção não

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coloca a essência como algo imutável, mas a toma, necessariamente, como algo mutante, como um processo, como devir.

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65 KOSIK, 2003, p. 83 – La crise actuelle. 66 Idem, ibidem, p. 90 – Gramsci et la philosophie de la praxis; grifo do autor.

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Para Kosik, pensando e agindo de acordo com uma praxis utilitária, o homem confunde a aparência fenomênica

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(aquilo que não passa de pura manifestação fetichista do sistema) com a essência dos processos e fenômenos sociais, isto é,

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com aquilo que é estruturador e configurador do mundo social, e é mantido na escuridão da caverna do mundo pseudoconcreto

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.64 A “luz” que esse indivíduo, que age sob influência do utilitarismo prático, pode projetar sobre a realidade, sobre os homens,

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processos e coisas, a fim de conhecê-los e valorá-los, encontra-se arraigada numa postura fetichista, utilitária, cujo

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fundamento é o pensamento consumista e calculador. Toda atribuição de valor (άξιορ) às coisas, e mesmo às pessoas, ocorre, na praxis

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utilitária, em conformidade com o lugar que cada coisa ocupa nos projetos e interesses pessoais de cada indivíduo. Veja-se o que diz

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Kosik sobre essa verdadeira axiologia fetichista: Dans ce monde moderne, tout se compare et se mesure à l‟aune des avantages,

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de l‟utile et du pratique ; ainsi, est entraîné dans le mouvement du cycle infernal de l‟évaluation, tout est soumis au nivellement de la

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convertibilité. [...] Convertir toute chose en valeur, ce n‟est pas l‟idéaliser et la magnifier, mais la réduire à une seule dimension et lui

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faire perdre son identité originelle.65 Em outro momento, Kosik diz ainda que: Le monde pratique ou le monde du sens

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pratique, que l‟usage acritique confond avec la praxis et sa réalité, est construit et représenté selon le schéma : convient / ne

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convient pas, fonctionne / ne fonctionne pas, est disponible / n‟est pas disponible. En rejetant au néant ce qui ne convient pas, ce

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qui ne fonctionne pas, ce qui n‟est pas disponible, la conscience pratique ne s‟aperçoit pas que, tandis qu‟elle

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différencie et détermine la réalité, elle est elle-même déterminée.66 Os indivíduos, porém, ainda segundo Kosik, atribuem valor

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não somente a pessoas e coisas, mas mesmo à própria natureza, e isso também segundo um modo de valoração fetichista. 31

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[…] l‟abaissement de l‟esprit s‟accompagne toujours d‟un ravalement de la nature au rang de simple matière, de

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chose inerte et de matériau livré à l‟arbitraire et à la convoitise d‟un sujet prétentieux. Mais l‟esprit qui s‟élève au-dessus de la

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nature et la réduit à une simple matière ne sait ce qu‟il fait, il se discrédite lui-même : la matière avilie est le produit d‟un

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esprit avili. Ce rapport à la nature fondé sur la supériorité et l‟exploitation signifie que l‟esprit, ravi de sa propre image, est mûr, dans

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son aveuglement narcissique et dominateur, pour sombrer dans l‟abîme.67 67 KOSIK, 2003, p. 83.

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68 Idem, 1976, p. 10; parênteses meus. Com efeito, para Kosik, a realidade social impõe aos indivíduos, concreta e

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praticamente, e em concordância com uma tal axiologia, situações que os impelem a adotar uma postura utilitária e calculadora

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com as coisas, as relações e os processos mais cotidianos, de maneira que esses sejam considerados não mais que superficialmente

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, isto é, sejam considerados segundo interesses meramente consumistas, práticos (no sentido mais banal do termo),

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tomados na imediaticidade inerente aos seus aspectos fenomênicos; essa realidade, na forma como é configurada, não encoraja o

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pensar acerca daquilo que os indivíduos possam estabelecer para si mesmos como fins, mas fomenta sub-repticiamente a

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aceitação do já-dado, o consumo pelo consumo, a não-protelação do gozo imediato; ela fomenta o agora, mas também o futuro como

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projeção dos desejos desse agora, e isso é tido como algo normal, rotineiro, comum, algo que deve ser buscado e

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fomentado. É nesse sentido que Kosik afirma, acertadamente, com relação a essa postura que reina no mundo contemporâneo

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como se fosse a própria concreticidade, que “no trato prático-utilitário com as coisas […] a realidade se revela como mundo dos

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meios, fins, instrumentos, exigências e esforços para satisfazer a estas (exigências)”.68 Assim, para Kosik, a praxis utilitária põe os

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indivíduos em uma situação tal que não lhes permite, sem que para isso tenham que fazer um desvio (détour), alcançar o real

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entendimento acerca das coisas e processos que povoam o seu ambiente cotidiano. Ora, o mundo cotidiano e familiar não é, para Kosik, o

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lugar do conhecimento conceitual – isto é, da criação de desvios, criação que está alicerçada no conhecimento da estrutura interna

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da realidade –, mas do representacional, conhecimento que não transpõe os limites da aparência fenomênica. Segundo Kosik,

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esse conhecimento por representação, que não cria nem percorre desvios, é próprio da praxis fetichista

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ou utilitária. Kosik formula um exemplo muito didático acerca dessa praxis em ato: Os homens usam o dinheiro e com ele fazem as

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transações mais complicadas, sem ao menos saber, nem ser obrigados a saber, o que é o dinheiro. Por isso, a praxis utilitária

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imediata e o senso comum a ela correspondente colocam o homem em 32

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condições de orientar-se no mundo, de familiarizar-se com as coisas e manejá-las, mas não proporcionam a compreensão

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das coisas e da realidade.69 69 KOSIK, 1976, p. 10; aspas e grifos do autor. 70 Idem, ibidem, pp. 10-11; aspas do autor.

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71 MARX e ENGELS, 2007, pp. 55-56; grifos meus. 72 Cf. idem, ibidem, p. 56. Ante o exposto, pode-se dizer que a praxis

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utilitária ou fetichista, engendrada pelo modo capitalista de produção, produz e reproduz sujeitos criticamente

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acríticos, radicalmente inconscientes e politicamente dormentes; engendra nada mais que técnicos, indivíduos

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unicamente capacitados a desempenhar um papel restrito dentro de uma dada divisão social do trabalho; indivíduos

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destituídos de criatividade, capacitados exclusivamente para a repetição maquinal dos dias e dos afazeres; sujeitos

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mantidos na impossibilidade de saber não somente o por quê das coisas, relações e processos sociais, políticos e econômicos

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serem da forma como são, mas também encarcerados na incapacidade de perceber em si mesmos o potencial revolucionário

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de transformação radical da sociedade. A praxis de que se trata neste contexto – diz Kosik – é historicamente

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determinada e unilateral, é a praxis fragmentária dos indivíduos, baseada na divisão do trabalho, na divisão da

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sociedade em classes e na hierarquia de posições sociais que sobre ela se ergue. Nesta praxis se forma tanto o determinado

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ambiente material do indivíduo histórico, quanto a atmosfera espiritual em que a aparência superficial da realidade é

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fixada como o mundo da pretensa intimidade, da confiança e da familiaridade em que o homem se move “naturalmente” e

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com que tem de se avir na vida cotidiana.70 Marx e Engels perceberam nitidamente a tosa que a sociedade capitalista faz

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nos indivíduos, determinando seus afazeres e seu cotidiano por meio da divisão do trabalho. Segundo eles:

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[...] a partir do momento em que o trabalho começa a se dividir, cada qual se move em determinado círculo exclusivo de atividades,

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que lhe é imposto e do qual não pode escapar; o homem é caçador, pescador, pastor ou Crítico crítico, e tem de

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continuar a sê-lo caso não queira se ver privado dos meios de vida.71 Esse modo determinado através do qual os homens têm

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que se relacionar com o mundo social, modo engendrado pela divisão espontânea do trabalho, manifesta o poder que os

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produtos humanos, dentro do sistema capitalista de produção, exercem sobre seus criadores. Penso que esse poder objetal72

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(sachliche Macht), poder ao qual em nenhum outro momento da história os homens se encontraram tão submetidos

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como se encontram agora, é a característica mais expressiva do mundo da pseudoconcreticidade. Nesse sentido é que

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Kosik afirmou, coerentemente, o seguinte: 33

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Le système en vigueur (o capitalista) a été construit par l’homme moderne dans sa prétention orgueilleuse à devenir seigneur

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et maître de la nature, prince de toute chose. À l‟origine, son but était de faciliter la vie et de la rendre plus agréable. Peu à peu cependant,

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le système s‟est rendu indépendant de l‟homme, en suivant sa propre route, jusqu‟à arriver, à la fin, à un renversement

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d‟époque : l‟homme-sujet perd le contrôle de sa créature, se change en objet, tandis que le système s‟élève au statut de pseudo-sujet,

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absorbe l‟homme et le transforme en un acessoire discipliné et servile de son propre fonctionnement. Ce qui jette une

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ombre sur cette mutation, c‟est le fait que l’homme persiste dans sa prétention à être seigneur et maître, en un contraste

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éclatant avec sa position servile effective. La dialectique du maître et de l‟esclave se joue ici comme grotesque ironie de l‟histoire.73

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73 KOSIK, 2003, p. 124 – La morale au temps de la globalisation; grifos e parênteses meus.

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74 Idem, 1976, p. 11; grifos meus. 75 Idem, ibidem, p. 19; grifos meus. Ora, o sistema capitalista de produção, sendo

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um modo específico de intervenção humana no mundo, isto é, uma forma histórica do modo de produção,

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engendra não somente determinada configuração e disposição da realidade humano-social, como também tipos específicos

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de homens e de problemas. A totalidade desses problemas, bem como suas inúmeras conseqüências e manifestações fenomênicas,

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constituem o que Kosik chamou de mundo da pseudoconcreticidade, o qual foi descrito como sendo o complexo dos fenômenos que

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povoam o ambiente cotidiano e a atmosfera comum da vida humana, que, com a sua regularidade, imediatismo e

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evidência, penetram na consciência dos indivíduos agentes, assumindo um aspecto independente e natural […].74

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Com efeito, o conceito de pseudoconcreticidade está configurado como o grande articulador dos problemas analisados na

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Dialética, designando o conjunto de fenômenos que, evocando para si mesmos, para o átimo de suas manifestações a aparência de

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“regularidade”, “imediatismo” e “evidência”, isto é, por parecerem coisas familiares, já conhecidas, e como que por se assemelharem

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ao modo próprio de ser do mundo e da vida cotidiana, encobrem o caráter de coisa construída da realidade social, fazendo-a passar

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por algo natural, universal, pré-existente ao homem, isto é, por aquilo que ela não é. Ora, segundo Kosik, “a pseudoconcretici

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dade é justamente a existência autônoma dos produtos do homem e a redução do homem ao nível

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da praxis utilitária”.75 34

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III. O mundo da pseudoconcreticidade § 6. O lugar do homem no universo ou a coisa em si.

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Kosik abre o primeiro capítulo da Dialética – O Mundo da Pseudoconcreticidade e a sua Destruição – afirmando que

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“a dialética trata da coisa em si” (“Der Dialektik geht es um »die Sache selbst«”).76 Porém, logo em seguida ele diz que “a coisa em

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si não se manifesta imediatamente ao homem” (“Doch »die Sache selbst« zeigt sich dem Menschen nicht unmittelbar”).77

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Ora, o trabalho de Kosik naquela obra consiste em, por meio da análise da coisa em si, da coisa mesma, investigar as causas do

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engendramento da pseudoconcreticidade. Mas o que vem a ser, então, para Kosik, a coisa em si? É apenas na última página da

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Dialética, no último parágrafo, que ele apresenta sua concepção do que seja essa coisa. Para ele, a coisa em si “é o homem e o seu

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lugar no universo, ou (o que em outras palavras exprime a mesma coisa): a totalidade do mundo revelada pelo homem na

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história e o homem que existe na totalidade do mundo”.78 76 KOSIK, 1976, p. 9; idem, 1967, p. 7.

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77 Idem, 1976, p. 9; idem, 1967, p. 7. 78 Idem, 1976, p. 230; parênteses do autor. Obviamente, a concepção de

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Kosik acerca do que seja a coisa em si (Ding an sich) é diferente da concepção que Kant tem da mesma. Aliás, essa expressão – coisa em si –,

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em Kant, é muito problemática, sendo fonte de críticas por parte de filósofos como Jacobi, Fichte, Hegel, Nietzsche, entre

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outros. Não poderia ser de outro modo, uma vez que a coisa em si kantiana comporta vários significados. Todavia, para

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Kant, de modo geral, a coisa em si diz respeito àquilo que está para além dos limites do entendimento e da razão, e assinala, ao

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mesmo tempo, esses limites. Assim, a coisa em si não pode ser conhecida através da experiência sensível, tal como as coisas

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que existem concretamente no mundo físico. Por isso Kant pôde afirmar que “nothing that is intuited in space is a thing in itself” – KANT,

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Immanuel. Critique of Pure Reason. New York: Cambridge University Press, 1998, p. 161, A 30, B 45. Para Kosik, a coisa

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em si, como lugar do homem no mundo (lugar sempre entendido como sociedade), é algo que pode ser compreendido,

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conhecido também sensivelmente, posto que a razão e o entendimento podem, através do pensamento crítico, atingir o

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conhecimento dos processos que engendram no mundo o lugar do homem. O fato dos indivíduos da espécie humana serem dotados

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de um corpo para poderem existir empiricamente pode ser considerado, tanto pelo pensamento comum como

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pelo erudito, um presente divino de deus aos homens – suas imagens e semelhanças –, ou um fenômeno decorrente da evolução dos

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primeiros organismos vivos a se desenvolverem neste planeta, ou o que quer que seja que o engenho humano possa

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conceber para designar as causas daquele fato. Com efeito, e em detrimento dessas concepções, o fato é que o corpo é o elo

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entre um homem e os outros homens, entre o ser humano e a realidade objetiva, os mundos natural e social, tal como expressou

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admiravelmente Feuerbach: O corpo é a única força que nega, que limita, que contrai e retrai, sem a qual nenhuma personalidade é

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pensável. Retira à tua personalidade o seu corpo – e retiras-lhe a sua consistência. O corpo é o fundamento, o sujeito da

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personalidade. 35

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Só pelo corpo se distingue a personalidade real da personalidade imaginada de um fantasma. […] Mas o corpo nada é

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sem carne e sangue. Carne e sangue são vida, e só a vida é a realidade, a realidade efectiva do corpo.79

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79 FEUERBACH, 2008, pp. 106-107; grifos do autor. Parece-me que também Heidegger salienta a anterioridade da

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existência orgânica ao dizer que a presença “nunca é mais do que é faticamente, porque o poder-ser pertence essencialmente à

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sua facticidade” – HEIDEGGER, 2009, p. 206. 80 Idem, ibidem, p. 393. 81 “O próprio Hegel confessa, ao final de sua Filosofia da

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história, que „apenas considera o desenvolvimento posterior do conceito‟ e que vê e expõe na história a „verdadeira

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teodicéia‟” – MARX e ENGELS, 2007, p. 74; aspas e grifos dos autores. 82 Também a filosofia, como produto humano,

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está submetida às formas históricas a partir das quais elaboramos nossos sentidos, pensamento e compreensão da realidade

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objetiva. O ato de filosofar está vinculado à existência empírica do sujeito filosofante, e sempre ocorre, portanto, a partir

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de determinado enredamento desse sujeito na realidade social; tal ato é fruto e expressão de experiências vividas, de ideias e

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compreensões de mundo adquiridas, criadas e em permanente revisão; ele é expressão de pensamentos de classe, de modos

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de ser, de intercâmbios materiais diversos, de ideologias, de místicas, de dogmas religiosos, de posições

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políticas ou mesmo dos desejos mais secretos e utópicos. 83 MARX e ENGELS, 2007, p. 70.

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Ora, é através do corpo que os homens têm as experiências dos sentidos e do pensamento. As praxis concreta e abstrata, isto é, a ação efetiva dos

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homens reais sobre o mundo e a ação do pensamento, a consciência-de-si, dependem de um corpo, de um organismo vivo para serem

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experimentadas. A partir dessa simples constatação vê-se que, ao contrário do que afirma o idealismo hegeliano, por

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exemplo – “que sobrevoa a existência e suas possibilidades”80 –, não é a consciência que precede a existência empírica, não é

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o espírito absoluto que engendra o mundo, mas precisamente o inverso.81 O mundo – a sociedade, a natureza – é

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sentido, pensado e compreendido histórica e socialmente, isto é, as condições a partir das quais engendramos nossa forma de pensar, de sentir

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e de compreender o mundo são um produto do desenvolvimento histórico, isto é, do desenvolvimento material e

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espiritual acumulado e a nós legado pelas inúmeras gerações precedentes.82 Nesse sentido, o homem que pensa o seu

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lugar no universo, quer o faça percorrendo caminhos filosóficos, científicos, místico-religiosos etc. é sempre um

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indivíduo inserido numa realidade concreta, isto é, primeiramente num corpo, depois, numa determinada conjuntura

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empírica, num contexto social dado; é também um ser que, pelo seu modo de ser no mundo, cria a história. A história não é mais do que a

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sucessão das diferentes gerações individuais, cada uma das quais explora os materiais, capitais e forças de produção

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transmitidas por aquelas que a precederam; quer dizer, que de um lado prossegue em condições completamente distintas da

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atividade precedente, enquanto de outro lado modifica as circunstâncias anteriores mediante uma atividade

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totalmente diferente […].83 A perspectiva da história em Kosik concorda com a de Marx e Engels, uma vez que todos eles rompem com as

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concepções idealistas ou metahistóricas da mesma, buscando 36

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mostrar que a história é criação real de homens reais. Acerca dessa história real, veja-se o seguinte trecho de La Crise de

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Temps modernes: La différence entre les conceptions (de história) de Marx et de Schelling [...] réside avant tout

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dans le point suivant : dans la conception de Schelling, l‟histoire est à la fois l‟apparence du jeu et le jeu des apparences, tandis que pour

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Marx, l‟histoire est à la fois un jeu réel et le jeu de la réalité. Pour Schelling, l‟histoire est écrite avant d‟être jouée par l‟homme, c‟est

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un jeu directement prescrit, car ce n‟est qu‟à l‟intérieur d‟un tel jeu que se joue la liberté de chacun [...] et que peut se

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constituer enfin quelque chose de rationnel et de cohérent [...] Cette prédétermination de l‟histoire transforme le jeu historique en un

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faux drame et rabaisse les hommes non seulement au rang de simples acteurs, mais même à celui de simples marionnettes.

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Par contre, chez Marx, le jeu n‟est pas déterminé avant que l‟histoire ne soit écrite, car le cours et les résultats de celle-ci sont

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contenus dans le jeu lui-même, c‟est-à-dire qu‟ils résultent de l‟activité historique des hommes.84 84 KOSIK, 2003, p. 66 –

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L’individu et l’histoire; grifo do autor. 85 Utilizo aqui a palavra εθορ (ethos) no sentido de hábito, distinguindo-a

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de ηθορ (também traduzida como ethos), no sentido de caráter. A praxis, como modo de ser do homem no

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mundo, constitui o elo através do qual aquele pode interagir com o mundo através do seu agir no mundo, e assim ser causa de alterações tanto

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nesse quanto em si mesmo. É pela praxis que a parte (o homem) é ativa sobre o todo (a realidade empírica natural e social), ao mesmo tempo

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em que esse todo é também ativo sobre as partes. Nesse sentido é que se pode pensar o homem como parte ou elemento de um

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todo social onde, pelas suas ações na esfera da sociedade – espaço basilar de sua existência –, pode vir a ser fonte de mudanças

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sociais, políticas, epistemológicas, morais. Contudo, nem todos os indivíduos agem de modo a engendrar tais

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transformações, uma vez que nem todos têm consciência de si mesmos como instrumentos de transformação do mundo, enquanto outros

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nem estão dispostos a tentar transformá-lo. O fato é que grande parte dos indivíduos, a despeito do seu potencial

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revolucionário, é passiva e constantemente transformada e condicionada acriticamente pelos seus próprios produtos (pelos

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encantamentos dos vários tipos de discursos hegemônicos – como os científicos; pelas comodidades proporcionadas pelos aparelhos

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e máquinas – que tornam os homens acomodados; pelos atrativos e prazeres fundamentados no consumismo),

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isto é, é enredada em praxis fetichistas, utilitárias. Em conformidade com aquilo que afirmei anteriormente

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acerca dessa praxis unilateral, é necessário pensar que o homem que nela esteja enredado desconhece os reais processos que são causa

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dos fenômenos e relações sociais, uma vez que seu modo de ser (εθορ)85 e seu pensamento sejam pautados não num conhecimento

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conceitual acerca das leis internas do mundo humano-social, mas na representação que se atém à superficialidade dos fenômenos

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que nele se manifestam. Por esses motivos, o mundo contemporâneo é, para 37

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Kosik, o lugar da superficialidade, da alienação em massa e massificante – ele é o mundo da pseudoconcreticidade.86

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86 É verdadeira a afirmação de que não somente o mundo contemporâneo conheceu o problema da alienação, que aqui é

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considerado a partir do conceito de pseudoconcreticidade e, portanto, com um sentido muito preciso, que remete ao mundo

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capitalista. Contudo, não pretendo enveredar na análise da alienação em outros recortes históricos.

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87 KOSIK, 1976, p. 12; grifo do autor. § 7. Sobre a necessidade de percorrer desvios para conhecer a coisa em si. Da

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filosofia e da ciência como instrumentos para traçar e percorrer desvios. A coisa em si não se manifesta imediatamente

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ao homem. Para Kosik, em virtude dessa manifestação não-imediata da essência ou coisa em si ao pensamento humano, os

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homens têm que percorrer desvios para poder alcançá-la; só que tais desvios nem sempre conduzem ao lugar pretendido.

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Para Kosik, quando, no final do détour, não se atinge a essência mas se permanece nas formas fenomênicas da realidade e

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passa-se a considerá-las como sendo a realidade mesma, então o que daí resulta é um falso conhecimento.

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No mundo da pseudoconcreticidade – diz Kosik – o aspecto fenomênico da coisa, em que a coisa se manifesta e se esconde, é

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considerado como a essência mesma, e a diferença entre o fenômeno e a essência desaparece.87 Nesse sentido, sob a

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pseudoconcreticidade, o entendimento não vai além de uma falsa ou invertida compreensão acerca da realidade e dos

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seus fenômenos e processos, nas diversas áreas da existência humana, e, por conseguinte, não vai além da equivocada consideração

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acerca do lugar do homem no mundo. Para Kosik, antes de se pôr a traçar e a percorrer desvios, o homem já deve

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ter para si a certeza de que há alguma coisa suscetível de ser apreendida sob a manifestação fenomênica, de que existe algo que pode ser

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conhecido para além do movimento sensível das formas visíveis da realidade, e que essas, por sua vez, são determinadas

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segundo leis que podem ser conhecidas; ele deve ter para si a consciência de que a sociedade e, por isso mesmo, todos os fenômenos

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sociais são conseqüências do modo de ser dos homens no mundo, das suas ações efetivas, e que, por trás de cada fenômeno, as leis que

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podem ser encontradas são explicações racionais para o por quê e o como de cada fenômeno. Os meios e instrumentos

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pelos quais é possível traçar e percorrer desvios são a filosofia – que é caracterizada por Kosik como um “esforço sistemático e

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crítico que visa a captar a coisa em 38

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si, a estrutura oculta da coisa, a descobrir o modo de ser do existente”88 – e a ciência. Sobre esse esforço, Kosik diz:

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88 KOSIK, 1976, p. 14. 89 Idem, ibidem, pp. 12-13; aspas do autor, grifos meus. 90 “A observação empírica tem de,

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necessariamente, provar empiricamente e sem nenhum tipo de mistificação ou especulação, em cada caso concreto, a

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relação existente entre a estrutura social e política e a produção” – MARX e ENGELS, 2007, p. 47. […] se quiser pesquisar a

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estrutura da coisa e quiser perscrutar a “coisa em si”, se apenas quer ter a possibilidade de descobrir a essência oculta ou a estrutura

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da realidade – o homem, já antes de iniciar qualquer investigação, deve necessariamente possuir uma segura

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consciência do fato de que existe algo susceptível de ser definido como estrutura da coisa, essência da coisa, “coisa em

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si”, e de que existe uma oculta verdade da coisa, distinta dos fenômenos que se manifestam imediatamente. O homem faz

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um desvio, se esforça na descoberta da verdade só porque, de um modo qualquer, pressupõe a existência da verdade, porque

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possui uma segura consciência da existência da “coisa em si”.89 A estrutura, a essência que se pode conhecer pela fruição do

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pensamento crítico na prática filosófica, não deve ser entendida num sentido estritamente metafísico, como a

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contemplação de uma ideia ou a fundamentação de um conceito em princípios puramente abstratos; ela deve antes ser pensada como

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processo, como vir a ser, como uma decorrência do modo próprio de existência dos homens e das suas relações de intercâmbio material.90

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§ 8. Da essência, do fenômeno e da relação entre eles. Sobre o processo de conhecimento da realidade – o

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conceito e a representação. A postura assumida por Kosik para investigar e falar acerca da realidade social, em sua

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concreticidade e sob a pseudoconcreticidade, é a de que ela pode ser considerada sob a perspectiva da relação entre fenômeno

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(ϕαινόμενον) e essência. Como vimos ao tratar dos mundos natural e social e da ação do homem sobre eles, a natureza não pode ser

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controlada, embora possa ser conhecida, e esse conhecimento, assim como o que ele permite fazer, é sempre incompleto. Há

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que ser feita, pois, uma distinção entre fenômenos propriamente naturais e fenômenos propriamente sociais, entre

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aqueles que manifestam leis universais e aqueles que manifestam mandamentos e inclinações da vontade humana. Com efeito, o

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fenômeno não deve ser considerado como irreal e a essência como algo real. Fenômeno e essência são efetivos, reais, e

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sua unidade engendra a realidade concreta. Para Kosik, por meio da análise dos fenômenos pode-se chegar a conhecer suas

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causas, mas pode-se também não consegui-lo. A pseudoconcreticidade não é, pois, senão a ilusória percepção de que os

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fenômenos sociais existem por si mesmos, desvinculados de qualquer essência, isto é, de 39

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qualquer coisa que seria o fundamento e objeto de sua manifestação. Ora, realidade fenomênica é aquela que percebemos

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imediatamente. Tal designação diz respeito às coisas empíricas, àquilo que pode ser percebido e conhecido através do corpo, dos

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sentidos, e, por isso mesmo, também e necessariamente à realidade objetiva, entendida como espacialidade, como ambiente

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onde os homens existem efetivamente – sendo seu corpo mais um dentre tantos outros fenômenos naturais; diz respeito, assim,

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ainda, àquilo “que se manifesta imediatamente, primeiro e com maior freqüência”.91 Por sua vez, essência é aquilo

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que está sob o fenômeno, é sua estrutura interna, é o que se manifesta pelo e no fenômeno, do qual é causa. Logo, segundo Kosik, “a

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realidade é a unidade do fenômeno e da essência”.92 91 KOSIK, 1976, p. 12. 92 Idem, loco citado.

