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VI Reunião de Antropologia do Mercosul Caderno De Textos - Grupo de Trabalho 9: “Família, Gênero e Sexualidades: perspectivas contemporâneas em debate”. Coordenadoras: Flávia de Mattos Motta - UFSC [email protected] Anna Paula Vencato - UFRJ [email protected] Secretaría: Congresos & Reuniones Cerrito 307 - Montevideo 11000 - Tel: 598 2 9160900 Fax: 598 2 9168902 E-mail: [email protected] - Pág. Web: www.fhuce.edu.uy/antrop/congreso

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VI Reunião de Antropologia do MercosulCaderno De Textos - Grupo de Trabalho 9: “Família, Gênero e Sexualidades: perspectivas contemporâneas em debate”.Coordenadoras:Flávia de Mattos Motta - [email protected] Paula Vencato - [email protected], UruguayNovembro de 2005

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VI Reunião de Antropologia do Mercosul Caderno De Textos - Grupo de Trabalho 9:

“Família, Gênero e Sexualidades: perspectivas contemporâneas em debate”.

Coordenadoras: Flávia de Mattos Motta - UFSC

[email protected] Anna Paula Vencato - UFRJ

[email protected]

Secretaría: Congresos & Reuniones Cerrito 307 - Montevideo 11000 - Tel: 598 2 9160900 Fax: 598 2 9168902

E-mail: [email protected] - Pág. Web: www.fhuce.edu.uy/antrop/congreso

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Sessão 1: (Homos)sexualidades, direitos e políticas. 16 de novembro 'Algumas garotas preferem garotas': The L Word, sexualidade e as políticas de visibilidade lésbica. Anna Paula Vencato (IFCS – UFRJ) [email protected], [email protected]

52

Mulheres De Kêto: Um Estudo Etnográfico Sobre Lesbianidade, Família E Política Na Periferia De São Paulo Camila Medeiros (Museu Nacional – UFRJ) [email protected]

62

Performances Do Querer: Masculinidades Que Se Reinventam Eduardo Saraiva (UFSC – UNISC) [email protected]

85

“Quem Precisa De Filhos?” Afirmação De Gênero Nas Construções De Parentalidade De Homens Gays, Travestis E Transexuais Elizabeth Zambrano (UFRGS) [email protected]

102

O "povo de santo" do subúrbio carioca: homoerotismo, religiosidade e 'cor' Laura Moutinho, Silvia Aguião e Crystiane Castro (CLAM - IMS/UERJ) [email protected]

143

Significados e representações da parceria civil registrada entre homossexuais masculinos em Cuiabá Moisés Alessandro de Souza Lopes (UEL) [email protected]

189

Desejo e identificação: apontamentos para uma discussão sobre gênero e sexualidade Sonia Maluf (PPGAS – UFSC) [email protected]

224

“Como Viver Bem”: Políticas de Identidade e Noções da Cidadã Ideal em uma Organização Brasileira de Lésbicas Tomi Castle (University of Iowa) [email protected]

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Sessão 2: Sexualidade, Família e Gerações. 17 de novembro Mujeres migrando. El lugar de la família. Ana Inés Mallimaci Barral (UBA) [email protected]

30

Trajetórias Afetivas: Sexo E Amor Como Elementos Da Identidade Feminina Andréa Moraes Alves (UFRJ) [email protected]

45

Discurso católico, familia y géneros en Chile, 1925-2004 Carmen Gloria Godoy R. (Universidad de Chile) [email protected]

74

Familia Y Democratización Graciela Di Marco (Universidad Nacional de San Martín) [email protected]

103

Paternidad Y Familia: Jóvenes De Sectores Pobres Urbanos Ivonne Dos Santos (FHCE – UDELAR) [email protected]

119

Gênero, gerações e modos de vida Mara Coelho de Souza Lago (CFH – UFSC) [email protected]

158

"Homens desempregados, mulheres provedoras: qual a novidade?" Pedro Nascimento (UFRGS, Instituto Papai, Fundação Ford) [email protected]

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Dança com hora marcada: geração e gênero nos bailes de dança de salão. Virna Virgínia Plastino (Museu Nacional - UFRJ) [email protected]

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Sessão 3: Feminismo, Sexualidade, Reprodução e Saúde. 18 de novembro Confronto De Arapiracas – Gênero, Feminismos E Concepções Disputantes Alinne De Lima Bonetti (UNICAMP) [email protected], [email protected]

05

Género E Poder Nas Famílias Da Periferia De Maputo (Moçambique) Ana Bénard Da Costa (: Instituto De Investigação Científica E Tropical, Lisboa) [email protected]

15

Una Perspectiva De Género: El Hombre Y La Mujer De La Reserva De La Biosfera “Península De Guanahacabibes”. Dialvys Rodríguez Hernández (Centro De Antropología, Ministerio De Ciencia, Tecnología Y Medio Ambiente (Citma), Ciudad De La Habana.) [email protected]

84

Anticoncepción y maternidad en mujeres migrantes de sectores populares residentes en hoteles de la Ciudad de Buenos Aires. Juliana Marcus (IIGG - CONICET, Facultad de Ciencias Sociales, UBA) [email protected]

120

Gênero, Sexualidade e Reprodução entre os Pataxó Hãhãhãi sul da Bahia Jurema Machado de Andrade Souza (PPGCS/UFBA) [email protected]

132

Masculinidade, Sexualidade E Prevenção De Ist/Aids Entre Homens Rurais No Nordeste Do Brasil: Um Estudo De Caso Maria de Fátima Paz Alves (UFPE) [email protected]

173

Sexualidad, Sociedad y economía en el Noroeste Argentino Nélida Luna, Luciana Miguel, María ElinaVitello (UBA) [email protected]

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Construções e Desconstruções: Identidade da Mulher Árabe Muçulmana em Brasília Sônia Cristina Hamid (UNB) [email protected]

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Confronto de Arapiracas – Gênero, Feminismos e Concepções Disputantesi Alinne de Lima Bonetti [email protected] e [email protected] Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Introdução

Em tempos de intensa crítica a categorias universalizantes, o feminismo, como

uma ideologia política típica das sociedades ocidentais modernas, tem se deparado com o dilema e o desafio de definir o seu projeto político, circunscrever o seu sujeito político e viabilizar a sua prática política (cf. Young, s/d, Harding, 1993, Butler, 1998 e 2003).ii O movimento feminista, enquanto um movimento social, pressupõe um projeto político específico, entendido como o “conjunto de crenças, interesses, concepções de mundo, representações do que deve ser a vida em sociedade, que orientam a ação política” (Dagnino, 2002:282). A um projeto político específico corresponde um “(...) sujeito coletivo no sentido de uma coletividade onde se elabora uma identidade e se organizam práticas através das quais seus membros pretendem defender seus interesses e expressar suas vontades, constituindo-se nessas lutas” (Sader, 1995:55). Tal sujeito político específico do feminismo seria, no caso, as mulheres.

No entanto, tomando-se como referência os movimentos feministas latino–americanos, pode-se situar a década de 90 (cf. Soares, 1998) como um marco na pluralização do feminismo, seja em termos de bandeiras de luta, de diversidade de grupos e de espaços de atuação, a ponto de passar a ser referido no plural. Essa recrudescente diversidade no interior do movimento feminista implica na co-existência de distintos projetos políticos. O desafio de manter uma unidade nas reivindicações e lutas passa a ser problematizado, levando ao questionamento da especificidade do sujeito político do feminismo. É possível uma ação política sem um sujeito coerente, identificável e estável? Como viabilizar a ação política em meio a uma exaustiva constituição de diferenças?

Para refletir sobre essas questões, analiso alguns dados com os quais me deparei na pesquisa etnográfica que realizei em Recife (PE), junto a um importante espaço de articulação política do movimento de mulheres/feminista local – o Fórum de Mulheres de Pernambuco. Para analisá-los, inspiro-me na contribuição de duas estudiosas feministas, cuja posição teórica possibilita compreender essa intensa diversidade interna do campo feminista contemporâneo. Sônia Alvarez (1998) propõe pensar o feminismo não mais como um movimento, mas como um “campo discursivo de atuação/ação” (pg. 265). A sua concepção de “campo feminista” aponta para uma reflexão acerca do campo do político, ou seja, “no sentido mais amplo, o cultural, o simbólico e as relações de poder/gênero que aí se constituem e se reconfiguram continuamente (Alvarez, 1998: 267). O deslocamento analítico embutido na proposta de Alvarez possibilita acolher a diversidade de concepções sobre o que seja o feminismo e considerar com as disputas internas entre elas.

Somando-se à noção de campo feminista, a posição crítica de Judith Butler sobre a presunção acerca da existência de uma identidade feminina estável e coerente que fundamentaria a política feminista (cf. Butler, 1997 e 1998) possibilita analisar a questão do sujeito político do feminismo. Essa autora alerta para a necessidade do desvendamento analítico da constituição cultural e histórica dos sujeitos políticos e das formas discursivas de lhes atribuir autoridade e legitimidade. Na sua concepção, o sujeito político é contingente - porque situado contextual e historicamente (cf. Butler,

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1998). Logo, constituído “a partir de cadeias de significados socialmente construídos” (Pinto, 1987:164). Assim, para o feminismo, Butler propõe uma incompletude essencial da categoria mulheres (cf. Butler, 2003:36). Uma proposta anti-fundacionista, não antecipadora com ênfase na instabilidade das categorias e na contingência.

A partir disso, resta atentar para as experiências concretas. Tomando como universo de análise o campo feminista circunscrito ao Fórum de Mulheres de Pernambuco (FMPE), buscarei demonstrar como o embate entre alteridades e entre concepções disputantes revelam diferentes sujeitos políticos, contextuais e contingentes. Tais sujeitos desafiam a existência de um sujeito único e coerente, impondo desafios constantes à prática política feminista. Acredito que tal experiência é reveladora dos mecanismos que engendram o campo feminista contemporâneo, possibilitando compreender melhor a sua constituição.

A abordagem etnográfica aqui utilizada preocupa-se com a interação entre contexto, situação e sentido na constituição dos processos da ação social significativa. Busca-se, através dela, abarcar o significado da experiência social ao explorar os distintos domínios de sentido de gênero, os seus contextos associados e o seu uso social pelos diferentes atores (cf. Atkinson, 1982). Tal abordagem permitiu-me identificar que as concepções disputantes sobre o feminismo revelam intricadas relações de poder e de gênero, marcadas pelas interseções entre sexo, classe, orientação sexual e raça.

Esta análise parte, também, da compreensão de gênero como “um princípio pervasivo da organização social” (Strathern, 1987:278), e como uma “categoria de diferenciação” (Strathern, 1990: ix) que tem como referência a imagética sexual. O gênero assim entendido cria categorizações, cujas relações entre si revelam possibilidades inventivas sobre relações de gênero e sobre relações sociais. Assim, tal categoria de diferenciação perpassa e marca as mais diversas ações sociais. Não se restringe, portanto, à relação corpo biológico- sexo- gênero; antes abarca, e dota de sentido, a organização da vida social nas mais diversas manifestações das experiências humanas. Gênero, como produtor de sentidos socialmente significativos, é provido de valores que podem estar implicados em processos de constituição de desigualdades e de relações de poder.

A partir destes pressupostos é que analisarei os dados etnográficos sobre a experiência do campo feminista recifense. Procurarei demonstrar analiticamente como esse campo discursivo feminista se configura, marcado pelo estabelecimento de um sistema de distribuição desigual de prestígio. Tal sistema se traduz, na prática, no estabelecimento de relações de poder que posicionam desigualmente as alteridades em disputa no campo. O campo feminista recifense

Atualmente Recife parece ocupar um lugar central na campo feminista

nordestino. A existência de muitos grupos feministas antigos e de projeção nacional, somado ao grande investimento de agências de cooperação internacional na região redunda na consolidação de um feminismo forte e atuante. Esse feminismo, tomado genericamente, tem como características os princípios democráticos tradicionais do feminismo, tais como a autonomia, horizontalidade na participação e a construção do consenso na ação, como definem algumas feministas pernambucanas.

