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Raimundo Wall Ferraz: o político e o intelectual Francisco Alcides do Nascimento 1 Conheci o sujeito desta pesquisa quando eu ainda era aluno da Graduação em História, curso realizado na Universidade Federal do Piauí, no período compreendido entre 1976 e 1980. No final da primeira década de 1970, Raimundo Wall Ferraz deixava a Prefeitura Municipal de Teresina, por haver sido convidado pelo governador indicado Dirceu Mendes Arcoverde (1975- 1979). Entretanto, o biografado havia sido secretário da Educação no período compreendido entre 1971-1974; na ocasião, os militares tinham indicado, para governar o Piauí, o Sr. Alberto Tavares Silva, filiado ao partido da Aliança Renovadora Nacional (ARENA). Minha aproximação com o professor Wall Ferraz deu-se quando este se desentendeu com as lideranças do partido, e teve que voltar ao batente da sala de aula. A disciplina que permitiu ao estudante compartilhar com o professor ideias sobre o Brasil de determinado período foi História do Brasil III, que tratava do período republicano. Antes de iniciar a disciplina, o Departamento de Geografia e História ofereceu uma monitoria e me candidatei e fiquei com a vaga. Este acontecimento ajudou na minha simpatia pelo Brasil República, e os meus estudos na Pós-Graduação foram verticalizados no período. Há sempre a tentativa de transformar homens comuns em semideuses, com a vida sem nenhum tipo de tropeços; contudo, são muitas as manifestações a favor de Raimundo Wall Ferraz. Parecia ser muito cuidadoso quando tratava com pessoas humildes, mesmo tendo a fama de ser “zangado”. José Emanoel Rocha Maciel foi convidado por Dirceu Mendes Arcoverde para dirigir a Empresa de Processamento de Dados do Piauí (PROCED), em 1975, e foi nessa condição que assistiu a um fato que, ao seu olhar, representou um ato de humildade. Wall Ferraz, então prefeito de Teresina, foi barrado pelo segurança que trabalhava na portaria da PROCED, dizendo-lhe que ele precisava apresentar um documento de identificação. O prefeito não conduzia nenhum tipo de documento, mas disse ao porteiro que ia buscá-lo no carro. Nesse momento, passava pela portaria uma funcionária que conhecia Wall Ferraz, e “imediatamente se comunicou comigo, quando me desloquei à portaria, pedi-lhe desculpas e o conduzi ao interior do prédio” (MACIEL, 1995, p. 148). 1 Prof. Dr. Francisco Alcides do Nascimento/Departamento de História e Programa de Pós Graduação em História do Brasil da Universidade Federal do Piauí.

Raimundo Wall Ferraz: o político e o intelectual · ... que tratava do período republicano. Antes de iniciar a disciplina, o ... que as pessoas que formavam longas filas para o

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Raimundo Wall Ferraz: o político e o intelectual

Francisco Alcides do Nascimento 1 ⃰

Conheci o sujeito desta pesquisa quando eu ainda era aluno da Graduação em História,

curso realizado na Universidade Federal do Piauí, no período compreendido entre 1976 e 1980.

No final da primeira década de 1970, Raimundo Wall Ferraz deixava a Prefeitura Municipal de

Teresina, por haver sido convidado pelo governador indicado Dirceu Mendes Arcoverde (1975-

1979). Entretanto, o biografado havia sido secretário da Educação no período compreendido

entre 1971-1974; na ocasião, os militares tinham indicado, para governar o Piauí, o Sr. Alberto

Tavares Silva, filiado ao partido da Aliança Renovadora Nacional (ARENA).

Minha aproximação com o professor Wall Ferraz deu-se quando este se desentendeu com

as lideranças do partido, e teve que voltar ao batente da sala de aula. A disciplina que permitiu

ao estudante compartilhar com o professor ideias sobre o Brasil de determinado período foi

História do Brasil III, que tratava do período republicano. Antes de iniciar a disciplina, o

Departamento de Geografia e História ofereceu uma monitoria e me candidatei e fiquei com a

vaga. Este acontecimento ajudou na minha simpatia pelo Brasil República, e os meus estudos

na Pós-Graduação foram verticalizados no período.

Há sempre a tentativa de transformar homens comuns em semideuses, com a vida sem

nenhum tipo de tropeços; contudo, são muitas as manifestações a favor de Raimundo Wall

Ferraz. Parecia ser muito cuidadoso quando tratava com pessoas humildes, mesmo tendo a fama

de ser “zangado”. José Emanoel Rocha Maciel foi convidado por Dirceu Mendes Arcoverde

para dirigir a Empresa de Processamento de Dados do Piauí (PROCED), em 1975, e foi nessa

condição que assistiu a um fato que, ao seu olhar, representou um ato de humildade. Wall

Ferraz, então prefeito de Teresina, foi barrado pelo segurança que trabalhava na portaria da

PROCED, dizendo-lhe que ele precisava apresentar um documento de identificação. O prefeito

não conduzia nenhum tipo de documento, mas disse ao porteiro que ia buscá-lo no carro. Nesse

momento, passava pela portaria uma funcionária que conhecia Wall Ferraz, e “imediatamente

se comunicou comigo, quando me desloquei à portaria, pedi-lhe desculpas e o conduzi ao

interior do prédio” (MACIEL, 1995, p. 148).