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93 Idem, ibidem, p. 11. “Se a essência não se manifestasse absolutamente no mundo fenomênico, o mundo da realidade se

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distinguiria radical e essencialmente do mundo do fenômeno: em tal caso o mundo da realidade seria para o homem o „o

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outro mundo‟ (platonismo, cristianismo), e o único mundo ao alcance do homem seria o mundo dos fenômenos” – idem, ibidem, p.

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12; aspas e parênteses do autor. 94 Kosik tem um modo muito peculiar de interpretar não só O Capital mas também

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outras obras de Marx. Acerca dessa interpretação, cf. o terceiro capítulo da Dialética, Filosofia e Economia, A

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Problemática de “O Capital” de Marx, p. 139 e ss. A essência se manifesta no fenômeno. O fato de se manifestar no

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fenômeno revela seu movimento e demonstra que a essência não é inerte nem passiva. Justamente por isso o fenômeno revela a

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essência. A manifestação da essência é precisamente a atividade do fenômeno.93 Para Kosik, o pensamento crítico, pelo qual

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é possível atingir a coisa em si, a realidade, a partir da sua estrutura interna determinante, tem como oposto o pensamento

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acrítico, o qual permanece no imediatismo fenomênico, não chegando a atingir o conhecimento da estrutura interna e dos reais

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processos que desencadeiam tudo o que acontece na realidade social. A maneira utilizada por Kosik para distinguir entre

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essas duas formas do pensamento é a mesma utilizada por Marx n‟O Capital, obra na qual seu autor tece considerações

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sobre a realidade social a partir de categorias que expressam sua compreensão conceitual acerca daquela realidade, ainda que com ênfase

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nos fenômenos, processos e relações econômicos.94 Segundo Kosik, O Capital, de Marx, é construído metodologicame

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nte sobre a distinção entre falsa consciência e compreensão real da coisa, de modo que as categorias principais da compreensão

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conceitual da realidade investigada se apresentam aos pares: fenômeno – essência; mundo da aparência – mundo real;

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aparência externa dos fenômenos – lei dos fenômenos; existência positiva – núcleo interno, essencial, oculto;

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movimento visível – movimento real interno; representação – conceito; falsa consciência – 40

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consciência real; sistematização doutrinária das representações (“ideologia”) – teoria e ciência.95 95 KOSIK, 1976, p. 16;

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parênteses do autor. 96 É na investigação em torno da essência e do fenômeno, com vistas ao conhecimento

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do ser dos entes, que podemos ver claramente a influência da fenomenologia na filosofia de Kosik. Segundo Heidegger, “fenomenologia

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diz, então: ἀποϕαίνεζθαι ηὰ ϕαινόμενα – deixar e fazer ver por si mesmo aquilo que se mostra, tal como se mostra a partir

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de si mesmo” – HEIDEGGER, 2009, p. 74. É precisamente isto que Kosik propõe: conhecer a realidade social a partir da

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investigação dos fenômenos sociais em si mesmos. Essa distinção feita por Marx entre um conhecimento real e um falso

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conhecimento, através desses pares dialéticos, mais especificamente os pares fenômeno – essência e representação –

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conceito, é muito importante para compreender como se dá o processo de conhecimento em Kosik. Para esse, conhecer é

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atingir a essência, é ir além do fenômeno, que manifesta aquela; e, para atingir a essência partindo

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fenômeno, há que se deixar e fazer ver esse fenômeno por si mesmo.96 Por isso, ao indivíduo cujo pensamento não transpõe os

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limites da aparência fenomênica, indivíduo que desconhece as circunstâncias e processos materiais que ocasionam o

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engendramento dos fenômenos sócio-político-econômicos com os quais se depara em sua existência empírica cotidiana, é

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lícito chamar de alienado. Com efeito, para Kosik, há duas formas, dois aspectos ou momentos do pensamento através dos quais

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os homens conhecem e apreendem a realidade concreta e, particularmente, a realidade humano-social: o conceitual e o

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representacional. O conhecimento conceitual, para Kosik, é o único meio através do qual se pode conhecer a realidade em sua

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concreticidade, isto é, em sua efetividade. O indivíduo cujo pensamento apreende conceitualmente a realidade, a cinde e separa

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suas partes a fim de melhor se apropriar dela, isto é, que põe em prática um pensamento crítico, desconstrutor, é capaz de atingir

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e conhecer a realidade em si mesma e sua estrutura interna. A criação de conceitos exprime a consolidação de uma forma de

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apreensão, de uma perspectiva, de um sentido ou de uma interpretação individual acerca de áreas ou fenômenos da realidade

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concreta a partir de algumas categorias. O conceito é o momento em que o em-si, a consciência ou espírito humano, retorna a si e

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torna-se para-si, apreendendo sob a forma do conceito uma outra essência diferente da sua. O conhecimento conceitual é a forma de

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conhecimento própria da praxis que destrói a pseudoconcreticidade do mundo; ele fundamenta e é inerente à praxis revolucionária

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da humanidade, como veremos mais adiante. Já o conhecimento representacional se constitui numa forma de conhecer que não compreende

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a realidade em sua efetividade, isto é, nos seus reais processos configuradores; por isso ele corresponde a uma apreensão distorcida,

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errônea, da realidade; nele não ocorre a decomposição do todo, e, portanto, não é produzido conhecimento

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algum, não são 41

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engendrados conceitos. Essa forma de conhecimento é própria da praxis fetichista ou utilitária; ela se opõe ao conhecimento

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conceitual e também à praxis revolucionária. A representação é propriamente o pensamento acrítico. É nesse sentido que Kosik pôde

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afirmar que “a representação da coisa não constitui uma qualidade natural da coisa e da realidade: é a projeção, na consciência do

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sujeito, de determinadas condições históricas petrificadas”.97 97 KOSIK, 1976, p. 15; grifo do autor.

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98 Idem, ibidem, p. 14; aspas do autor, grifos meus. Ora, para Kosik, o ato de conhecimento é um processo de cisão, de

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decomposição, de separação das partes ou elementos que constituem um todo, um objeto para o entendimento. Pela palavra

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todo se deve entender a própria realidade, ou mesmo determinadas áreas da realidade isoladas pelos

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indivíduos quer para encaminhar suas ações práticas, quer para delas se apropriar teoricamente. Sobre esse processo de

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decomposição, que fundamenta o conhecimento conceitual, Kosik diz o seguinte: O conceito da coisa é compreensão da

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coisa, e compreender a coisa significa conhecer-lhe a estrutura. A característica precípua do conhecimento consiste na

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decomposição do todo. A dialética não atinge o pensamento de fora para dentro, nem de imediato, nem tampouco

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constitui uma de suas qualidades; o conhecimento é que é a própria dialética em uma das suas formas; o conhecimento é a decomposição

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do todo. O “conceito” e a “abstração”, em uma concepção dialética, têm o significado de método que decompõe o todo para poder

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reproduzir espiritualmente a estrutura da coisa, e, portanto, compreender a coisa.98 Compreender uma coisa (da

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natureza ou da sociedade), conhecer ou reproduzir uma estrutura (dos fenômenos, processos e relações naturais ou sociais) – eis

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o escopo de todo conhecimento conceitual e, ao mesmo tempo, eis o que não empreende o representacional. § 9. Do conhecimento

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como fundamento dos usos prático e teórico do pensamento. Transição da concepção de ciência como conhecimento

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conceitual para a consideração da mesma como praxis e conhecimento fetichista. Fundamentado no exposto no parágrafo

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anterior, que versa sobre a cisão do todo, Kosik afirma que os homens, antes de executarem uma ação, a lobrigam dentro de um

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determinado contexto, no âmbito de um todo mais ou menos nitidamente intuído, a partir do qual separam o essencial do

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secundário, aquilo que é importante para a consecução dos seus fins particulares do que não o é. Kosik considera ainda que o

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pensamento humano cinde o todo com vista a fins práticos e teóricos, empíricos e abstratos, conforme podemos

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perceber no seguinte trecho: 42

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O conhecimento se realiza como separação de fenômeno e essência, do que é secundário e do que é essencial, já que só através dessa

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separação se pode mostrar a sua coerência interna, e com isso, o caráter específico da coisa. Neste processo, o secundário não

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é deixado de lado como irreal ou menos real, mas revela seu caráter fenomênico ou secundário mediante a demonstração

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de sua verdade na essência da coisa. Esta decomposição do todo, que é elemento constitutivo do conhecimento filosófico – com

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efeito, sem decomposição não há conhecimento – demonstra uma estrutura análoga à do agir humano: também a ação

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se baseia na decomposição do todo. O próprio fato de que o pensamento se move naturalmente numa direção

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oposta à natureza da realidade, que isola e “mata”, e de que neste movimento natural se assenta a tendência à

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abstração, não constitui uma particularidade imanente do pensamento mas emana de sua função prática. Todo agir é “unilateral”, já

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que visa a um fim determinado e, portanto, isola alguns momentos da realidade como essenciais àquela ação, desprezando

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outros, temporariamente. Através deste agir espontâneo, que evidencia determinados momentos importantes para a consecução de

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determinado objetivo, o pensamento cinde a realidade única, penetra nela e a “avalia”. O impulso espontâneo da

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praxis e do pensamento para isolar os fenômenos, para cindir a realidade no que é essencial e no que é secundário, vem

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sempre acompanhado de uma igualmente espontânea percepção do todo, na qual e da qual são isolados alguns aspectos […]. O

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“horizonte” – obscuramente intuído – de uma “realidade indeterminada” como todo constitui o pano de fundo inevitável de

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cada ação e cada pensamento […].99 99 KOSIK, 1976, pp. 14-15; aspas do autor, grifos meus. Para Kosik, no mundo da

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pseudoconcreticidade, onde impera a praxis fetichista, tanto o pensamento como a ação, sob a forma da representação, isolam

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determinadas partes da realidade, distinguindo entre fenômeno e essência, entre essencial e secundário, com vista a fins

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meramente práticos, isto é, puramente utilitários. A coerência interna que aqui se verifica (se é que podemos chamar de

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coerência) é a da utilidade, do cálculo, da satisfação das necessidades fomentadas pela sociedade capitalista. Nessa praxis, os

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indivíduos tomam o secundário, o fenomênico, por aquilo que é mais essencial, e consideram o essencial como acessório.

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Entretanto, o que vem a ser isso que Kosik chama de essencial? De igual modo, o que é o secundário?

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No que tange ao pensamento em seu uso teórico, penso que o essencial, para Kosik, seja tudo aquilo que permita ao sujeito do

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conhecimento se acercar da realidade e compreendê-la, engendrando para isso conceitos que o auxiliem no processo de

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conhecimento dos fenômenos e processos sociais. Destarte, essencial é o que permite chegar à essência das coisas, essência essa

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compreendida como algo não fixo, isto é, algo que, na forma de um enunciado, se faz preceder de um artigo definido – a verdade, o ser

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etc. Essa concepção de essência nos lembra do caráter de coisa criada da realidade humano-social; ela nos dá a

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concepção de homem como um ser criador não somente da sociedade, de obras de arte, de sistemas morais, mas também de verdades, as

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quais são constituídas de apropriações conceituais. Ainda em relação a esse uso teórico, penso que o

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secundário, para Kosik, 43

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corresponde às formas fenomênicas da realidade em sua imediaticidade, àquilo que serve unicamente como meio para se chegar a

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algum possível conhecimento conceitual. Como já vimos acima, a função do fenômeno é precisamente manifestar a essência. Desse

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modo, o fenômeno se torna secundário quando o sujeito do conhecimento atinge a essência que nele é manifestada, um

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fenômeno social torna-se secundário frente ao conhecimento das causas que o engendraram. No que diz respeito ao uso

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prático do pensamento, isto é, no que tange à realização de ações, para Kosik, pode-se chamar de essencial tudo o que corrobora

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para a consecução dos fins estipulados para si mesmos pelos indivíduos, o que implica na boa escolha dos meios que permitirão

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alcançar tais fins. Esses fins são os reais norteadores das ações individuais, e é nesse processo de estipulação de fins a serem

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alcançados que os indivíduos fazem distinção entre aquilo que pode corroborar na realização dos seus fins e aquilo que somente seria

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um empecilho; e tudo o que impossibilita a efetivação dos fins é tido como secundário. Tanto na praxis fetichista como na praxis

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revolucionária, o pensamento distingue entre essencial e secundário. Como vimos ao tratar da praxis utilitária ou fetichista, “nesta

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praxis se forma tanto o determinado ambiente material do indivíduo histórico, quanto a atmosfera espiritual”.100

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Isso quer dizer que na quase totalidade dos Estados que existem hoje,101 nos quais essa praxis fetichista é hegemônica, são forjadas

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relações que têm como fim moldar os caracteres e manter o controle sobre o pensamento e a ação dos indivíduos – o

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que se poderia chamar de fetichismo prático.102 Nessa praxis “a aparência superficial da realidade é fixada

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100 KOSIK, 1976, p. 11. 101 Refiro aqui a Estados capitalistas. Apesar de existirem outras formas de organização

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humano-sociais que possam ser caracterizadas como não propriamente capitalistas – das quais China e Cuba são exemplos

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clássicos, uma vez que ambos sejam Estados comunistas –, penso que o modo de ser daquele sistema (a organização da sociedade, a

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importância atribuída ao dinheiro, o fetichismo das mercadorias etc.) já está como que impregnado, de um modo ou de

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outro, em maior ou menor grau, em todas as formas daquela organização, quer se trate de Estados propriamente ditos ou de

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comunidades tribais. Mesmo nessas comunidades é possível detectar o que se poderia chamar de uma descaracterização no seu modo

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peculiar de viver, modo que a distingue de outras formas de organização. Ora, no Brasil, em várias aldeias indígenas há

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aparelhos de televisão, geladeiras, dentre tantos outros produtos industrializados. Isso nos permite afirmar que tais comunidades

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conhecem, em alguma medida, o valor que é atribuído ao dinheiro, ainda que estejam isoladas do mundo civilizado por

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dias de viagem. No que tange a Estados como a China, a política econômica lá adotada há anos nos permite afirmar que tal país cuida da sua

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economia como muitas vezes não o faz nem o mais zeloso capitalista. Isso pode ser confirmado pela intervenção do Estado no valor

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da moeda chinesa, o yuan, com o intuito de mantê-lo baixo, a fim de baratear os custos de importação dos produtos chineses,

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política essa que faz com que tais produtos cheguem a preços muito baixos nos países importadores, dificultando

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assim a concorrência dos produtos produzidos nesses países com os produtos chineses. É, pois, reconhecendo a

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existência de outras formas de organização dos homens em sociedade, que refiro a um mundo capitalista como expressão de um

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sistema dominante. 102 John Stuart Mill, filósofo muito perspicaz, havia percebido essa forma de controle ainda no século XIX, e

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compreendia bem o perigo que ela representava para a liberdade de pensamento e de ação dos indivíduos: “As pessoas de gênio

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são […] mais individualizadas do que todas as outras, e menos capazes, por conseguinte, de se ajustar, sem compressão danosa, a algum

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dos poucos moldes fornecidos pela sociedade a fim de poupar a seus 44

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membros o trabalho de formar seu próprio caráter” – MILL, 2000, p. 99; grifos meus. As pessoas de gênio às quais Mill

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refere são todos os indivíduos que não se permitem moldar segundo as imposições do seu meio social. 103 KOSIK, 1976, p. 11.

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104 Cf. ARISTÓTELES, 2009, Livro IX, p. 265 e ss. como o mundo da pretensa intimidade, da confiança e da familiaridade em

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que o homem se move „naturalmente‟ e com que tem de se avir na vida cotidiana”.103 Com efeito, o uso teórico do pensamento na

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praxis fetichista está atrelado à percepção superficial da realidade, à familiaridade e à confiança desenvolvidas a partir das

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relações práticas nas quais os indivíduos entram nas suas vidas cotidianas. O essencial aqui é o conhecimento do estritamente

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necessário para que os indivíduos tenham uma compreensão do mundo suficiente apenas para lhes possibilitar

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mover-se nele, isto é, entrar e estabelecer relações sociais, econômicas, políticas etc. e dispor das coisas que nele estão de forma eficaz

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(meramente prática). O exemplo do uso do dinheiro, do qual tratei anteriormente, pode nos ajudar a elucidar essa perspectiva.

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Segundo esse exemplo, os homens utilizam o dinheiro mas não compreendem, pelo menos a maior parte deles, como o

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dinheiro é engendrado, o que ele representa na sociedade capitalista e no modo de viver que ela lhes impõe, nem

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percebem que a quase totalidade das relações desenvolvidas em tal sociedade, excetuando-se as relações fundamentadas

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numa amizade verdadeira, são motivadas pelo dinheiro, quer o consideremos como um meio, quer como um fim (Aristóteles, ao discorrer

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sobre a amizade, assinalou que uma “amizade” fundamentada numa expectativa de ganho, naquilo que se esperar receber do

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“amigo”, isto é, alicerçada sobre a utilidade, não é verdadeiramente amizade, uma vez que essa seja dissipada tão logo “seque” a fonte da

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expectativa de ganho).104 Essa percepção superficial engendra ações igualmente superficiais, isto é, ações meramente

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prático-utilitárias; isso porque o pensamento no seu uso prático estipula fins que, por sua vez, dão continuidade ao movimento de

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reprodução do modo de produção capitalista, por mais que os indivíduos pensem que estão correndo atrás dos seus

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fins particulares, os quais estariam desvinculados daquele movimento. As pessoas precisam e desejam ter

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dinheiro tanto para comprar o necessário para manter seu corpo saudável (alimentos, tratamentos médicos etc.), como para

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realizar quase tudo o que possam estipular para si mesmos como fins, uma vez que quase tudo no mundo capitalista tem um preço.

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Com o intuito de elucidar essas questões, eis alguns exemplos do uso prático do pensamento nas esferas particular e coletiva,

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respectivamente, sob a praxis fetichista. 1) Um indivíduo, que ambiciona ascender socialmente, estipula como máxima de suas

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ações o seguinte: tudo fazer para conseguir se dar bem na vida e acumular riquezas. Para esse indivíduo suas ações consistem em

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passar por cima de qualquer pessoa que o impeça de 45

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alcançar sua meta, bem como de se valer de todos aqueles que possam ajudá-lo a alcançá-la. Sua ganância por bens materiais o

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leva a considerar os homens como meros objetos, dos quais uns são mais úteis que outros. Diferentemente do que ocorre no processo de

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universalização das máximas das ações em Kant, no processo de universalização das máximas no mundo capitalista a máxima daquele

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indivíduo poderia subsistir sem nenhuma contradição, uma vez que é esse tipo de princípio subjetivo da ação (máxima)

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que é fomentado naquele mundo.105 2) A entrada de um país qualquer numa guerra, ou mesmo a criação voluntária de uma, é

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necessariamente precedida por planejamentos minuciosos em várias áreas (política, econômica, militar, científica,

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logística etc.), planejamentos que devem cobrir tanto a escolha dos pontos que devem ser tomados ou destruídos

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primeiro, a escolha das armas que serão utilizadas nos ataques, a forma de dominação que será exercida e imposta pelos

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invasores à nação invadida, como a construção dos argumentos que serão sustentados para justificar ou a entrada ou a

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invenção, e, é claro, o que se pode ganhar ou perder nessa guerra, isto é, o que pode impedir a consecução dos fins pretendidos

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e o que pode ser feito para passar por cima de eventuais obstáculos. Ora, a história nos mostra que todas as guerras, por mais que tenham

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diversos outros móbiles, têm seu móbile principal na riqueza que uma nação pode acrescentar ao seu tesouro, quer seja essa em forma de

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territórios ou colônias, quer como acesso a matérias-primas, quer na forma de espólios etc. Assim, vê-se que interesses meramente

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práticos (para não dizer gananciosos) estão por trás dos discursos pretensamente democráticos que tentam justificar uma

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guerra – a dos Estados Unidos contra o Iraque, por exemplo. 105 “Máxima é o princípio subjectivo da acção […]” – KANT,

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Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Lisboa: Ed. 70, 2008, p. 61. No que tange ao processo de universalização

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das máximas, cf. idem, ibidem, pp. 62-65, onde Kant formula os exemplos do suicídio em nome do amor próprio, das falsas

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promessas, do não desenvolvimento dos talentos naturais e do rico avarento, procedendo à universalização das máximas dos

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sujeitos de cada um desses exemplos. Eis agora exemplos do uso teórico do pensamento na praxis fetichista. 1) As guerras

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nos oferecem ainda inúmeros exemplos do comprometimento da ciência e da técnica com a consecução de fins de ordem meramente

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prática. É fato reconhecido que a tecnologia da Alemanha nazista estava muito à frente da tecnologia dos demais países do mundo na

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primeira metade do século passado. O desenvolvimento científico e tecnológico na Alemanha estava então subordinado aos

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ideais fascistas do Terceiro Reich, e servia como meio através do qual esses ideais poderiam ser impostos às nações

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dominadas; prova disso temos no desenvolvimento dos caças a jato, criados primeiramente pelos alemães; nas experiências

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pioneiras com compostos químicos, que foram utilizados para exterminar milhares de judeus, e mesmo nas primeiras pesquisas que

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versaram sobre a bomba atômica. Mas esse 46

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comprometimento da ciência e da técnica com o poder político e com os interesses de alguns não está restrito apenas a esse recorte

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histórico específico do nazismo. Entretanto, nem toda pesquisa científica e nem toda técnica manifestam a praxis fetichista.

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Somente uma ciência e uma técnica comprometidas com o capital, com o lucro das grandes multinacionais e corporações, dos

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grandes laboratórios científicos e mesmo com o interesse de alguns particulares e também de governos é que

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pode a justo título ser denominada uma ciência e uma técnica fetichistas. 2) O mesmo pode ser dito em relação à filosofia. Uma

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filosofia que se preste a legitimar um estado de coisas – a afirmação da sociedade burguesa e do modo de produção

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capitalista como expressões do ápice da evolução social, por exemplo –, que tente justificar ideais injustificáveis e irracionais, que

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não esteja comprometida com a transformação das condições materiais que obstem o pleno desenvolvimento moral, político,

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espiritual dos indivíduos, que esteja vinculada a uma prática e a um sentido meramente acadêmicos, uma tal filosofia não merece

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outras qualificações que não as de inútil e fetichista. É, pois, nesses sentidos que Kosik pôde falar de funções

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prática e teórica do pensamento. Praxis e pensamento cindem a realidade concreta. Cindir a realidade é o primeiro e

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fundamental momento do processo que se destina a conhecê-la na sua concreticidade, apreendê-la conceitualmente

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.106 Só que essa apreensão, para Kosik, da forma como é feita nas sociedades contemporâneas pela economia política, mais especificamente,

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a partir de uma praxis fetichista, inverte o lugar e o papel do homem no mundo; ela transforma homens em objetos, e isso

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não somente pelo fato do homem inserido nas relações e processos econômicos ser, obviamente, objeto de estudo dessa ciência,

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mas ainda porque ela toma o homem como objeto de um mundo considerado como mercado; assim, são as relações e

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processos de ordem econômica, a realidade considerada sob o aspecto de um sistema econômico, que configuram os

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modos e os tipos de relações desenvolvidas sob o capitalismo, bem como os agentes dessas relações – e é precisamente aqui que o

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homem, a partir das relações estabelecidas com outros homens e com a natureza, entra em relações com o Estado, com a sociedade civil,

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com seus produtos e mercadorias, sendo ele mesmo, incontáveis vezes, a própria mercadoria ou objeto acerca do

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qual outros indivíduos deliberam nas suas relações particulares ou no exercício de cargos públicos. Assim como a filosofia, a

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ciência também é uma forma de conhecimento conceitual. Todavia, a ciência moderna – pensa acertadamente Kosik –

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frequentemente falha ao considerar apenas um ou alguns aspectos da realidade como os únicos através dos quais é possível traçar

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e percorrer os desvios necessários para chegar à 106 Tratarei desse processo e dos seus momentos na parte destinada à

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destruição da pseudoconcreticidade. 47

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essência, a um conhecimento da estrutura interna das realidades natural e social, dos seus processos e fenômenos.107 São as formas de

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engendramento e as consequências dessa falha que passarei a analisar até o final desta terceira parte.

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107 Pode-se objetar que o materialismo histórico-dialético também reduz a realidade a apenas alguns aspectos, tal

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como o aspecto econômico ou da produção. Não penso que isso seja verdadeiro, posto que o conceito de modo de produção não

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está atrelado exclusivamente à economia, às relações humanas de ordem econômica. O modo de produção

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abrange a criação, a produção em todos os seus aspectos, quer resulte em produtos objetivamente existentes – tais

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como um machado ou uma sandália –, quer em produtos abstratos – como a produção da própria consciência. Assim, os

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pontos de partida para uma análise dialético-materialista são tão diversos quantos sejam os produtos criados pelos homens, não implicando,

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portanto, em uma redução, mas em uma ampliação das esferas a partir das quais podemos entender e falar

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sobre a realidade. 108 Outras considerações acerca do homem-preocupado foram feitas por mim no artigo O

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homem-preocupado, publicado na revista Saberes, nº 5, pp. 127-134. Cf. « http://www.cchla.ufrn.br/saberes».