No entanto, esses princípios devem ser analisados a partir de um contexto constituído por valores que implicam na distribuição desigual de prestígios e privilégios e no qual as diferentes agentes do campo ocupam posições simbólicas distintas. Essa

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equação define quem tem o poder de fala e, mais ainda, de ser escutada. Sendo assim, a própria idéia da horizontalidade passa a ter uma outra conotação, escondendo em si relações internas de desigualdade. Olhando-se mais detalhada e demoradamente para os significados em ação, produzidos por essa práxis feminista, pode-se perceber como se dá a disputa entre diferentes visões sobre o feminismo dentro do próprio campo local.

Nesse sentido, o Fórum de Mulheres de Pernambuco é um espaço privilegiado para se compreender tais relações. Fundado em 1988, após o IX Encontro Nacional Feminista de Garanhuns, O FMPE objetiva reunir e articular os diferentes grupos feministas e de mulheres existentes no estado. Constitui-se como um importante espaço de confluência do feminismo na cidade de Recife. Nos seus 17 anos de existência, é um dos mais antigos, consolidados e atuantes do país.

O FMPE é dirigido por uma coordenação colegiada eleita a cada dois anos, formada por três representações dentre as que fazem parte da sua articulação. Atualmente é composto por, em torno de, 60 participantes, distribuídas entre 48 entidades e representações de feministas independentes.iii Dentre as participantes há uma diversidade enorme no que tange à inserção política de cada grupo e à temática de trabalho. Segundo Nair Valença, uma das atuais coordenadoras do FMPE, a composição política do Fórum é variada. É uma articulação política que reúne representações feministas, ONGs, universidade, meio rural, meio urbano, mulheres de partido e de lutas comunitárias (DC090405).iv Os temas variam entre: “controle social, direitos sexuais, DST/AIDS, educação, enfrentamento da violência contra a mulher, juventude/adolescência, participação política, pesquisa, questão rural, raça/etnia, saúde, trabalho e renda” (cf. Guia de Fontes do FMPE), sendo que há algumas entidades participantes com mais de uma temática de trabalho. O FMPE pauta as suas ações em concordância com a agenda feminista, para além do calendário feminista de datas comemorativas do movimento. Arapiracas – gênero e poder

A primeira impressão que se tem quando se chega numa reunião do FMPE é a de que ali é um espaço plural, de exercício democrático intenso, no qual as diferenças encontram espaço para a sua manifestação e, portanto, pejado de conflitos. Nas primeiras reuniões de que participei, um primeiro estranhamento que tive foi o tom beligerante que marcava as discussões, sempre contando com a exposição de diferentes pontos de vista defendidos com muito afinco. Ficava espantada de ver o tempo que se levava nas rodadas de discussão acerca de pontos de pautas mais polêmicos. Sobretudo, porque as opiniões me soavam muito parecidas e se repetiam. Era como se não pudessem abrir mão do espaço de fala e que a afirmação da sua posição era de crucial importância para o jogo político que se estabelecia ali.

Numa conversa informal com uma participante, comentei sobre esse meu estranhamento acerca do tom agressivo e beligerante das reuniões, conforme registrei:

“Comentei que não tinha muito talento para o jogo político, que me sentiria intimidada se tivesse que ficar brigando o tempo todo. Disse-lhe, em tom de brincadeira, que se tivesse de passar por situações que presenciara, de forte e (aos meus olhos), agressivo embate, eu choraria. Alaíde, rindo-se muito do meu jeito, me sentenciou: não mermã! Nunca chore no Fórum de Mulheres que daí mesmo que elas vêm pra cima de tu com tudo! Nunca chore! Ali mulher não chora!

O meu comentário a fez lembrar de uma situação que ela própria vivenciara. Contou-me que a Casa Vive Mulher (ONG que representa no FMPE) esteve afastada do Fórum durante um tempo, porque a presidente tinha rompido com o feminismo, com o movimento feminista de

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Recife e, portanto, tinha se retirara do Fórum. Em função disto, a Casa estava queimada e até retomar a participação foi muita disputa pelo espaço e eu levei muito na cabeça. Foi bem difícil... Mas fui insistindo, articulando e agora a Casa tem o seu espaço novamente. Mas tem se que estar sempre na disputa para manter o espaço conquistado. Contou-me de uma ocasião em que tivera de ir a uma reunião a fim de reivindicar uma vaga para a Casa numa importante conferência que ocorreria. Temerosa de enfrentar o grupo sozinha, a sua colega de trabalho Luana, mais acostumada com os códigos locais, incentivou-a que fosse à reunião e colocasse a arapiraca na mesa. Estranhei de imediato a palavra e ela, entre risos tímidos, me explicou: arapiraca é o simbólico do pênis. É mais do que colocar o pau na mesa, é mais poderoso... Gargalhamos juntas. Ainda rindo-se, agora despachadamente, Alaíde continuou a contar que elas e suas colegas costumavam brincar com essa história de arapiraca, questionando se não dava para colocar o útero mesmo, ao invés da arapiraca, na mesa...” (DC021104).

A formulação de Alaíde é exemplar para se pensar sobre a prática feminista local: na forma como se estabelecem as relações, no jogo político e nos significados de gênero produzidos dentro do FMPE. E, além disso, ilumina questões importantes sobre o campo feminista de forma geral. O tom aguerrido e a assertividade estranhadas pelo olhar estrangeiro da pesquisadora, somado à asserção “ali mulher não chora”, apontam para um modelo específico de feminilidade em curso naquele contexto. Chorar, conforme sugeri, frente ao conflito parece ser uma saída que remete a um determinado feminino, frágil e dependente, do qual parecem querer se afastar as mulheres que estão nesse jogo político. Para se estar ali, faz-se necessário ser valente e ter coragem para enfrentar as disputas, angariar prestígio para estabelecer alianças e articular politicamente.

Elemento recorrente na pesquisa, o atributo arapiraca-coragem parece ser um importante traço que compõe o repertório simbólico do fazer político nesse campo, revelando as relações de poder internas a ele. Reclamação recorrente dentre as participantes do FMPE, nas mais distintas situações, tais relações revelam como o prestígio ali se distribui e apontam, também, para os diferentes sujeitos políticos em disputa e sentidos atribuídos ao feminismo.

As reuniões do FMPE costumam acontecer na sede do Instituto Mulheres pela Cidadania, uma das entidades mais prestigiosas e antigas do campo feminista de Pernambuco. Normalmente acontecem no auditório, com capacidade para acolher em torno de 80 pessoas. Antes de cada reunião, o espaço é organizado de forma a possibilitar o debate democrático e horizontal entre as participantes, dispondo-se as cadeiras num grande círculo. Quando as cadeiras são ocupadas pelas participantes, pode-se perceber claramente a disposição de acordo com critérios de afinidade. O que forma, dentro da horizontalidade, diferentes sub-grupos. É nessa arena que o jeito singular do fazer político emerge e em que se dão as disputas.

A idéia de colocar a arapiraca na mesa, como um recurso do qual se lança mão em meio à disputa política, é algo recorrentemente utilizado nas reuniões do FMPE. Sustentar a sua voz, no espaço público, é um requisito fundamental da práxis política local. No entanto, nem sempre há espaço para a sustentação da voz. Nem todas possuem uma arapiraca. Numa conversa sobre o funcionamento do FMPE com Alaíde, ela explicita a sua opinião sobre essa característica, conforme registrei:

“Alaíde identifica, como me asseverou, hierarquias de poder, em que somente determinadas figuras têm voz e força ali dentro e pautam as questões. Disse-me haver uma hegemonia de questões lésbicas e de um tipo de posição feminista marcada pela lesbianidade. Segundo ela, se as mulheres que monopolizam a fala deixassem espaço para outras ali dentro se manifestarem, veriam que há muitas que não concordam com o discurso feminista lésbico e que não se identificam como feministas. Exemplificou com o caso das mulheres de base, as quais, segundo a sua opinião, nunca têm espaço para falar porque se sentem intimidadas pela

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truculência das que dominam a cena. Ponderou que o discurso lésbico-feminista domina porque há muitas militantes lésbicas ali, muito articuladas e empoderadas.” (DC021104).

Na reflexão de Alaíde, a distribuição diferencial da fala está associada com um jeito muito singular de fazer política, encerrado na noção de articulação. A habilidade em tecer alianças políticas, otimizadas pelas relações pessoais - na visão da informante -, é o que dará o tom das relações políticas ali dentro. E são nos momentos de acirrada disputa política que esses elementos aparecem mais claramente, esboçando esse modo singular de fazer política.

A distribuição desigual de privilégios é claramente assumida quando, na intensa disputa argumentativa numa situação de definição de representações para uma evento, Odete, militante feminista representante do Instituto Mulheres pela Cidadania, expõe o modo de fazer política ali, com o intuito de encerrar a discussão: é por situação de articulação política. Conforme a necessidade e cada situação, se a gente considera que determinada pessoa é mais adequada para a representação, a gente vai e liga. É o estilo de fazer política do fórum, desde esses dois anos que estou aqui, é assim que funciona. Não é uma instituição em si, o que vale é a articulação política. Os critérios é o de fazer acordos. Não sei se é certo ou errado, mas é assim que a gente trabalha (DC070405).

A questão de fundo aqui é a de explicitar a quem se refere esse genérico a gente no discurso de Odete. Por mais que se assevere uma horizontalidade nas decisões, nas mãos de quem está o poder de tomá-las? À primeira vista, a gente parece se referir ao coletivo democrático e participativo. No entanto, levando-se em conta essa distribuição diferencial de prestígio e de arapiracas, o a gente de Odete parece encontrar respaldo num feminismo que se pretende hegemônico ali dentro e que tem o maior capital de articulação. A recorrência dos lugares de fala de cada mulher que interagiu nessa disputa aponta indícios dele. Situando cada porta-voz em relação à entidade que representa, pode-se ter uma idéia de como o poder de decisão e de definir as pautas está distribuído.v

No entanto, há visões discordantes, resistentes a esse genérico coletivo a gente e que disputam entre si. Essas disputas se dramatizam na constituição de um par antagônico, num genérico nós x elas, cujo conteúdo varia de acordo com a posição de cada sujeito de fala. Além disso, remetem a uma noção de sujeito político que retira a sua legitimidade e autoridade da experiência imediata, da vivência. Há, como poderá se perceber, uma noção de sujeito político que é substancial.

Um primeiro par de oposições, que aparece na reflexão de Alaíde acima, está no nós heterossexuais X elas lésbicas. Identificando um favorecimento maior em pautar questões lésbicas e de entender serem essas as vozes mais ouvidas, uma primeira questão que surge é o que pode ser encerrado na idéia de uma homo-normatividade. Inspiro-me aqui nas reflexões de Butler (2003) acerca da “matriz heterossexual compulsória”, com o sinal trocado.vi Assim, a matriz contingente que definiria a inteligibilidade das relações dentro do FMPE e um dos eixos da distribuição de prestígio seria a da homo-normatividade.

É curioso de se notar que as ativistas lésbicas que participam do FMPE não compartilham dessa mesma visão. Ressentem-se exatamente do que identificam como uma invisibilidade das questões de interesse das lésbicas ali dentro. Kelly, coordenadora do Instituto pela Livre Expressão Sexual, é uma das porta-vozes da luta pela visibilidade lésbica dentro do FMPE. Na grande maioria das suas intervenções, ela manifesta uma crítica à forma como a questão é tratada socialmente; o que, na sua concepção, se reproduz dentro do FMPE.

Visão semelhante acerca da visibilidade lésbica e das relações de poder dentro do FMPE têm as ativistas da Associação de Mulheres pela Diversidade Sexual, mas com algumas diferenças, que parecem ser muito importantes no campo feminista local.

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Na concepção das ativistas do grupo, sobre a sua relação com o feminismo e com o FMPE, surgiu uma crítica à dimensão de posição de classe adotada pelas vozes hegemônicas. Assim, a associação da dimensão de pertencimento social introduz uma segmentação no sujeito “lésbica”, tomado genericamente. Além disso se traduz numa intensa fonte de conflito entre as lésbicas intelectuais e as lésbicas populares, conforme classificação êmica. Ligado a esta distinção encontra-se também mais um elemento que contará no estabelecimento das, tão denunciadas, relações de poder.