1 Prof. Dr. Francisco Alcides do Nascimento/Departamento de História e Programa de Pós – Graduação em

História do Brasil da Universidade Federal do Piauí.

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Raimundo Wall Ferraz formou-se em Direito pela Faculdade de Direito do Piauí. Manoel

Paulo Nunes testemunha a passagem de ambos por aquela instituição, relatando: “ali começaria

ele, menino pobre que era, a lutar pela vida, trabalhando em modesto emprego; e ali faria o seu

curso de Direito; depois conviveríamos no magistério secundário e posteriormente no superior,

da Faculdade Católica de Filosofia do Piauí” (NUNES, 1995, p. 77)). Paulo Nunes ainda faria,

no mesmo período, com Wall Ferraz, curso de preparação de preparação de professores,

oferecido pela Campanha de Aperfeiçoamento e Difusão do Ensino Secundário, popularizada

com a sigla CADES:

A implantação do golpe civil militar encontrou Raimundo Wall Ferraz como portador de

uma bagagem substantiva em relação à educação, havia sido professor do ensino secundário e

superior, além de ter se preparado para implementar uma forma diferente de ajudar ao Piauí por

meio do planejamento da educação. Contudo, o golpe encontrou Wall Ferraz atuando na política

partidária. Naquele período, era vereador eleito pela União Democrática Nacional (UDN), e

ocupava também a Presidência da Câmara Municipal de Teresina.

Raimundo Wall Ferraz conquista o seu primeiro mandato em 1955, quando foi eleito

vereador de Teresina, tinha 23 anos de idade. Ainda não é possível saber se permaneceu na

Câmara de Vereadores de forma ininterrupta até o golpe civil-militar de 1964, que, como já foi

registrado, o alcançou na Presidência do Legislativo Municipal. Ali viveu momentos de tensão,

uma vez que um dos parlamentares teve o seu mandato cassado. Mas o protagonista desta

proposta trata de forma superficial esta questão. Afirma que:

[...] quando se deu o golpe militar de 1964, a repressão e a caça às bruxas não foram

tão amplas no Piauí. Na verdade ocorreram cassações de mandatos, como dos

deputados Deusdeth Ribeiro – líder mais avançado da esquerda no Piauí, - Paes

Landim, Themístocles Sampaio, Ubiratan Carvalho, José Alexandre e Celso Barros,

enquanto no plano municipal o alvo foi o vereador Jesualdo Cavalcanti, de Teresina.

Aconteceu também a prisão de algumas lideranças notória, mas que não tinham muita

significação na vida pública e política do Estado (FERRAZ, 1992, p. 121).

Apesar de minimizar as ações dos agentes locais da ditadura civil-militar no Piauí, registra

que foram presas pessoas ligadas à Igreja, como Manoel Emílio Burlamaqui de Oliveira e o

engenheiro marxista Cícero de Sousa Martins; e acrescenta: “mas todos foram soltos pouco

tempo depois, após comprovado que não tinham eles qualquer plano para afetar a ordem

revolucionária. Falava-se ainda no Grupo dos Onze, que, na verdade não passava de um

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movimento de jovens que fazia pregação nos bairros da Capital, também sem qualquer projeto

revolucionário” (FERRAZ, 1992, p. 121).

É possível que Wall não tenha percebido ou optou por silenciar sobre o processo de

cassação do mandato de Jesualdo Cavalcanti, que teve de comandar, uma vez que era o

presidente da Câmara dos Vereadores de Teresina. No entanto, relata que o Exército invadiu a

Casa que liderava “em busca de documentos subversivos dos vereadores Jesualdo Cavalcanti e

Paulo Rubens Fontinele, mas resultou em nada. Logo depois dos primeiros dias do golpe, Wall

Ferraz esteve com o comandante da guarnição militar, o coronel Mascarenhas Façanha” e disse

ter ouvido deste: “as minhas maiores preocupações no momento, meu maior trabalho, tem sido

esfriar a ânsia de alguns oficiais piauienses que querem, a todo custo, derrubar o governo e

liquidar com a classe política” (FERRAZ, 1992, p. 122).

Jesualdo Cavalcanti foi eleito vereador de Teresina pelo Partido Trabalhista Brasileiro;

tomou posse no dia 31 de janeiro de 1963. Foi alçado ao posto de líder da bancada do PTB; na

verdade, a bancada era constituída de três parlamentares: Jesualdo, Paulo Rubens e Álvaro

Lebre. Consumado o golpe civil-militar, Jesualdo Cavalcanti foi preso no dia 4 de abril, sendo

levado para a 26ª Circunscrição do Serviço Militar, por ordem do Comando da Guarnição

Federal. Na tarde do mesmo dia foi encaminhado para o Dops, onde pernoitou. Na tarde do dia

seguinte, foi protagonizado o primeiro espetáculo de truculência da nova ordem estabelecida:

À tarde do dia 5 [...] seria levado para o 25º Batalhão de Caçadores na carroceria de

um caminhão aberto, sob forte escolta militar, armada de fuzis e metralhadoras. O

caminhão, ao atravessar a diagonal da Praça Pedro II, diminuiu a marcha, de modo

que as pessoas que formavam longas filas para o filme das 15 horas pudessem

contemplar a cena. E havia muita gente, pois era domingo. No 25º BC, jogaram-me

numa fétida e exígua solitária que mal me cabia deitado e onde penetrava uma pífia

réstia de luz, e lá permaneci por 48 horas. Dispunha apenas de uma lata de manteiga

para urinar, sempre prestigiado pela companhia de formigas e baratas (BARROS,

2006, p. 186).