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A. O homem-preocupado § 10. Mundo da pseudoconcreticidade e fisicalismo positivista. Mundo da Pseudoconcretic

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idade é o nome utilizado por Kosik para denominar a realidade social e a condição da existência humana sob os ditames de uma

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falsa consciência, que, neste caso, é abordada a partir da análise de um dos seus aspectos, isto é, a partir da análise de um

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tipo específico de discurso – o positivismo cientificista ou fisicalismo positivista, que diz respeito ao discurso científico em

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geral. Para Kosik, o fisicalismo positivista (enquanto modelo formal de cientificidade, que tem seu

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fundamento em princípios que determinam como se dá o processo de conhecimento e como devem ser orientadas as práticas a partir

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das quais podem ser conhecidos os diversos objetos de estudo) é um dos responsáveis pelo engendramento dos modos de

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ser dos homens nas sociedades contemporâneas, assim como pela configuração de parte do seu pensamento, uma vez que seja algo real,

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que faça parte objetivamente do mundo cotidiano de cada indivíduo e por isso mesmo seja apreendido de alguma forma pela consciência

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desses indivíduos. Tais modos de ser correspondem a dois tipos determinados de indivíduos: um considerado na sua efetividade,

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outro a partir de uma abstração do homem efetivo; são eles, respectivamente: o homem que enquanto vive pertence à preocupação

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(cura) – que eu passo a chamar de homem-preocupado108 –, e o homo oeconomicus – abstração na qual a ciência da economia

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política converte o homem a fim de investigá-lo (desse último tratarei mais à frente). O discurso científico, que com o

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positivismo de Auguste Comte, no século XIX, fora alçado à condição de superação dos pensamentos teológico e metafísico,

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conheceu grandes avanços teóricos, práticos e tecnológicos no decorrer do século XX, avanços que inegavelmente melhoraram

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significativamente as condições de existência humana (por 48

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exemplo, ao criar e desenvolver medicamentos, técnicas cirúrgicas, meios de transporte e comunicação mais rápidos e

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mais eficientes etc.), mas que, ao mesmo tempo, também trouxeram grandes mazelas (armas de destruição em massa, poluição

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e degradação do meio ambiente etc.). Apesar disso, todas essas coisas contribuíram para a consagração daquele discurso

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formal, calculador, como o discurso que, par excellence, trata do conhecimento que se pode ter sobre alguma coisa.

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Para Kosik, o positivismo científico representa o ápice do pensamento de que os homens podem realmente

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tornarem-se senhores e possuidores da natureza; ele expressa o pensamento segundo o qual o conhecimento acerca da

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natureza e da sociedade, em toda a sua diversidade e possibilidades, pode ser reduzido e compreendido a partir daquilo

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que é afirmado cientificamente por uma ou outras perspectivas hegemônicas, que reivindicam a veracidade e a validade dos

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resultados de suas pesquisas frente a quaisquer outras formas não-científicas de conhecimento e interpretação dos mundos

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natural e social. Assim, por exemplo, a ciência da física (physiké) é o discurso válido para estudar e proferir enunciados

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acerca das coisas e fenômenos naturais; a biologia, a ciência qualificada para investigar e falar dos seres vivos e das leis da vida;

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a economia política (oeconomia), a modalidade discursiva apta para tratar da investigação e do que é dito sobre os

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fenômenos da vida econômica.109 Para que alguém possa falar com autoridade, isto é, para que alguém seja considerado um

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especialista em qualquer uma daquelas modalidades discursivas, deve desenvolver no seu dia a dia atividades relativas à

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profissão de físico, de biólogo, de economista. Alguém que fale sobre qualquer assunto daquelas modalidades sem a chancela

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de uma instituição – a universidade –, sem um pedaço de papel que “comprove” sua qualificação para tratar do assunto, não

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passa de um philodoxos e seu discurso, teratologia.110 Sobre o caráter arbitrário e limitado dessa forma de entendimento

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acerca da realidade objetiva, veja-se o que diz Kosik – 109 Hoje, a expressão economia política já não é

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a mais utilizada para referir aos fenômenos e processos de ordem econômica; em seu lugar utiliza-se apenas economia.

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Todavia, optei por continuar a utilizá-la, posto que essa seja a expressão utilizada por Kosik para referir à ciência que investiga

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aqueles fenômenos. Decidi-me a utilizá-la ainda por pensar que ela denota a estreita relação entre economia e política.

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110 No que tange à chancela ou permissão para falar em nome de alguma modalidade discursiva, bem como do que seja uma

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teratologia, cf. A Ordem do Discurso, de Michel Foucault; sobre o que seja um philodoxos, v. A República, de Platão, 480a.

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No mundo do fisicalismo – que o positivismo moderno considera como única realidade – o homem pode existir apenas como uma

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determinada atividade abstrata, isto é, como físico, estatístico, matemático, lingüista, mas jamais com todas as suas

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virtualidades, jamais como homem inteiro. O mundo físico como modo tematizado de conhecer a realidade física é apenas uma das

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possíveis imagens do mundo que exprimem determinadas propriedades essenciais e aspectos da realidade

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objetiva. Além do mundo físico existe ainda um outro mundo, igualmente legítimo – por 49

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exemplo o mundo artístico, o mundo biológico, e assim por diante –, o que significa que a realidade não se exaure na

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imagem física do mundo. O fisicalismo positivista é responsável pelo equívoco de ter considerado uma certa imagem da

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realidade como a realidade mesma, e um determinado modo de apropriação da realidade como o único autêntico. Com

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isso, em primeiro lugar ele negou a inexauribilidade do mundo objetivo e sua irredutibilidade à ciência […] e em segundo

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lugar empobreceu o mundo humano, por ter reduzido a um único modo de apropriação da realidade a riqueza da

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subjetividade humana, que se efetiva historicamente na praxis objetiva da humanidade.111 111 KOSIK, 1976, p. 25;

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grifos meus. Heidegger também apontou o caráter arbitrário da esfera teórica do conhecimento: “A observação teórica sempre

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reduziu o mundo à uniformidade do que é simplesmente dado; dentro dessa uniformidade subsiste encoberta sem

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dúvida uma nova riqueza de determinações, passíveis de descoberta” – HEIDEGGER, 2009, p. 197. 112 MARX e ENGELS, 2007,

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pp. 55-56. Para Marx, “a divisão do trabalho é a expressão nacional-econômica da sociabilidade do trabalho no interior do

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estranhamento […] não é outra coisa senão o assentar exteriorizado, estranhado, da atividade humana como uma atividade

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genérica real ou enquanto atividade do homem como ser genérico” – MARX, 2004, pp. 149-150; grifos do autor.

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113 MARX e ENGELS, 2007, p. 56; grifos meus. Ora, o primeiro ponto que vejo saltar do trecho em questão tange à divisão

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do trabalho. O mundo do fisicalismo positivista é o lugar onde os indivíduos não são nada além daquilo que eles fazem, da sua

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atividade profissional; é o lugar no qual cada pessoa tem um ou alguns papéis mais ou menos pré-estabelecidos socialmente de

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acordo com a atividade que exercem; é o espaço onde “cada qual se move em determinado círculo exclusivo de

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atividades, que lhe é imposto e do qual não pode escapar”.112 Naquele trecho citado da Dialética podemos ouvir

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claramente o eco da seguinte afirmação de Marx e Engels: […] na sociedade comunista, onde cada indivíduo não tem para si

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um círculo exclusivo de atividades, mas pode desenvolver suas aptidões no ramo que melhor lhe aprouver, a sociedade se

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encarrega de regular a produção universal, com o que ela torna possível, justamente através disso, que eu possa me

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dedicar hoje a isto e amanhã àquilo, que possa caçar pela parte da manhã, pescar pela parte da tarde e à noite apascentar o gado, e depois

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de comer, criticar, se for o caso e conforme meu desejo, sem a necessidade de por isso me tornar caçador, pescador, pastor

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ou crítico algum dia.113 A respeito desse assunto – que muitos pensam já estar “ultrapassado” –, limitar-me-ei a dizer que não

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penso que o comunismo seja a alternativa mais adequada frente ao capitalismo, embora acredite que o capitalismo não

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é o melhor dos sistemas possíveis. Com a derrocada deste sistema vigente e o surgimento de outro, é evidente que também esse

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apresentará problemas de diversas ordens, sendo causa da insatisfação de uns e da alegria de outros, e é igualmente evidente que

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indivíduos se porão a pensar em outro sistema que possa ser ao mesmo tempo a superação do atual, no que tange aos seus problemas, e a

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consolidação de um novo. Criar um sistema político que agrade a todos os homens equivaleria a criar um produto perfeito, o que

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de per si se nos mostra impossível. Acredito que Kosik também sustentava 50

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opinião semelhante, dado que, como exposto na Introdução, a Primavera de Praga representou a tentativa de

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instaurar um terceiro tipo de sistema político, distinto do socialismo e do capitalismo. Ora, para Kosik, o único conhecimento

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reconhecido pelo positivismo moderno é aquele que vem à luz por meio do cálculo matemático, das demonstrações e experiências

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repetidas em laboratórios, aquele, portanto, que jaz sob uma rigorosa formalização – em uma palavra, aquele que pode ser expresso

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cientificamente. Essa maneira de se relacionar com o conhecimento acerca da realidade objetiva dispõe a humanidade em

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dois pólos opostos e não-complementares: de um lado, os senhores da erudição, o conselho de guardiões – os cientistas e

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philomathes nas suas mais variadas espécies; do outro, os philodoxos e os sujeitos indoutos, incapazes de

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algum conhecimento verdadeiro sobre essa realidade na qual, não obstante, eles vivem e são capazes de conhecer de um

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modo qualquer.114 Pode-se dizer que o economista político, o físico, o matemático, o químico etc. conhecem a

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realidade e seus discursos são considerados válidos e verdadeiros porque e na medida em que eles utilizam o método

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científico para formular questões e conduzir suas pesquisas sobre os fenômenos e processos do mundo objetivo na forma de um

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conhecimento demonstrável, cujos método e resultados são passíveis de serem repetidos; é, portanto, a consideração daquelas

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“atividades abstratas” como propriamente científicas, a consideração dos discursos relativos àquelas atividades como científicos, o que

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concede a cada um deles o epíteto de “válido” e “verdadeiro”.115 114 “Para nós, também os philosophos são

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indivíduos indoutos. Aliás, eles são os mais soberbos, posto que fundamentem todo o seu pretenso conhecimento

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em nada mais que quimeras abstratas; e não há nada mais contrário ao conhecimento científico que a especulação” –

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pode arguir um philomathes. 115 Foucault críticou essa forma de dispor do conhecimento, através da qual o saber é cindido

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em dois pólos opostos: de um lado o que ele chamou de “saberes dominados”, “saberes das pessoas” ou ainda “saberes

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desqualificados”, e, do outro, os “saberes qualificados” ou “eruditos”, que são os propriamente científicos. Obviamente,

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Foucault utilizou tais expressões de forma depreciativa. Cf. FOUCAULT, 2008, p. 170 e ss. Esse é mais um ponto sobre o qual os

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pensamentos de Kosik e Foucault convergem. Penso que ambos abordaram problemas muito semelhantes (o saber ou

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conhecimento, a alienação nas sociedades contemporâneas), os analisaram também de forma semelhante (o pensamento de

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ambos tem grande influência das filosofias de Marx e Engels e, em menor medida, da de Heidegger) e a eles propuseram

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respostas que se encaminham no mesmo sentido, a saber, a crítica (nas formas da destruição da pseudoconcreticidade, em Kosik, e das práticas do

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cuidado de si, em Foucault). V. Também a nota 33, na Introdução. No que tange àquela cisão em dois pólos, para Kosik, ela

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também pode ser vista no âmbito da cultura: “[…] la culture comme destination de l‟homme s’est scindé pour donner

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naissance à deux groupes: les créateurs qui font la culture dans les domaines les plus variés – en tant qu‟écrivains,

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cinéastes, comédiens, scientifiques, juristes – et la collectivité passive qui consomme les valeurs ainsi produites” –

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KOSIK, 2003, p. 210 – Aufklärung et culture; grifos meus. Com efeito, o equívoco do fisicalismo positivista,

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segundo Kosik, consiste no fato dele considerar “uma certa imagem da realidade como a realidade mesma”, isto é, reside no fato

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de, a partir de um recorte, falar acerca daquilo que está para além dos limites do recorte, reside no fato dele pressupor a si mesmo como

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o caminho e a verdade sem as quais não se pode perscrutar nem conhecer os meandros quer do mundo propriamente

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natural quer do 51

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humano-social. Assim fazendo, o fisicalismo positivista cristaliza e explora uma ou tão somente algumas das infinitas facetas

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que a realidade pode nos dar a conhecer, dando as costas às demais, e isso na medida em que estabelece “um determinado modo de

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apropriação da realidade como o único autêntico”.116 Destarte, a ciência, por mais que seja um conhecimento conceitual,

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descamba para o fetichismo, tanto no que concerne ao uso da razão teorética, como no que diz respeito à sua própria prática, ao uso prático da

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razão no fazer científico. Todavia, “a realidade não se exaure na imagem física do mundo”; há ainda inúmeras outras formas de

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apropriação da realidade, as quais são, em sua maior parte, ou não-científicas (como a religiosa, a mitológica, as

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anti-ciências etc.) ou, como diz Kosik, pré-teóricas (abordarei essa forma mais adiante). 116 Heidegger salienta,

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acertadamente, que toda ciência “depende da concepção de mundo dominante” (HEIDEGGER, 2009, p. 485).

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117 KOSIK, 1976, pp. 33-34; parênteses meus. 118 Idem, ibidem, p. 35; grifos do autor. § 11. Consequências da apropriação

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cientificista da realidade objetiva. Sobre a economia política. Segundo Kosik, desse modo positivista de apropriação da

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realidade a partir de apenas uma ou algumas de suas facetas, decorrem duas consequências problemáticas: a negação da “inexauribilidad

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e do mundo objetivo e sua irredutibilidade à ciência” e o “empobrecimento do mundo humano”. Para que possamos melhor

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compreender o que Kosik quer dizer com isso, devemos nos debruçar sobre a categoria da totalidade concreta. Segundo Kosik,

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a categoria da totalidade compreende a realidade nas suas íntimas leis e revela, sob a superfície e a casualidade dos fenômenos, as

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conexões internas, necessárias, (e) coloca-se em antítese à posição do empirismo, que considera as manifestações

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fenomênicas e casuais, não chegando a atingir a compreensão dos processos evolutivos da realidade. Do ponto de vista da

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totalidade, compreende-se a dialética da lei e da casualidade dos fenômenos, da essência interna e dos aspectos fenomênicos da

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realidade, das partes e do todo, do produto e da produção e assim por diante. Marx se apossou desta concepção dialética, purgou-a das

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mistificações idealistas e, sob este novo aspecto, dela fez um dos conceitos centrais da dialética materialista.117

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Para Kosik, “totalidade não significa todos os fatos. Totalidade significa: realidade como um todo estruturado,

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dialético, no qual ou do qual um fato qualquer (classes de fatos, conjuntos de fatos) pode vir a ser racionalmente

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compreendido”.118 Ainda segundo Kosik, a realidade como totalidade concreta é “um todo estruturado em curso de 52

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desenvolvimento e de auto-criação”;119 por isso é que não há que se falar em uma essência que seja dada de uma vez por todas, mas de

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uma essência submetida ao processo de transformação, ao devir, o mesmo podendo ser pensado no que tange à produção de

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uma verdade dada definitivamente. Os mundos ou realidades natural e social fazem parte de um todo ordenado e são

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considerados realidade concreta na medida em que os processos e fenômenos que neles se manifestam exprimem os

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movimentos e desdobramentos do real.120 Daí a importância do conhecimento conceitual nas diversas áreas da vida humana – o conceito capta

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os movimentos e desdobramentos do real. Essa importância foi ressaltada por Kosik no seguinte trecho da Dialética:

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119 KOSIK, 1976, p. 35. 120 Segundo Irons: “The concrete totality specifies the structure as well as contradiction of humanity as a

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factual whole which exists in an open system of socio-historical relations. Essential relations then are only

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accessible dialectically. The whole is not fixed in the sum of its individual parts, rather represents a system of relations

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articulated by living and acting individuals; it is a materialist structure which mediates between history and nature”. IRONS, 1979, p.

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168; grifo do autor. 121 KOSIK, 1976, p. 36; parênteses do autor. Se a realidade é entendida como concreticidade,

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como um todo que possui sua própria estrutura (e que, portanto, não é caótico), que se desenvolve (e, portanto, não é imutável nem

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dado uma vez por todas), que se vai criando (e que, portanto, não é um todo perfeito e acabado no seu conjunto e não é mutável apenas

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em suas partes isoladas, na maneira de ordená-las), de semelhante concepção da realidade decorrem certas conclusões

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metodológicas que se convertem em orientação heurística e princípio epistemológico para estudo, descrição,

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compreensão, ilustração e avaliação de certas seções tematizadas da realidade, quer se trate da física ou da ciência literária, da

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biologia ou da política econômica, de problemas teóricos da matemática ou de questões práticas relativas à organização da

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vida humana e da situação social.121 Sendo a realidade objetiva, para Kosik, um todo em permanente desenvolvimento

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, no qual, a partir das transformações das partes transforma-se também o todo, sendo a recíproca igualmente

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verdadeira, não é então possível que a ciência – um produto humano condicionado pela evolução do conhecimento dos seus

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criadores em cada etapa histórica, mas que também condiciona as próprias condições materiais de existência e

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produção da consciência dos mesmos – seja capaz de reduzir a riqueza do mundo objetivo a esta ou àquelas perspectivas. Essa tentativa de

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redução conduz ao empobrecimento do mundo humano, ao sub-aproveitamento da razão humana, posto que transforme

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os homens como que em cavalos a puxar uma carroça, os quais, devido aos tampões que lhes põem nas laterais dos olhos, não

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divisam mais do que o que está à sua frente. Ora, a ciência que assim reduz a diversidade da realidade objetiva e à qual Kosik dirige sua

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crítica é a economia política. 53

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A economia política é ciência assaz importante para compreender o mundo humano-social sob a perspectiva do materialismo

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histórico-dialético. Marx e Engels ressaltaram essa importância ao afirmarem que “a „história da humanidade‟ deve ser

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estudada e elaborada sempre em conexão com a história da indústria e do intercâmbio”, isto é, em conexão com a

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economia.122 Todavia, os pais do materialismo histórico não nos legaram nenhuma definição do que seja a economia política.123

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Então, o que devemos entender aqui por economia política? O filósofo John Stuart Mill, que também era economista,

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além de político, afirma que 122 MARX e ENGELS, 2007, p. 52; aspas dos autores. 123 Do que conheço dos escritos de Marx

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e Engels, não encontrei nenhuma definição da ciência em questão. 124 MILL, John Stuart. Essays on some

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unsettled questions of political economy. Da definição de Economia Política e do método de investigação

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próprio a ela. In: Os Pensadores – Jeremy Bentham, John Stuart Mill. São Paulo: Abril Cultural, 1979, pp. 306-307;

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aspas do autor, grifos meus. 125 MILL, 1979, p. 299. A propósito, a palavra economia deriva do grego οικονομικον,

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que designa as esferas doméstica e privada, relativas à οικορ (palavra traduzida geralmente por casa),

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distinguindo-a da esfera da πολιρ (polis), ainda que aquela esteja contida nessa. Portanto, na Grécia Antiga, a economia dizia

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respeito à manutenção da vida e dos assuntos domésticos, ao passo que hoje diz respeito não só à organização das finanças

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particulares, mas também àquela relativa aos Estados. […] o que comumente se entende pelo termo “economia

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política” não é a ciência da política especulativa, mas um ramo daquela ciência. Não trata do todo da natureza humana

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enquanto modificada pelo estado social, nem da conduta global do homem em sociedade. Diz respeito ao homem somente

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enquanto um ser que deseja possuir riqueza e que é capaz de julgar a eficácia comparativa dos meios para obter aquele fim. Prediz

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unicamente aqueles fenômenos do estado social que ocorrem em conseqüência da busca de riqueza. Faz total abstração

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de toda outra paixão ou motivo humano, exceto aqueles que podem ser tidos como princípios perpetuamente antagonistas ao

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desejo de riqueza, notadamente a aversão ao trabalho e o desejo da satisfação presente de indulgências

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dispendiosas. Estas ela considera, até certo ponto, em seus cálculos, porque não apenas, como outros desejos, ocasionalmente

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conflitam com a busca da riqueza, mas a acompanham sempre, como um obstáculo ou impedimento, e estão portanto inseparavelment

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e misturados em sua consideração. A economia política considera a humanidade enquanto ocupada

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unicamente em adquirir ou consumir a riqueza; e aspira a mostrar qual é o curso de ação no qual a humanidade, vivendo num

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estado de sociedade, seria impelida se aquela causa, exceto na medida em que é refreada pelos dois motivos perpétuos acima

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observados, que se contrapõem, fosse regra absoluta de todas as suas ações.124 Ainda segundo Mill, há dois tipos de noções

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relativas à economia política: uma vulgar, segundo a qual aquela é considerada “uma ciência que ensina, ou professa ensinar,

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de que maneira uma nação pode ser tornada rica” – noção que ele associa a Adam Smith –, e uma noção mais comumente aceita, segundo

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a qual “a economia política nos informa acerca das leis que regulam a produção, distribuição e consumo da

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riqueza” – noção essa que Mill diz estar ligada à concepção de que “a economia política […] está para o Estado assim como a economia

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doméstica está para a família”.125 Todavia, tais definições não estão, segundo Mill, 54

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à altura de poder evidenciar o que seja a economia política em sua totalidade; elas têm um caráter meramente introdutório, de modo que seu

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propósito é de “insinuar à mente do aprendiz (de economista) […] alguma preconcepção (sic) geral de quais são os

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usos da ocupação, e quais são as séries de tópicos através dos quais ele está por viajar”.126 Para Mill, a definição da ciência dos

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fenômenos econômicos que “parece estar completa” é esta – 126 MILL, 1979, p. 300; parênteses meus.

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127 Idem, ibidem, p. 308; grifos meus. 128 Marx destacou muito bem o papel de mediador do dinheiro nas sociedades

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capitalistas: “O dinheiro, na medida em que possui o atributo de tudo comprar, na medida em que possui o atributo de se apropriar de

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todos os objetos, é, portanto, o objeto enquanto possessão eminente. A universalidade de seu atributo é a onipotência de seu ser; ele vale,

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por isso, como ser onipotente. … O dinheiro é o alcoviteiro entre a necessidade e o objeto, entre a vida e o meio de vida do homem.

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Mas o que medeia a minha vida para mim, medeia-me também a existência de outro homem para mim” – MARX, 2004, p.

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157; grifos do autor. a ciência que traça as leis daqueles fenômenos da sociedade que se originam das operações

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combinadas da humanidade para a produção da riqueza, na medida em que aqueles fenômenos não sejam modificados

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pela procura de qualquer outro objeto.127 Ora, nessa concepção, bem como nas precedentes, percebemos clara e

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distintamente que a ciência da economia política está atrelada à produção da riqueza. O que Mill não deixa claro é se essa

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produção deve ser considerada somente na esfera da coletividade, da produção da riqueza de uma nação, por exemplo, ou se

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ela pode ser estendida à esfera da geração da riqueza particular de cada indivíduo. Com efeito, essa concepção,

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assim como muitas outras semelhantes a ela, foram criticadas por Marx e Engels precisamente por esconderem as causas

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materiais da produção de qualquer riqueza, isto é, a exploração do trabalho alheio e o consequente engendramento da mais-valia,

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exploração que está alicerçada sobre a divisão da sociedade em classes e sobre a divisão social do trabalho. § 12. Considerações

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em torno da compreensão pré-teórica, do poder objetal, da cura, e das transformações históricas que contribuíram para o

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engendramento do homem-preocupado. É possível que os fenômenos e processos econômicos sejam os fenômenos e

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processos mais próximos da vida cotidiana de cada indivíduo neste planeta – excetuando-se, quiçá, algumas poucas comunidades

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tribais isoladas. Para quase tudo o que fazemos ou pensamos fazer em nossa vida particular (o mesmo vale para a esfera pública),

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buscamos primeiramente saber se será possível fazê-lo, isto é, se temos ou teremos dinheiro suficiente para realizar nossos

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intentos.128 Apesar de a economia política ser uma ciência cujos objetos 55

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se encontram tão próximos da vida cotidiana da humanidade em geral e lhes dizem respeito diretamente, as pessoas frequentemente

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pouco ou nada conhecem dos significados e implicações das teorias, indicadores, fenômenos e processos econômicos;

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elas desconhecem que são, elas mesmas, objetos daquela ciência. Aliás, as pessoas não conhecem tais objetos propriamente

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como os conhecem os economistas, mas são capazes de possuir previamente alguma forma de compreensão acerca deles.