Essa distinção desafia a possibilidade de afirmação de um sujeito político lésbico estável, único, como poderia dar a entender a reivindicação de Kelly anteriormente. O que influencia o jogo político e as alianças entre os grupos em disputa. O marcador de classe, nesse contexto, se configura como um importante produtor de diferenças.

Uma outra fonte de acusação e de disputa presentes no campo de pesquisa, e que contribui para se pensar as características do feminismo produzido ali, é a da misiandria. Aqui se estabelece uma oposição entre um nós mulheres X eles homens. Essa visão apareceu recorrentemente, entre diferentes agentes do campo feminista local, que se aliam contra esse traço excludente de um discurso feminista que se pretende hegemônico. Em conversa com Luana e Alaíde, da Casa Vive Mulher, ambas foram categóricas em fazer uma separação entre gênero e feminismo, ao apresentarem os princípios que regem a ONG: “Luana, enfaticamente, afirmou que a gente não se diz feminista, a gente trabalha com gênero. Quando eu cheguei aqui, a casa era feminista, socialista e muitos outros istas. Mas depois se brigou com todos os istas. Nos trabalhamos num processo maior, com direitos humanos, mulheres, homens e adolescentes. O movimento de mulheres e o movimento feminista em si tem enquadramentos que discordam. Alaíde, vindo em seu auxílio, completou: para se dizer feminista, tem que se assumir aportes do feminismo naquele momento, mas muda. Uma coisa com que não concordamos é que é barrada a participação dos homens. Nós, como nosso foco é a violência doméstica, não podemos excluir os homens. O Fórum tem feministas, mas tem também movimentos de mulheres. Se outras não estiverem atentas, vira só feminista. E tem de tudo ali dentro, desde de movimentos de mulheres que luta pelo empoderamento até aqueles que lutam contra o feminismo. Tem espaços de lideranças de mulheres, por exemplo de partidos, que não participam do fórum. E não tem espaço, porque tudo é tido como feminista e não tem espaço para discordar; tem muitas relações de poder lá dentro do fórum, e o que conta é a discussão das lésbicas” (DC181004).

Essa mesma posição acerca da misandria do FMPE é compartilhada pelo Instituto pela Pluralidade Feminista, que enfrenta muitas dificuldades na sua participação no FMPE pelo fato de ter nos homens o seu foco de trabalho. Definem-se como feministas, mas de um feminismo acadêmico, como ressalta Olavo Lugal, ativista da instituição. Essa entidade tem uma estreita ligação com a Universidade Federal de Pernambuco, tendo se originado como um núcleo seu. Segundo esse ativista, o Instituto foi o primeiro núcleo feminista a trabalhar com homens. Na sua avaliação, mesmo com dificuldades, a discussão feminista na academia é outra, é mais conceitual e por isto é mais permissível à participação de homens. Ao contrário do que ocorre no FMPE, cuja participação da entidade só foi possível a partir de uma representante mulher. Cabe ressaltar que a entidade fez parte da coordenação do FMPE durante um período, o que não minimizou as tensões enfrentadas dentro do espaço do fórum:

“Olavo desabafou que após reiteradas tentativas de participação no FMPE, nós desistimos do embate, porque entendemos que o sujeito político são elas. Não estamos pleiteando o lugar do sujeito político do movimento social; já que este é o grande medo delas. Também porque sabemos que nós, enquanto homens, somos a exceção num contexto maior em que a hegemonia é outra. Segundo ele, o FMPE é um fórum reconhecido como combativo e que não foi um espaço fácil para o Instituto estar. E que em virtude disso, conseguiram muito pouco ali dentro: não conseguimos colocar o problema dos homens ali. Ficou uma discussão muito periférica. Para ele a resistência na aceitação dos homens relaciona-se com uma determinada

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visão feminista: as mulheres feministas têm um entendimento de que o feminismo é para ser aplicado às mulheres apenas; quando os homens aparecem, é como contraponto, como cristalizado, como o dominador, como o que subordina. Boa parte das feministas não consegue fazer essa leitura de gênero. O gênero propõe um exercício reflexivo e quando chegam num determinado ponto elas não conseguem passar da fixação na mulher” (DC101204).

A visão do feminismo como sendo uma luta que somente diz respeito a mulheres e que exclui os homens, posto serem contra quem se luta, é corroborada pela posição de uma ativista feminista de renome no campo, Cíntia Dorneles, do Grupo Saúde da Mulher e Aids. Ela expõe, na sua argumentação, a justificativa pela opção misiândrica, defendendo as especificidades das lutas dos diferentes movimentos, comparando o movimento negro ao movimento feminista. Segundo ela o movimento feminista não aceita homens, porque tem que ter o seu espaço de privacidade. Assim é o movimento negro, que também quer ter o seu espaço de privacidade, para ter uma discussão entre eles. Isso não é segregação, não. Mas quando se diz que têm pautas do movimento feminista que não as inclui [as mulheres negras]; isso me incomoda bastante porque todas as questões do movimento feminista dizem respeito a todas as mulheres. É uma luta que tem de ser nossa e o desafio é esse: como vai ser o diálogo do sujeito mulher negra com esse sujeito universal do feminismo (Dc160305).

É interessante perceber que na sua formulação, um outro eixo de oposição de fundamental importância no campo também aparece: o nós mulheres X elas mulheres negras. Esta formulação apareceu em meio a uma reunião temática do FMPE que tratava da relação entre feminismo e mulheres negras. Apesar de ser um tema que foi adotado como um dos eixos principais da luta do Fórum, ele não parece gozar do mesmo grau de adesão e investimento que têm o tema da violência doméstica e do aborto legal e seguro. Já na reflexão de Cíntia Dorneles acima, pode-se perceber uma certa segmentação entre agendas de luta, que parece estar associada com a noção de sujeito político como veremos a seguir. A o se observar as discussões sobre o tema, parece haver um entendimento é a de que a questão racial é um assunto cujo protagonismo deva ser das mulheres negras.

Por sua vez, as militantes negras se ressentem da falta de espaço para as questões raciais ali dentro, identificando-a como periférica no FMPE. Mesmo em se afirmar a garantia do espaço de discussão do tema dentro das ações do FMPE, ele é visto como uma questão cuja bandeira deva ser primeiramente levantada pelas negras e não por qualquer uma das feministas ali dentro. Segundo algumas informantes, o respeito ao protagonismo das próprias militantes negras é atribuído à dificuldade de relacionamento com o próprio movimento de mulheres negras, que tem tendências segregacionistas. No entanto, essa necessidade do protagonismo das feministas negras é contestada pelas próprias militantes. Eva Basso, importante ativista do tema, afirmou que a questão racial deve ser algo de todas as mulheres no fórum, negras e brancas. Temos de observar a força que nós mulheres negras fazemos no sentido de enegrecer o movimento feminista; da mesma forma, temos de feminilizar o movimento negro, que é muito machista!

Mas é na presença de mulheres oriundas de movimentos populares que se pode perceber um dos mais produtivos embates entre alteridades e a dramatização das relações de poder dentro do FMPE. Uma das primeiras características que ouvi sobre o espaço do FMPE foi sobre a sua composição variada, dentre as quais se encontravam desde ONGs feministas e mulheres de base. Trata-se de uma distinção êmica, muito recorrente e marcante no campo; balizadora de posições, ela imprime uma forte característica no campo de pesquisa.

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O antagonismo entre um nós feministas X elas de base reveste-se de inúmeros sentidos: o de ter ou não ter acesso a estudos, ter ou não recursos para a militância, em ter ou não voz, cujas combinações demonstram a dinâmica desses pares antagônicos. Na distribuição do espaço para a manifestação das arapiracas, das que têm a sua voz escutada, o grupo de mulheres de base são identificadas como as mais silentes no campo. Por esse motivo, muitas se arvoram em ser suas porta-vozes. O silêncio é percebido (e ao que parece fonte de preocupação) pelas dirigentes do Fórum. No entanto, entendido de maneira particular, sem levar em conta a dimensão simbólica da distribuição do poder de fala ali dentro, monopolizado por algumas mulheres.

Levando-se essa dimensão em conta, o silêncio não parece significar passividade ou falta de empoderamento neste caso, como é reiteradamente interpretado. Antes parecem estar a se manifestar de outras formas e a se apropriar de determinados discursos, adequando-os à sua prática. Esse suposto silêncio parece indicar um estratégico jogo de alianças, que revelam um jogo de identificações e diferenciações constantes de acordo com cada situação. Buscam, assim, estabelecer tais jogos tendo em vista ganhos políticos, seja em prestígio ou em possibilidades de financiamentos para garantir a sobrevivência dos seus pequenos grupos e a de suas militantes.

Essas alteridades em embate e as suas concepções disputantes acerca do feminismo revelam sujeitos políticos distintos, que resistem a uma unificação. É interessante de se perceber que a noção de sujeito político em curso nesse contexto investigado, embora articulando qualidades ontológicas fixas, acaba por impor uma fluidez ao sujeito político feminista. Os sujeitos políticos e os desafios à prática feminista

O embate entre os diferentes sujeitos políticos sugere uma imprescindibilidade da presença de um representante legítimo para a defesa dos seus interesses. Essa legitimidade parece advir de uma noção de identidade, que soa, no embate político, como substancial. Tal noção de identidade resulta na articulação de um sujeito político cujas autoridade e legitimidade advém de uma concepção muito particular de experiência. Muito embora a noção de experiência tenha um potencial desessencializador importante, conforme alerta Scott (1999), posto que visa abarcar o agenciamento e a forma como sujeitos são constituídos, aqui nesse jogo político ela toma outra forma. Acredita-se, nesse contexto, que só vai para o cotidiano [lutar] quem sente a opressão na pele (DC070405), conforme desabafou Kelly num dos inúmeros embates que travou dentro do FMPE a fim de defender a sua bandeira política. Dessa forma, a experiência empírica, acaba por ser tomada como um fundamento ontológico dos sujeitos e, logo, uma arma na disputa política ao se tornar inconteste.

No entanto, em meio a um contexto de distribuição desigual de arapiracas, passa a ter importância fundamental a prática da coalizão. Tal formação de alianças situacionais, encerradas na expressão êmica fazer articulação, revela-se como um significante importante que dota a prática política feminista de sentido. E é nesse movimento que se percebe combinações circunstanciais dos eixos de constituição de alteridades, que variam de acordo com a situação e com os interesses em jogo (como se pode ver mais claramente na tensão entre lésbicas intelectuais X lésbicas populares).

Em vista disso, o argumento legitimador da experiência somado à tentativa de estabilização de uma identidade fixa e coerente acabam dando lugar a uma fluidez e a uma contingência. Esses elementos parecem necessários ao jogo político inscrito num universo de valores marcado pela distribuição desigual de prestígio. Desse modo, a intensa produção de alteridades nesse contexto político solapa a possibilidade de estabilização de uma identidade coletiva comum.

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Em vista disso, faz-se necessário adotar uma outra forma de se compreender a experiência e os sujeitos políticos. Scott propõe tratá-los como “eventos discursivos”, o que

significa recusar a separação entre ‘experiência’ e linguagem e insistir na qualidade produtiva do discurso. Sujeitos são constituídos discursivamente, mas existem conflitos entre sistemas discursivos, contradições dentro de cada um deles, múltiplos sentidos possíveis para os conceitos que usam. E sujeitos têm agenciamento. Eles não são indivíduos unificados, autônomos, que exercem o livre arbítrio, mas ao contrário, são sujeitos cujo agenciamento é criado através de situações e posições que lhes são conferidas. (...) A experiência é um evento lingüístico (não acontece fora de significados estabelecidos), mas não está confinada a uma ordem fixa de significados. Já que o discurso é, por definição, compartilhado, a experiência é coletiva assim como individual.” (Scott, 1999:42)

Como procurei demonstrar nas descrições etnográficas, no contexto estudado há

algumas vozes que são mais ouvidas. E, mais do que isto, vozes que são por muitas vezes requisitadas a se manifestarem. Assim, a pluralidade de vozes (e presenças) que constituem a riqueza do campo discursivo feminista sintetizado no FMPE, aos poucos vai se tornando mais monofônica. Esse sistema de distribuição desigual de prestígio impele o surgimento constante de novos jogos antagônicos entre vozes que buscam espaço no campo. Nessa disputa constante, introduzem novas concepções, que são disputantes, acerca do feminismo.