Vejam que, para aqueles que foram considerados perigosos e subversivos, a vida não se

tornou fácil, embora não se possa dizer que as práticas dos novos donos do poder tenham sido

realizadas com a mesma intensidade que no Rio de Janeiro ou São Paulo. Entretanto foram

presos nos primeiros dias do golpe sessenta pessoas. Em Teresina, o clima era tenso. A exemplo

do que ocorria no restante do País, movia-se com absoluto êxito a máquina de caça às bruxas.

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Invadiam-se “sindicatos, residências e locais de trabalho a qualquer hora do dia ou da noite”

(BARROS, 2006, p. 192).

No dia 11 de abril, os vereadores se reuniram para dar início ao processo de cassação do

mandato do jovem vereador, eleito pelos votos dos estudantes. A Câmara recebera um ofício

do Comando da Guarnição Federal de Teresina, subscrito pelo coronel Francisco Mascarenhas

Façanha, “comunicando que o vereador Jesualdo Cavalcanti de Barros foi preso por ordem

deste Comando de Guarnição, em virtude de estar comprometido com movimento de caráter

subversivo que visava a queda do regime democrático (sic)” (BARROS, 2001, p. 203). Jesualdo

Cavalcanti acusa Raimundo Wall Ferraz de agir de comum acordo com os militares, tendo

realizado reuniões secretas com os vereadores, que tinham por finalidade cassar o seu mandato.

Por fim, Jesualdo Cavalcanti transcreve um trecho da ata que registrou a cassação seu

mandato, destacando que o presidente convocou uma sessão extraordinária:

Tendo em vista notícias veiculadas nesta cidade que havia propósito dos senhores

vereadores e da presidência de se omitirem ante a situação existente, notadamente em

relação ao vereador Jesualdo Cavalcanti. Achando a presidência ser necessário no

momento uma definição dos senhores vereadores a fim de evitar interpretações

maliciosas prejudiciais não só à presidência como aos senhores vereadores e de que a

hora exige uma definição por parte do Plenário desta Casa (sic) (BARROS, 2001, p.

213).

Sete vereadores votaram pela cassação, um absteve-se e outro justificou a ausência por

estar na zona rural de Teresina. Cavalcanti tornou-se o primeiro preso político no Piauí que teve

o mandato cassado após a vitória do movimento militar, deflagrado em 31 de março de 1964.

A participação de Wall Ferraz no evento narrado tornou-se moeda de campanhas eleitorais

durante nas contendas políticas nas décadas de 1980 e 1990.

O golpe civil-militar através do Ato Institucional n. 5 extinguiu o pluripartidarismo e

criou o bipartidarismo: Aliança Renovadora Nacional (ARENA) e o Movimento Democrático

Brasileiro (MDB). Como denuncia Wall Ferraz com o pluripartidarismo, “a quase totalidade

dos políticos bandeou-se para o lado do governo, como se isso fosse uma forma de

sobrevivência. Em consequência, como não souberam buscar outro caminho, foram jogados

para dentro de um saco de gatos que era a ARENA [...] (FERRAZ, 1992, p. 129). Naquele “saco

de gatos” comportava políticos oriundos do PSD, UDN e até do PTB “foram amarrados dentro

de um saco e passaram a se estraçalhar uns aos outros. Mas o que importava mesmo para eles

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era estar dentro do partido que apoiava os governos estadual e federal” (FERRAZ, 1992, p.

129).

Por ser um dos políticos jogados, não contra a sua vontade, do “saco de gatos”, no início

da década de 1970, foi indicado para a Secretaria de Educação do Estado. Durante o lapso de

tempo entre o golpe e o início da década, há pouco mencionada, Wall Ferraz fazia parte de um

corpo de técnicos que atuavam da Comissão de Desenvolvimento Econômico do Piauí

(CODESE), depois transformada em Secretaria de Planejamento. Herculano de Moraes, um dos

técnicos, colega de trabalho, destaca a inquietação de Wall Ferraz: “já era uma característica do

seu estilo apressado, como se fosse preciso correr para não perder o trem da história”

(MORAES, 1995, p. 65).

Foi ali que o governador Alberto Tavares Silva, indicado pelos militares e apoiado pela

família Távora e Cesar Carls, políticos que atuavam no vizinho estado do Ceará, encontrou

Raimundo Wall Ferraz. Herculano Moraes destaca a escolha:

Pois foi ali que a luneta mágica de Alberto Silva foi buscar aquele que era considerado

o maior conhecedor dos problemas piauienses, notadamente na área da Educação.