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Essa compreensão prévia acerca da realidade objetiva em geral, bem como dos fenômenos econômicos em particular,

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constitui aquilo que Kosik denominou de estádio de compreensão pré-teórica. Eis o que ele diz acerca de tal fase:

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O indivíduo mesmo antes de ler um manual de economia política e de conhecer as leis próprias dos fenômenos econômicos

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formuladas pela ciência, já vive na realidade econômica e a compreende de um modo qualquer. […] o importante não é aquilo que os

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homens respondem a uma pergunta sobre a economia. O importante é aquilo que para eles a economia é, antes mesmo

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de qualquer pergunta ou reflexão. O homem tem sempre uma certa compreensão da realidade, anterior a

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qualquer enunciação explicativa. Sobre este estádio de compreensão pré-teórica, como estrato elementar da

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consciência, se apóia a possibilidade de cultura e de instrução, mediante a qual o homem passa da compreensão preliminar ao

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conhecimento conceitual da realidade.129 129 KOSIK, 1976, p. 58; grifos meus. Ora, essa compreensão denominada de

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pré-teórica se fundamenta naquilo que Heidegger chamou de visão pré-predicativa, sendo, portanto, um termo de cunho

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fenomenológico. A explicação de Kosik acerca do que seja aquela compreensão é muito semelhante à fornecida por Heidegger no

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que tange a essa visão: “Toda visão pré-predicativa do que está à mão já é em si mesma um em compreendendo e em

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interpretando. […] A articulação do que foi compreendido na aproximação interpretativa dos entes, na chave de „algo

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como algo‟, antecede todo e qualquer enunciado temático a seu respeito” – HEIDEGGER, 2009, p. 210; aspas e grifo do

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autor. Em outro momento, Heidegger diz ainda que “a compreensibilidade já está sempre articulada, antes mesmo de

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qualquer interpretação apropriadora” – idem, ibidem, p. 223. Para Kosik, a realidade objetiva é sempre

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infinitamente mais ampla e complexa do que a compreensão que o positivismo possa desenvolver acerca da

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mesma, debruçando-se apenas sobre algumas de suas facetas; as compreensões que os indivíduos têm acerca dela são

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igualmente válidas para apreendê-la de algum modo, por mais que esse modo não seja reconhecido pela ciência. Os indivíduos não

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compreendem de um modo qualquer somente a economia; eles compreendem de igual modo várias outras facetas e

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aspectos da realidade. Penso que Kosik esteja ressaltando o fato de que, antes da ciência apresentar suas indagações, respostas e

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interpretações acerca do que quer que seja, os homens são capazes de chegar por si mesmos às suas próprias conclusões e

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indagações, independentemente de qualquer ciência. Entrementes, apesar da anterioridade da faculdade humana do

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conhecimento face ao conhecimento científico e à sua prática correspondente, a ciência acaba determinando de tal modo a

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condição da existência humana que se torna possível afirmar que os produtores são 56

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impelidos pelos seus produtos, quando deveria ser o contrário. Esse fato corresponde àquilo que Marx e Engels chamaram de

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poder objetal (sachliche Macht). Esta sedimentação da atividade social, esta consolidação de nosso próprio

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produto em um poder objetal (sachliche Macht) erigido sobre nós, que escapa a nosso controle, que levanta uma barreira diante

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de nossa expectativa e destrói nossos cálculos, é um dos momentos fundamentais que se destacam em todo o desenvolvimento

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histórico até agora […].130 130 MARX e ENGELS, 2007, p. 56; parênteses da edição brasileira, grifos meus. Exemplo da força do

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poder objetal exercido pelo dinheiro é dado no seguinte trecho dos Manuscritos de Paris: “O que é para mim o dinheiro, o que

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eu posso pagar, isto é, o que o dinheiro pode comprar, isso sou eu, o possuidor do próprio dinheiro. Tão grande quanto a força

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do dinheiro é a minha força. As qualidades do dinheiro são minhas – de seu possuidor – qualidades e forças essenciais. O

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que eu sou e consigo não é determinado de modo algum, portanto, pela minha individualidade. Sou feio, mas posso comprar

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para mim a mais bela mulher. Portanto, não sou feio, pois o efeito da fealdade, sua força repelente, é anulado pelo dinheiro” –

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MARX, 2004, p. 159; grifos do autor. 131 KOSIK, 1976, p. 58. 132 Idem, ibidem, p. 59; parênteses e grifos meus; a

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citação dentro da citação é de Herder, e foi extraída de uma fábula onde é narrada a criação dos seres humanos por Cura (cf.

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HEIDEGGER, 2009, pp. 265-266). Em nota de rodapé na mesma página, a edição brasileira explica de onde Kosik herdou a discussão em

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torno da preocupação – “O termo „preocupação‟ no presente contexto provém de Heidegger, que o definiu em Sein und Zeit,

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equivalendo, neste sentido, ao termo alemão die Sorge (= cuidado, preocupação, etc.)” (KOSIK, 1976; aspas e parênteses do

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autor). A influência de Heidegger no pensamento de Kosik é sublinhada por Costa Neto – “A obra de Kosik representa uma

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tentativa de estabelecer um diálogo orgânico com a tradição filosófica. Nela estão presentes – além da menção à (sic) teóricos de tradição

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marxista (Lukács, Goldmann, Marcuse, entre outros) e às filosofias do renascimento e clássica alemã (em particular

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Schelling e Hegel), a fenomenologia contemporânea (em particular Husserl e Heidegger) – uma leitura de Marx, na qual se

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destaca a utilização, (sic) de uma série de referências, até então pouco usuais na bibliografia marxista, como, por exemplo, os

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Grundrisse, a 1a edição de O Capital de 1867 e as Notas Marginais sobre Wagner. Por fim, estão igualmente presentes as

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referências à tradição literária universal (Goethe, Brecht e Kafka) e as constantes referências ao pensamento político e

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literário tcheco dos séculos XIX e XX” – COSTA NETO, Karel Kosik e o Marxismo no Leste Europeu: Notas Introdutórias, p.

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7; parênteses do autor. Para Kosik, a existência dos indivíduos no mundo humano-social contemporâneo é condicionada,

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bem como a configuração da organização social, em grande medida, pela maneira através da qual a ciência da economia

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política concebe tanto o que sejam os indivíduos quanto o que seja a sociedade, assim como o como eles devem ser

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considerados nas pesquisas científicas. Com efeito, Kosik está interessado em investigar, na segunda parte da Dialética – Economia e

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Filosofia – o modo através do qual a economia existe para os homens. Segundo ele, “antes mesmo de que a economia se torne objeto

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de especulação, explicação e interpretação científica, ela já existe para o homem, sob um aspecto determinado”.131 Segundo

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Kosik, tal aspecto é a preocupação. O modo primordial e elementar em que a economia existe para o homem é a

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preocupação (die Sorge). Não é o homem que tem preocupação, é a preocupação que possui o homem. O homem não é preocupado ou

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despreocupado; a preocupação é que é presente tanto no preocupar-se como no despreocupar-se. O homem pode libertar-se da

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preocupação, mas não pode eliminá-la. “Enquanto vive, o homem pertence à preocupação”.132 57

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Ante o exposto, pode-se depreender que, para Kosik, é a economia que determina o modo de existência humano ao

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assumir a forma da preocupação. Essa afirmação de Kosik parece-me bastante acertada, uma vez que preocupação, que deriva da

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palavra latina cura, significa “serious attention, carefulness, pains, care”, “the devotion of care or attention (to a thing)”,

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“the administration, charge (of things, persons), “a task, responsability”.133 Desse modo, expressões como

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“ocupar-se com” ou “preocupar-se com” exprimem o homem como um ser ocupado com as relações sociais, preocupado com

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suas obrigações familiares, profissionais, políticas etc. etc., numa palavra, refere ao homem como um ser que não consegue se

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desvencilhar de uma dada configuração ou disposição da realidade social. Contudo, há que se observar que o termo “preocupação”,

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tanto no pensamento de Kosik quanto no de Heidegger, não significa qualquer forma de inquietação, angústia ou perturbação,

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embora tais significados também sejam suportados pelo termo latino. Para Heidegger, fica excluída da significação de cura “toda

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tendência ôntica como cuidado ou descuido”.134 Em Heidegger, o emprego daquele termo acontece deste modo:

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133 Oxford Latin Dictionary. Londres: Oxford University Press, 1968, verbete cura, pp. 473-474.

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134 HEIDEGGER, 2009, p. 260. 135 Idem. El Ser y el Tiempo. México: Fondo de Cultura Econômica, 1951, p. 67 apud

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KOSIK, 1976, pp. 60-61; aspas do autor, parênteses meus. Para Heidegger, o ser da presença, isto é, do homem, é cura (cf.

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HEIDEGGER, 2009, p. 364), entendida como “preocupação em ocupações” (idem, ibidem, p. 382). 136 KOSIK, 1976, p. 60.

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137 Idem, ibidem, p. 61; aspas do autor. […] se usa la expressión “curarse de” en la presente investigación (isto é, em Ser e

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Tempo) como um término ontológico (un existenciario) para designar el ser de um posible “ser en el mundo”. La expresión no se

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há elegido porque el “ser ahí” sea inmediatamente y en gran medida econômico y “práctico”, sino porque el ser

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mismo del “ser ahí” es, como se verá, “cura”. Hay que tomar también este término como expresión de un concepto estructural

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ontológico. El término no tiene nada que ver com la “pena”, la “melancolia”, la “preocupación por la propia vida” que se encuentran

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ónticamente en todo “ser ahí”.135 Kosik também fez observações semelhantes ao afirmar que a preocupação “não é um

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estado psíquico ou um estado negativo do espírito, que se alterne com um outro, positivo”,136 ou ao dizer que ela “não é o estado

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de consciência cotidiano de um indivíduo cansado, que dela se pode libertar mediante a distração”.137 Contudo, nas palavras do

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próprio Heidegger verifica-se que cura, como ser do ser-aí, não está atrelada à vida econômica. Inversamente, é a preocupação

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atrelada à economia, a um modo de ser próprio do homem no mundo econômico contemporâneo, que é

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investigada por Kosik. O que vem a ser, então, para Kosik, a preocupação? 58

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Preocupação é “o superficial plano universal da realidade do Séc. XX”.138 138 KOSIK, 1976, p. 64. 139 Idem, ibidem, p. 65.

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140 Idem, 2003, p. 115 e p. 119, respectivamente; Un troisième Munich ? 141 Idem, ibidem, p. 76 – La crise actuelle.

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§ 13. Transformações históricas que corroboraram para o engendramento do homem-preocupado. Do trabalho à

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preocupação ou o trabalho estranhado. Para Kosik, o mundo da pseudoconcreticidade, da preocupação, constitui o

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universal plano superficial da realidade naquele século, e pode-se mesmo dizer nesta primeira década do século XXI. Em

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nenhuma outra época histórica os homens se encontraram tão envoltos e condicionados pela tecnologia, pelos aparelhos, instrumentos e

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máquinas; por isso Kosik afirmou que “a problemática dos equipamentos e aparelhos, que é criação do moderno mundo

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capitalista do séc. XX”, não poderia ser captada no mundo patriarcal, isto é, no mundo medieval.139 Em nenhum

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outro momento da história da humanidade a quantidade de produtos produzidos foi tão grande e o consumo tão intenso; essa

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constatação levou Kosik a afirmar coerentemente que “l‟avidité et l‟insatiabilité sans bornes sont les mesures à l‟envers du

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monde actuel”, e isso porque “en cette période transitoire, l‟humanité est saisie par l‟obsession de consommer et de se gaver qui

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prend des proportions inouïes”.140 Nunca antes a natureza foi tão considerada um imenso laboratório e reserva de

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matérias-primas como do século passado aos nossos dias. Isso conduziu Kosik à seguinte conclusão: À l‟aide de mains, de leviers

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et d‟organes préhenseurs divers, apparents ou cachés, naturels ou artificiels, ordinaires ou sophistiqués, l‟humanité

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s‟empare de ce qui autrefois était inaccessible et il semble qu‟il soit en son pouvoir de transformer, non seulement la Terre, mais

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progressivement tout l‟univers, en laboratoires toujours plus performant, en réserve immense et inépuisable d‟énergies et de matières

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premières devant servir au confort des mortels.141 S. L. Rubinstein, pensador citado por Kosik na Dialética, também tem

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uma perspectiva semelhante no que tange à relação dos homens com a natureza: Algumas vezes a natureza se reduz ao papel

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de oficina e matéria-prima para a atividade produtiva do homem. Para o homem como produtor, a natureza se apresenta

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efetivamente sob tal aspecto. Mas a natureza como tal, no seu conjunto, e o seu significado para o homem não podem ser reduzidos a

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apenas esta tarefa. Reduzir a relação do homem com a natureza à relação do produtor com o material a elaborar,

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significa empobrecer infinitamente a vida do homem. Significa arrancar pela raiz o lado estético da vida humana, da

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relação humana com o mundo; e, o que mais importa, – com a perda da natureza como algo de não criado pelo homem, nem por

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ninguém, como algo de eterno e de incriado – significa a perda do sentimento de 59

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que o homem é parte de um grande todo, comparando-se ao qual ele se pode dar conta da sua pequenez e da sua grandeza.142

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142 RUBINSTEIN, S. L. Princípios e Vias de Desenvolvimento da Psicologia. Moscou, 1959, p. 204 apud

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KOSIK, 1976, p. 67. 143 Penso que os filósofos e pensadores em geral, assim como os diversos tipos de artistas, para que

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possam compor suas obras, não podem prescindir, dentre outras coisas, da criatividade. 144 Essa transposição de

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subjetividade foi percebida por Feuerbach: “O que significa fazer, criar, produzir, senão tornar objectivo, sensível, algo que começa por

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ser apenas subjectivo e, nessa medida, invisível, não-existente, para que agora outros seres diferentes de mim o possam

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conhecer e disfrutar (sic), senão pôr algo fora de mim, torná-lo diferente de mim? Onde não existe a realidade ou a

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possibilidade de algo fora-de-mim, não se pode falar de fazer, de criar” – FEUERBACH, 2008, p. 129; grifos meus.

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145 KOSIK, 1976, p. 63. A propósito, o célebre filósofo de Königsberg escreveu algumas poucas palavras acerca da divisão do

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trabalho, palavras que permitem concluir que ele pensava exatamente o oposto de Kosik a tal respeito: “Todas as

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indústrias, ofícios e artes ganharam pela divisão do trabalho, com a experiência de que não é um só homem que faz tudo, limitando-

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se cada um a certo trabalho, que pela sua técnica se distingue de outros, para o poder fazer com a maior perfeição e com

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mais facilidade. Onde o trabalho não está assim diferenciado e repartido, onde cada qual é homem de mil ofícios, reina ainda nas

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indústrias a maior das barbarias” – KANT, 2008, p. 14; grifos meus. Nos nossos dias, a vida cotidiana de cada indivíduo tem se

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caracterizado cada vez mais pelo mover-se acrítico nas esferas da realidade social consideradas como conhecidas,

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familiares e naturais. Todas aquelas transformações nas condições materiais de existência dos homens e nas suas relações de

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intercâmbio material, que expus no parágrafo anterior, ensejaram a constituição do homem-preocupado.

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Tais transformações na realidade objetiva ocasionaram ainda, para Kosik, uma modificação qualitativa no

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que tange ao trabalho em si e ao produto desse trabalho. Partindo do pressuposto de que o trabalho é uma atividade diretamente

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relacionada ao devir, à criação, à produção (de alimentos, artefatos, instrumentos, obras de arte etc., o que pressupõe

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certamente alguma habilidade e criatividade do trabalhador), logo percebemos que tal relação não mais corresponde às

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maneiras pelas quais os homens exercem hoje seu trabalho. Nas atuais circunstâncias em que ele é exercido, e já desde suas

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primeiras divisões formais, o ato criativo, genético, foi completamente desvinculado dele, ou pelo menos da absoluta maioria

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de suas formas.143 A criatividade, enquanto transposição de subjetividade – por meio do trabalho – do criador para a

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coisa criada, foi expurgada, e em seu lugar tem reinado a mera manipulação prática, o puro fetichismo prático.144 Acredito que

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esse foi o motivo que levou Kosik a afirmar que “o trabalho está tão subdividido e despersonalizado que já se apresenta como

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mero ocupar-se e manipulação em todas as esferas, material, administrativa e espiritual”.145 Acerca do trabalho como

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criação, diz Kosik: No renascimento, a criação e o trabalho ainda estão unidos, porque o mundo humano nasce

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na transparência, como a Vênus de Botticelli nasce de uma concha marinha na natureza primaveril. A criação é algo de nobre e

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elevado. Entre o 60

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trabalho como criação e os mais elevados produtos do trabalho existe um vínculo direto: os produtos indicam o seu

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criador, isto é, o homem, que se acha acima deles, e expressam do homem não apenas o que ele já é e o que ele já alcançou, mas

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também tudo o que ele ainda pode vir a ser. Os produtos não testemunham apenas a atual capacidade criativa do homem, mas

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também e em especial as suas infinitas potencialidades. […] O capitalismo rompe este vínculo direto, separa o

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trabalho da criação, os produtos dos produtores e transforma o trabalho numa fadiga incriativa e extenuante.146

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146 KOSIK, 1976, pp. 110-111; grifos meus. 147 Idem, ibidem, p. 64; aspas e parênteses do autor, grifos

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meus. Para Feuerbach, “o trabalho é desagradável, descrente, racionalista, porque nele o homem faz depender a sua

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existência da actividade finalizada, que é por sua vez mediada pelo conceito de mundo objectivo” – FEUERBACH,

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2008, p. 157; grifos meus. 148 MARX, 2004, p. 82; parênteses meus. No que tange ao trabalho como manipulação, portanto como

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não-criação, Kosik diz: O preocupar-se é manipulação (de coisas e homens) na qual as ações, repetidas todos os dias, já de há muito se

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transformaram em hábito e, portanto, são executadas mecanicamente. O caráter coisificado da praxis, expresso pelo termo

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preocupar-se, significa que na manipulação já não se trata mais da obra que se cria, mas do fato de que o homem é absorvido pelo mero ocupar-se

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e “não pensa” na obra. O ocupar-se é o comportamento prático do homem no mundo já feito e dado; é tratamento e

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manipulação dos aparelhos no mundo, mas não é criação do mundo humano.147 Assim, para Kosik, os produtos

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auferidos pela atividade laborativa, a partir do momento em que não mais recebem ativamente um sentido da

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subjetividade humana, tornam-se coisas estranhas ao homem, coisas que parecem adquirir vida e existir por si mesmas,

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autonomamente, já que o homem se vê e é visto apenas como mero manipulador passivo da máquina que produzirá tais

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produtos. Desse modo, o criador se aliena diante de sua criatura. Veja-se o que diz Marx acerca de tal estranhamento:

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O estranhamento do trabalhador em seu objeto se expressa, pelas leis nacional-econômicas (isto é, pelas leis da economia política), em que

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quanto mais o trabalhador produz, menos tem para consumir; que quanto mais valores cria, mais sem-valor e indigno ele se

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torna; quanto mais bem formado o seu produto, tanto mais deformado ele fica; quanto mais civilizado seu objeto, mais bárbaro o

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trabalhador; que quanto mais poderoso o trabalho, mais impotente o trabalhador se torna; quanto mais rico de espírito o

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trabalho, mais pobre de espírito e servo da natureza se torna o trabalhador.148 Esse processo, por meio do qual os homens

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submetem sua atividade a um outro controle que não o seu próprio – controle exercido pelo capitalista, pela divisão do

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trabalho, pela técnica, pela manipulação, em uma palavra, pelo fetichismo prático cotidiano –, assinala, para Kosik, a transição do

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trabalho para o mero ocupar-se, isto é, para a preocupação. 61

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A passagem do “trabalho” para a “preocupação” reflete de maneira mistificada o processo da fetichização das relações

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humanas, cada vez mais profundo, em que o mundo humano se manifesta à consciência diária (fixada na ideologia

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filosófica) como um mundo já pronto, e provido de aparelhos, equipamentos, relações e contatos, onde o movimento

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social do indivíduo se desenvolve como empreendimento, ocupação, onipresença, enleamento – em uma palavra,

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como “preocupação”.149 149 KOSIK, 1976, p. 63; grifos e parênteses do autor.

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150 Idem, ibidem, p. 60; grifos meus. 151 MARX e ENGELS, 2007, p. 52; grifos meus.

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Desse modo, e ainda segundo Kosik: A “preocupação” é a transposição subjetiva de realidade do homem como

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sujeito objetivo. O homem, (sic) é sempre vinculado por conexões e relações com a própria existência, a qual é atividade,

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embora se possa acrescentar sob a forma de absoluta passividade e inércia. A “preocupação” é o enredamento do indivíduo no

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conjunto das relações que se lhe apresentam como mundo prático-utilitário. Portanto as relações objetivas se manifestam ao

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indivíduo não na intuição, mas na praxis, como mundo do trabalho, dos meios, fins, projetos, obstáculos e êxitos.150

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O homem como ser concreto, dotado de existência orgânica, está inserido na realidade objetiva e com ela se relaciona

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de diferentes maneiras. As conexões e relações que vinculam os homens àquela realidade implicam em transposições de

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subjetividade daqueles para essa, o que se dá também de formas distintas. No que tange ao âmbito da realidade humano-social,

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os vínculos que atrelam os indivíduos uns aos outros são propriamente sociais, quer dizer, são nada menos que invenções e

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convenções; tais vínculos têm seus fundamentos na família, na língua, na cultura, no direito, na política, no

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Estado etc., e implicam transposições subjetivas específicas, nas quais não adentrarei aqui. A forma de vinculação

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essencial dos homens uns aos outros e à sociedade, em última instância, forma que penso ser a abordada por Kosik no presente

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contexto, é a que se manifesta no e pelo trabalho. Essa forma de vinculação deve ser entendida num sentido materialista, e está assim

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expressa pelos pais do materialismo histórico: Já se mostra de antemão, portanto, uma conexão materialista dos

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homens entre si, que é condicionada pelas necessidades e pelo modo de produção e é tão velha quanto os próprios homens

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– uma conexão que sempre volta a assumir novas formas, e portanto apresenta uma “história”, mesmo sem que exista qualquer

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nonsense político ou religioso que mantenha os homens unidos de maneira especial.151 O trabalho é a atividade através

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da qual o mundo político-social e o modo de existência dos homens são configurados; é por meio dele que se

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originaram e continuarão a 62

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serem originadas as condições materiais de vida encontradas por cada nova geração, condições essas que podem ser transformadas

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somente por meio do trabalho, e, na medida em que ocorrem transformações, novas condições materiais de existência

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podem surgir, o que pode conduzir a humanidade a estágios cada vez mais complexos de desenvolvimento material e

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espiritual. Entretanto, as condições que hoje permeiam o trabalho o rebaixam à posição de simples meio para – ele é um

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meio para acumular riquezas, para conseguir status social; é a senda pela qual projetos podem vir a ser realizados, fins

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podem ser alcançados; é o trampolim que pode impulsionar os indivíduos que trabalham segundo o espírito do

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capitalismo para o tão almejado êxito, seja ele em que área for. Por isso Marx pôde afirmar, acerca do trabalho estranhado, que

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esse “inverte a relação a tal ponto que o homem, precisamente porque é um ser consciente, faz da sua atividade vital, da sua

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essência, apenas um meio para sua existência”.152 152 MARX, 2004, pp. 84-85; grifos do autor.

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153 MARX e ENGELS, 2007, p. 57. O trabalho assim condicionado e praticado por bilhões de pessoas ao redor do mundo se

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transforma, para Kosik, em praxis utilitária, em fetichismo; ele expressa a passividade e inércia que caracterizam o enredamento

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acrítico dos indivíduos nas conexões e relações da sociedade capitalista – passividade que se manifesta no caráter abstrato

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do trabalho como manipulação, que exclui o processo criativo ao lançar os indivíduos num já-dado, num mero apertar-de-

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botões; inércia que se revela na determinação dos indivíduos de fora para dentro, na inconsciente ausência de motivações reais

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surgidas das necessidades e conhecimentos reais de cada indivíduo, bem como na comunhão com práticas “universais”

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que, precisamente por serem “praticadas por todos”, são essas mesmas que devem ser praticadas, quando em

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verdade o “universal é sempre a forma ilusória da comunidade”.153 Sob a praxis fetichista, os indivíduos transpõem sua

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subjetividade, isto é, preocupam-se em envidar seu tempo, suas faculdades, seus talentos, suas almas, para alcançar

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objetivos que, ao fim e ao cabo, são aqueles que a sociedade capitalista, o mundo prático-utilitário, determina como sendo os mais

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dignos e pelos quais vale a pena sacrificar suas vidas. Por isso Kosik afirmou que as relações objetivas no mundo prático-

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utilitário não se manifestam aos homens na intuição – posto que a maior parte deles não conhece conceitualmente a realidade –,

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mas tão somente no imediatismo inerente à realidade fenomênica, do qual deriva não mais que um pseudo-conhecimento: a

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representação. Corroboram nesse sentido as palavras de Irons: 63

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The social actor must be viewed as an active rather than passive individual who reasonably discriminates between

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phenomenon and essence on the grounds of truth, not factuality. Whereas the objectivistic knowledge of utilitarian

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ideology factualizes labor into a system of relations, i.e., a functioning whole, praxis acts as a dynamic sieve which separates

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the factual appearance of a system from its essential form.154 154 IRONS, 1979, pp. 170-171; grifos do autor.

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155 KOSIK, 1976, pp. 60-61; grifos do autor. A manifestação da realidade como “conjunto de leis objetivas” será analisada mais à

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frente, quando discorrerei acerca do extremo oposto do homem preocupado: o homo oeconomicus.

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156 É nesse sentido que Heidegger afirma que “o ser-no-mundo está, numa primeira aproximação, empenhado no

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mundo das ocupações” – HEIDEGGER, 2009, p. 236. Esse “ser-no-mundo” diz respeito ao “lidar familiarmente na

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ocupação com os entes que vêm ao encontro dentro do mundo” (idem, ibidem, p. 158), isto é, ao uso (fundamentado num dado

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conjunto instrumental, que vem ao encontro na circunvisão) dos instrumentos e apetrechos que estão à mão e são utilizados

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nas diversas ocupações, bem como ao ser-com os outros, isto é, à existência no mundo como algo que compartilhamos

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com os outros homens, ou seja, com as outras presenças. Para Kosik, se os homens conseguissem discernir clara e distintamente a

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aparência da essência, o fenômeno da coisa em si, então poderiam conhecer a realidade naquilo que ela é em si mesma,

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isto é, produto e criação humana, e, consequentemente, veriam a si mesmos como criadores da realidade social, ao invés de

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meros manipuladores de produtos e máquinas, uma vez que destruiriam a pseudoconcreticidade, e isso bastaria para

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revolucionar grandemente as condições e os modos da existência humana. Mas deixemos a discussão em torno dessa

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destruição para depois. § 14. Engajamento do homem-preocupado na praxis fetichista cotidiana.