A viragem discursiva proposta por Scott possibilita, assim, perceber como os múltiplos sujeitos entram no campo político-discursivo. Ao se depararem com um sistema de distribuição de prestígio e privilégios constituídos no estabelecimento de relações de poder, buscam entrar no jogo, visando angariar para si, e para as suas bandeiras, também o poder de definição das pautas de lutas. Impõem, assim, um desafio à prática feminista em como reunir essa diversidade, resistente à unificação.

Ao estudar o movimento de mulheres chileno, Schild (2000) alerta para o fato de que “os termos da cidadania e da comunidade de gênero estão sendo cada vez mais definidos por algumas mulheres em nome de todas” (Schild, 2000: 152). Assim, levando-se em consideração a proposta de Alvarez (1998) de tomar o feminismo como um campo discursivo de atuação e ação, no qual são produzidas relações de poder e de gênero, importa considerar as mediações simbólicas por que passam os processos cotidianos de disputas e embates entre os diferentes sujeitos do campo. E através disso, de compreender como se estabelecem as relações e se distribui, diferencialmente, o poder de falar em nome do coletivo e, mais ainda, qual o conteúdo desse coletivo.

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Santo Antão, Cabo de Santo Agostinho e Palmares. (cf. Guia de Fontes do FMPE, lançado em novembro de 2004). ivMuito embora tenha consciência da vã tentativa em buscar manter o anonimato das pessoas com quem pesquisei, dado o caráter fortemente contextualizador (e portanto revelador) da etnografia, optei por trocar os nomes tanto das pessoas quanto das instituições a que estão ligadas. Logo, os nomes encontrados ao longo do texto são todos fictícios. Alerto, também, que todos os fragmentos textuais, expressões e palavras grafadas em itálico são êmicas. Categorias e conceitos êmicos são categorias nativas, construídas pelos próprios informantes. O uso de categorias êmicas revelam um esforço do pesquisador em construir conceitos a partir do exercício da alteridade, buscando entender o universo simbólico do grupo pesquisado nos seus próprios termos. Uma interessante reflexão sobre este aspecto da produção antropológica pode ser encontrado em Geertz (1998). v Em função do reduzido espaço, não poderei demonstrar etnograficamente esse ponto. Por ora fica apenas a sua menção. vi Butler define essa matriz como “a grade de inteligibilidade cultural por meio da qual os corpos, gêneros e desejos são naturalizados. (...) o modelo discursivo/epistemológico hegemônico da inteligibilidade do gênero, o qual presume que, para os corpos serem coerentes e fazerem sentido (masculino expressa macho, feminino expressa fêmea), é necessário haver um sexo estável, expresso por um gênero estável, que é definido oposicional e hierarquicamente por meio da prática compulsória da heterossexualidade”. (Butler, 2003, 215-216).

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Ana Bénard da Costa, Antropóloga, doutorada em Estudos Africanos Interdisciplinares em

Ciências Sociais e Investigadora no Instituto de Investigação Científica e Tropical, Lisboa .

[email protected]

Género e poder nas famílias da periferia de Maputo

Resumo

Esta comunicação baseia-se numa investigação sobre estratégias de

sobrevivência e reprodução social de famílias da periferia de Maputo que decorreu no

âmbito de dois projectos realizados entre os anos de 1998 e 2002 nos bairros de

Mafalala, Polana Caniço A e Hulene B1.

Com base nessa investigação esta comunicação desenvolve uma abordagem

relacional das questões de género e poder. Defende-se que essa perspectiva, onde se

articula a avaliação da efectiva capacidade de controlo de recursos que os homens e

mulheres da família exercem, com as representações sociais e culturais e com a auto

percepção que os membros da família têm do poder que exercem ou ao qual se

submetem, permite compreender a dinâmica inerente às relações de género e de poder

que num dado universo social se desenvolve. Após introduzir o texto com uma breve

caracterização do contexto de investigação e das estratégias familiares, a reflexão

centra-se em dados empíricos que se reportam a relações de aliança e a práticas

desenvolvidas pelos membros das famílias para obtenção de rendimentos e/ou produtos.

Nesta análise discute-se se as transformações ocorridas nestes dois aspectos da realidade

social terão contribuído (ou não) para uma modificação nos papeis de género e mais

especificamente para um acréscimo do poder e autonomia das mulheres e para uma

valorização do seu estatuto social.

Palavras Chave: Género, poder, uniões conjugais, famílias, estratégias económicas

Introdução

Foi num contexto social e espacial, caracterizado por uma precariedade de infra-

1. A presente análise baseia-se em investigações realizadas na periferia de Maputo entre 1999 e 2002 (Bénard da COSTA 2003 ; OPPENHEIMER 2003).

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estruturas urbanas e de serviços sociais, por índices elevados de «pobreza» e

desemprego formal, que se desenvolveram as investigações em que a presente

comunicação se baseia e que se centrou em famílias maioritariamente originárias das

regiões rurais do Sul de Moçambique.

Nessas investigações concluiu-se que as estratégias de sobrevivência e reprodução

social das famílias se caracterizam pela coexistência de múltiplas articulações e inter-

relações entre diferentes actividades geradoras de recursos económicos, sociais, e

simbólicos, diferentes tipos e níveis de relações sociais e diferentes comportamentos

regidos por valores díspares. Para a compreensão de todo este processo foi essencial o

estudo das relações de género e poder que se processam no interior das famílias. Nesta

comunicação analisam-se os diferentes papéis desempenhados pelos homens e mulheres

ao nível das famílias, reflectindo-se sobre as implicações que as mudanças ocorridas nas

relações de aliança e nas estratégias económicas das famílias2 têm (ou não) na sua

transformação.

Uniões conjugais em transformação e questões de género

No contexto em análise, coexistem diferentes processos de formalização das

uniões conjugais que não são exclusivos entre si. Desta forma, quando os actores sociais

se afirmam «casados» podem referir-se a inúmeros tipos de casamento. Há uniões

formalizadas simultaneamente no Registo Civil, na Igreja Católica e através de lobolo3 ;

há casais que só cumpriram parcialmente as diferentes cerimónias e prestações que o

lobolo implica; outros que se casaram «muçulmanamente» ; há famílias poligâmicas,

em que cada uma das mulheres é casada de forma diferente com o marido e há «uniões

de facto» que não envolveram qualquer formalização.

Matrimónios, leis e tradições

A diversidade de tipos de uniões matrimoniais é significativa. Formalizar de

algum modo uma união implica, pelo menos ao nível das representações, uma intenção

2. Entende-se como estratégias económicas o conjunto de práticas articuladas através das quais os membros das famílias obtêm rendimentos e/ou produtos. Estas práticas, envolvem múltiplas dimensões (social, simbólica e económica) e diferentes tipos de recursos (humanos, sociais, culturais e naturais) que são articulados de forma dinâmica e relacional pelos actores sociais no quadro das estratégias económicas que desenvolvem. 3. O lobolo não é um acto ou uma cerimónia circunscrita a um momento, é um processo que, entre outras coisas, implica diferentes cerimónias e o pagamento de uma prestação matrimonial,

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de compromisso, não só entre o casal e entre as duas famílias que assim se unem, mas

também entre estas e o(s) modelo(s) social (is) de onde emanam os ritos ou as leis

através dos quais esse casamento se realiza.

Não formalizar uma união num contexto onde se cruzam diferentes sistemas

matrimoniais – criando diferentes tipos de relações familiares – pode ter múltiplos

significados : 1) uma diminuição da importância do casamento dentro da estrutura

familiar, 2) a desadequação dos diferentes sistemas matrimoniais ao contexto peri-

urbano actual; 3) mudanças estruturais nas relações familiares que se estabelecem

através das alianças matrimoniais e cuja dinâmica não se coaduna com o

«compromisso» de «longo prazo» que os diferentes sistemas criam. E, por último, pode

significar alterações substantivas nas relações de género e de poder que implicam

rupturas profundas com os modelos matrimoniais prevalecentes e com os papéis que os

respectivos cônjuges supostamente assumem dentro na união conjugal.

A pluralidade de formas possíveis de formalizar uma união matrimonial tem

várias implicações, sendo uma das mais importantes a legal. Depois de um longo debate

o Parlamento aprovou em Dezembro de 2003 a nova Lei da Família, sendo esta

promulgada pelo Presidente Joaquim Chissano vários meses depois (a 25 de Agosto de

2004). Pretende-se que esta nova Lei da Família venha a ser um importante instrumento

de mudança no conjunto de práticas sociais (consagradas na anterior Lei ainda do tempo

colonial e imanentes dos diferentes sistemas de parentesco moçambicanos) que

sustentam e promovem profundos desequilíbrios nas relações de género4.

A morosidade deste processo legislativo e a polémica que à volta dele se

desenvolveu testemunha as contradições resultantes da coexistência de diferentes

sistemas culturais que permitem uma dinâmica «normativa», em que direitos, deveres e

obrigações dos diferentes membros da família, sistemas de sucessão e herança e

sistemas matrimoniais são interpretados de forma diversa, possibilitando arbitragens

permanentes entre vários referentes.

A pluralidade de formas possíveis de formalizar uma união conjugal e o facto de

existirem uniões de facto em que casal se considera e é considerado socialmente casado,

dificulta a análise das diferentes situações, nomeadamente no que se refere ás uniões

que pode ser repartida por tempos diferentes. 4; Cf. http://www.mujeresenred.net/mozambique/Outras_voces-3Maio % 202003.doc

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poligâmicas. Desta forma, embora em 24 % das famílias estudadas5 existissem relações

entre um homem e duas ou mais mulheres, não foi possível apurar se todas estas

relações eram poligâmicas de tipo «tradicional» ou se eram casamentos monogâmicos

onde havia uma «amante». Esta distinção é subtil e, no contexto em análise, o lobolo

não é o factor que introduz a diferença, pois muitas mulheres (em regime de monogamia

ou poligamia) consideram-se casadas mesmo sem terem sido loboladas.

A propósito da poligamia importa ainda referir que em meios urbanos – em

Maputo ou noutras cidades da África Subsariana – a poligamia não implica

necessariamente a co-residência das diferentes esposas (Loforte 2003, Hesseling &

Lauras-Locoh 1997). Esta co-residência tem um significado diferente no meio rural, já

que cada uma das mulheres possui a sua palhota e não tem de partilhar o mesmo espaço

físico de habitação com as outras (Junod [1996 : 287). Na cidade, a exiguidade da maior

parte dos talhões associa-se a um modelo «moderno» de construção que tende a

concentrar, cada vez mais, sob o mesmo tecto, as diversas «divisões». Este modelo

«moderno» é visível nas casas mais recentes e aparentemente mais «ricas» e contrapõe-se

a um outro modelo em que as diferentes divisões se distribuem pelo talhão de forma

independente.

O modelo «moderno» e «urbano» de concentração espacial6, aliado ao facto de

muitas casas terem poucos quartos, torna ainda mais problemática a poligamia. E,

eventualmente, a tendência para a dispersão residencial das diferentes esposas em meio

urbano explica-se mais por esta última razão do que por uma autonomia feminina previa-

mente conquistada.

Há-de vir um senhor que é meu marido

De forma a compreender as transformações ocorridas ao nível das relações de

aliança e nos processos que nos últimos anos poderão ter contribuído para uma alteração

significativa nas relações de género no contexto em análise, transcrevem-se aqui as

palavras de uma mulher, secretária da OMM (Organização da Mulher Moçambicana) no

bairro de Hulene B :

5. Foram entrevistadas 81 famílias e inquiridas 1 000 e foi realizado trabalho de terreno mais aprofundado com seis famílias do bairro Polana Caniço A. 6. Algumas casas de construção muito recente ocupavam toda a área do talhão e incluíam no seu interior a cozinha e a casa de banho que em muitos talhões se situam em anexos no exterior.