Creio que indicado por A. Tito Filho, pois havia a ideia de trazer de fora do Estado

um técnico para a Secretaria da Educação, Wall Ferraz foi a Brasília em nome do

Governo que assumiria o poder. Voltou de lá urgido pela unanime opinião de técnicos

do MEC que não entendiam essa obsessão por alguém de fora, quando ali estava um

professor de mais elevada qualificação (MORAES, 1995, p. 65).

Sabia que não adiantava recuperar e criar novas escolas se não investisse no professor,

afinal ele tinha ocupado esse lugar antes de ser alçado à condição de secretário.

Foi aí que grandes conquistas do magistério aconteceram: Estatuto, Salário-

Móvel, qualificação de professores que lecionavam a título precário, através

de convênios com a Universidade Federal do Piauí e apoio à APEP para que

se instalasse e organizasse a categoria. (RIBEIRO, 1995, p. 144).

Kleber Montezuma, um auxiliar durante do político durante muitos anos, defende que

Raimundo Wall Ferraz:

Foi um intelectual e um agitador cultural. Entendia e mexia com tudo que se

relacionava com as artes e a literatura. Criou a pinacoteca da Prefeitura, bandas

escolares, corais infantis, orquestra de câmera da cidade, bale da cidade, Montou a

“Casa da Cultura”, onde instalou museus e a biblioteca “Carlos Castelo Branco”,

promoveu concursos literários e de cinema em vídeo, apoiava eventos de cantadores,

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violeiros e cordelistas e peças teatrais. Quando havia eventos culturais exigia que,

além dos convites emitidos pela Fundação Cultural “Monsenhor Chaves”, seu

Gabinete reforçasse os convites pelo telefone. Empenhava-se pessoalmente em

convidar e convocava amigos e assessores para todos os eventos promovidos pela

Fundação Cultural “Monsenhor Chaves. Assim, ele “matava dois coelhos de uma

cajadada só. Garantia “casa cheia” ao tempo que socializava o gosto pela cultura e a

arte, entre os seus amigos e colaboradores (MONTEZUMA, 1995, p. 86-87).

A citação é longa, mas é relevante, uma vez que, de alguma forma, sintetiza a atuação de

Wall Ferraz como intelectual e agitador cultural. Para arredondar o que a citação contém,

lembro-me do que escreveu Teresinha Queiroz quando do falecimento do Prof. Wall Ferraz:

Na convergência das sensibilidades do historiador e o político reside a convicção de

que a história é também um tecido leve e delicado onde se inscrevem os

acontecimentos numa fluidez e numa velocidade arrebatadora e onde se podem

registrar atos e eventos tanto sublime como vis. Nesse tempo curto, o homem, a

despeito de sua vontade, pode ser subjugado pelas forças densas, imponderáveis,

profundas e poderosas do Destino e é nessa impotência derradeira e fatal que ele se

interroga sobre sua trajetória. Submetido ao mistério do mundo, conduzido a brumas

espessas e densas, só lhe resta perguntar ansioso, já bafejado pelas asas leves do

esquecimento, acerca do seu labor, da justiça dos homens e da teia romântica e

perecível da memória (QUEIROZ, 1995, p. 101).

Em 1982, foi candidato a deputado federal, filiado ao PMDB, sendo eleito com 53.226

mil votos. José Olímpio Leite de Castro defende que, dentre os candidatos a deputado federal,

“nas eleições de 1982, seguramente Wall Ferraz foi o que menos investiu recursos”. Fazia seus

trabalhos a bordo de um fusquinha, que, na maioria das vezes, ele mesmo pilotava, e inaugurou

um novo estilo de fazer campanha, executando um trabalho de formiguinha, “entrando de casa

em casa nos bairros onde fazia comícios” (CASTRO, 2009, p. 27). Na ocasião foi tido como

um fenômeno eleitoral “[...] não fez praticamente campanha pelo interior do Estado e emergiu

das urnas com mais de 53.226 mil votos, dos quais 43 mil somente em Teresina, elegendo-se

deputado federal mais votado na capital” (CASTRO, 2009, p. 29).

Em 15 de maio de 1985, a Emenda Constitucional n. 25 alterou dispositivos da

Constituição Federal, restabelecendo as eleições diretas para “presidente e vice-presidente da

República, em dois turnos, eleições para senador e deputado federal do Distrito Federal e

eleições diretas para prefeitos das capitais e dos municípios considerados áreas de segurança

nacional e estâncias hidrominerais, além de revogar dispositivo que instituía o voto distrital e a

fidelidade partidária” (CASTRO, 2009, p. 51).

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É neste contexto que forças ligadas ao PMDB e partidos como o PC do B se articularam

para lançar a candidatura de Wall Ferraz à Prefeitura de Teresina. A indicação da candidatura

não foi aceita de forma pacífica por todos os vereadores do PMDB, mas através de Osmar Júnior

(vereador do PMDB), integrante do Comitê do PC do B, o candidato se aproxima de Manoel

Domingos Neto, ideólogo do PC do B no Piauí, ganha o reforço desse partido na sua campanha.

“Os comunistas tinham uma militância muito forte em Teresina, eram competentes na

propaganda e seriam muito úteis ao candidato do PMDB, nesse particular” (CASTRO, 2009, p.

53).