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Segundo Kosik, o homem-preocupado é sujeito engajado na praxis fetichista cotidiana; é sujeito empenhado em

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adequar seu modo de ser (ethos, no sentido de hábito) ao modo de ser exigido pelo mundo prático-utilitário; é existência,

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ação e pensamento humanos dentro de um já-dado. Destarte – Para este indivíduo engagée, a realidade não

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pode manifestar-se primordial e imediatamente como o conjunto das leis objetivas às quais ele está submetido; manifesta-se, ao contrário, como

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atividade e intervenção, como mundo que é posto em movimento e recebe um sentido do ativo engagement do indivíduo. Este

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mundo é criação de tal engagement e, portanto, não é apenas um conjunto de determinadas representações; consiste antes de

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tudo em uma praxis determinada, nas suas mais variadas manifestações.155 A realidade objetiva

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manifesta-se imediata e primordialmente como atividade porque as diversas atividades ou ocupações são as formas mais

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imediatas por meio das quais a realidade é percebida e representam o modo fundamental de exteriorização do homem.156

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Com efeito, um indivíduo vê um motorista a dirigir um ônibus, um carteiro a entregar 64

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correspondências, um vendedor a negociar numa loja, um jardineiro a regar plantas etc. e, em todas essas situações, não percebe nada

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mais que indivíduos correndo atrás de seus fins particulares, lutando para pagar suas contas e sustentar suas

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famílias, engajados na execução dos meios através dos quais poderão satisfazer suas necessidades, na consecução de

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seus projetos, desejos e fins.157 Para onde olha o indivíduo só percebe preocupação, mas precisamente

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naquele sentido que Kosik e Heidegger deixaram explicitamente de lado. Para o indivíduo engajado na praxis fetichista,

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seu engajamento consiste, primeiramente, em participar ativamente de alguma atividade prática, assim como o é para

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todos os outros indivíduos. O indivíduo engajado não percebe as inúmeras relações de poder que fazem com que uns

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trabalhem para sobreviver e outros vivam a gozar dos frutos do trabalho alheio; ele não enxerga além do véu da pseudoconcretici

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dade, isto é, percebe apenas o movimento das formas fenomênicas da realidade, isto é, não compreende que os diversos tipos de

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atividades sociais não aparecem do nada (creatio ex nihilo), nem que elas são, antes, a manifestação de processos não imediatamente

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dados. A realidade objetiva, percebida e concebida exclusivamente como lugar da atividade laborativa, induz

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o indivíduo a pensar que sua inserção na sociedade só pode ocorrer por meio de uma atividade prática qualquer, uma vez que o

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trabalho se lhe aparece como único meio através do qual poderá ascender socialmente, prosperar financeiramente e alcançar os

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fins que venha a estabelecer para si ou que receba acriticamente do meio externo como sendo seus.158 Num primeiro momento esse

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pensamento está correto, posto que o mundo social seja uma decorrência da praxis humana, da atividade criadora inerente ao modo de ser

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dos homens no mundo. Contudo, a atividade que o indivíduo exerce no mundo pseudoconcreto, ao torná-lo manipulador de

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pessoas, máquinas e instrumentos, só lhe permite atribuir um sentido deturpado à sua existência, ao seu trabalho e a

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si mesmo159 – deturpado porque está em jogo aqui a aparência, a imagem pessoal, através da qual a sociedade pode julgar quão bem

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sucedido ou fracassado é um indivíduo (“l‟apparence s‟érige en style de vie universellement accepté et reconnu, et celui

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qui sait s‟exhiber en public est l‟acteur principal de notre époque”);160 porque tal sentido só é

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coerente na medida em que é considerado dentro de uma realidade movida por interesses econômicos,

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157 Segundo Heidegger, “nas ocupações com o mundo circundante, os outros nos vêm ao encontro naquilo que são. Eles são o que

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empreendem” – HEIDEGGER, 2009, p. 183; grifo do autor. 158 “A ocupação cotidiana compreende-se a partir do pode-

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ser que lhe vem ao encontro num possível sucesso ou insucesso, relativo àquilo de que se ocupa” – idem, ibidem, p. 423.

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159 “[…] o ser-no-mundo compreende-se a partir daquilo de que se ocupa. [...] É a partir daquilo de que se ocupa que a presença vem-a-

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si” – idem, ibidem, pp. 422-423; grifos do autor. 160 KOSIK, 2003, p. 84 – La crise actuelle. “Le style et le rythme de vie

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sont imposés de l‟extérieur : pour être quelqu‟un, on doit cultiver son image” – idem, ibidem, p. 229 – La lumpenbourgeoi

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sie, la démocratie et la vérité spirituelle. 65

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no seio da qual a existência daquele indivíduo está submetida a uma rotina semi-maquinal, na qual seus dias se esvaem como a

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poeira levada pelo vento numa cotidianidade inautêntica, alienada;161 cotidianidade alienada onde o trabalho passa a ser não mais que

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um simples meio pelo qual o indivíduo se insere nas relações e processos sociais (no lugar do trabalho, a preocupação);

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economia para a qual ele mesmo não passa de mais um homem-objeto entre tantos outros no mundo das coisas-viventes

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(homem-preocupado). Com efeito, o homem-preocupado sabe que, para se inserir satisfatoriamente no mundo das

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relações e processos sociais, e para que consiga mover esse mundo em favor daquilo que deseja, deve a ele se adequar.

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Os indivíduos que ousam não se submeter, quer na íntegra quer em parte, aos ditames sociais, aos modos predominantes

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de ser dos homens em sociedade, isto é, àquilo que é tido como familiar, sofrem várias formas de punições e represálias, das

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puramente morais – impostas por uma opinião pública ou mesmo por outros indivíduos –, às propriamente

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legais – aplicadas por um Estado de direito –, uma vez que “o caráter público do impessoal reprime toda e qualquer não

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familiaridade”.162 O que aqueles indivíduos não sabem é que tal adequação implica na necessária alienação de sua

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subjetividade, de seu corpo, de sua força de trabalho, e, quando forem convertidos pela ciência da economia política em

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homens econômicos, na sua necessária transfiguração em objeto. 161 “Privés de la capacité de se demander ce qui est bien et ce qui

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est vérité […] les hommes ne se demandent plus ce qui est bien et ce qui est mal, ils veulent seulement connaître ce qui est à leur

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avantage, ce qui leur est utile, ce qui leur assure un poste élevé” – KOSIK, 2003, p. 128 – La morale au temps de la globalisation.

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162 HEIDEGGER, 2009, p. 259. Para Heidegger, o público é o modo de ser do impessoal (cf. idem, ibidem, p. 198).

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163 KOSIK, 1976, p. 62; aspas do autor, grifos meus. 164 Idem, ibidem, pp. 9-10. Kosik diz ainda: Se a “preocupação”

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significa enredamento do indivíduo nas relações sociais, encaradas do ponto de vista do indivíduo engagée, ela é ao mesmo tempo

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um mundo supra-subjetivo, visto pelo sujeito. A “preocupação” é o mundo no sujeito. O indivíduo não é apenas aquilo

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que ele próprio crê nem o que o mundo crê; é também algo mais: é parte de uma conexão em que ele desempenha um papel objetivo,

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supra-individual, do qual não se dá conta necessariamente. O homem como “preocupação” é a própria subjetividade sempre fora de

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si, visa a uma outra coisa qualquer, ultrapassa continuamente a própria subjetividade.163

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Segundo Kosik, ao passo em que o indivíduo se insere na sociedade, ele o faz tendo em vista “a consecução dos próprios fins e

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interesses, dentro de um determinado conjunto de relações sociais”.164 O indivíduo sempre percebe sua inserção na

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sociedade a partir de sua própria perspectiva, considerando seus anseios e expectativas, e acredita que tal inserção ocorre

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de acordo com seu planejamento e controle (pelo menos parcial), como um 66

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processo natural e que, por mais que haja alguma imposição por parte da sociedade para que ele nela tome parte (se engaje)

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ativamente de um modo qualquer, tal exigência é tomada como algo “normal”, na medida em que se estende a todos os

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indivíduos (o universal como ilusão da comunidade). É essa exigência externa que, acredito, Kosik define como sendo um

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“mundo supra-subjetivo”, posto que esteja para além dos interesses puramente individuais e, ao mesmo tempo, também a esses

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condicione em alguma medida. Assim, no mundo da pseudoconcreticidade e da preocupação, a realidade social se apresenta à

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consciência individual como mundo do assumir a preocupação, daí a preocupação ser “o mundo no sujeito”.

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Para Kosik, no mundo da preocupação o indivíduo não se engaja apenas em atividades produtivas, se engajando ainda em uma dada

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cotidianidade, em uma determinada maneira de viver seus dias e de construir sua rotina. Kosik entende por cotidianidade a

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“organização, dia a dia, da vida individual dos homens”.165 Ora, por mais que acredite que essa rotina é determinada por si mesmo, o

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indivíduo é que é determinado, assim como sua rotina, pela exterioridade, pelo modo de ser do mundo – mundo que deve ser entendido

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como impessoal, sob o aspecto do público. 165 KOSIK, 1976, p. 69. Essa concepção Kosikiana é bastante próxima da de

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Heidegger, para quem a cotidianidade “indica um determinado como da existência que domina a presença em seu

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„tempo de vida‟” (HEIDEGGER, 2009, p. 460; aspas e grifo do autor); ela corresponde ao “modo de ser mediano da

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presença no qual, numa primeira aproximação e na maior parte das vezes, ela se mantém” – idem, ibidem, p. 416.

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166 KOSIK, 2003, p. 218 – Sept escales d’automne. 167 Idem, 1976, p. 69. Que ce soit au travail ou pendant son

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temps de loisir, l‟homme est toujours occupé. De son plein gré, il s‟intègre dans le système qui lui prescrit à chaque minute ce qu‟il doit

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faire : démarcher les banques en surveillant les variations de taux d‟intérêt, courir les magasins pour dénicher les plus grosses

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réductions, trier soigneusement les déchets dans cinq ou sept containers, se hâter enfin pour ne pas rater le début du feuilleton à la

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télé. Prisonnier du cercle vicieux de la consommation, il n‟a pas de temps à consacrer aux choses essentielles ainsi

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qu‟à lui-même.166 Apesar dessa determinação externa, para Kosik a vida cotidiana é caracterizada pela “repetição

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de ações vitais” e pela “distribuição do tempo em cada dia”.167 Com efeito, o indivíduo engagée acorda todos os dias

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automaticamente (posto que, na maior parte das vezes, ainda esteja cansado da jornada de trabalho do dia anterior) no mesmo horário

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para ir ao trabalho; lá chegando, segue sempre a mesma rotina, continua a fazer as mesmas coisas do mesmo modo que aprendeu a

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fazer desde o primeiro dia naquele lugar e, na maioria das vezes, nada coloca de sua subjetividade naquilo que faz, contribuindo

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para o lento definhar de sua criatividade; se não vai ao trabalho, isto é, nos dias feriados ou nos finais de semana, há aí 67

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também uma certa padronização, uma certa repetição com base na qual ele sabe antecipadamente o que fará ou

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provavelmente fará nos dias de não-trabalho, de modo que o que ele faz num sábado qualquer é mais ou menos o mesmo que ele fará no segundo

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sábado do mês seguinte ou será semelhante ao que ele fez num sábado do mês anterior. Mas, apesar disso e justamente por isso, todos esses

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procedimentos, todos os movimentos que o indivíduo engajado realiza na esfera social lhes parecem familiares, são tidos como

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conhecidos intimamente, como o modo próprio das coisas serem na sua cotidianidade individual, no seu ritmo

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próprio de conduzir a vida. A cotidianidade assim entendida é expressão da estreiteza das condições materiais de existência e das

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relações de intercâmbio material, limitação essa que concede uma margem muito pequena para a movimentação

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dos indivíduos que não dispõem do meio universal para ampliação dessas mesmas condições e relações – o dinheiro; ela é

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em si mesma uma consequência da divisão do trabalho, do círculo restrito de atividades no qual os indivíduos se

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movem na sociedade do capital; é movimento de homens num já-dado, na sociedade como lugar das realizações dos

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desejos individuais já sabidos previamente e que se sabe, também antecipadamente, como realizá-los. Nesse

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mover-se cotidiano dos homens a própria realidade objetiva, concreta, é apreendida sob o aspecto da familiaridade e

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da naturalidade, e assim a multiplicidade da realidade como totalidade concreta desvanece. Na cotidianidade a atividade e o

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modo de viver se transformam em um instintivo, subconsciente e inconsciente, irrefletido mecanismo de ação e de vida.

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As coisas, os homens, os movimentos, as ações, os objetos circundantes, o mundo, não são intuídos em sua originalidade e autenticidade,

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não se examinam nem se manifestam: simplesmente são; e como um inventário, como partes de um mundo conhecido são

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aceitos. A cotidianidade se manifesta como a noite da desatenção, da mecanicidade e da instintividade, ou então como

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mundo da familiaridade. […] Na cotidianidade tudo está ao alcance das mãos e as intenções de cada um são

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realizáveis. Por esta razão ela é o mundo da intimidade, da familiaridade e das ações banais.168 168 KOSIK, 1976, pp. 69-70.

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O indivíduo engagée reconhece a cotidianidade como a realidade efetiva na qual vive toda a humanidade. Os acontecimentos

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que fogem à rotina, que a desorganizam e quebram o ritmo “natural” do cotidiano reificado e fetichizado, são considerados

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história. Com isso, dá-se a divisão, na mente do homem-preocupado (divisão fundamentada no

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conhecimento por representação), entre cotidianidade e história, entre a banalidade diária, que “não interfere” no

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desenrolar da vida cotidiana – aliás, que se identifica com a própria vida cotidiana –, e os feitos históricos, capazes de destruir a

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cotidianidade e produzir a história. Com efeito, “a vida de cada dia”, diz Kosik, “torna-se problemática e se manifesta como vida 68

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de cada dia quando sofre uma interrupção”.169 Com tal interrupção, o homem-preocupado percebe que sua

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cotidianidade não era tão efetiva quanto ele pensava que fosse; ele se dá conta de que a ordem da sua rotina e a forma de conduzir sua

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vida não eram assim tão imutáveis e não estavam plenamente sob seu controle; ele percebe ainda que há outras coisas que

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podem alterar tanto sua percepção da realidade como seu modo de ser, coisas capazes de impor uma outra cotidianidade

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por meio da destruição do seu cotidiano pretensamente estabelecido e, desse modo, modificar a existência de muitos outros

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homens e mesmo de toda uma sociedade. Kosik diz o seguinte acerca do homem que pensa controlar plenamente sua vida cotidiana:

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169 KOSIK, 1976, p. 70. 170 Idem, 2003, p. 79 – La crise actuelle; grifos meus. O movimento (mouvement), o ritmo (rythme) e

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o tempo (temps) aos quais Kosik refere como “estranhos” (étrangers) e que determinam a cotidianidade de cada um de nós são

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instaurados, para Heidegger, pelo impessoal – “O impessoal, que não é nada determinado, mas que todos são, embora não como soma,

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prescreve o modo de ser da cotidianidade” (HEIDEGGER, 2009, p. 184). Il pense qu’il maîtrise tout, mais en réalité c’est lui qui est

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dominé par un mouvement, un rythme et un temps étrangers : il est entraîné par des processus dont la nature et l’essence lui

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échappent. Le libre jeu des forces du marché, tout comme la gestion de la réalité par un centre étatique et bureaucratique,

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les forces libres tout autant que les forces cachées, faisant la loi à l‟insu du marché et de la planification, de ces forces méprisantes et

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impitoyables qui utilisent l‟économie de marché et la tutelle de l‟État comme leurs formes, à l‟intérieur desquelles elles

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se meuvent et se multiplient.170 Com efeito, Kosik elabora, a respeito dessa destruição da cotidianidade, mais um exemplo muito

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esclarecedor. Segundo ele, a história pode ser comparada à guerra. Numa sociedade qualquer, contra a qual uma guerra é

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deflagrada, a violência impõe uma grande transformação à vida cotidiana de todos os indivíduos. Com a guerra, a cotidianidade

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dos indivíduos é completamente destruída – eles não mais têm que ir trabalhar, pois todos os lugares familiares onde o trabalho era

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realizado estão fechados; eles deixam de lado a busca diária natural pela consecução dos seus próprios fins, ou melhor, assumem como

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fim mais premente a salvação de suas próprias vidas; eles percebem que aquilo que sempre fora tão íntimo, tão próximo e que,

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por isso mesmo, aparentava funcionar de forma autônoma (tal como os meios de comunicação, a rede de energia elétrica, o

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sistema de abastecimento de água etc.), se mostra agora como algo extremamente fugaz, dependente de um estado de

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não-guerra para funcionar normalmente e que, se outrora eles o consideravam autônomo, era unicamente em razão da

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cotidianidade mesma na qual viviam. 69

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Se a cotidianidade consiste na distribuição da vida de milhões de pessoas segundo um regular e reiterado ritmo

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de trabalho, ação e vida, ocorre a destruição da cotidianidade quando milhões de pessoas são arrancadas a este ritmo. É a guerra

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destruindo a vida de cada dia. Ela afasta, à força, milhões de pessoas do seu ambiente, arranca-as do trabalho, retira-as de seu mundo

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familiar. É verdade que a guerra “vive” no horizonte, na memória e na experiência da vida de cada dia, mas se situa fora da cotidianidade.

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A guerra é a História. No choque entre a guerra (a História) e a cotidianidade, a cotidianidade é dominada: para milhões de

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pessoas cessa o usual ritmo de vida. Mas também a cotidianidade dominará a História: até a guerra tem sua própria

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cotidianidade. No choque da cotidianidade com a História (com a guerra), no qual a (primeira) cotidianidade foi destruída e a

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outra (a nova) cotidianidade ainda não se formou, porque a ordem da guerra ainda não se estabilizou bem como ritmo de ação e de

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vida – habitual, mecânico e instintivo – neste vácuo se descobre o caráter da cotidianidade e da História e, concomitanteme

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nte, se revela o seu relacionamento recíproco.171 171 KOSIK, 1976, p. 70; aspas e parênteses do autor, grifo meu.

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172 Idem, ibidem, p. 73. O cotidiano, para Kosik, corresponde à forma fenomênica por meio da qual a essência da

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realidade social se manifesta aos homens, ele é o “reservatório da História”; é por meio dos processos cotidianos, das relações

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travadas dia a dia, que os homens podem conhecer a estrutura interna dos fenômenos e processos sociais; é na e pela labuta

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cotidiana que a história dos homens é produzida – a história se realiza, acontece na cotidianidade; a vida cotidiana

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produz a história. É, pois, nesse sentido que Kosik, com razão, poderá dizer que separada da História, a cotidianidade é

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esvaziada e reduzida a uma absurda imutabilidade; enquanto a história, separada da cotidianidade, se transforma em

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um colosso absurdamente impotente, que irrompe como uma catástrofe sobre a cotidianidade, sem poder mudá-la, sem

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poder eliminar a banalidade nem lhe dar um conteúdo.172 Ora, para Kosik, o homem-preocupado é puro interesse material e

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engajamento meramente prático; ele busca o conforto e o prazer nas prateleiras e vitrines das lojas, busca a ascensão social

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no confronto ambicioso com outrem, persegue a realização de seus desejos e interesses como se fossem os mais sagrados

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desígnios; para ele a felicidade se exterioriza e se realiza no ato de comprar, de consumir, de ter algum reconhecimento social pelos seus

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talentos e feitos; para esse homem a realidade objetiva não poderia ser outra coisa senão uma incomensurável fonte de

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matérias e energias à disposição da humanidade, as quais devem ser convertidas em toda sorte de produtos e cacarecos. Kosik

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percebeu com sagacidade esse problema: 70

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Nous sommes seulement tombés au niveau du pur intérêt matériel à quoi la réalité s‟est réduite. Les gens ne vivent pas dans

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la réalité, ne savent pas ce qu‟est la réalité, mais sont attirés et détournés vers une pseudo-réalité, vers une nouvelle caverne au fond de

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laquelle on leur promet le confort et le bonheur.173 173 KOSIK, 2003, p. 139; grifos do autor. Esse problema da produção

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excessiva de produtos e quinquilharias é apresentado de forma quase hiperbólica, mas bastante profunda e realista, na

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animação intitulada WALL-E (2008), da Pixar, que retrata a Terra como um planeta-ferro-velho.

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174 Idem, 1976, p. 86; grifos meus. Para Kosik, a conexão da qual o homem-preocupado é parte integrante, e na qual

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“desempenha um papel objetivo, supra-individual”, embora não necessariamente se dê conta disso, é a sociedade

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convertida em sistema pelo fisicalismo positivista. A realidade social, em seu aspecto pseudoconcreto, é ordenada e configurada de

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acordo com as necessidades do sistema capitalista. Tais ordenação e configuração exigem – além da existência de homens-

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preocupados, que se engajam na consecução dos seus projetos particulares e, com isso, movimentam os processos econômicos, as

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engrenagens do sistema capitalista – outro tipo de homem, ou melhor, uma outra abstração do homem real, a saber, aquela

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abrangida pelo conceito de homo oeconomicus. B. O homo oeconomicus. § 15. Conceitos de sistema e de

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homo oeconomicus. Enquanto o conceito homem-preocupado designa o sujeito que se insere na realidade social,

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que nela age e intervém com o intuito de realizar seus desígnios ou fins particulares (a partir do que é possível supor uma postura

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mais ativa daquele sujeito), o conceito homo oeconomicus, por sua vez, designa o sujeito atravessado e condicionado por leis objetivas

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(o que supõe maior passividade do sujeito), leis que somente são possíveis de serem concebidas e pensadas a partir

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do momento em que a realidade social passa a ser apreendida sob um outro conceito: o de sistema. Vejamos o que Kosik pensa

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acerca desse conceito: O conceito de sistema é o projeto fundamental da ciência, sobre cuja base e sob o aparente caos

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dos fenômenos empíricos, (sic) se revelam determinadas leis. Antes que os fenômenos sejam examinados em sua

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empiricidade e faticidade, já existe a idéia de sistema como princípio inteligível que torna possível o seu conhecimento.

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As inumeráveis ações caóticas individuais, aparentemente espontâneas e imprevisíveis, são reduzidas a acasos de um movimento

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caracteristicamente típico e explicadas nesta base.174 Para Heidegger, conceitos fundamentais, como o de

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sistema, por exemplo, 71

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são determinações em que o âmbito de objetos, que serve de base a todos os objetos temáticos de uma ciência, é compreendido

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previamente de modo a guiar todas as pesquisas positivas. Trata-se, portanto, de conceitos que só alcançam verdadeira

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legitimidade e „fundamentação‟ mediante uma investigação prévia que corresponda propriamente ao respectivo âmbito. Ora, à

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medida que cada um desses âmbitos é extraído de um setor de entes, essa investigação prévia, produtora de

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conceitos fundamentais, significa uma interpretação desse ente na constituição fundamental de seu ser.175

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175 HEIDEGGER, 2009, p. 46; aspas do autor. 176 Idem, ibidem, pp. 451-452. 177 KOSIK, 2003, p. 22 – La

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dialectique de la morale et la morale de la dialectique. Temos exemplos de sistemas, segundo Kosik, em Diderot, em Hegel, em

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Mandeville – “Jacques le Fataliste et son maître chez Diderot, le maître et l‟esclave chez Hegel, la dame vaniteuse et le

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marchand rusé chez Mandeville, représentent des modèles historiques de rapports humains où la relation entre

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homme et homme découle de la position que chacun d‟eux occupe dans la totalité du système social” – idem, loco citado.