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«Minha mãe não quis casar com o cunhado e por isso mandaram-na embora, […]

faziam isso antigamente, quando morre o marido eles arrancam todas as coisas da

mulher. A família do marido leva todos os bens da senhora […] podem até levar

os filhos, mas como eles sabem que os filhos são despesas, não levam os filhos,

deixam a viúva com os filhos […] sem nada […] e a mulher volta para casa dos

pais […] e ela engravida, mais outra vez, tem outro filho, e assim sucessivamente.

Estão nascendo os filhos com muitos pais e ela sem nenhum marido e então

chamamos de «mães solteiras» e ela não tem marido e não tem ninguém que lhe

ajude […] Mas quem ajuda normalmente é a mãe dela […] mas também as mães

ficam saturadas […] ela sai, fica sozinha com os filhos, […] mas ela trabalha, ou

vender, ou o que ela faz. Ou arranja um amigo que lhe dá qualquer coisa para

poder sustentar os filhos».

Posteriormente referiu :

« Porque a mulher, antes, ela estava muito fechada […] eu caso, vou viver com

aquela família definitivamente porque me lobolaram […] e a mulher era como

tipo mão-de-obra […] Depois a Frelimo, com a independência, então deu a

liberdade à mulher. […] A mulher tem direito de falar, tem direito de trabalhar

como homem, tem todos os direitos iguais aos do homem. Só que a diferença

deve haver porque da mulher nasce bebé […]».

Nestes excertos estão patentes as contradições entre uma «realidade» que ela

descreve como composta de mães solteiras e mulheres abandonadas e as representações

ideológicas que contrapõem à mulher submissa da sociedade tradicional, a mulher livre

da actualidade. Mas qual é a verdadeira situação da mulher moçambicana em meio

urbano?

A existência de um elevado número de mulheres «mães solteiras» tem sido

apontada como espelhando tanto a crise social que se vive e a dissolução da família

«tradicional» e dos laços familiares subjacentes a esta, como a libertação da mulher da

tutela da família «tradicional» e das regras rígidas que a reduziam a um « ser menor ».

O lobolo (ilustrando o «pluralismo moral» do contexto) é visto como um acto

abominável através do qual mulheres são compradas e vendidas e simultaneamente

como algo positivo que sanciona e dá estabilidade a uniões.

Não parece, no entanto, que o papel desempenhado pelo lobolo se relacione

exclusiva e fundamentalmente com o estabelecimento de direitos e deveres de mulheres

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e maridos, mas sobretudo com a criação, manutenção e desenvolvimento de redes de

solidariedade entre diferentes grupos familiares. Esta prestação matrimonial era, na

sociedade tsonga, estruturante das estratégias matrimoniais que visavam antes de mais

estabelecer uma cadeia de relações entre diferentes linhagens (Feliciano 1989a). Se

actualmente se verificam transformações que implicam a sua diminuição, estas

reflectem, entre outras coisas, o processo de deslocamento em que estas populações

estiveram envolvidas nos últimos anos e que tornaram por vezes obsoletas as velhas

alianças, obrigando à criação e ao desenvolvimento de novas cadeias de solidariedade.

Estas solidariedades, em meio urbano, não passam necessariamente pelo casamento e

pelo pagamento de prestações matrimoniais.

Por outro lado, o aumento verificado nesta prestação matrimonial mencionado

por diversos membros das famílias, dificulta ou impossibilita, para muitos dos jovens e

das suas famílias, a sua concretização, mesmo que fosse esse o seu desejo, como parece

acontecer em muitos casos (Loforte 1996 : 163-165).

Um dos informantes, Josué, casado com três mulheres a quem lobolou, explica

porque o considera importante :

«Eu nunca gostei de ficar com filhos de dono sem saber porque é que

estão comigo, e para eles também é muito importante, porque no caso de eu ter

um problema aqui, eu não posso ir apresentar o problema a casa dessa pessoa,

porque não me conhece. […] a pessoa é conhecida quando faz lobolo. Pode ser

conhecido, mas não tem aquele tratamento que a pessoa que fez lobolo tem. E,

quando se trata já do matrimónio, você não tem onde apresentar as dificuldades

que estão a passar aqui dentro de casa se não fez lobolo […]. Ninguém na

família me ajudou, para isso não há contribuição, senão há-de querer casar sem

dinheiro e ainda confiar nos familiares ».

O aumento (relativo) do custo desta prestação matrimonial reflecte, simultanea-

mente, a crise social e económica e as contradições internas das estratégias de reprodução

social. Aparentemente esse aumento não é do interesse de nenhuma das partes: os

rapazes querem cumprir a obrigação e não têm meios suficientes; as raparigas sentem

que se «juntarem» sem lobolo não estão casadas ; a família destas sabe que, se exigir

muito dinheiro, o noivo (e a família deste) não o pode pagar e que arrisca, por isso, a

que este e a sua filha vivam maritalmente, podendo esta ser abandonada com mais

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facilidade do que aconteceria se fosse lobolada. Mas «a vida está cara», e muitos dos

actores sociais disseram que o valor monetário do lobolo era calculado em função das

despesas que haviam tido com a educação da filha. Consideram, também, que o

dinheiro que assim vão receber pode contribuir para fazer face a outras despesas

essenciais (por exemplo, ajudar um filho a pagar o lobolo que outra família exige). Por

isso, correndo o risco, escrevem a carta onde as exigências ficam expressas e esperam

que, eventualmente, o rapaz e a família deste façam os sacrifícios necessários para as

poder cumprir.

No entanto, no contexto em que a união se efectiva — Maputo —, não é

necessário que todos estes requisitos se cumpram para o casal se sentir «casado» e para

a família de ambos os aceitar como tal, apesar de ambas as partes não considerarem que

a formalização do acto de matrimonial se tenha cumprido na íntegra. Porém, e como

referem: «há-de cumprir-se». Nesse hipotético futuro se projectam actos e cerimónias

como se de processos se tratasse. A cerimónia de casamento é, à semelhança das

próprias uniões conjugais (o divórcio e a separação não são novidades), algo em

permanente construção que se pode ir realizando ou protelando no tempo.

Concluindo, as transformações que se verificam em todo o processo cerimonial

do lobolo não reflectem necessariamente mudanças qualitativas nas relações de género,

mesmo quando as situações indefinidas criadas ao nível das relações de aliança

permitem à mulher uma maior liberdade e autonomia face às suas obrigações

tradicionais. Essa liberdade e autonomia, num contexto onde a sobrevivência e a

reprodução social dependem em grande medida do estabelecimento de redes familiares

de entreajuda, são muitas vezes auto-percepcionadas como negativas e podem traduzir-

se num maior isolamento social das mulheres e consequentemente num decréscimo do

seu poder e estatuto.

Essas transformações – instabilidade das uniões matrimoniais verificada

sobretudo entre os membros da geração mais nova e a pluralidade de tipos possíveis de

uniões conjugais – reflectem a dinâmica das estratégias de sobrevivência e reprodução

social que articulam de forma ambígua valores contraditórios. Por outras palavras, os

indivíduos para sobreviverem e se reproduzirem necessitam de estar inseridos em redes

sociais de solidariedade, sendo a família uma das mais importantes ; simultaneamente,

não sobrevivem se não desenvolverem práticas «egoístas» que lhes permitam satisfazer

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as suas necessidades materiais. Essas práticas podem gerar a quebra de alguns dos

compromissos sociais em que se baseiam as referidas redes (neste caso, as famílias) e

por conseguinte quebram-se as alianças (neste caso, matrimoniais) que tenderiam a

perpetuar essas unidades sociais. No entanto, existe sempre a possibilidade de

«circulação » entre redes de solidariedade e por isso é possível aos indivíduos e às

famílias estabelecerem novas alianças com outras unidades sociais (novas uniões

matrimoniais) e desenvolverem processos dinâmicos e versáteis de reprodução social.

Uma das soluções possíveis passa pela aceitação e criação de condições que transfor-

mem as cerimónias matrimoniais em processos em permanente construção que podem a

qualquer altura ser interrompidos. Desta forma, as famílias desenvolvem uma estratégia

pela qual tentam conciliar a instabilidade das relações de aliança com as necessidades

de coesão interna, continuidade e reprodução social.

O trabalho feminino nas estratégias económicas das famílias

A estas transformações nas práticas matrimoniais e à instabilidade das uniões

conjugais aliam-se importantes mudanças económicas. Antes de reflectirmos sobre o

seu impacto nas relações de género e de poder importa apresentar alguns dados das

investigações mencionadas, de forma a contextualizar a análise.

Da análise dos dados concluiu-se que em praticamente todas as famílias existem

várias pessoas a trabalhar em actividades geradoras de rendimentos ou de produtos.

Grande parte destas actividades realiza-se de modo «informal» e/ou destina-se ao auto

consumo, como é o caso da produção agrícola nas machambas urbanas ou rurais

exploradas directamente por membros da família residentes na cidade ou por outros

familiares que residem no campo. Muitas destas famílias têm bancas de vendas dos

mais variados produtos à porta de casa ou vendem noutros locais : mercados do bairro,

pequenos «bares» que fazem em casa, na estrada. Muitos dos membros das famílias

desenvolvem outros tipos de actividades geradoras de rendimentos em casa : são

curandeiros, têm pequenas oficinas, confeccionam comida para venda.

Eu não faço nada, só vendo

Verificou-se que em praticamente todas as famílias, as mulheres exercem

actividades geradoras de rendimentos ou produtos e as vendas são uma das tarefas

principais em que se ocupam. Para subsistir e fazer face às suas responsabilidades

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«tradicionais» de provedoras do sustento da família, estas mulheres, em face da

ausência de outras alternativas viáveis (entre os membros das famílias estudadas que

trabalham no sector formal apenas se encontra uma mulher) tiveram de inserir-se nos

circuitos do chamado mercado informal, executando aí um leque muito variado de

actividades – confecção e venda de carvão, venda de lenha, venda de produtos

hortícolas e frutícolas, confecção e venda de alimentos ou revenda de produtos

importados. Normalmente as crianças colaboram nestas actividades, estando nas

«bancas» sempre que é necessário.

Importa notar que, em alguns casos, as mulheres e os seus maridos não

consideram as actividades que estas desenvolvem como «trabalho», e referem : «eu não

faço nada, só vendo» ou «aquilo que ela faz é para entreter». Não obstante este facto e a

dificuldade de apurar a importância da contribuição financeira das mulheres para os

orçamentos familiares – a maioria das actividades não tem um rendimento constante e

não é realizada de forma continuada –, foi possível concluir que em muitas famílias o

número de mulheres que trabalham é igual ou superior ao número de homens que

trabalham. Em alguns casos, as mulheres afirmaram que eram elas que efectivamente

sustentavam a família e que a contribuição financeira do marido para as despesas

domésticas não era suficiente: «atirou toda a responsabilidade, ele não tem nada a ver

com isso», ou que ele tinha arranjado outra mulher e quando vinha dava uma quantia

insignificante.

Segundo alguns autores (Tripp 1989 ; Loforte 1996), as mulheres, em meio urbano

africano, pelo facto de obterem rendimentos monetários em actividades que exercem

«fora de casa», têm a possibilidade de aceder a certas posições de poder e de conquistar

uma certa visibilidade a nível do bairro que pode influenciar positivamente o seu estatuto

na família e fora da família. Estas actividades e as redes sociais em que as mulheres se

inserem contribuiriam, assim, para um acréscimo da sua autoconfiança, para uma maior

determinação no controlo das suas vidas e um maior poder de negociação e independência

face aos homens.

Esta ideia tem sido contrariada por outros autores (Caplan 1995 & Campbell

1995 ; Rocha & Grinspun 2001), que têm chamado a atenção para o facto de muitas

mulheres que desenvolvem actividades geradoras de recursos financeiros terem, face às

mulheres que não as desenvolvem, um acréscimo de trabalho e de responsabilidades. As

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primeiras continuam a ser responsáveis pela preparação das refeições da família e por

todas as outras tarefas domésticas.