A eleição, apesar do clima tenso no decorrer da campanha, ocorreu sem registros de

grande monta. “Abertas as urnas, Wall Ferraz (PMDB) obteve 78.252 mil votos contra 60.649

mil votos recebidos por Átila Lira (PFL), registrando-se uma maioria de 18.603 mil para o

candidatos do PMDB. No discurso de posse Wall Ferraz declarou:

[...] Grandes edificações são necessárias. Asfalto também. Praças e jardins são

imprescindíveis. Tudo será inútil, porém, se ao lado dos suntuosos edifícios vivem

famílias no maior grau de miséria. De nada valerá o asfalto se ao longo dele se

amontoam casebres abrigando a mais extremada pobreza. As praças e jardins não

terão sentido se os usuários, corroídos pelas mais crônicas carências, não sabem como

utilizá-los convenientemente. Consequência da minha opção pelo social, saneamento

básico, habitação, transporte, educação, alimentação, saúde, são itens que merecerão

atenção máxima do meu governo (CASTRO, 2009, p. 78).

Nesta parte inicial, aponto alguns caminhos percorridos pelo biografado; tenho a

convicção, por outro lado, de que outros tantos não foram alcançados e provavelmente nunca o

serão. Tenho a convicção também de que foram narrados até aqui percursos visíveis, deixados

de forma que fossem alcançados com certa facilidade. Apoiando-me em Sabina Loriga (2011),

diria que, esta proposta, até o momento, foi para recolher pensamentos para povoar passado.

Anotei informações registradas por terceiros que foram amigos, aliados políticos, adversários,

colegas de trabalho, alunos do professor Raimundo Wall Ferraz.

Devo acrescentar, entretanto, que a pesquisa realizada até o momento é de caráter

exploratório, realizada para a construção destas propostas. As leituras sobre biografia dão conta,

como acabei de registrar, de que ela é chamada de um gênero de escritura particularmente

volúvel; parece-me mais fecundo meditar sobre essa fronteira fluida que separa a biografia da

história e da literatura, e analisar as proibições, os abalos, as incursões recíprocas que transpõem

(LORIGA, 2011, p. 19). Reflexões como esta motivaram a proposição desta pesquisa.

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Keith Jenkins defende que o historiador tem de ler/interpretar seus documentos, o que faz

parte de uma metodologia predefinida, para, com base em leituras (intertexto), construir sua

narrativa (JENKINS, 2001, p. 26). Este trabalho será norteado por alguns procedimentos de

pesquisa. O primeiro deles diz respeito ao levantamento, leitura e fichamento da produção mais

importante, referente ao tema, visando à maior aproximação do objeto de estudo. O passo

seguinte será a pesquisa hemerográfica, realizada no Arquivo Público do Piauí – Casa Anísio

Brito. Na sequência, serão construídos roteiros de entrevistas e as entrevistas propriamente

ditas.

Com o fim da ditadura, as práticas jornalísticas não mudaram de forma significativa. Os

governantes (governador, prefeito) do Poder Executivo e (deputados e vereadores) Poder

Legislativo continuaram enviando releases para as editorias dos jornais, sendo tais peças

publicadas sem resistências, pelo menos de forma que os leitores pudessem perceber. Jornalistas

continuaram a fazer parte da folha de pagamentos dos poderes mencionados, além do Judiciário.

Mas tais práticas não impedem que essas “enciclopédias do cotidiano” não sejam empregadas

como fontes de pesquisa

A leitura dos discursos impressos nos periódicos permitirá que os pesquisadores avaliem

o movimento das ideias que circularam à época, permitindo, dessa forma, entender a

complexidade da luta social, como, por exemplo, a maneira de aproximação e distanciamento

de grupos sociais, conforme as conveniências do momento. Os conflitos desencadeados para a

efetivação dos diferentes projetos se inserem em uma luta mais ampla, que atravessa a

sociedade por inteiro. E assim, atravessa o homem, o político, o educador e o agitador cultural

Raimundo Wall Ferraz.

A pesquisa hemerográfica será de fundamental importância para a apreensão e

compreensão do “real”, assim como para a montagem do roteiro geral de entrevistas. Ao propor

a análise das representações construídas sobre Wall Ferraz, fica claro o desafio de trabalhar

com discursos que moldam e transmitem imagens do biografado. Por outro lado, as entrevistas

coletadas por meio da Metodologia da História Oral oferecerão outras leituras sobre o

biografado, e, desta forma, poderão ajudar a trazer à tona informações dos bastidores que não

foram publicadas.

A Metodologia da História Oral, assim, pode e deve reconstruir práticas do administrador

em relação às demandas sociais dos moradores que chegavam ao gabinete do prefeito, pode

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ajudar na compreensão das estratégias empregadas pelos auxiliares do prefeito para resolver os

problemas de toda ordem que afetavam a cidade administrada por Raimundo Wall Ferraz. As

entrevistas serão realizadas com pessoas que compuseram as equipes de trabalho do biografado,

sejam secretários, chefes de sessões, diretores de departamentos e também com moradores da

cidade que, por meio de suas manifestações, constituíam a opinião pública. Para Halbwachs,

“[...] Nossas lembranças permanecem coletivas, e elas nos são lembradas pelos outros, mesmo

que se trate de acontecimentos em que só nós estivemos envolvidos e com objetos que só nós

vimos. Porque, em realidade, nunca estamos sós” (HALBWACHS, 1990, p. 26). Como se

pretende que os atores sociais atingidos narrem as suas experiências de vida, o formato de

entrevista escolhido é o da trajetória de vida, o qual é intermediário entre a história de vida e a

entrevista temática. Esse formato se caracteriza por uma entrevista não tão longa quanto a

entrevista de história de vida nem marcada por um único tema, como na entrevista temática.