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178 Cf. idem, 1976, p. 37. Heidegger diz mais, acerca do papel desempenhado pelos conceitos fundamentais:

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Com a elaboração dos conceitos e fundamentos da compreensão de ser orientadora, determina-se a condução dos métodos, a

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estrutura da conceitualização, a possibilidade inerente de verdade e certeza, o modo de fundamentação e comprovação, o

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modo de obrigatoriedade e comunicação. O todo destes momentos constitui o pleno conceito existencial da ciência.176

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Esses trechos de Ser e Tempo permitem distinguir mais nitidamente um ponto, em relação a esta análise do conceito de

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sistema na economia política, a saber: se todo conceito fundamental, sendo extraído de uma área ou faceta específica da realidade,

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abrange uma determinada gama de entes, e se o conceito fundamental de sistema, sendo fruto de uma investigação prévia, deve

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expressar uma interpretação da constituição do ser dos entes econômicos, então, como se demonstrará a seguir, os economistas não

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alcançaram o ser daqueles entes. Mas, antes disso, deve-se indagar – como surge um sistema? Un système se crée déjà au contact de deux

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personnes. Ou, plus exactement, différents systèmes créent différents types de rapport entre les hommes qui sont exprimés dans leur forme

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élémentaire et peuvent être décrits par le contact de deux individus typicités.177 Ora, ao se debruçar sobre a realidade social

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como sobre um “conjunto de elementos que exercem entre si uma influência recíproca” (eis a definição de Kosik sobre o que seja um

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sistema),178 a ciência da economia política nela procura leis objetivas que possam dar a conhecer a estrutura interna

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tanto dos fenômenos e processos econômicos na esfera do Estado, quanto na esfera do indivíduo, analisando para

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isso as ações cujo fim seja auferir 72

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riquezas. Com efeito, tal ciência busca aquelas leis objetivas partindo de um pressuposto a posteriori aos próprios

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fenômenos estudados, isto é, sua concepção da realidade social como sistema – eis o fato; só que aquela modalidade

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discursiva (economia política) desconsidera esse fato, uma vez que, pelo caráter mesmo do conceito de sistema, restrinja

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toda e qualquer possibilidade de conhecimento e manifestação da essência, da estrutura dos fenômenos e processos estudados,

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àquilo que se enquadra na concepção de realidade abrangida pelo seu conceito de sistema – eis a ilusão. Assim, toda a

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multiplicidade e possibilidades de desenvolvimento da realidade concreta são subsumidas nas estreitas limitações de um

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método, de uma formalidade. A concreticidade da realidade como totalidade concreta dá lugar à pseudoconcreticidade na medida

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mesma em que aquela realidade é convertida em realidade física, em matéria-prima para o discurso científico, e apenas nesse

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sentido é analisada. Os entes, fenômenos e processos de ordem econômica não são então desvelados

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(ἀλήθεια) a partir de sua plena “empiricidade e faticidade”, isto é, não são considerados em si mesmos, naquilo que

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manifestam mediatamente, mas são tomados imediatamente, a partir de pré-concepções e representações do que sejam aquelas

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manifestações, de modo que não se atinge o ser, mas uma aparência do ser. O mesmo acontece ao se considerar o homem como

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homo oeconomicus. A efusão de diversidade que caracteriza a praxis é então restringida às atividades de ordem

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meramente econômica (a praxis é convertida em praxis utilitária); as pessoas são consideradas a partir de apenas

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uma das inúmeras facetas que exprimem o modo de ser dos seres humanos no mundo (são convertidas em homens econômicos) e

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são transformadas em objetos dotados de um significado específico dentro do sistema capitalista e

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para o discurso econômico, em sujeitos que se movem num mundo econômico ou em mercadorias que circulam em um mundo

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transfigurado em mercado mundial. Foi a constatação desse processo de degradação moral e espiritual dos

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indivíduos – processo necessário ao sistema capitalista, posto que só por meio dele esse sistema subsista – que penso ter

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conduzido Marx à afirmação de que […] quanto mais a ciência natural interveio de modo prático na vida humana mediante a

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indústria, reconfigurou-a e preparou a emancipação humana, tanto mais teve de completar, de maneira imediata, a

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desumanização.179 179 MARX, 2004, pp. 111-112; grifo do autor. Penso que a ciência natural intervém de modo prático na

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vida ao fornecer o modelo de sistema que por analogia é utilizado, por exemplo, na economia política.

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No pensamento de Kosik, o conceito homo oeconomicus designa um aspecto diferente daquele enfatizado na análise do

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sujeito socialmente engajado. O indivíduo ao qual 73

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aquele conceito refere é qualitativamente diferente do indivíduo referente ao conceito de homem-preocupado,

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uma vez que aquele toma um homem real por um objeto, enquanto esse último considera esse homem real a partir do seu modo de ser no

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mundo, da sua atividade concreta. O homem-preocupado representa a pura atividade de um indivíduo real pré-ocupado

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com o que fazer de sua existência empírico-social, engajado no encaminhamento de sua inserção nos processos e relações da sociedade, ao

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passo que sob o conceito de homem econômico busca-se entender o que é esse indivíduo engajado, ou, como diz Kosik,

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esse indivíduo “quer compreender a si mesmo abstraindo-se da própria subjetividade e se transformando

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num ser objetual”.180 Com efeito, segundo Kosik, o homo oeconomicus 180 KOSIK, 1976, p. 81.

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181 Idem, ibidem, pp. 81-82; grifos e parênteses meus. Os extremos expressados pelo homem-preocupado e pelo homo

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oeconomicus se fazem nítidos na medida em que sabemos que, para aquele, “a realidade não pode manifestar-se primordial e imediatamente

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como o conjunto das leis objetivas às quais ele está submetido” (idem, ibidem, p. 60), e, para este, a realidade já pode ser compreendida

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na forma daquele conjunto. já não é simples atividade engagée que cria o mundo (como o é o homem-preocupado)

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mas se insere como parte integrante em um todo supra-individual regido por leis. Mas, com tal inserção, se opera uma

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metamorfose do sujeito: o sujeito abstrai-se da própria subjetividade e se torna objeto e elemento do sistema. […] Este processo

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puramente intelectual da ciência, que transforma o homem em uma unidade abstrata, inserida em um sistema cientificamente

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analisável e matematicamente descritível, é um reflexo da real metamorfose do homem, produzida pelo capitalismo.181

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Enquanto o homem-preocupado cria seu mundo concreto, ainda que alienadamente, segundo as variadas formas

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de suas relações com a sociedade e com a natureza, o homem econômico é uma criação abstrata cuja finalidade é

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representar o indivíduo como elemento constituinte do sistema capitalista (todo supra-individual), sistema que

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possui suas próprias leis, por analogia com o mundo natural. O reflexo ao qual Kosik alude no trecho supracitado pode ser pensado da

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seguinte forma – se, no que tange aos modos de produção anteriores ao capitalista, os indivíduos dependiam unicamente de

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sua força de trabalho e dos meios de produção que eles mesmos criavam para auferir seus víveres, com o advento do

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modo capitalista de produção eles foram destituídos daqueles meios, que passaram a se concentrar nas mãos de poucos. Desde

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então, para obter seus meios de vida, os indivíduos viram-se forçados a vender sua força de trabalho ao capitalista, fato

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que marcou (e marca até hoje) a inserção do homem (preocupado) na sociedade do capital. É, pois, nesse sentido que Marx pôde

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dizer que o trabalhador “não tem apenas de lutar pelos seus meios de vida físicos, ele tem de lutar pela aquisição de trabalho, isto é,

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pela possibilidade, pelos meios de poder 74

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efetivar sua atividade”.182 A partir do instante em que os indivíduos passaram a depender de meios de produção que

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não eram os seus, mas de outrem, eles foram reduzidos, metamorfoseados, de produtores e criadores que eram, em meros elementos e

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peças constituintes de um sistema cujo desenvolvimento e perpetuação estão alicerçados nessa forma mesma de alienação

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material e espiritual. “Para viver, portanto, os não-proprietários são obrigados a pôr-se direta ou indiretamente a serviço dos

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proprietários, quer dizer, sob a sua dependência”.183 182 MARX, 2004, p. 25. 183 PECQUEUR,

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Constantin. Théorie nouvelle d’économie sociale et politique, ou études sur l’organisation des sociétés. Paris, 1842, p.

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409 apud MARX, 2004, p. 33. 184 KOSIK, 2003, p. 22 – La dialectique de la morale et la morale de la dialectique.

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185 Idem. Hasek and Kafka. In: Telos, nº. 23, 1975, p. 88, apud IRONS, 1979, p. 168. Para Kosik, a recém-nascida ciência da

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economia política, a fim de “descrever as leis” que regeriam a realidade social e o homo oeconomicus, transfigura

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homens em objetos e sociedade em mercado, assim procedendo com base em constatações verificadas na própria

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sociedade burguesa capitalista, que transforma pessoas em mercadorias. L‟économie est un système de relations où

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l‟homme se métamorphose constamment en « homme économique ». Une fois que, par ses actes, il entre dans des relations

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économiques, il est entraîné, tout à fait indépendamment de sa volonté et de sa conscience, dans certains rapports et lois, où il

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fonctionne en tant que homo oeconomicus. L‟économie est un système qui a tendance à transformer l‟homme en homme

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économique. Dans l‟économie l‟homme n‟est actif que dans la mesure où elle est active, c‟est-à-dire où elle fait de l‟homme

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une certaine abstraction : elle stimule et souligne certaines de ses propriétés, elle en néglige d‟autres qui sont inutiles pour son

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foctionnement.184 Kosik contesta o poder e a “legitimidade” dessa transformação ao declarar que o “man is

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irreducible to an object, he is more than a system”.185 O que percebo claramente em tal transformação ou redução é o

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fato de que o homem é desconsiderado em si mesmo sem nenhuma dificuldade, ou, dito de outro modo, ele só passa a ser

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considerado como algo de valor na medida em que é convertido em objeto. § 16. Representação científica da

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realidade objetiva como sistema econômico. Segundo Kosik, o contexto de surgimento da ciência da economia

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política está entrelaçado com o processo de mistificação do homem e da sociedade promovido pelo sistema capitalista. Para

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que a economia como ciência possa surgir “[…] cumpre encontrar o ponto de inversão no qual o individual se transforma no

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geral e o que é voluntário se submete 75

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a uma lei”,186 isto é, cumpre encontrar o ponto em que indivíduos são convertidos em objetos, em que a sociedade é convertida em

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realidade física, em que a sistematização do mundo capitalista possa ser equiparada a uma ordem natural. Esse ponto de

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inversão é nada menos que a própria ciência, cujo método é capaz de revelar o que há de universal por trás de cada fenômeno

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particular; o individual designa as pessoas ou qualquer outro fenômeno cientificamente investigado, enquanto o

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voluntário, as manifestações fenomênicas em si mesmas, entre elas as ações humanas. Para Kosik, a economia só pode surgir

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como ciência em uma conjuntura histórica na qual a própria estrutura material do mundo humano-social se encarregue de

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inverter, de mistificar homens e mundo. Acerca da gênese histórica dessa ciência, Kosik diz:

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186 KOSIK, 1976, p. 82; grifo do autor. 187 Idem, ibidem, p. 82; grifos do autor; a citação dentro da citação é dos Grundrisse, de

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Marx, e é do autor. Essa fusão do natural com o social, presente na analogia da sociedade como sistema físico, é bastante problemática,

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merecendo análise mais detalhada. 188 Idem, ibidem, p. 83. Marx escreve algumas palavras que penso captarem

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bem o sentido daquela segunda característica: “[…] a elevação do salário impele ao sobretrabalho entre os trabalhadores.

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Quanto mais eles querem ganhar, tanto mais têm de sacrificar o seu tempo e executar trabalho de escravos, desfazendo-se

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de toda a liberdade a serviço da avareza” – MARX, 2004, p. 26; grifo meu. 189 KOSIK, 1976, p. 82.

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O início da economia política como ciência remonta à época em que o indivíduo, o voluntário e o casual assumem o aspecto de

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algo necessário sujeito a leis; e em que “o movimento social como um todo desenvolvido e levado à prática pela atividade

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consciente e pela realização dos fins particulares dos indivíduos se transforma em algo independente daqueles mesmos

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indivíduos; quando a recíproca relação social dos indivíduos se transforma em um poder autônomo superior aos

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indivíduos, que é representado como uma força natural, como acaso ou qualquer outra”. Da automatização do movimento

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social nasce – como de algo originário, dado e inderivado –, a ciência da economia política, e se avoca a tarefa de descrever as leis

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daquele movimento. O pressuposto oculto e inconsciente da ciência dos fenômenos econômicos é a ideia de sistema,

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isto é, de um determinado todo diferenciado, cujas leis podem ser investigadas e fixadas de maneira análoga às leis

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da natureza física.187 Para Kosik, o homo oeconomicus é uma abstração do papel real que os indivíduos reais

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têm dentro do sistema capitalista e da realidade efetiva, isto é, não-sistematizada pela economia política; ele

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representa o sujeito ideal do e para o mundo capitalista, sujeito que deve ser dotado de características peculiares, que contribuam para

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a manutenção das ordens material e espiritual vigentes, para o bom funcionamento de todo o sistema. São

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características imprescindíveis ao homo oeconomicus, segundo Kosik, “a racionalidade do comportamento e o

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egoísmo”.188 A propósito, Kosik observa, ao dizer que “a economia, como ciência, nasce só depois do capitalismo”,189 que o

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capitalismo como sistema 76

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precede, é historicamente anterior ao surgimento da economia política clássica e, desse modo, é também anterior à representação

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científica da realidade objetiva como sistema econômico: A teoria da sociedade como sistema só surge onde a sociedade

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já é, ela própria, um sistema; onde ela não só é suficientemente diferenciada, mas onde a diferenciação conduz a uma

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dependência universal e à autonomização, (sic) dessa dependência e conexão; onde, portanto, a própria realidade se constitui

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como um todo articulado. Neste sentido, o primeiro sistema é o capitalismo.190 190 KOSIK, 1976, p. 83; grifo do autor.

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191 ARISTÓTELES. Da República, Livro I, cap. IX, Ed. I. Bekkeri, Oxonii, 1837, Obras, vol. X, pp. 13 e seg. apud MARX,

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1983, p. 63; grifos meus. Aquilo que Aristóteles chama de coisa em si, no trecho supracitado, não é mais que o bem, o objeto, a

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sandália em sua coisidade. Penso ser possível depreender desse trecho que a teoria da sociedade como sistema só é

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possível em virtude da ciência da economia política (no seio da qual ela é engendrada) constituir-se em um discurso

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suficientemente diferenciado dos demais, e isso precisamente pelo fato de a tal discurso ser atribuído o dístico de científico. Ser

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rotulado de “científico”, em sociedades como a nossa, é fator suficiente para distinguir e singularizar um discurso perante qualquer outro,

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“científico” ou não. A anterioridade do sistema capitalista permite pensar ainda que os indivíduos já tinham noções

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acerca das relações econômicas (posto que nelas vivessem e as pensassem de tantas formas quantas fossem as cabeças que

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se dispusessem a isso) antes mesmo da criação de qualquer discurso para se falar delas. Isso implica dizer que a

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importância da economia nas vidas dos homens não era (e continua a não ser) devida à existência dessas ou daquelas formações

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discursivas, mas à hegemonia do modo de produção capitalista nas sociedades burguesas; isso implica ainda poder pensar que

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os fenômenos econômicos em geral já eram experienciados e compreendidos de alguma forma pelos homens desde as primeiras

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relações de escambo. O próprio Estagirita já falava em relações de ordem econômica e, mais

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especificamente, em valor de uso e valor de troca. Porque todo bem pode servir para dois usos […] Um é próprio à coisa em si, mas não o outro;

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assim, uma sandália pode servir como calçado, mas também como objeto de troca. Trata-se, nos dois casos, de valores de uso

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da sandália, porque aquele que troca a sandália por aquilo de que necessita, alimentos, por exemplo, serve-se também da

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sandália. Contudo, não é este o seu uso natural. Pois que a sandália não foi feita para troca. O mesmo se passa com outros bens.191

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A dependência universal da qual nos fala Kosik se expressa na dependência que todos temos do dinheiro, das máquinas, instrumentos e

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tecnologias que “põem em movimento” o mundo prático-utilitário em que vivemos; se expressa na dependência dos padrões segundo

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os quais vivemos e pensamos a vida e o que é viver, e isso ao mesmo tempo 77

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em que não percebemos o por quê de não vivermos de outra maneira. “L‟homme se meut dans cette confusion comme dans un

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milieu naturel et normal et il ne lui vient pas à l‟idée que son rapport fondamental à ce qui est s‟est inversé et perverti”.192 A

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partir do momento em que os homens são considerados como objetos (homo oeconomicus), deixando-se de lado as

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especificidades do modo de ser deles, a economia – sob a égide do pensamento formal e calculador do fisicalismo

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positivista – põe o homem à parte, como um fenômeno independente da realidade social, e isola, at the same time, o mundo humano-

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social como um mundo incriado e que existe por si mesmo. 192 KOSIK, 2003, p. 86 – La crise actuelle. 193 Idem, 1976, p. 38.

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194 “A física social vive na ilusão antimetafísica (sic): como doutrina do homem enquanto objeto e da sua

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manipulação, ela não pode nem substituir a metafísica (filosofia), nem resolver os problemas metafísicos (filosóficos)” –

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Idem, ibidem, p. 87, nota 19; grifos e parênteses do autor. 195 J. S. Mill sublinhou e criticou essa pretensão de

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dominação por parte do positivismo: “[…] alguns dos reformadores modernos que se opuseram fortemente às religiões do

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passado não ficaram de modo algum atrás § 17. Do uso da analogia na investigação da natureza e da sociedade.

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Kosik, contudo, não se aferra apenas à crítica do positivismo; ele também reconhece seu aspecto positivo, o que pode ser percebido no

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seguinte trecho da Dialética: O positivismo efetuou, no campo da filosofia, uma limpeza em grande estilo, extirpando os

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resíduos da concepção teológica da realidade entendida como hierarquia ordenada segundo os graus de

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perfeição; e, como um perfeito nivelador, reduziu toda a realidade à realidade física. A unilateralidade

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da concepção cientifista (sic) da filosofia não nos deve fazer esquecer os méritos da obra destrutiva e desmistificadora

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do positivismo moderno.193 Com efeito, penso que o que Kosik critica na concepção cientificista da sociedade como sistema seja o

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fato de a ciência tomar tudo, inclusive os próprios homens, como objetos de estudo (o que deve ser feito); só que isso

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acontece desconsiderando as peculiaridades que caracterizam e distinguem os homens de todos os demais objetos por ela

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analisados (o que não deve ser feito). Ao mesmo tempo em que considera os seres humanos e a sociedade como objetos

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que, por analogia com as ciências da natureza, podem ser tomados como realidade física – o que se iniciou com o “Sr. Comte” e

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sua ciência denominada física social194 –, o discurso científico também se auto-proclama e se impõe como o único discurso

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válido e capaz de perscrutar e conhecer não somente o ser humano e suas diversas manifestações, mas todo e qualquer

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fenômeno. Precisamente por isso tal discurso desemboca no extremo daquilo que pretendia superar nos pensamentos

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teológico e filosófico.195 Para Kosik, a concepção da 78

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das igrejas ou seitas na reivindicação do direito de dominação espiritual – em particular, o Sr. Comte, cujo sistema social,

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tal como exposto em seu Système de Politique Positive, visa a estabelecer (embora se servindo de recursos morais, em lugar de

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legais) um despotismo da sociedade sobre o indivíduo que ultrapassa tudo quanto contemplou o ideal político dos mais rígidos

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disciplinadores entre os antigos filósofos” – MILL, 2000, pp. 23-24; parênteses do autor. 196 KOSIK, 1976, p. 38;

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parênteses do autor, grifos meus. 197 Kant assinalou distintamente o limite entre as esferas do natural e do

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social no âmbito da realidade. Segundo ele, “[…] tanto a Filosofia natural como a Filosofia moral podem cada uma ter a sua parte

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empírica, porque aquela tem de determinar as leis da natureza como objecto da experiência, esta porém as da vontade do homem enquanto

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ela é afectada pela natureza; quer dizer, as primeiras como leis segundo as quais tudo acontece, as segundas como leis segundo as

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quais tudo deve acontecer, mas ponderando também as condições sob as quais muitas vezes não acontece o que devia acontecer”

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– KANT, 2008, pp. 13-14; grifos meus. No mundo natural, tudo acontece segundo leis naturais; no mundo social, tudo deve

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acontecer segundo as convenções humanas, dentre as quais a moralidade. sociedade como sistema é válida – a dialética

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também concebe a realidade como um sistema – só que se deve ter cuidado para não passar da pura abstração metafísica ou teológica ao

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formalismo do cálculo matemático (fisicalismo positivista), e vice-versa, preocupação manifestada por

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Kosik no seguinte trecho: […] a realidade (entendida como sistema) é examinada do ponto de vista da complexidade da sua estrutura

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interna. Mas só a concepção dialética do aspecto ontológico e gnosiológico da estrutura e do sistema permite chegar a uma

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solução positiva e evitar os extremos do formalismo matemático, de um lado, e do ontologismo metafísico, de outro. As

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analogias estruturais entre as várias formas das relações humanas (linguagem, economia, laços de parentesco etc.) só podem

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conduzir a uma mais profunda compreensão e ilustração da realidade social sob condição de que se respeite tanto a analogia estrutural

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quanto a especificidade dos fenômenos em causa.196 Ora, para Kosik, a ciência da economia política, ao se fundamentar na

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forçada analogia entre a realidade social e a concepção de realidade formulada pela ciência da física, não respeita nem a analogia

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estrutural nem a especificidade dos fenômenos que pretende analisar. A estrutura interna subjacente aos fenômenos observados pela

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física é bastante diferente da que subjaz nos fenômenos sociais. Ali, há que se considerar a existência de leis objetivas; tais

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leis, que determinam aqueles fenômenos, são a priori, se impõem aos homens independentemente da sua

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vontade – são propriamente leis universais da natureza. No que tange ao mundo social, não há como ver nele somente o resultado da

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ação de leis objetivas que o determinem desta ou daquela maneira; ele é também, e sobretudo, produto da ação de homens

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concretos, os quais engendram os fenômenos e processos sociais de inumeráveis modos e a eles atribuem sentidos

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igualmente variados. Se os homens e o mundo humano-social fossem determinados tão-somente por leis objetivas, tal qual o mundo

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natural, então não haveria que se falar em dever ser no que tange às ações dos indivíduos, uma vez que tais ações seriam determinadas a

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priori por leis objetivas da natureza.197 Se a realidade social e, 79

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por isso mesmo, também os homens e suas ações fossem condicionados unicamente por leis universais da natureza, então não

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haveria espaço para desvios, isto é, para as diversas manifestações e atividades que exprimem a subjetividade humana como

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individualidade, e muito mal teria agido a natureza ao dotar o homem com a subjetividade, posto que essa sempre entraria em conflito com

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a razão, isto é, com a necessidade objetiva das leis naturais. Para Kosik, a analogia entre a forma como são sistematizados e

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conhecidos os fenômenos físicos e a forma pela qual é sistematizada e conhecida a realidade social tem que, necessariamente,

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partir da consideração de que os homens são objetos destituídos de razão e de vontade, como seres simplesmente

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dados que sofrem a ação de forças exteriores e que, assim, não podem determinar-se a si mesmos, uma vez que seja dessa forma que

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os outros animais, os objetos e coisas naturais se encontrem frente às leis da natureza. Com efeito, para Kosik, dessa

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redução resulta a descaracterização do especificamente humano, a saber, a variedade e a contradição, características inerentes à

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praxis e ao pensamento humanos.198 Os objetos e coisas naturais não são, obviamente, dotados de subjetividade, nem da

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capacidade de agir por si mesmos e segundo seus desígnios. Logo, considerar homens e sociedade como fenômenos

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passíveis de serem descritos e conhecidos segundo critérios puramente físicos é considerar os seres humanos

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nada mais que fenômenos exclusivamente físicos, o que implica em desconsiderar o especificamente humano, o que resulta, como

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talvez diria Kosik, em cair no extremo do formalismo matemático. 198 Para Kosik, “[…] a plenitude do homem moderno

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consiste na unidade da variedade e da contradição” – KOSIK, 1976, pp. 89-90; grifos meus. Partindo dessa afirmação, é possível pensar

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que Kosik não somente conhecia como também se aproximava em alguma medida do pensameto de Wilhelm von Humboldt, para

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quem, segundo Mill, os dois requisitos necessários ao livre desenvolvimento da individualidade são “„liberdade

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e variedade de situações‟, de cuja união emerge „o vigor individual e a múltipla diversidade‟, que se combinam para

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produzir „originalidade‟” – MILL, 2000, pp. 87-88; aspas do autor, grifos meus. Essa discussão em torno da originalidade e

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da individualidade são importantes para entendermos o processo de criação de um ethos autêntico, o qual só se

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torna possível a partir do momento em que o indivíduo começa a destruir a pseudoconcreticidade.