Em termos da análise empírica constatou-se que existiam situações muito

diversas, sendo necessário relacionar inúmeras variáveis para compreender a posição

das mulheres em termos de autonomia, poder e estatuto. Destacam-se algumas: a

estrutura familiar (tipo de família, número de membros da família e distribuição por

sexo) ; a posição que a mulher ocupa dentro desta estrutura; as actividades que

desenvolve e a importância relativa dos rendimentos daí resultantes no orçamento

familiar; a relação afectiva e emocional com o cônjuge ou, na ausência deste, com

outros elementos masculinos da família ; a situação do homem em termos de

trabalho/rendimentos; os recursos materiais disponíveis e a capacidade da mulher para

os mobilizar e rentabilizar em seu benefício.

Assim se, para muitas mulheres, as actividades geradoras de rendimentos

representam um acréscimo de trabalho, para outras tal não acontece. Estas últimas,

embora continuem a gerir as actividades domésticas, não as realizam. Quem vai buscar

água e comprar lenha, quem varre o chão e lava a roupa, quem vai às compras ou

cozinha, são as outras mulheres da família de estatuto inferior (noras, irmãs mais novas,

segundas mulheres, as crianças e os jovens (incluindo rapazes). Esta situação é comum

nas famílias numerosas onde existem muitas mulheres nas diferentes faixas etárias.

Nestes casos, há uma repartição hierárquica das diferentes tarefas e responsabilidades e

uma maior autonomia e disponibilidade daquelas que têm um estatuto mais elevado.

Se o exercício de actividades geradoras de rendimentos monetários cria

possibilidades para o aumento de autonomia e liberdade das mulheres face às

obrigações e normas tradicionais e maior espaço social de circulação, essa possibilidade

pode gerar conflitos quando é concretizada – «há muita zanga entre os homens e as

mulheres por causa do que hão-de fazer ao dinheiro, por isso às vezes a mulher faz sem

dizer nada ao marido. Os homens não tiram o dinheiro, é ela que dá ao marido» – ou

rompimentos com redes familiares e de parentesco. O potencial de conflitos, que por

vezes atingem níveis dramáticos, e a ausência de alternativas – uma mulher sem família

é socialmente marginalizada – podem transformar a autonomia em sofrimento e a

liberdade num pesadelo.

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Agradeço a Deus o que me deu, estou num lar

O estatuto do casamento e da maternidade constitui um factor de grande peso

cultural e social. Uma mulher sem filhos, solteira e com uma situação económica que

lhe permite possuir casa própria e usufruir de uma certa independência não se considera

necessariamente mais «valorizada» socialmente (embora seja certamente mais indepen-

dente e tenha mais poder e autonomia sobre a sua vida) do que outra mulher inserida

numa família poligâmica e sem rendimentos próprios. A autonomia da mulher pode

ainda traduzir-se numa capacidade limitada para mobilizar recursos (humanos e

materiais) e num aumento consequente de responsabilidades face a si e aos seus filhos e

num maior isolamento social.

Como exemplo destas situações e da importância de equacionar diferentes

dimensões da realidade social quando se reflecte sobre questões de género, apresenta-se

aqui o testemunho de duas amigas da mesma idade que vivem situações muito diferentes.

Uma (Eva) é a terceira esposa de um casamento poligâmico e outra (Cristina) afirma-se

casada, mas vive sozinha. A primeira trabalha na machamba da família e não obtém

quaisquer rendimentos monetários com essa actividade, apenas produz para o consumo da

família. Cristina é professora na escola comunitária do bairro Polana Caniço A, tem um

ordenado e casa própria. Estas mulheres referem-se nos seguintes termos às suas

situações :

«Cristina (29 anos) : Eu há dois anos que vivo numa casa que é só minha

em Magoanine, comprei o talhão sozinha e foi o meu irmão que fez a casa […].

Prefiro assim, não tenho quase despesas, sou só eu e o meu irmãozinho de dez

anos que vive comigo […]. Sou casada mas ainda não fui lobolada, nem registo

nem nada, ele está na África do Sul e nunca mais veio, estou à espera que ele

venha para saber se fica comigo ou não. […] Mas gostava mais de ter uma

família, marido e filhos, do que esta situação de independente, sozinha.»

Eva (30 anos) :

«Não me considero uma mulher com sorte porque não tive o marido só

para mim, ele é de três, mas também não posso dizer que sou muito azarada em

relação à minha amiga, porque esta aí ainda anda a tentar ver se consegue um lar

[…] agradeço a Deus o que me deu, estou num lar que já tinha lá duas mulheres,

mas desde que o senhor Josué [marido] cuide de mim, trate de mim, para mim

basta ».

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Através destes discursos é possível concluir, neste «estudo de caso», que existem

efectivamente mudanças no papel que a mulher desempenha dentro da família, mas

estas mudanças ocorrem em múltiplos sentidos. A formação escolar, o exercício de

profissões, os ganhos monetários provenientes de diversas actividades, a afirmação de

interesses individuais e a capacidade (e coragem) de certas mulheres tornam possível,

em certos casos, romper com fidelidades antigas que as subalternizavam. E tal pode,

efectivamente, traduzir-se num aumento relativo do espaço de poder feminino face ao

masculino. No entanto, estas «conquistas» só adquirem «valor» quando têm significado

e reconhecimento social dentro do contexto em que se efectivam. Esse contexto, para

além de estar profundamente marcado por relações de género que subalternizam o papel

social da mulher face ao do homem, é pleno de contradições e articula de forma

complexa valores «tradicionais», interesses «modernos» e representações ideais de

modernidade. Neste complexo jogo e face às alternativas existentes, é necessária

prudência quando se tenta extrair conclusões sobre eventuais modificações nas relações

de género e é difícil percepcionar as direcções para as quais tendem as transformações

observadas.

Por outro lado, mesmo limitando o universo de análise às mulheres estudadas,

estas não são um grupo homogéneo nem são vítimas passivas; têm estratégias de poder

diferenciadas que variam em função de inúmeros factores: tipo de família em que se

inserem, idade, experiências e memórias acumuladas. Simultaneamente, cada mulher é

portadora de identidades múltiplas, complexas, contraditórias e em transformação, de

acordo com as circunstâncias diversas com que interage e com as diferentes posições

que nestas circunstâncias ocupa. As diferenças entre essas mesmas experiências são

ontologicamente complexas, uma vez que as mulheres não partilham uma mesma

realidade material (Casimiro 1999 : 53-54, 60) e que uma mesma mulher vive uma

multiplicidade de relações de diferente tipo, onde, de forma dinâmica e por vezes

ambivalente, se manifestam diferentes graus de subordinação ou de poder (Mouffe

1996 : 104).

A análise demonstrou que as mulheres constituem um elemento essencial nas

estratégias económicas, mas o facto de as mulheres terem a responsabilidade de prover

ao sustento alimentar básico da sua família não constitui uma mudança, pois esta era

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«tradicionalmente» a sua obrigação. A diferença reside nos rendimentos monetários que

agora adquirem através do seu trabalho. No entanto, esta mudança não significou, por si

só, uma transformação valorativa no estatuto das mulheres. Da mesma forma o acesso

aos rendimentos monetários não se traduziu numa maior visibilidade ou intervenção a

nível do bairro. A participação das mulheres em ONG, associações de bairro (excluindo

aqui a Organização da Mulher Moçambicana) e grupos de entreajuda, por exemplo no

«xitike», é reduzida. Pelo contrário, as mulheres participam frequentemente em grupos

religiosos (igrejas). Mas mesmo a vida religiosa da mulher está por vezes dependente da

vontade do marido. Estas mudam frequentemente de culto quando se casam e passam a

seguir a religião do marido.

As informações empíricas disponíveis não permitem chegar a conclusões acerca

de modificações nos papéis de género. O que se verificou foi que questões relacionadas

com «autonomia», «independência», «controlo» e «relações de poder» são

extremamente complexas e têm de ser contextualizadas. A compreensão destas questões

pressupõe uma análise integrada onde intervêm diferentes significados e interpretações :

o significado que o investigador dá a esses conceitos e que influencia as interpretações

que faz da realidade social que analisa, bem como significados que essas questões e

conceitos têm no contexto cultural e social em observação. Neste último caso, há ainda

que ter em conta não só os múltiplos referentes em presença como as diferenças entre

valores culturais e representações sociais, por um lado, e as práticas concretas dos

actores, por outro.

Simultaneamente, a análise das questões de género constitui essencialmente uma

análise relacional e o que está em jogo são fundamentalmente relações sociais entre os

membros masculinos e femininos da família. Sendo assim, não faz sentido falar de

poder ou de autonomia sem os contextualizarmos dentro desta dinâmica relacional

(Medick e Sabean 1988: 18). Neste sentido, as relações de poder devem ser

compreendidas em termos de avaliação da capacidade de controlo de recursos materiais

e humanos por parte dos homens e mulheres da família, ao nível das representações

sociais e culturais no contexto em questão (como a sociedade em causa molda os papéis

e os comportamentos de ambos os sexos) e em termos da auto-percepção que os

membros da família têm do poder que exercem ou ao qual se submetem. Da mesma

forma, a essência multidimensional das relações familiares implica que nessas mesmas

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relações sejam expressos diversos tipos e níveis de poder que não só podem não ser

coincidentes como são dinâmicos e se alteram permanentemente sob a influência de

inúmeros factores (Medick e Sabean, 1988 : 18).

De todos estes factos deriva a presente dificuldade em expressar conclusões

gerais – mesmo que limitadas ao universo em análise – sobre a influência que as

actividades geradoras de rendimentos desenvolvidas por mulheres terão nas relações de

género no seu maior ou menor acréscimo de poder e estatuto no interior ou no exterior

da família.

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Ana Bénard da Costa é Antropóloga, doutorada em Estudos Africanos Interdisciplinares

em Ciências Sociais no Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa (ISCTE),

Lisboa.

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“Mujeres migrando. El lugar de la familia” Ana Inés Mallimaci [email protected] Instituto Interdisciplinario de Estudios de Género – FFYL-UBA. / Facultad de Ciencias

Sociales-UBA Resumen: Los estudios migratorios en sus versiones más novedosas han introducido a la familia como unidad de análisis desde la cual reconstruir prácticas, estrategias y acomodaciones en las trayectorias migratorias. Las concepciones sobre la familia, supuestos casi nunca expresados, sostienen una serie de afirmaciones sobre las migraciones de las mujeres (relacionadas con su origen y configuración) cuando migran con sus parejas y/o hijos (las migraciones de tipo “familiar”). A partir del análisis de entrevistas en profundidad realizadas entre mujeres nacidas en Bolivia y migrantes recientes cuya residencia sea la ciudad de Buenos Aires y Ushuaia intentamos desconstruir estas afirmaciones, no como mero ejercicio teórico sino como una herramienta desde la cual comprender el sentido que las migrantes construyen sobre sus trayectorias. De este modo se analizarán las concepciones familiares asumidas por las teorías migratorias y las representaciones sobre la familia (en tanto ideal y en tanto prácticas) re-construidas en las entrevistas para dar cuenta de las distancias entre las verdades asumidas y las prácticas reales en las experiencias vividas. Palabras Claves: Migraciones, Mujeres migrantes, representaciones familiares, familia, Bolivianas.