Todavia esta definição a priori pode ser modificada e a entrevista temática pode também ser

empregada.

As fontes oficiais não serão preteridas. As mensagens, os relatórios também serão

utilizados. Nelas podem ser encontrados os projetos que não foram executados. Afinal de contas

constituem prestações de conta do Poder Executivo Municipal para o Legislativo.

Entre 1975 e 1979 Raimundo Wall Ferraz ocupou pela primeira vez, a Prefeitura de

Teresina, convidado pelo governador Dirceu Mendes Arcoverde, indicado pelos militares e

apoiado pelos arenistas do Piauí, dentre os quais se destacava Petrônio Portella Nunes, naquela

oportunidade, ministro da Justiça do Brasil. Fez uma administração avaliada como boa.

Terminou o seu mandato, mas saiu brigando com as lideranças da ARENA. Este fato provocou

a volta de Raimundo Wall Ferraz para a Universidade Federal do Piauí, Departamento de

Geografia e História. Ali, de imediato a sua volta, ministrou a disciplina Brasil República III,

disciplina cursada por mim, quando também fui monitor.

Em sala de aula, discutia de forma aberta a situação brasileira e da população de Teresina.

Pari passo às suas atividades acadêmicas, mantinha-se articulado com as forças políticas mais

à esquerda. Como foi registrado pela história política brasileira, em dezembro de 1979, a

ARENA e MDB foram extintos. Formaram-se o Partido Democrático Social (PDS), composto

por ex-integrantes da ARENA, e o PMDB (PMDB) Partido do Movimento Democrático

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Brasileiro, englobando a maioria da oposição. Os trabalhistas dividiram-se no Partido

Trabalhista Brasileiro (PTB) e no Partido Democrático Trabalhista (PDT). Surgiu ainda no

mesmo período, o Partido Popular (PP), composto por militantes conservadores da oposição.

Formou-se também o Partido dos Trabalhadores (PT), liderando pelo sindicalista Luís Inácio

“Lula” da Silva (FERREIRA, 2013, p. 216).

É neste contexto que a maioria dos vereadores do PMDB e partidos como o PC do B se

articularam para lançar a candidatura de Wall Ferraz à Prefeitura de Teresina. A indicação não

foi aceita de forma pacífica por todos os vereadores do PMDB. Osmar Júnior (vereador do

PMDB, integrante do Comitê do PC do B), ler em plenário documento lançando a candidatura.

Ainda no começo da campanha, o candidato, por intermédio de Osmar Júnior, se aproxima de

Manoel Domingos Neto, ideólogo do PC do B no Piauí e ganha como reforço a militância desse

partido em sua campanha. “Os comunistas tinham uma militância muito forte em Teresina,

eram competentes na propaganda e seriam muito úteis ao candidato do PMDB, nesse Particular”

(CASTRO, 2009, p. 53).

No discurso de posse Wall Ferraz declarou:

[...] Grandes edificações são necessárias. Asfalto também. Praças e jardins são

imprescindíveis. Tudo será inútil, porém, se ao lado dos suntuosos edifícios vivem

famílias no maior grau de miséria. De nada valerá o asfalto se ao longo dele se

amontoam casebres abrigando a mais extremada pobreza. As praças e jardins não

terão sentido se os usuários, corroídos pelas mais crônicas carências, não sabem como

utilizá-los convenientemente. Consequência da minha opção pelo social, saneamento

básico, habitação, transporte, educação, alimentação, saúde, são itens que merecerão

atenção máxima do meu governo (CASTRO, 2009, p. 78).

É possível narrar uma vida? A resposta imediata é não. O leitor perceberá que a proposta

registra algumas das práticas mais visíveis da trajetória de Raimundo Wall Ferraz: foi um

político de sucesso, muito especialmente quando comandou o Executivo municipal. Ocupando

este lugar de poder, foi considerado um agitador cultural, pois criou instrumentos que

permitiram a publicação de livros e revistas, criou também condições para que o teatro, o

cinema, a dança, a pintura, a fotografia ganhassem espaço nas mídias e em casas de exposições

como é o caso da Casa da Cultura de Teresina, o Teatro do Boi, a Fundação Cultural de

Monsenhor Chaves, a Escola de Dança, a Escola de Música.

Raimundo Wall Ferraz ganhou a simpatia da população de Teresina, inclusive a minha.

A Fundação criada por ele publicou os meus primeiros artigos, resultado de pesquisas realizadas

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no Centro de Pesquisas Econômicas e Sociais (Fundação CEPRO), do mesmo modo, publicou

a dissertação de mestrado e a tese de doutorado. Cito-me como exemplo, entretanto sua

administração instituiu o Concurso Novos autores, permitindo, desta forma, que jovens

pesquisadores tivessem os resultados de suas pesquisas conhecidos pelo público de fora dos

muros das universidades. Por tudo que foi apontado aqui, creio que a pesquisa, que deve resultar

na publicação da biografia de Wall Ferraz, é relevante.