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§ 18. Formalismo matemático e ontologismo metafísico. Transição da investigação acerca do mundo da

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pseudoconcreticidade para a investigação das formas de efetivação da sua destruição. O que investiguei até agora acerca dos

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conceitos de homem-preocupado e homo oeconomicus no pensamento de Kosik está relacionado ao formalismo

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matemático, à economia política como ciência, especificamente, e, portanto, ao pensamento científico cientificista em

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sua generalidade. Apesar de, nos textos investigados, Kosik não referir novamente ao ontologismo metafísico, isto

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é, não desenvolver nenhuma consideração acerca 80

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dele, penso que ele esteja relacionado ao pensamento que considera a realidade como criação, desdobramento ou conseqüência

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de ideias abstratas. O próprio Kosik dá margem a essa interpretação ao afirmar que o mérito do positivismo consiste no fato

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dele ter expurgado os resíduos de uma filosofia que ainda via a realidade segundo graus de perfeição, graus que são

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nada menos que postulados metafísicos.199 Considerar a realidade social como um produto ou manifestação sensível do

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desenvolvimento abstrato de ideias ou entidades metafísicas, tais como o espírito absoluto, deus, a providência, a mão invisível

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etc., ou como mera congérie de fenômenos por trás dos quais podem ser encontradas leis universais, é permanecer no círculo mais

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profundo do mundo pseudoconcreto. Assim como a ciência cientificista, também a filosofia pode apreender

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pseudoconcretamente a realidade, e isso na medida em que lança mão daquelas ideias, entidades, princípios e postulados para

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fundamentar algum discurso sobre a realidade. Uma tal filosofia não poderia se efetivar, posto que, para ela, a efetividade está

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completamente assentada na realidade abstrata, não no plano da vida real, material; por isso ela não se presta a formar homens

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reais, sujeitos críticos efetivos, isto é, indivíduos empenhados em transformar a realidade social e não só os pensamentos;

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ela se contenta em formar “críticos críticos”, contestadores e transformadores de ideias, revolucionários do pensamento,

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homens estranhados de si mesmos.200 Essa filosofia não poderia ser tão bem caracterizada por outro adjetivo que não

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fosse o de inútil – inutilidade que deriva de sua recusa em tomar parte nos assuntos mundanos, pela sua não preocupação

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com a discussão em torno de questões práticas reais, pelo seu não-acontecimento, pelo privilégio que concede ao momento do

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pensar puro em detrimento do momento da ação, a qual é o único meio para transformar radicalmente a realidade e o próprio

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pensamento. Essa filosofia não alcança a estrutura interna dos fenômenos e processos da realidade, apesar de traçar seus próprios desvios,

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percorrê-los e acreditar que chegou ao lugar pretendido; em lugar daquilo que é, não 199 Postulado é um princípio reconhecido mas

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não demonstrado. Exemplos de postulados temos em Kant – “Quais são os fins que são simultaneamente deveres? São: a

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perfeição própria – a felicidade alheia” (KANT, Immanuel. A Metafísica dos Costumes. Lisboa: Calouste Gulbenkian,

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2005, p. 291, 385). Ora, por que a minha própria perfeição é simultaneamente um fim e um dever para mim? Por quais

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motivos tenho eu que impor a mim mesmo como objetivo e como dever a promoção da felicidade de outrem? Kant não responde a

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essas perguntas. Todavia, aqueles postulados são muito importantes para a compreensão do por quê das máximas do indivíduo que

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não quer desenvolver seus talentos e do rico avarento não poderem ser universalizadas, mesmo depois de terem resistido à

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segunda formulação do imperativo categórico (“age como se a máxima da tua ação se devesse tornar, pela tua vontade, em lei

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universal da natureza” – KANT, 2008, p.62). Somente tendo em vista tais postulados é que as máximas daqueles indivíduos

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podem ser desconsideradas. 200 “O homem estranhado de si mesmo é também o pensador estranhado de sua essência,

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isto é, da essência natural e humana. Seus pensamentos são, por isso, espíritos fixos habitando fora da natureza e do homem” –

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MARX, 2004, p. 135. Feuerbach, antes de Marx, percebeu esse problema no idealismo alemão: “O idealismo, quando não tem

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na base um realismo vivo, torna-se um sistema tão vazio e abstracto quanto o de Leibniz, o de Espinosa ou qualquer outro

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sistema dogmático” – FEUERBACH, 2008, p. 105; grifos do autor. Para uma visão mais abrangente da crítica de Marx ao

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idealismo, particularmente ao hegeliano e ao dos jovens hegelianos, cf. a parte que versa sobre a Crítica da dialética e da filosofia

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hegelianas em geral (Marx, 2004, pp. 115-137). 81

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divisa nada além de vultos. Portanto, filosofia e ciência, duas criações humanas através das quais se pode conhecer

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conceitualmente a realidade, podem, apesar disso, se constituir em meios reais de estranhamento (alienação), ao enveredarem por

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caminhos que conduzam aos extremos do ontologismo metafísico e do formalismo matemático. Concluída esta exposição acerca

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da análise kosikiana do mundo da pseudoconcreticidade, passo a discorrer sobre a destruição desta. 82

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IV. A destruição da pseudoconcreticidade § 19. A destruição como método dialético-crítico

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ou o outro lado da dialética. Como vimos até agora, na Dialética, Kosik põe em relevo a pseudoconcreticidade do mundo contemporâneo,

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fazendo ao mesmo tempo uma crítica desse mundo. Todavia, Kosik não se limita a denunciar e a criticar; ele chega a elaborar,

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assim como fez Descartes, verdadeiras regras gerais de conduta, modos de efetuar aquilo que denominou de destruição da pseudoconcretici

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dade. Contudo, Kosik não deixa claro o que sejam tais modos, uma vez que não desenvolva qualquer tipo de discussão sobre

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eles; ou, em um sentido mais prático, Kosik não nos dá exemplos de como os indivíduos devem agir para destruir a

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pseudoconcreticidade no seu cotidiano.201 Ele nos permite apenas especular acerca dos possíveis desdobramentos práticos

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decorrentes da praxis fundamentada naqueles modos, entrever questões e problemas éticos. Não penso que isso

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constitua propriamente um problema no discurso de Kosik, posto que acredite que a maior parte do seu interesse – na Dialética –

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reside em questões epistemológicas. Proponho-me então, neste capítulo, tecer algumas considerações sobre os modos

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de efetuação disso que Kosik chamou de destruição da pseudoconcreticidade. 201 Devo frisar que, nos livros e artigos que

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utilizei nesta pesquisa, Kosik não aprofunda nenhuma discussão sobre aqueles modos. Todavia, desconheço se

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ele o faz em outros textos. 202 KOSIK, 1976, p. 19; grifos meus. A primeira coisa que deve ser investigada é o que é a

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destruição da pseudoconcreticidade. Segundo Kosik, essa destruição é “o processo de criação da realidade concreta e a

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visão da realidade, da sua concreticidade”.202 Ante o exposto, acredito ser possível dizer que a destruição se manifesta ao

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mesmo tempo como criação (de novas verdades, novas práticas, novas estruturas político-sociais, novos sentidos e valores, novos

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modos de ser etc.) e como percepção e conhecimento da estrutura do mundo humano-social na sua essência. Para que tal

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destruição possa ser efetiva, possa engendrar transformações na sociedade – uma vez que seja esse seu escopo –, cumpre

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primeiramente ter uma visão do mundo social, isto é, saber como está estruturada a própria sociedade, como são engendrados

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os fenômenos e processos sociais, e isso implica conhecer sua estrutura interna, conhecimento esse conceitual, não

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representacional. Segundo Kosik, […] a destruição da pseudoconcreticidade como método dialético-crítico, graças à qual o

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pensamento dissolve as criações fetichistas do mundo reificado e ideal, (sic) 83

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para alcançar a sua realidade, é apenas o outro lado da dialética, como método revolucionário de

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transformação da realidade.203 203 KOSIK, 1976, p. 18; grifos meus. 204 Idem, ibidem, p. 15-16; aspas do autor. Ao contrário do

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que pensa Aristóteles, para quem “dialéticos e sofistas ostentam a aparência do filósofo” (ARISTÓTELES. Metafísica,

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1004b15. São Paulo: Edipro, 2006, p. 106; grifo meu), penso que os dialéticos possam ser filosófos de fato; prova disso

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temos ao estudar os pensamentos de filósofos como Hegel, Marx e o próprio Kosik. 205 Cf. nota 64. 206 KOSIK, 1976, p. 230.

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207 “Os filósofos apenas interpretaram o mundo diferentemente, importa é transformá-lo” – MARX, Karl. Teses sobre

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Feuerbach. In: A Ideologia Alemã, 2007, p. 29. As criações fetichistas e ideais de um mundo reificado engendram

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rotinas acriticamente vividas, que têm no pensamento por representação o único meio de conhecimento da realidade, e se

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manifestam na praxis fetichista do homem-preocupado e na coisificação do homem em homo oeconomicus, assim como na

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existência autônoma dos produtos e criações humanas. Com efeito, como o próprio nome sugere, pode-se perceber que o

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escopo daquela destruição é romper com a pseudoconcreticidade. Mas, se tal destruição é um método dialético-crítico, o que devemos

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entender por isso? E em que medida ela é apenas o outro lado da dialética? Para responder a essas questões temos que saber

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o que Kosik entende que seja a dialética. Segundo ele, “a dialética é o pensamento crítico que se propõe a compreender a

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„coisa em si‟ e sistematicamente se pergunta como é possível chegar à compreensão da realidade”.204 Pode-se depreender

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desse trecho que a dialética seja o pensamento ou método crítico que visa conhecer tanto a realidade na sua essência (sempre uma essência

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materialmente explicada,205 concebendo-a como produto e criação humana e, assim, tendo no homem a causa ou raiz do mundo humano-

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social, que está sujeito ao devir histórico) como as formas fenomênicas que nesse mundo se manifestam, isto é, os diversos processos e

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relações sociais como expressões do modo de ser (ethos) dos homens; é o pensamento que, partindo da investigação dos fenômenos a fim

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de neles perceber o desvelamento (ἀλήθεια) do ser, objetiva conhecer a realidade em si mesma, suas leis internas; é,

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enfim, o pensamento que investiga “o homem e o seu lugar no universo”.206 Desse ângulo podemos perceber apenas

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um lado da dialética – aquele que se expressa como gnosiologia. O outro lado da dialética, que corresponde aqui à destruição

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da pseudoconcreticidade, está voltado para a praxis objetiva, para o agir do homem no mundo, e, através desse

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agir, busca a transformação radical das condições de existência humanas e, em última instância, a transformação daquele mundo

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mesmo. Esse interesse prático para o qual se volta a dialética foi percebido claramente por Marx – que o anunciou na sua décima primeira

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tese sobre Feuerbach,207 e também por Kosik, 84

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que afirmou que “para que o mundo possa ser explicado „criticamente‟, cumpre que a explicação mesma se coloque no

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terreno da „praxis‟ revolucionária”.208 Destarte, a destruição da pseudoconcreticidade é um método, um caminho que,

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alicerçado na crítica, no conhecimento conceitual da realidade, deve ser percorrido para alcançar determinados fins, a saber, a

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criação de modos de ser autênticos, que se fundamentam no conhecimento da realidade social como criação e manifestação do

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homem no mundo e, por isso, como algo que pode ser transformado, a qualquer tempo, de acordo com a vontade dos homens.

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208 KOSIK, 1976, p. 18; aspas do autor. Penso que Foucault também, através da noção de epiméleia heautoû,

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elaborou uma filosofia prática capaz de ser colocada “no terreno da praxis revolucionária”. 209 Idem, ibidem, p. 19; aspas do autor.

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Com efeito, cabe agora outra questão – quais são, então, os modos de efetuação da destruição da pseudoconcretici

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dade?, ao que Kosik responde: […] a destruição da pseudoconcreticidade se efetua como: 1) crítica revolucionária da praxis da

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humanidade, que coincide com o devenir humano do homem, com o processo de “humanização do homem”, do qual as

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revoluções sociais constituem as etapas-chave; 2) pensamento dialético, que dissolve o mundo fetichizado da

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aparência para atingir a realidade e a “coisa em si”; 3) realizações da verdade e criação da realidade humana em um

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processo ontogenético, visto que para cada indivíduo humano o mundo da verdade é, ao mesmo tempo, uma sua criação

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própria, espiritual, como indivíduo social-histórico.209 Feitas essas considerações preliminares, passo à consideração de

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cada um desses modos de destruição da pseudoconcreticidade, com a ressalva de que não seguirei a mesma ordem a partir da qual

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Kosik os apresenta. § 20. Pensamento dialético ou crítico. No decorrer desta investigação

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pude perceber que, em Kosik, a expressão pensamento dialético comporta a mesma significação que possui a

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expressão pensamento crítico. A fim de evitar qualquer mal entendido, optei por utilizar somente essa última expressão; o

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próprio Kosik utiliza às vezes uma, outras vezes a outra; além disso, aquela última me parece mais adequada ao tratamento do

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tema aqui em questão, uma vez que se verifica seu uso em outras pesquisas que tratam do problema da alienação em

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geral, tal como em Marx e em Foucault. Vejamos, então, o que Kosik entende por pensamento crítico:

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La pensée critique n‟entend pas échanger des phrases inefficaces contre des phrases plus modernes, ni

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focaliser l‟attention sur les effets. Son but est d‟aller à l’essentiel 85

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et de découvrir les fondements à partir desquels notre action et notre pensée prennent leur essor. Elle entend montrer que dans ces

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fondements tout n’est pas en ordre.210 210 KOSIK, 2003, p. 52 – Langue, Pouvoir, Intelligentsia; grifos meus.

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211 Acerca desse silogismo cf. HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Fenomenologia do Espírito. Petrópolis:

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Vozes, 2007, p. 148, § 190. Para Kosik, o pensamento crítico não é somente o oposto do conhecimento por

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representação; ele tem um objetivo claro, uma função precisa dentro do projeto de destruição da pseudoconcreticidade. Como

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consta da citação acima, “son but est d‟aller à l’essentiel et de découvrir les fondements à partir desquels notre action et notre pensée

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prennent leur essor”. Ora, como vimos nos dois capítulos anteriores, o homem-preocupado não conhece os fundamentos das

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suas ações e dos seus pensamentos, isto é, não conhece como se dá o desenvolvimento desses; ele não sabe que os

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fundamentos do seu pensar e do seu agir encontram-se fora dele, num outro, e por isso mesmo ele desconhece ainda o fato de

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se encontrar no lugar do escravo nas suas relações cotidianas, as quais são travadas com senhores que ele pensa não ter ou que não sabe

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que tem, uma vez que se considere senhor de si mesmo, e isso precisamente por desconhecer “o silogismo da dominação”.211

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No que tange ao homo oeconomicus, esse não pode corresponder a um homem real, uma vez que expressa a coisificação dos

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homens reais pelo economista, ao passo que o homem-preocupado, ainda que em alienação, refere ao homem real e seu modo de ser

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no mundo capitalista. Portanto, o cientista é que, no formalismo do seu fazer cintificista, que reduz a realidade a um sistema e o

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homem a objeto fetichizado do saber da economia, não vai ao essencial, não produz um conhecimento verdadeiro, embora ele

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conheça os fundamentos da sua ciência, ainda que voluntariamente ignore a patente inapropriação da representação da sociedade como

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sistema econômico. Com efeito, para Kosik, é precisamente nas dificuldades de perceber o processo no qual o pensamento e

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a ação vão se constituindo e adquirindo alguma forma, dificuldades pois de ir aos fundamentos das coisas, dos processos,

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fenômenos e relações sociais, que reside a constatação de que nada está em ordem no mundo contemporâneo. Por isso Kosik

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pôde afirmar, com muita distinção, que o pensamento crítico pretende mostrar, no que tange ao pensamento e à ação dos homens

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neste mundo concebido como sistema econômico global, as fundações do “tout n’est pas en ordre”.

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Essa ausência de ordem traz consigo um perigo, uma ameaça ao pleno desenvolvimento da individualidade, e, por

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conseguinte, ao desenvolvimento do pensamento e do modo de ser dos homens, que se expressam nas suas ações. Esse perigo consiste em 86

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transformar homens em acessórios, criadores em criaturas, em mantê-los num estado de dependência. Por isso,

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[…] la pensée critique voit l‟époque moderne comme une époque de danger, où s‟impose, de façon sans cesse plus arrogante,

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la tendance visant à réduire l‟homme à l‟état d‟accessoire d‟un système caractérisé uniquement par son fonctionnement,

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du système-machine. Révélant la menace, la pensée critique incite l’homme à se libérer de cette

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dépendance indigne.212 212 KOSIK, 2003, p. 222 – Sept escales d’automne; grifos meus. 213 Essa proposta de

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troca de pensamentos e noções por outros pensamentos e noções foi alvo da chacota filosófica de Marx e Engels,

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que a aniquilaram completamente com o exemplo do homem galhardo: “Um homem galhardo um dia imaginou que os seres

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humanos apenas se afogavam na água porque estariam possuídos pelo pensamento da gravidade. Caso arrancassem essa noção de

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suas cabeças, por exemplo esclarecendo a mesma como sendo uma noção supersticiosa, religiosa, eles seriam capazes

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de superar toda e qualquer ameaça representada pela água. Durante sua vida inteira ele combateu a ilusão da gravidade, de

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cujas consequências daninhas qualquer estatística lhe fornecia novas e numerosas provas. O homem galhardo

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correspondia ao tipo dos novos filósofos revolucionários alemães (isto é, aos jovens hegelianos)” – MARX e ENGELS, 2007,

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p. 35; grifos dos autores, parênteses meus. 214 SÁNCHEZ VÁZQUEZ, Adolfo. Filosofia da práxis. São Paulo: Ed.

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Expressão Popular, 2007, p. 111. Essa perspectiva kosikiana de crítica segue num sentido bastante diferente

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daquele a ela atribuído, por exemplo, pelos jovens hegelianos. Para esses, assim como para Kosik, a crítica está

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comprometida com a transformação da sociedade e do homem. Não obstante, eles acreditavam que esses poderiam ser

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transformados por intermédio da transformação do tão-só pensamento, da consciência, das ideias e noções que os homens

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têm da realidade que os cerca. Assim, para que a sociedade possa ser transformada – pensa a esquerda hegeliana – cumpre trocar as

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ideias e noções que os homens têm atualmente por outras ideias e noções melhores que aquelas, o que caracteriza uma verdadeira

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rebelião “contra o reinado dos pensamentos”.213 Tal proposta de crítica, é evidente, não transforma a realidade

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objetiva, a sociedade, mas apenas, e quando muito, a abstrata, o pensamento, permanecendo como um resíduo idealista

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na filosofia da esquerda hegeliana que, apesar disso, pretendia romper com Hegel precisamente no que tange à

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transformação efetiva da realidade. Por esse motivo, para a esquerda, a filosofia era um instrumento que auxiliaria na transformação

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da sociedade e do homem, não servindo apenas para conciliar o pensamento com a realidade. Nesse sentido, e segundo Sánchez

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Vázquez, a esquerda hegeliana “quis romper com este princípio conciliador. Pretendeu que a filosofia fosse prática no

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sentido de contribuir para a transformação do mundo, da realidade e, particularmente, da realidade de seu país”.214 Apesar da

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existência de um ranço idealista, as sementes do pensamento crítico já se encontravam de algum modo no solo do

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pensamento da esquerda. 87

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Ora, o pensamento crítico busca alcançar os fundamentos das ações e do pensamento, visa conhecer a estrutura da

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realidade concreta, isto é, os processos que engendram e configuram a sociedade e a vida do homem dentro e fora dessa, os comos

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e por quês de cada coisa, sendo, portanto, fundamentado no conhecimento conceitual. O pensamento crítico, quando

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transformado em modo próprio do pensamento de um indivíduo qualquer, passa a ser conscientemente direcionado para os processos e

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relações mais rotineiros, isto é, converte-se no pensar que habitualmente versa sobre o modo de ser da vida cotidiana, do dia a dia, e

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sobre os acontecimentos em geral, dos mais banais aos que podem ser considerados como propriamente históricos,

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tornando-se, por isso, crítica do cotidiano.215 215 O próprio Kosik se declara um pensador crítico – “Je dirais donc, si je dois décider de

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mon appartenance, que je suis un adepte de la pensée critique” – KOSIK, 2003, pp. 134-135 – L’homme,

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mesure de toute chose. Com efeito, por crítica do cotidiano deve-se entender o exercício do pensamento crítico no dia a

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dia de cada indivíduo, adequado e aplicado à multiplicidade de relações nas quais ele possa se envolver no desenrolar de

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sua existência empírico-social. Assim, a crítica do cotidiano manifesta-se como reflexão sobre o que fazemos e sobre o como fazemos;

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é inquirição sobre os por quês das coisas serem de determinadas formas e não de outras; é investigação em torno de como

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reconduzir o homem à posição de único criador e mantenedor da realidade social, retirando-o da condição atual de mero objeto

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de joguetes sócio-econômico-políticos, de peça e acessório de um sistema que torna a humanidade cada vez mais

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dependente de seus próprios produtos. Essa recondução, contudo, só pode se efetivar por meio de práticas, de ações que ensejem alguma

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forma de rompimento com o modo fetichista de viver imposto pelo mundo capitalista. § 21. Crítica revolucionária

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da praxis da humanidade. Acredito que a concepção de crítica em Kosik colima a emancipação ou saída do homem de um estado de

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subjugação material e espiritual; tem em vista ainda tornar o homem consciente de seu potencial criador de verdades e de

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modos de ser, ainda que as verdades e modos de ser conscientemente criados se mostrem, se não contrários, ao menos diferentes

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dos estabelecidos (o que, aliás, é desejável). Entrementes, a crítica não se identifica com o mero ser do contra, ela não é

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um simples ato de rebeldia nem algo que se manifesta unicamente sob a forma da teoria. As críticas das críticas

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meramente teóricas já foram empreendidas por Marx e Engels na Sagrada Família e por aquele, na décima primeira de suas teses ad

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Feuerbach, de sorte que, depois delas, toda crítica que assuma ares de crítica teórica ou 88

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“Crítica crítica” deve ser descartada, sem pestanejar, como palavras vazias e carentes de qualquer grau de comprometimento empírico,

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prático, posto que a crítica deve estar comprometida com a transformação radical das condições materiais de

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existência dos homens. No que tange ao caráter revolucionário da crítica da praxis da humanidade, permitam-me

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uma breve digressão. A palavra revolução (revolutione) parece ter adquirido definitivamente, em nossos dias,

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ares de coisa ultrapassada e mesmo utópica, uma vez que seja vulgarmente associada, notadamente, à militância e ao pensamento

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políticos que foram erigidos sobre arremedos da filosofia materialista de Marx e Engels, isto é, sobre os fundamentos de um

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marxismo.216 É lícito pensar que Kosik vincule, em alguma medida, sua concepção de crítica revolucionária àquelas formas

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de pensamento e militância, uma vez que a própria história da vida dele corrobore nesse sentido. Com efeito, o sentido no qual tomo o

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termo revolução é o de transformação radical de uma dada configuração política, social, econômica ou epistêmica.

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Desse modo, uma crítica radical da praxis da humanidade corresponderia àquela atitude que não estivesse preocupada

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somente em apontar as falhas, os excessos, os abusos, os pontos de atrito entre as esferas política, social, econômica ou

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gnosiológica e aquilo que é da ordem da individualidade e da coletividade, mas que simultaneamente propusesse e

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engendrasse praxis que se erigissem como pontos reais de resistência àqueles abusos e de transformação da sociedade

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com vista a abolir aquilo contra o qual se revoluciona. É nesse sentido que Kosik afirmou, coerentemente, que as

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revoluções sociais são etapas-chave no processo de transformação das condições de existência humana, o que encontra

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confirmação ao considerarmos as profundas transformações político-sociais engendradas, por exemplo, pela Revolução Francesa (a

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partir de 1789), transformações que, como é sabido, não ficaram restritas apenas à França, mas estenderam e fincaram raízes no mundo

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inteiro (ou teria sido a Revolução Francesa inspirada nas revoluções estadunidenses?). Não obstante, podemos e

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devemos ir mais além e afirmar que outras formas de revolução 216 A propósito, o filósofo francês Raymond Aron

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faz distinção entre três termos que referem, de modos distintos, ao pensamento de Marx. Segundo ele, marxistas são “os

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representantes ou porta-vozes dos partidos comunistas, da União Soviética, da China ou de qualquer outra república popular ou

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Estado soviético”; marxianos são os indivíduos que remetem suas ideias ou podem remetê-las “ao pensamento de

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Marx, sem pertencer à interpretação provisoriamente ortodoxa do marxismo, dada pelos representantes oficiais dos

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Estados que se pretendem marxistas”, isto é, são os indivíduos que se aproximam em alguma medida do pensamento de

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Marx sem, todavia, ter pretensões político-partidárias; e, por fim, marxólogos são “os especialistas no

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conhecimento e na interpretação científica do pensamento de Marx” (Aron se coloca entre esses). Cf. ARON, Raymond. O

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marxismo de Marx. São Paulo: Editora Arx, 2005, p. 25. Já para Lenin, “o marxismo é o sistema das ideias e da doutrina de

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Marx” – LENIN, Vladimir. Karl Marx. São Paulo: Expressão Popular, 2001, p. 15. Diante de tais definições,

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posso afirmar que meu interesse pelo pensamento de Marx está inserido no âmbito de um marxianismo. 89

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também contribuíram, e contribuem ainda, para a transformação das condições materiais da existência humana, e,

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portanto, do pensamento e da sociedade – é o caso da Reforma Protestante (séc. XVI), que também pode ser caracterizada como uma

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revolução, só que no âmbito da fé e do conhecimento teológico (mais estritamente), e das revoluções no âmbito das ciências, tais

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como a copernicana ou as industriais. Como podemos perceber, a palavra revolução sempre foi empregada para

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referir às grandes transformações pelas quais passou a humanidade; mas isso não implica dizer que devemos

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empregá-la apenas para designar grandes feitos; ela se nos mostra, ademais, bastante apropriada para referir ao

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potencial transformador e criador da humanidade, à praxis como “atividade humana transformadora da natureza e da

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sociedade”.217 Nesse sentido, a crítica revolucionária é uma atitude intrinsecamente atrelada ao devir dos homens no mundo, ao seu

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vir a ser histórico, quer se manifeste pelo engendramento de novas estruturas e configurações político-sociais,

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quer pela renovação ou rompimento com os padrões culturais ou de pensamento, quer ainda pelo surgimento de novas verdades e

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modos de ser excêntricos; ela diz respeito ao processo de humanização do homem, e isso na medida em que o homem se realiza a si

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mesmo enquanto homem pela praxis (seu modo próprio de ser no mundo), que promove a criação e recriação permanentes do

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próprio homem e da história. 217 SÁNCHEZ VÁZQUEZ, 2007, p. 109. 218 Nessa impossibilidade de análise expressa-se o

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potencial incomensuravelmente criador, mas também destruidor, da praxis humana. 219 Para uma visão mais abrangente sobre

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o tema da crítica, cf. Qu’est-ce que la critique?, de Foucault. Voltando ao ponto anterior a essa digressão, aquilo que Kosik

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chamou de praxis da humanidade abrange todas as maneiras pelas quais os homens agem sobre a natureza e sobre a sociedade. É

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obviamente impossível analisar a totalidade dessas maneiras, as quais podemos mesmo afirmar que sejam inumeráveis.218

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Entendo, pois, por crítica revolucionária da praxis da humanidade a atitude individual ou coletiva que tenha por escopo

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denunciar os pontos problemáticos do mundo em que vivemos – ou de parte(s) específica(s) dele –, do modo de ser, de pensar

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e de agir dos homens, bem como propor respostas ou soluções para esses pontos. Fazer a denúncia de alguma coisa é exercer o

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pensamento crítico sobre algum ponto ou situação do mundo externo, é policiar domínios nos quais ninguém quer ser

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controlado.219 Por esse motivo, as respostas aos problemas do mundo externo não devem estar confinadas à esfera da mera teoria, mas

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devem adquirir objetividade, isto é, devem ser manifestadas através de ações, posto que essas constituam os únicos meios reais, efetivos e

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imprescindíveis a qualquer pretensão de transformação no âmbito da realidade concreta. Nesse ponto, concordo com os jovens

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hegelianos no que tange à função da filosofia, uma vez 90

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que, para mim, a função da mesma consiste em ser um instrumento auxiliar do homem na transformação da sociedade e,

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conseqüentemente, dele mesmo. A praxis fetichista ou utilitária culmina exatamente no oposto da praxis revolucionária,

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compreendendo essa como transformação, criação e recriação do homem e do mundo. No agir fetichizado, reificado, pré-

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ocupado, o homem não altera o seu entorno social, não cria criticamente sentidos para corresponder àquilo com que

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interage cotidiana ou esporadicamente, não forja para si valores morais, estéticos etc., nem práticas ou ethos que expressem