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Introducción Esta presentación es un producto del trabajo que estoy realizando para la tesis doctoral cuyo tema central radica en analizar las múltiples relaciones entre las migraciones bolivianas a la argentina (ciudad de Buenos Aires y Ushuaia) y las estructuraciones de género, enmarcando el análisis en un enfoque conjunto de las teorías feministas y las interpretativas dentro del campo sociológico. Para ello estamos entrevistando a mujeres y varones que hayan nacido en el territorio boliviano y hayan atravesado las fronteras con nuestro país con el “ánimo de residir”i. Las técnicas de recolección/construcción de información empleadas fueron entrevistas en profundidad no estructuradas, generalmente de un encuentro, en las casas o lugares de trabajo de los/as entrevistadas/os con el principal fin de reconstruir las trayectorias migratorias de las/los entrevistadas/os. Las técnicas de campo, de análisis y de escritura intentan dar cuenta de la “perspectiva que los actores y actoras sociales” imprimen a y en sus acciones en contextos culturales, sociales y económicos específicos. Nuestro trabajo se construye entonces a partir y sobre los relatos de estas mujeres y varones nacidas/os en Bolivia. Las 15 entrevistas seleccionadas para este trabajo pertenecen a mujeres que residen en áreas urbanas de la Ciudad de Buenos Aires y en Ushuaiaii con migraciones “familiares” y cuya edad varía desde los 23 años a los 70. En este trabajo no hemos enfatizado en las múltiples diferencias presentes entre las propias mujeres bolivianas frente a una misma trayectoria migratoria. Aún así, consideramos que el hecho de ser mujeres migrantes (es decir que estamos trabajando con mujeres pertenecientes a los sectores más bajos de Bolivia) provenientes, en su gran mayoría, de zonas rurales y de provincias específicas (Potosí y Cochabamba) permitiría algún grado de generalización no probabilística Interpretar sus experiencias implica en mucho tomar distancia de naturalizaciones y cotidianidades relativas a nuestras propias experiencias femeninas, urbanas y occidentales con el fin de ejercer vigilancia epistemológica y evitar el etnocentrismo que implicaría analizar desde lo propio realidades cercanas en el espacio (medido en metros) pero lejanas en cualquier otra dimensión. Objetivos: Para esta presentación hemos decidido trabajar con una pequeña porción de nuestra indagación: las representaciones familiares y su vinculación con las trayectorias migratorias de mujeres que migran a la Argentina después de sus maridosiii. La elección de este grupo de mujeres no es azarosa sino que se trata de mujeres cuya trayectoria migratoria ha sido analizada como “típica” de las primeras olas migratorias y que en las discusiones sobre las motivaciones de migración han sido encasilladas entre aquellas que migran motivadas por la “reunificación familiar”. Este tipo de motivaciones le son exclusivas y se diferencian de las de cualquier típico varón migrante o de las típicas mujeres que conforman la llamada “feminización de la migración” que atraviesan las fronteras solas con el fin de trabajar. En esta presentación decidimos trabajar sobre las motivaciones de la migración ya que es allí donde “la familia” aparece, en la literatura más clásica, como un origen de las acciones y el destino para estas mujeresiv. Se migra para reunirse con “la familia”, es decir con aquel varón que espera. Es en estas ideas donde vamos a encontrar concepciones supuestas y no discutidas sobre la familia por parte de los analistas que reproduce en mucho el ideal de familia nuclear conyugal y heterosexual de occidente. Analíticamente, no considerar ambas dimensiones impide indagar sobre las distancias y posibles tensiones entre las prácticas familiares vividas y lo idearios acerca de lo

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familiar, entre la ideología familiar y las estructuras y económicas reales de unidad doméstica ((Moore 1996)) tanto de los investigadores como de los actores y actrices sociales cuyos mundos se analizan. Por lo tanto esta ponencia se estructura en base a un triple problema: a) Los estudios migratorios utilizan a la familia como parte de sus análisis: que es lo que generalmente se entiende por ella? A partir de ello propondremos nuestros propios sentidos acerca de las familias. b) Los estudios migratorios han producido una verdad que establece que cuando las mujeres migran después de sus maridos, lo hacen con el fin de la “reunificación familiar”. Cuáles son los motivos re-construidos por nuestras entrevistadas? Que sentido le atribuyen a la “reunificación familiar”?, c) Basado en una visión dicotómica de la sociedad, se desprende del corolario anterior que si las mujeres migran en y por la familia sus motivaciones no son económicas sino “sociales”, “privadas”. Intentaremos dar cuenta de la articulación de lo económico con lo doméstico como parte de un mismo sentido que impide su conceptualización como dos dimensiones separadas del mundo social. Antes de comenzar esperamos se nos disculpen algunas advertencias para la lectura de las palabras que siguen. El análisis que realizaremos deberá ser comprendido como esbozos de ideas surgidas de algunas entrevistas realizadas en el marco de una investigación más amplia.v Nada de lo que será dicho puede entenderse como el resultado de un análisis acabado sino como las primeras hipótesis surgidas de la indagación empírico – teórica, como distintas puertas que serán abiertas para convertirse (con suerte) en futuros ejes y categorías de análisis. En el juego de reflexión sobre datos empíricos para volver y enriquecer al campo, este trabajo se sitúa en el primer paso. a. Significados sobre la familia en los estudios migratorios Realizaremos aquí un brevísimo repaso sobre las configuraciones sobre “la familia” en los estudios migratorios de corte sociológico.vi Específicamente dentro del campo de los estudios migratorios, desde hace algunos años, se ha difundido y aceptado la idea de que la comprensión de los motivos, trayectorias y relaciones con las sociedades receptoras y de origen deben ser analizadas en y a través de las familias migrantes. Pensada como estrategia (y solución) para superar la dicotomía entre los análisis estructurales (tanto los de raigambre marxista como aquellos incluidos en las teorías Push-pull) y aquellos centrados en el individuo racional (con información completa que decide, luego de sopesar costos y beneficios, migrar como una estrategia racional)vii, utilizar como unidad de análisis a “la familia migrante” y no a los individuos supuso mediar entre estructuras e individuos. La familia (junto con las redes de sociabilidad), es considerada entonces como “meso-estructuras” o estructuras intermedias que permiten comprender las decisiones de migración y los modos del movimiento y radicación -Hoerder (2000), Gregorio Gil (1997)-. Las motivaciones de migración serán comprendidas entonces como “estrategias familiares” en ciertos contextos estructurales. Sin embargo, este corrimiento en las perspectivas teóricas hacia las familias poco y nada nos dice acerca de las conceptualizaciones sobre la familia empleadas lo cual resulta paradójico dado el papel protagónico concedido a la familia. Una vez más (y como suele ocurrir con aquellas realidades cercanas que se nos aparecen como obvias y a veces naturalizadas), la categoría familia se da por supuesta y ya sabida y es incluida como un dato de la realidad o una posición en una variable independiente cuyo mayor dinamismo es registrar el “tipo” de familia según tamaño y estructura interna ( ver por ejemplo los trabajos de Poggio y Woof, Balán, Quiminal). Si el concepto de familia no

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forma parte del objeto construido como problemático existirán supuestos sobre qué es una familia que sostendrán silenciosamente los análisis posteriores. Las migraciones familiares Cuando se conceptualiza a la migración como familiar se entiende por ello que, al menos, el núcleo conyugal atraviese las fronteras de uno o más países. Típicamente la forma de las trayectorias migratoria de los miembros de la familia es “en cadena”((Benencia 2004; Devoto 2004)): un varón como jefe de hogar y padre de familia, trabajador, decide trasladarse a otro país (como parte de una estrategia familiar de supervivencia), para luego traer a su familia, es decir, su mujer y sus hijos. Este traslado será facilitado por las redes de parentesco y sociales cuyas consecuencias son siempre positivas y beneficiosas para el ahora devenido migrante y su familia. Si su inserción resultara “exitosa”, traerá o mandará llamar a su familia (es decir, su mujer e hijo/as) que se juntarán con él y comenzarán una nueva vida en familia. La mujer será la encargada principal de la integración de sus hijos e hijas a un nuevo entorno como reproductora de lo doméstico. También, y paradójicamente, será la principal encargada de mantener el lazo cultural con la sociedad de origen a través de la enseñanza y reproducción de costumbres, lenguas, vestimenta, comidas, festividades, etc. Este modelo típico de familia supuesto en la mayor parte de los trabajos migratorios pueden rastrearse diferentes supuestos anclados en la “exitosa” imagen funcionalista sobre la familiaviii: a) Como unidad social diferente de otras; b) La unidad conyugal está en el centro de la estructura familiar. La familia en la que se piensa es de tipo nuclear (con lazos con el resto de las familias nucleares a partir de las redes de parentesco) y heterosexual; c) Se da por entendido o, por lo menos, no aparece como problematizado y problematizable, el lazo afectivo entre los miembros de la familia. Por otro lado, se supone que los recursos materiales y simbólicos, causas y consecuencias de la migración, son distribuidos de forma igualitaria; d) La estructura familiar se mantiene integrada por la clara división jerárquica de roles generacional (adultos activos, niños pasivos) y de género (varón en lo “público”, es el que migra por ser el que ejerce el rol productor de bienes y recursos) y la mujer confinada a lo doméstico y ejerciendo el rol de reproductora de la unidad, afecto y emotividad familiar (aunque trabaje “productivamente” esta será su principal función) y principal encargada de la integración de la familia en su interior y con la sociedad más amplia. Asimismo, la mujer migrante es la reproductora biológica y la representante simbólica de la reproducción nacionalix. De este modo, y tal como es expresado por Bernardes (1997) y (Moore 1996), se confunde un tipo ideal, abstracto y teórico con prácticas familiares reales. Además, al tomarse un tipo de familia como la norma se prescriben los modos adecuados de vivir en familia (por ejemplo, al comprender la migración de mujeres solteras por la ausencia o falta de una estructura familiar que la contenga o la ausencia de un varón que cumpla el rol productivo). Lo que constituye un ideal, una ideología, un modelo se confunde así con las prácticas reales (Salles y Tuirán 1996). Con ello queremos decir que si bien esta imagen típica de familia migrando y su típica trayectoria no puede considerase como falsa ya que describe experiencias migratorias realesx al ser clasificada como “típica” y convertida en un supuesto que, en general, no es revalidado en el trabajo empírico, puede opacar otras prácticas familiares y migratorias y sobre todo invisibilizar las prácticas de las mujeres migrantes y de los hijos/as. Un ejemplo claro de ello es lo difícil que ha sido incluir en la agenda de investigación el caso de mujeres que migran autónomamente (es decir, sin el objetivo principal de reunirse con su pareja ya migrada)xi.

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Asimismo creemos central destacar el frecuente solapamiento entre las formas del migrar y los sentidos que supuestamente le corresponden: ante formas familiares y migratorias similares se prescriben sentidos equivalentes, es decir, siempre que una mujer migre luego de su marido el sentido mentado del movimiento será el de la “reunificación familiar” dando por supuesto las significancias de este título que se opone entonces a las migraciones de los varones motivadas económicamente y por factores productivos. Es este segundo conjunto de problemas los que serán, meramente, abordados en esta presentación. Cómo puede comprenderse a la familia? Como hemos visto resulta de singular importancia reflexionar acerca de la familia en los estudios migratorios. Mantener implícitas las definiciones familiar ha implicado en la mayor parte de los casos reproducir imágenes familiares que invisibilizan nuevos modos de ser en familia, de organización familiar y de percepciones familiares por parte de quiénes “hacen” a la familia. Las concepciones familiares de los/as analistas orientarán en gran parte el trabajo sobre las migraciones lo que impacta de sobremanera en el estudio sobre las mujeres inmigrantes (por la tendencia occidental de considerar a la mujer en el ámbito de lo doméstico y reproductivo). Por ello le damos importancia a la línea de partida desde la cual se construyen las investigaciones que permitirán problematizar algunas cuestiones e invisibilizar otras. En nuestro trabajo consideramos a la/s familia/s como “contextos de intercambio de experiencias”. De este modo la familia lejos de ser fijada en una forma única, o suponiendo un modo normal de ser en familia (en su doble acepción de norma y corrección) aparece en el análisis como uno de los escenarios o contextos posibles en el que se decide migrar a la vez que se viven y hacen las experiencias familiares. El contenido de estas experiencias es re-construido a partir de los relatos. Consideramos así la pluralidad de experiencias para no trasladar los modelos hegemónicos (y propios) como destinos naturales o normativos. Asimismo creemos que este enfoque premite atravesar la división público / privado y analizar las diferentes experiencias y sentidos que puede adquirir la experiencia migratoria de acuerdo a si se es mujer o varón, padre o madre, si se tienen hijos/as a cargo, pareja/s, etc. Se incluyen también otros lazos de reciprocidad que no necesariamente son consanguíneos pero que funcionan como redes de recursos simbólicos y materiales que no solo cumplen funciones integradoras al estilo del modelo familiar funcionalista sino que sus consecuencias también son diferenciales de acuerdo al cuerpo que se tenga, el poder que se ejerza y los recursos que se pueden poner en juego. Partiendo de esta primer definición de familia lo que intentaremo aquí es incorporar en el análisis los modos en que la familia es vivida y representada por las mujeres bolivianas entrevistadas.

b) Cuando las mujeres migran después de sus maridos, lo hacen con el fin de la “reunificación familiar”.