Raimundo Wall Ferraz como todos os homens é um ser múltiplo. Saiu de um partido

considerado de direita e golpista, como é o caso da UDN indo fazer parte da ARENA, partido

com características assemelhadas, isso entre meados da década de 1950 e o final da década de

1970. Filiou-se ao PMDB, que, naquele momento, recebeu em suas linhas quase todos

adversários da ditadura civil-militar. Militantes dos partidos de esquerda, dentre os quais

destaco o Partido Comunista Brasileiro e o Partido Comunista do Brasil, abrigaram-se na sigla.

Em Teresina/Piauí, posso citar, como exemplo, o vereador Osmar Junior que fazia parte da

Diretoria do PC do B, mas era filiado ao PMDB. Com a criação do PSDB, Wall Ferraz filiou-

se a este partido, onde permaneceu até sua morte em 1995. Como se pode constatar, do ponto

de vista político/ideológico, andou de um partido de direita em direção a um partido de centro.

Nas campanhas para deputado federal, em 1982, e para prefeito de Teresina em 1985, recebeu

o apoio do Partido Comunista do Brasil. Depois de ter vencido esta eleição, criou a Secretaria

de Assuntos Sociais, colocando como secretária uma militante do PC do B.

A proposta põe em destaque a trajetória política de Wall Ferraz, como o fez Benito Bisso

Schmidt quando defende que o “contexto deve ser pensado como campo de possibilidades

historicamente delimitado, onde os indivíduos, a cada momento de suas vidas, têm diante de si

um futuro incerto e indeterminado, diante do que fazem escolhas, seguem alguns caminhos e

não outros” (SCHMIDT, 2004, p. 133).

Tenho a convicção de que não darei nós em todos os fios da vida de Raimundo Wall

Ferraz, mas isso não pode servir de empecilho para que eu construa sua biografia. Sei que o

modo como é feita no tempo presente, imputa ao historiador a preocupação de aproximar-se o

máximo possível dos fios que ligam o indivíduo a seu contexto. “Sendo, portanto, uma das

tarefas fundamentais do gênero biográfico na atualidade recuperar a tensão, e não a oposição,

entre o individual e o social” (SCHMIDT, 2004, p. 133).

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Giovanni Levi em artigo publicado no livro Usos e abusos da história oral, publicado em

1996, depois de dialogar com Arnaldo Momigliano, historiador italiano, “registra que a

biografia constitui na verdade o canal privilegiado através do qual os questionamentos e as

técnicas peculiares da Literatura se transmitem à História”. A discussão sobre a relação História

e Literatura ainda é carregada de tensão, pelo menos para uma parcela dos historiadores, dentre

os quais me incluo. Alguns pontos relevantes da relação mencionada focam a questão da ficção

nas duas disciplinas. Talvez o grande problema, se ele existe para nós aprendizes de

historiadores, resida no fato de que, por muito tempo, tentamos ignorar ou fazer tábula rasa da

necessidade de aprofundamento teórico e das questões filosóficas relevantes que envolvem a

relação entre as duas disciplinas

Vou trabalhar com a narrativa e me aproximar da Literatura? A resposta é sim. E por quê?

Desde a segunda metade do século XX, a história aproximou-se de disciplinas como a

Sociologia, a Antropologia a Linguística, a Literatura para citar as mais destacadas. Como

resultado desta aproximação desenvolveu um campo mais sensível de possibilidades de

interpretação de conceitos e noções sofisticadas, que contribuíram para o trabalho de

interpretação, portanto, compreensão do historiador. É impossível negar que a Clio trabalha

com a noção de cultura de forma mais complexa, em razão do caráter polissêmico desta

expressão. As noções de escalas espaciais e temporais ajudaram na criação da micro-história e

história do tempo presente. Além do debate que envolve o discurso, a narrativa, a ficção e os

recursos da linguagem, aspectos relacionados diretamente com a proposta.

Um dos sujeitos desta pesquisa foi considerado um “agitador cultural” e, deste modo, esta

expressão nos leva à noção de intelectual, não de forma automática, certamente. Os estudos

sobre os intelectuais voltaram a ganhar visibilidade, mesmo que ainda de forma acanhada nos

anos 1960 e 1970, mas segundo Jean-François Sirinelli, em Os intelectuais, “[...] na verdade,

era muito mais uma questão de ausência do olhar do que de descrédito – será, portanto,

necessário apresentar em seguida uma história nascente, mais que renascente” (SIRINELLI

apud RÉMOND, 2003, p. 232). Logo em seguida, acrescenta: “a história dos intelectuais

tornou-se assim, em poucos anos, um campo histórico autônomo que, longe de se fechar sobre

si mesmo, é um campo aberto, situado no cruzamento das histórias política, social e cultural”

(SIRINELLI apud RÉMOND, 2003, p. 232).