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sua singularidade e uma apreensão refletida da realidade na qual está inserido. O agir de tal homem, no entanto,

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corrobora com a manutenção do estado de coisas existente, e isso na medida em que os sentidos, valores, práticas e modos de ser que ele

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acriticamente toma para si como se tivessem sido por ele próprio forjados, utilizando-os no seu dia a dia e chegando

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mesmo a incorporá-los, são aqueles deliberadamente forjados por outrem, numa praxis fetichista cujo objetivo é enredá-lo e

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condicioná-lo a agir de modo que engendre as condições necessárias para o funcionamento do sistema capitalista. Tais sentidos

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engendrados alhures adquirem positividade, manifestando-se de variadas formas – nas leis, que representam e

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asseguram os interesses dos indivíduos, grupos e mesmo nações mais fortes;220 nos dogmas e preceitos religiosos, que

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engendram ideais ascéticos, renúncias diante de tudo aquilo que manifeste a vida viva;221 nas campanhas publicitárias, que objetivam

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suscitar nos homens, forçosamente, desejos impetuosos e necessidades não-necessárias (fetichismo da mercadoria), a

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fim de fomentar o consumismo inerente ao sistema capitalista; nos meios de comunicação, que introjetam nos indivíduos

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valores, crenças, características, modos de ser, através de um inarredável apelo quer à sensualidade (como fazem,

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por exemplo, as novelas), 220 Nesse ponto, penso que Trasímaco tinha razão ao afirmar, em sua polêmica com Sócrates acerca do que

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seria a justiça, que essa “não é outra coisa senão a conveniência do mais forte” – PLATÃO, 2008, p. 23, Livro I, 338c. Segundo a

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definição de Trasímaco, os mais fortes são os governantes e dirigentes políticos (cf. 338e e ss.). Penso ainda, ampliando tal

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definição, que os mais fortes sejam não só os que possuam algum poder político, mas também os que possuem riquezas, poder

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econômico – ainda mais em nossos dias, quando quase tudo (inclusive decisões judiciais, por exemplo) pode ser comprado. A

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propósito dessa definição do célebre sofista, Sócrates rebate dizendo que “nenhum chefe, em qualquer lugar de comando, na

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medida em que é chefe, examina ou prescreve o que é vantajoso a ele mesmo, mas o que o é para o seu subordinado, para o qual

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exerce sua profissão, e é tendo esse homem em atenção, e o que lhe é vantajoso e conveniente, que diz o que diz e faz tudo quanto

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faz” (342e). Essa resposta me parece bastante ingênua e distante da realidade efetiva, apesar de toda a argumentação

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socrática que a precede. Penso que para Kosik essa resposta também possa ser assim considerada, uma vez que, segundo ele,

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“Thrasymachos des temps modernes est en train de triompher de Socrate” – KOSIK, 2003, p. 236 – La lumpembourgeoi

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sie, la démocratie et la vérité spirituelle. 221 Análise minuciosa do que sejam ideais ascéticos é levada a cabo por Nietzsche na

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Terceira Dissertação da Genealogia da Moral. Segundo ele, aqueles ideais significam “para os artistas nada, ou coisas demais; para os

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filósofos e eruditos, algo como instinto e faro para as condições propícias a uma elevada espiritualidade; […] para os

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sacerdotes, a característica fé sacerdotal, seu melhor instrumento de poder, e „suprema‟ licença de poder […]” –

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NIETZSCHE, 2006, p. 87; aspas do autor. Cf. também FEUERBACH, 2008, O significado cristão do celibato

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voluntário e do monaquismo, pp. 193-203. A propósito da expressão vida viva, cf. DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Memórias do

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subsolo. São Paulo: Ed. 34, 2009, p. 142 e ss. 91

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quer ao sensacionalismo (como fazem os jornais);222 nos discursos científicos, que, alicerçados numa autoproclamada

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autoridade e segurança epistemo-metodológicas, monopolizam a produção de verdades e desencadeiam efeitos de poder

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que têm implicações evidentes no modo de ser dos homens e das sociedades;223 e mesmo nos discursos filosóficos, cujas

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ideias e conceitos, que expressam perspectivas quer de filósofos individualmente considerados, quer de correntes

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filosóficas específicas, são acriticamente incorporados pelo senso comum e distorcidos em seus sentidos originais.224

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222 “Les gens sont immergés dans un flot dictatorial et ininterrompu d‟images (radio, télévision, publicité, cinéma) et

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consomment passivement les stéréotypes qui leur sont servis, si bien qu‟ils perdent toute imagination et toute fantaisie : ils sont devenus

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les victimes des images préfabriquées” – KOSIK, 2003, p. 138 – L’homme, mesure de toute chose. “Autour des groupes de pouvoir se

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rassemblent comme dans une cour moderne, les « célébrités planétaires », des chanteurs aux top models et aux stars de cinéma, des

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boxeurs aux footballeurs. Ils sont l‟ornement qui sert à distraire les foules et à les enchaîner au système” – idem, ibidem, p.

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129 – La morale au temps de la globalisation. 223 Exemplo dessas implicações temos no surgimento dos fenômenos da

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loucura, do homem louco e, posteriormente, no surgimento da psiquiatria – cf. História da Loucura, de Foucault.

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224 Segundo Kosik, “os conceitos centrais da filosofia, em que se revelam os aspectos essenciais da realidade, têm

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um estranho destino: jamais se mantêm como monopólio espiritual da filosofia que pela primeira vez dêles (sic) se serviu e os

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justificou, mas se transformam paulatinamente em propriedade comum” – KOSIK, 1976, p. 34. 225 Essa frente não deve ser

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levantada apenas contra o capitalismo, mas contra todo sistema que tente moldar os homens em moldes-padrão. Sua luta é para

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que os indivíduos possam criar para si mesmos seus próprios moldes. O limite para essas criações reside em que, das

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ações que objetivem criar moldes singulares ou mesmo daquelas que sejam sua expressão, nenhum outro indivíduo além

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do agente seja prejudicado. É contra todas essas investidas externas e ainda tantas outras que pretendem cunhar os homens, sua

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praxis e seu pensamento e, em última instância, todo o mundo humano-social de acordo com o que seria um “perfil ideal” para o mundo

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capitalista, que penso que a atitude crítica deva se dirigir e se erigir em uma verdadeira frente de resistência revolucionária.225 A crítica

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revolucionária da praxis da humanidade deve, pois, exercer um poder de polícia sobre a sociedade, visando com

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isso transformar a praxis vigente, que aliena e subjuga, numa praxis através da qual mundo e homens sejam ininterruptamente transformados

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e não reificados. Por isso os exemplos das revoluções Francesa e Protestante, descritos acima, são bastante adequados à

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presente discussão, posto que representem o extremo a que os homens podem chegar a fim de destruir as condições materiais que os

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oprimem. A crítica deve, então, primeiramente mostrar ao homem o estado de menoridade ou servidão no qual ele se

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encontra, após o que deverá suscitar a disposição – nos que tiverem coragem para isso (sapere aude) – de sair dos laços da

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praxis fetichista, do cotidiano alienado e alienante, da mera manipulação prática, liberando em sua praxis o poder

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revolucionário que até então se encontrava em si mesmo apenas como potência (δςναμιρ). 92

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§ 22. Processo ontogenético de realizações da verdade e criação da realidade. Para compreender o que Kosik quer

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dizer com “realizações da verdade e criação da realidade humana em um processo ontogenético”, temos que

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retornar à noção de conhecimento conceitual. Conhecer conceitualmente alguma coisa significa conhecer a essência daquilo

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sobre o qual incide o ato de conhecimento. Conhecer a essência, isto é, alcançar a estrutura interna de uma coisa (que, como

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vimos, pode ser natural ou social), é alcançar um conhecimento da verdade dessa coisa, que se manifesta mediatamente

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através do fenômeno. Assinalei também que essa verdade, contudo, não deve ser considerada verdade

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absoluta, inquestionável e dada de uma vez por todas e, por isso mesmo, como alguma coisa contra a qual não seria possível exercer

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a crítica, devendo antes ser considerada como algo historicamente constituído, o que quer dizer que sua aceitação como

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verdade se deve à presença das circunstâncias que, num dado momento histórico, possibilitam aceitá-la como tal.226 Acredito

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que seja em torno do processo para se chegar a essa verdade conceitualmente adquirida que resida o cerne do caráter

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ontogenético que Kosik atribui à realização da verdade e à consequente criação da realidade humana.

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226 Isso me parece particularmente evidente no modus operandi do discurso científico. De 1905, com a publicação da

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Teoria da relatividade restrita, passando pela publicação da Teoria geral da relatividade, em 1915, até a aceitação, pela

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comunidade científica, de que o espaço-tempo pode ser curvado ou “distorcido” pela matéria, Einstein teve que esperar quatorze anos;

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isso porque as circunstâncias que viriam validar aquelas teorias não estavam acessíveis quando das suas publicações.

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Para confirmar sua teoria da relatividade, Einstein precisava analisar e calcular o desvio que a luz, emitida pelas

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estrelas que se encontravam atrás do sol, sofria ao passar próximo do mesmo; para isso, no entanto, Einstein precisava de um

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eclipse total daquele astro, o qual só foi possível, após algumas tentativas frustradas, em 29 de maio de 1919, quando,

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em Sobral, cidade no interior do Ceará, Brasil, foram feitas as fotografias através das quais podia-se calcular esse desvio.

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Ademais, Newton já havia calculado, ao tratar da lei da gravitação universal, esse desvio, mas os cálculos de Einstein

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demonstraram que o desvio da luz era duas vezes maior que o calculado por Newton. A demonstração de Einstein instituiu uma nova

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verdade no âmbito da física. Mas, o que Kosik quer dizer com processo ontogenético? Ele também não responde a essa pergunta, pelo

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menos nos textos que conheço, o que me obriga a empreender uma hermenêutica desse termo. Ora, analisando-se o étimo da

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palavra em questão, perceber-se-á que ela é composta pelos termos gregos ón, óntos (que designam o ser, aquilo que é) e

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génesis (no sentido de geração). Assim, numa tradução literal, pela expressão processo ontogenético se designa o

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processo de formação dos seres. É nesse sentido que o termo é utilizado nas ciências da natureza, mais especificamente na biologia,

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onde se chama de ontogenético o processo que dá origem a um ser, abrangendo desde a fecundação até a maturidade sexual, isto é,

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até a aptidão do ser para dar continuidade à sua espécie por meio da reprodução. 93

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Acredito que essa breve consideração etimológica seja suficiente para entender o que Kosik quer dizer ao utilizar

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aquela expressão. Ora, o indivíduo que no seu cotidiano exerce o pensamento crítico, engendrando para si conceitos

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que fundamentam sua perspectiva sobre a realidade ou sobre uma faceta qualquer da mesma, cria para si verdades. Com efeito, o

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modo de ser e o pensamento desse indivíduo, isto é, sua vida concreta, deve ser uma projeção daquelas verdades, uma tentativa de

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realizá-las. Tais verdades devem se constituir em alicerces reais sobre os quais poderá ser erigida e configurada sua vida concreta.

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Destarte, a criação da realidade humana, da vida concreta, é um processo ontogenético na medida em que expressa o

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desenvolvimento do ser humano de acordo com um conjunto de verdades, verdades essas sempre abertas à confrontação de seus

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fundamentos e, por isso, em contínua reformulação e aperfeiçoamento. Acredito que essa interpretação

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obtém confirmação quando Kosik diz que “cada indivíduo – pessoalmente e sem que ninguém possa substituí-lo –

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tem de se formar uma cultura e viver a sua vida”.227 Só que essa concepção de criação de verdades e de culturas pode

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dar margem a diversas objeções. As verdades às quais alguém possa chegar não seriam meramente subjetivas? Se

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sim, como então mediar os conflitos entre as diversas concepções subjetivas? – dado que cada indivíduo preferirá tocar

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sua vida de acordo com suas próprias convicções. Ao assumir que alguém poderia viver de acordo com suas próprias

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verdades, constituindo para si mesmo uma cultura própria, não se estaria proclamando o império da anarquia? – e

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isso na medida em que essas verdades poderiam ser contrárias às determinações legais, morais e sociais estabelecidas. O

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que seria a justiça num mundo formado por bilhões de culturas próprias? É desejável que os indivíduos cultivem sua

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individualidade a ponto de se tornarem excêntricos? Haveria ainda a necessidade de existirem Estados? Caso esses ainda

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existissem, como seriam organizados politicamente? Não seria apenas um devaneio tolo essa pretensão de Kosik de

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supostamente destruir isso que ele chamou de pseudoconcreticidade? 227 KOSIK, 1976, p. 19; grifos do autor.

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228 Cf. Introdução, nota 6. Todas essas questões têm certo fundamento. Até porque Kosik não explicou

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como poderíamos efetuar praticamente a destruição da pseudoconcreticidade, nem examinou quais seriam as

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possíveis consequências que decorreriam dessa destruição nas esferas do indivíduo e da sociedade. Todavia, considerando

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que a Primavera de Praga foi, como afirmou o próprio Kosik, uma tentativa de encontrar uma terceira via, um sistema alternativo ao

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socialismo e ao capitalismo,228 pode-se especular que, em tal sistema, as pessoas guiariam suas condutas pelas regras gerais da

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destruição da pseudoconcreticidade. Pode-se especular ainda sobre como 94

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seriam essas condutas, sobre como seria o mundo se todas as pessoas buscassem destruir a pseudoconcreticidade nas suas

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vidas cotidianas. Mas esses assuntos estão para além dos propósitos desta dissertação. Parafraseando Kant, “esta última tarefa

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poderia, aliás, ser levada a cabo por todos os moralistas (cujo nome é legião), ou só por alguns deles que se sentissem

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com vocação para isso”.229 229 KANT, 2008, p. 15; parênteses do autor. 95

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V. Conclusões § 23. Acerca dos objetivos estipulados e do problema formulado. O objetivo geral desta dissertação – investigar o

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que é o conceito de pseudoconcreticidade, a partir do pensamento de Kosik – foi abordado nos capítulos II e III. No capítulo II

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procurei mostrar o engendramento das circunstâncias históricas que ensejaram o surgimento da pseudoconcretici

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dade no mundo capitalista. A partir da definição proposta por Kosik, a de que a pseudoconcreticidade é a

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existência autônoma dos produtos do homem e a redução do mesmo à praxis utilitária,230 procurei mostrar também que o

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capitalismo é, por excelência, esse produto que existe autonomamente, e que é no mundo configurado por esse sistema que

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surge aquela praxis. 230 Cf. KOSIK, 1976, p. 19. 231 De acordo com as informações constantes de um site dedicado

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a Kosik, esse publicou quatorze livros, dos quais apenas um foi traduzido para a língua portuguesa (a Dialética), e vários artigos.

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V. «http://volny.cz/enelen/kkosik/kk_bibl.html» (acesso em 14 fev. 2011). Não obstante, no estudo desse tema deparei-me

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com uma séria dificuldade: o acesso, quer no Brasil quer no exterior, aos livros publicados por Kosik.231 Apesar disso,

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tanto a Dialética quanto La crise des temps modernes oferecem informações suficientes para situar e abordar com certa

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profundidade o tema da pseudoconcreticidade. Todavia, ambas as obras carecem de uma retomada explícita e demorada sobre

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a destruição da pseudoconcreticidade (assunto por mim abordado no capítulo IV desta dissertação). Os modos de efetuação dessa

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destruição não puderam ser investigados como eu gostaria, dado que em nenhuma daquelas obras Kosik desenvolva

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qualquer consideração sobre eles, de maneira que as considerações que teci em torno deles são fruto de um trabalho

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puramente hermenêutico acerca de um ponto apenas “lançado” e deixado sem qualquer justificação ulterior.

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Acredito, contudo, que em alguma(s) das várias outras obras publicadas por Kosik essa destruição seja discutida, o que representaria

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uma contribuição de grande relevância para os estudos na esfera da ética e da moralidade. Não tenho muita certeza quanto à

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razão dessa dificuldade, mas suponho que seja devida à perseguição política da qual Kosik foi vítima tanto por parte do socialistas,

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antes da extinção da URSS, quanto dos capitalistas, depois da abertura da Tchecoslováquia ao capitalismo. Eis, a meu ver,

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algo que mereceria ser investigado. Por fim, no que tange ao problema formulado na Introdução, cheguei à

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conclusão, através da análise da distinção kosikiana entre conhecimento conceitual e representacional, de que é

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possível a um indivíduo alcançar a essência, isto é, uma compreensão verdadeira acerca 96

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dos fenômenos, processos e relações que têm lugar na vida cotidiana, desde que seu modo de ser e seu pensamento estejam

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pautados numa crítica consciente de tudo que existe. § 24. Outras conclusões. Como assinalei nas notas 33, 115 e 208,

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acredito que há muita proximidade, particularmente no que tange aos temas estudados, entre as pesquisas de Kosik e

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Foucault. Se esse descreve e analisa a criação de sujeitos politicamente dóceis e economicamente úteis como consequência da

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instituição de uma nova ordem social – as sociedades burguesas capitalistas –, criação fundamentada na imposição da

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disciplina, isto é, no engendramento de técnicas de controle do tempo, dos movimentos, dos afazeres e da produção (quer

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de mercadorias e produtos quer de saberes), aquele também o faz, mas a partir do prisma da preocupação e do homo oeconomicus;

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além disso, ambos expressaram o pensamento de que o saber, da forma como encontra-se organizado hoje, divide os

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homens em dois grupos: o dos eruditos e o do senso comum, o dos que produzem o conhecimento e o dos que consomem

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acriticamente os produtos derivados desses saberes; por fim, parece-me que ambos estavam preocupados com a transformação

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das condições materiais de existência dos seres humanos, posto que ambos envidaram esforços no sentido de deixar claro nas suas

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obras que tais condições podem e devem ser mudadas, ou, para dizer à la Kosik, ambos pensaram a atitude crítica como algo capaz

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de se inserir “no terreno da praxis revolucionária” – Foucault o fez de forma mais enfática, a meu ver, na conferência Qu’est-ce que la

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critique: critique et aufklärung, e Kosik, no artigo Aufklärung et culture. Acredito que o que está em jogo na proposta da crítica e do

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cuidado consigo mesmo, em Foucault, e na destruição da pseudoconcreticidade, em Kosik, seja a liberdade, ou melhor, a criação de

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práticas de liberdade. Por isso Sousa Filho pôde afirmar que “no Foucault ocupado com as éticas greco-romanas antigas (isto é, com o

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cuidado de si) se encontra o pensador da liberdade”.232 De igual modo, o Kosik da destruição é o das práticas de liberdade, da

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criação de modos de ser que se expressam em “culturas” próprias. Penso que, por si sós, cada um desses pontos de

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aproximação merece uma investigação, dada a importância desses assuntos para pensarmos e entendermos melhor o mundo

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contemporâneo e seus problemas (concretos e teóricos). 232 SOUSA FILHO, Alípio de. Foucault: o cuidado de si e a liberdade, ou a

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liberdade é uma agonística. In: Albuquerque Junior; Veiga-Neto, Alfredo; Sousa Filho, Alípio de (Org.). Cartografias de Foucault. Belo

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Horizonte: Autêntica, 2008, pp. 13-26. No que tange à concepção, algumas vezes salientada ao longo do texto, da sociedade

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como invenção e convenção, como produto humano que pode ser alterado de 97

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acordo com os desígnios dos seus criadores, acredito que seria oportuno investigar a relação entre a criação de culturas e a

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transformação da sociedade, ou mesmo o choque que com certeza adviria do encontro dessas culturas excêntricas, pautadas em

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perspectivas puramente individuais, com a cultura de massa – para não dizer de rebanho – de sociedades como a nossa. Uma

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pesquisa nesses moldes poderia, aliás, deveria ir no sentido proposto por Sousa Filho, isto é, no sentido de um

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construcionismo crítico. Uma concepção construcionista implica compreender a realidade social como um resultado da

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ação dos próprios seres humanos nos seus espaços de viver e nas diferenças culturais e históricas. O construcionismo

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propõe entender a realidade social existente (incluindo as dimensões imaginárias, simbólicas e subjetivas) como uma decorrência

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das práticas dos seres humanos, no curso histórico e antropológico de sua contínua exteriorização e atuação nos vários espaços

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em que se distribuem. […] Assim, por construcionismo crítico, deve-se entender uma teoria da realidade social que tem como

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postulado fundamental a afirmação radical segundo a qual tudo é construído: isto é, uma compreensão de toda realidade

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social como resultado de construção (invenção, criação, produção, convenção) na duração histórica e

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antropológica. Nesses termos, uma teoria construcionista crítica da realidade social constitui um modo de pensar teórico-

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filosófico-científico próprio ao estudo das organizações sociais complexas que são as sociedades e

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culturas humanas e à compreensão de nossa existência nelas.233 233 SOUSA FILHO, Alípio de. Para uma teoria

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construcionista crítica. In: Bagoas, v. 1, n. 1, jul./dez. 2007, Natal: EdUFRN, pp. 28-59. Um outro ponto digno de nota é o que tange à

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herança heideggeriana no pensamento de Kosik, particularmente por mim ressaltada, embora com um rápido sobrevôo,

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ao tratar da cura. Poderia-se pensar, por exemplo, em uma pesquisa sobre as perspectivas em torno da cura em Kosik e em

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Heidegger, ou em que consiste a crítica à ciência e à técnica em um e outro. Por fim, outro ponto que, acredito, merece

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ser investigado, diz respeito à relação entre a destruição do meio ambiente e a praxis utilitária ou fetichista, problema que encontra-se no

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centro das discussões contemporâneas de várias áreas do conhecimento, da biologia à ética. Como vimos, aquela

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praxis corrobora com a manutenção do sistema capitalista; esse, por sua vez, enxerga a natureza unicamente

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como fonte de matérias-primas e energias que estariam ininterruptamente à disposição da ciência e do progresso técnico. Seria

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muitíssimo interessante tentar elucidar essa relação, que, ademais, foi assinalada por Kosik não só na Dialética mas

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em alguns outros artigos. 98

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ÍNDICE ONOMÁSTICO Incluem-se neste índice todos os autores e personagens históricos diretamente

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citados ou simplesmente referidos no corpo do texto e nas notas de rodapé, com exceção de Kosik, dado que seu nome

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apareça em quase todas as páginas do texto. A Althusser, Louis – 18, 19

Aristóteles –

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27, 44, 76, 83 Aron, Raymond – 88 B Botticelli, Sandro - 59

Brecht, Eugen Berthold

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Friedrich – 56 C Chauí, Marilena – 18 Comte, Auguste – 47, 77, 78

Costa Neto, Pedro Leão da

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– 9, 10, 11, 12, 13, 14, 16, 56 D Darwin, Charles - 25 Descartes, René – 22, 82

Destutt, Antoine-Louis-

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Claude (Destutt de Tracy) - 18 Diderot, Denis – 71 Dostoiévski, Fiódor – 90 E

Einstein, Albert – 92 Engel

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s, Friedrich – 11, 14, 18, 20, 23, 24, 25, 26, 30, 32, 35, 38, 49, 50, 53, 54, 56, 61, 62, 86, 87, 88

Espinosa – 80 F Feuerbac

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h, Ludwig – 25, 27, 34, 35, 59, 60, 80, 83, 87, 90 Fichte, Johann Gottlieb - 34

Foucault, Michel – 17, 20, 48,

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50, 84, 89, 91, 96 G Goethe, Johann Wolfgang von – 56 Goldmann, Lucien – 56

Gramsci, Antonio – 29, 30

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H Hasek, Jaroslav - 74 Hegel, Georg Wilhem Friedrich – 17, 20, 24, 34, 35, 56,

71, 83, 85, 86 Heidegger, Ma

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rtin – 9, 15, 16, 25, 35, 40, 49, 50, 51, 55, 56, 57, 63, 64, 65, 66, 68, 70, 71, 97 Herder, Johann

Gottfried von – 56 Humbold

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t, Wilhelm von - 79 Hus, Jan - 14 Husserl, Edmund – 9, 15, 16, 56 I

Irons, L. Roland – 15, 16, 17,

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52, 62, 63, 74 J Jacobi, Friedrich Heinrich – 34 K

Kafka, Franz – 56, 74

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Kant, Immanuel – 25, 34, 45, 59, 78, 80, 94 Kohan, Néstor – 13, 15, 16

Kołakowski, Lesze

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k – 11, 12, 13 L Leibniz, Gottfried Wilhelm von – 80 Lenin, Vladimir

Ilitch – 88 Löwy, Micha

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el – 9, 10, 14, 16, 17 Lukács, Georg – 14, 56 M Mandeville, Bernard – 71

Marcuse, Herbert – 56 Márku

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s, György – 14 Marx, Karl – 10, 11, 14, 16, 17, 18, 19, 20, 23, 24, 25, 26, 27, 30, 32, 35, 36, 38,

39, 40, 49, 50, 51, 53, 54, 56, 60,

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61, 62, 72, 73, 74, 75, 76, 80, 83, 84, 86, 87, 88 Masaryk, Thomas – 12

Mill, John Stuart – 19, 43,

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44, 53, 54, 77, 78, 79 N Neri, Guido D. – 11 Newton, Isaac – 92 Nietzsche, Friedrich –

34, 90 P Patočka, Jan – 9

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Pecqueur, Constantin – 74 Piccone, Paul – 17 Platão – 48, 90 R

Rubinstein, S.

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L. – 58, 59 99

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S Sánchez Vázquez, Adolfo – 13, 86, 89 Sartre, Jean-Paul – 10, 13

Schelling, Friedrich Wilhe

Page 2440: Rafael Lucas de Lima

lm Joseph von – 36, 56 Smith, Adam – 53 Sócrates – 90 Sousa Filho, Alípio de – 96, 97

Stalin, Josef – 11 T Tarcus

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, Horacio – 9, 10, 14, 16, 17 Trasímaco – 90 W Wagner, Adolph – 56

Wallace, Alfred Ru

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ssel – 25 100

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