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A história dos intelectuais e a atualização da biografia tem relação direta com a

ressignificação e o adensamento semântico da história política, como argumenta Sirinelli: “aqui

também as causas do fenômeno são múltiplas, algumas delas, novamente, ligadas unicamente

à história dos intelectuais, outras relacionadas mais amplamente à evolução do status da história

política e da história recente” (SIRINELLI apud RÉMOND, 2003, p. 237). Acrescenta que, “a

esse renascimento gratificante da história do político, somou-se a nova respeitabilidade da

história recente, da história das últimas décadas” (SIRINELLI apud RÉMOND, 2003, p. 238).

Ao que Sirinelli chamou de “história recente” vou nomear de História do Tempo Presente, uma

vez que a proposta de construção da biografia de Wall Ferraz faz parte desta tendência

historiográfica.

Creio ainda que seja necessário apontar a categoria de análise intelectual como um

conceito polissêmico e de contornos fluidos. Enquanto ator político, individual ou coletivo,

ocupou um lugar central no século XX. “De acordo com Sirinelli (2003), uma necessária

definição que permita a constituição dos intelectuais como objeto de estudo da história deve

partir de um entendimento mais largo, pelo qual os intelectuais são definidos como produtores

de bens simbólicos de grande valor político (GOMES, 2002, p. 45).

A biografia de Wall Ferraz, por fim, será construída por meio de abordagens e recortes

vários: Pôr em evidência projetos e bens simbólicos, produtores/criadores e, em especial,

mediações e mediadores, entre os quais se destacam editores, professores e

divulgadores, por exemplo. A todos estes intelectuais e práticas foram e são atribuídos

graus, tipos de autoridade e legitimidade, conforme as diferentes instâncias de

reconhecimento em questão: público, organizações profissionais, “pares”,

associações, academias, mídias (GOMES, 2002, p. 45).

Apontei, em dado momento desta proposta, com quais fontes vou construir a biografia de

Wall Ferraz. As dificuldades com a documentação têm sido motivo de impossibilidade na

construção da biografia, muito especialmente por causa da aproximação desta com a narrativa.

Levi defende que a “biografia constitui, na verdade, o canal privilegiado, por meio do qual os

questionamentos e as técnicas peculiares da literatura se transmitem à historiografia” (LEVI

apud FERREIRA, 1996, p.168). Sei das dificuldades que terei de enfrentar, à procura das

fontes, por exemplo, “dos atos e dos pensamentos da vida cotidiana, das dúvidas e das

incertezas, do caráter fragmentário e dinâmico da identidade e dos momentos contraditórios de

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sua constituição” (LEVI apud FERREIRA, 1996, p. 169). Tenho consciência dos desafios, mas

estes devem ser tomadas como estímulo e não como impedimento para a execução do projeto.

Tenho a convicção de que o sujeito desta pesquisa não pode ser visto como detentor de um

modelo de racionalidade linear, de uma “personalidade coerente e estável”, que tomava todas

as suas decisões sem incertezas. Entretanto, devo lembrar o que registrou Pierre Bourdieu no

artigo “A ilusão biográfica” quando trata do relato de uma vida.

[...] o relato de vida, tanto em sua forma quanto em seu conteúdo, segundo a qualidade

social do mercado no qual é oferecido – a própria situação da investigação contribui

inevitavelmente para determinar o discurso coligido. Mas o objeto deste discurso, isto

é, a apresentação pública e, logo, a oficialização de uma representação privada de sua

própria vida, pública ou privada, implica um aumento de coações e de censuras

específicas (das quais as sanções jurídicas contra as usurpações de identidade ou o

porte ilegal de condecorações representam o limite) (BOURDIEU apud FERREIRA,

1996, p. 189).

Tenho consciência de que poderá haver dificuldades com os familiares e ex-auxiliares

quando forem sondados para que concedam entrevistas sobre o sujeito da pesquisa, mas o

historiador deve “andar” na pesquisa de acordo com as fontes que consegue “descobrir” e

construir. Por outro lado, sendo um pesquisador relativamente conhecido, inclusive pela

maioria daqueles que conviveram com Wall Ferraz, e de certa proximidade deste comigo, os

caminhos podem ser menos tortuosos e as pedras existentes não deverão ser pontiagudas a ponto

de ferir o pesquisador, impedindo-o de concretizar o projeto.

As alegações contrárias ao modelo em tela devem ser consideradas como alerta ao

pesquisador, uma vez que o contexto no qual atuou o biografado não é extático, não é coerente e

não será empregado apenas como cenário onde se desenvolveu a trama de uma vida, a de Wall

Ferraz. Não tenho ainda argumentos para registrar que a atuação do biografado não modificou

contexto, embora não possa duvidar que “as trajetórias individuais estão arraigadas em um contexto

[...]” (LEVI apud FERREIRA, 1996, p. 175-176). De outro modo, não tenho a pretensão de dar

conta de todos os “eus” de Wall Ferraz, até porque não sei de quantos “eus” ele se constitui.

A proposta é construir uma biografia. Os caminhos que devo seguir foram apontados,

mesmo que em alguns deles ainda não os tenha pisado; todavia sei que existem sinais, rastros,

pistas deixadas pelo biografado que devem ser seguidos ou não. Será o andar conduzido pelas

leituras e pelas vivências na escola de Clio que o orientarão.

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