Esta afirmación tendría como destinatarias a las mujeres sobre las cuales se basan estas reflexiones. En este artículo trabajaremos con los relatos de mujeres cuyas trayectorias de familias migrando han sido similares: juntadas (formal o informalmente) en Bolivia las trayectorias migratorias “familiares” comienza con la del varón en búsqueda de trabajo y pasado un tiempo (que varía de acuerdo a los casos) la migración de la mujer y sus hijos/as.

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b.1) Las diversas experiencias familiares y la ideología familiar. Cuando hablamos de las experiencias familiares de estas mujeres bolivianas, el primer aspecto a destacar es el hecho de que la pertenencia a un país o incluso a sociedades similares (campesinas de ciertas regiones de Bolivia) y trayectorias migratorias semejantes no implica una socialización en estructuras familiares idénticas. Considerando el aspecto formal, al indagar en las diferentes relaciones familiares en las que han vivido en sus primeros años resalta la pluralidad de dichas experiencias: conyugales, extensas, monoparentales, con ausencia cotidiana del padre o madre consanguíneo, etc. Sin embargo, entre las mujeres que entrevistamos se destaca la vigencia de un modelo “ideal” conyugalidad en la que los cónyuges, entendidos como padre varón y madre mujer, deben estar unidos y ser la base de lo que se considera como familia. Ante la pluralidad de experiencias la unicidad del modelo aspirado. En este punto como en otros, el análisis de las entrevistas recorre tensiones entre las prácticas discursivas y no discursivas, representaciones y aspiraciones de sujetos que tanto en su país de origen como en el de llegada conviven con modelos culturales diferentes pero negociados y negociables, practicados y, a veces, añorados. b.2) Motivaciones de migración Una de las dimensiones en la que pueden rastrearse estas tensiones es la que se desprende del relato sobre sus propias motivaciones para migrarxii. Ante la pregunta de por qué migraron se respondía primeramente la necesidad de reunirse con sus parejas, lo que en la literatura clásica se ha denominado como reunificación familiarxiii o migración “social”. Generalmente, en los análisis una vez identificadas estas motivaciones se consideran sus trayectorias migratorias como no vinculadas al trabajo, lo económico y lo productivo y las mujeres como dependientes y pasivas en relación a las decisiones de migraciones en el seno familiar. Sin embargo, propondremos aquí que esta similitud con el modelo en cuanto a las formas del migrar poco nos dice acerca de los sentidos puestos en el movimiento (derivados de una única concepción familiar) las relaciones de género y las experiencias familiares. Lo que vuelve más interesante el estudio de la migración de estas mujeres es que una mirada que no problematice a la familia, a los géneros y sus relaciones puede fácilmente reproducir los modelos clásicos de interpretación comprendiendo al movimiento de mujeres como “dependiente” de la primer (y “verdadera”) migración masculina. Pongamos como ejemplo un estudio paradigmático: el trabajo de Balan (1990) sobre los motivos diferenciales de mujeres y varones Cochabambinos para migrar a la Argentina. En primer lugar, debe destacarse que este ha sido un trabajo pionero en darle visibilidad a las mujeres bolivianas como migrantes introduciendo dimensiones analíticas no exclusivamente centradas en torno a lo “verdaderamente” productivo (es decir, el trabajo asalariado). Sin embargo, su interpretación sobre los motivos diferenciales de mujeres y varones reproduce en mucho los clásicos diferenciales de roles: los varones como seres productivos y las mujeres (privadas) afincadas a lo reproductivo y encargadas de la unión familiar. Al respecto debemos decir que, en primer lugar, las mujeres bolivianas provenientes de zonas rurales y campesinas han trabajado desde niñas y en sus hogares la división entre lo productivo y lo reproductivo asimilable a dentro del hogar / fuera del hogar no funcionan del mismo modo que en nuestras sociedades occidentales. Segundo, entre las mujeres bolivianas lo productivo constituye un aspecto central de su subjetividad. (para ambas dimensiones pueden consultarse los trabajos de Benencia 1995, el mismo Balán 1990, Barrancos 2002 y Harris 1983). Estos trabajos destacan la experiencias que, desde

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niñas, tienen las mujeres en las arenas productivas y su vinculación al mercado. El trabajo y lo productivo, en sus propios relatos hace, en mucho, al ser mujer. Sin embargo, y es desde aquí que parte el trabajo de Balan, en la reconstrucción de las trayectorias migratorias relatadas lo productivo pareciera relegarse frente a otras dimensiones a la hora de decidir migrar a la Argentina. La gran mayoría de ellas no contaban con los mismos problemas laborales que sus maridos. Todas las entrevistadas realizaban algún tipo de tarea productiva y remunerativa en los tiempos previos a la migración (con la presencia o ausencia de sus parejas). Si lo productivo resulta tan importante para la construcción de si mismas, ¿porqué ponerlo en juego en pos de la reunificación familiar? ¿Cómo podrían entenderse estas tensiones? Intentaremos algunas respuestas provisorias. b.3) Conflictos, deseos y obligaciones Cuando se analiza no solo las respuestas al “por qué” migraron sino que se reconstruye el como, los procesos que llevan a esta decisión, las entrevistadas dan cuenta de las contradicciones que el viajar les provocaba. Las dudas que surgían, las veces que dijeron que no. En sus palabras queda claro que la migración familiar no puede entenderse como una estrategia familiar en el sentido de estrategia de y para toda la familia entendida como un objeto unívoco. Para ellas la migración era una entre otras posibilidades, pero sus maridos ya habían migrado en búsqueda de mejores condiciones de trabajo. Y ellas deciden venirxiv... Cuando les pregunto los motivos de estas decisiones (que en muchos casos tarda años en concretarse) no hay en sus respuestas contenidos referidos a motivaciones personales (es decir referidas a ellas como personas individuales ya sean satisfacciones personales, melancolías, deseos, amores, etc) ni estructurales (la falta de trabajo imperante, la pobreza, condiciones de vida no satisfactorias, etc) sino que responden ubicándose a ellas mismas como las representantes de la familia (su familia) que habla a través de ellas (es la familia el sujeto de la decisión). Asimismo, resulta interesante que en el proceso de toma de decisión (que como ya dijimos puede ser largo) generalmente son nombradas en los relatos otras mujeres cercanas y ya unidas en pareja (abuelas, madres, hermanas, tías) que les aconsejan migrar enfatizando la necesidad de que los cónyuges estén unidos, que el varón y la mujer como sostenes (y reproductores) del grupo familiar no deben estar separados. - Sí, él (su marido) vino primero después mi hermana me dijo “vamos allá que vas a

estar más o menos junto con tu marido” - ¿Y vos querías ir? - Sí, yo también decidí venir - ¿Por qué? - Claro, así también marido y mujer están juntos... Gerarda, 27 años. - Yo tenía una madrina argentina, pero ella era de Jujuy. Cuando tenía ocho años me

quería traer pero yo lloraba. Ahí (cuando su marido ya estaba en Buenos Aires y ella dudaba en venir) me dice “pensalo porque tenés tus hijos, tus hijos pueden quedarse sin padre”.. bueno, una cosa llevó a la otra... Y dije “entre la pareja comer sin comer, aunque sea van a estar juntos”... Bueno de esa manera vinimos.

Teresa, 32 años

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- Claro, ¿Usted prefería estar acá? - Sí, yo quería estar acá al lado de él porque no es lo mismo es sacrificado

porque yo tenía que dejar a mis hijos, viajar hasta Villasón, a la frontera también.

Norma, 41 años

- Sí, sí, primero vinieron sus maridos y después les llamaron - Claro ¿Y ellas querían irse? - Sí, querían mucho. Estaban sufriendo dicen porque su marido va a trabajar acá

en Buenos Aires “queremos ir” dijeron a mi mamá, y “bueno váyanse” y así vinieron, para no estar separados.

Berta, 29 años La distancia entre los cónyuges es usada entonces, por la negativa, como explicación y justificación del migrar. Pareciera que “ser familia” (tal como lo entendemos desde nuestra cultura) requiere para estas mujeres y su entorno la unión de los cónyuges y esa unión es también espacial. Si las parejas a distancia parecieran no sustentarse, tampoco las parentalidades: no se puede ser padre (o madre) a la distancia. Las relaciones entre los cónyuges y sus hijos/as pequeñosxv necesitarían entonces la cercanía de los cuerpos para hacerse familiares. Sin embargo, en los relatos sobre su vida en Bolivia, la distancia entre la pareja conyugal es recurrente. Entre las de origen campesinos, las mujeres son las encargadas principales del mercadeo de los productos del trabajo familiar sobre la tierra. Ellas, sus madres y hermanas han viajado largas distancias ausentándose del hogar por varios días. Por otro lado, han sido recurrentes los relatos de abandono materno y paterno quedando la crianza a cargo de los abuelos, en general, maternos. La relación con el padre sanguíneo se pierde con el abandono pero se conserva la relación con la madre que se separa de sus hijas ante la conformación de una nueva familia nuclear (el juntarse con un nuevo varón) y, sobre todo, la llegada de hijos e hijas de esta segunda unión. Estas situaciones no son sentidas como anormales (si bien algunas destacan la soledad y tristeza de alejarse de la madre) sino como estrategias necesarias: ante una nueva unión se instituye una nueva familia que gira alrededor de los cónyuges. Las hijas de estas madres, hoy mujeres migrantes, relatan sus experiencias infantiles con una naturalidad ajena a las normas y valores de nuestras sociedades occidentales. No es entonces que la distancia, las separaciones sean siempre interpretadas como negativas o como situaciones que deberían evitarse. Y sin embargo constituyen el principal motivo explicitado por las entrevistadas para su propia migración. Dos diferencias se asoman entre estas distancias y las que motivan la migración. Primero, ahora son los varones y no las mujeres las que se distancian. Pareciera que las mujeres pueden ausentarse sin que se ponga en riesgo a la familia constituida sobre los cónyuges. Para la mayoría esta situación de ausencia masculina se inaugura con las migraciones intraestatales y hay algo de fragilidad, de peligro en esta distancia no presente en las distancias femeninas. Por otro lado, las distancias femeninas siempre son temporales, siempre se “está viniendo”. Mientras los varones se constituyen en migrantes también vuelven, visitan, envían dinero pero la temporalidad es otra, existe la posibilidad del largo plazo. Ante la ausencia masculina entonces, la normativa de la corresidencia conyugal pareciera pesar en tanto que arquetipo familiar. Si no hay separaciones, vivir “a la distancia” constituye una situación que debe normalizarse. Ante ello dos opciones: que las mujeres e hijos/as migren o que el varón decida quedarse. En el caso de las mujeres

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entrevistadas, que por los criterios de selección de la muestra comparten el haber optado por la primer opción, la segunda opción no aparece como posibilidad en el horizonte posible de decisiones. La reunificación familiar adquiere aquí un sentido propio.

c) Si las mujeres migran en y por la familia sus motivaciones no son económicas sino “sociales” y/o “privadas”.

c1) Motivaciones públicas – privadas Ante ello, ¿deberemos decir que las motivaciones de las mujeres son de índole privada a diferencia de los varones que tienen motivaciones públicas, racionales y económicas?. Lo que se juega aquí es una interpretación acerca de lo familiar relacionado con los aspectos domésticos / privados de las vidas en sociedad. Aquí deberemos nuevamente tomar los aportes de las teorías feministas que tanto han discutido la dicotomía Público / privado fundantes de las sociedades modernas occidentales. En su libro Murillo (1996) reconstruye históricamente el proceso por el cuál se ha ido configurando esta dicotomía que es generizada y jerárquica y que oculta prácticas y sentidos al confinarlas al ámbito de lo privado. Dado que son las mujeres las actrices de estas prácticas, son sus propias acciones las que quedan invisibilizadas. En este sentido, es una clásica reinvindicación feminista la de definir al trabajo doméstico como prácticas tan productivas y económicas como aquellas tareas remuneradas ejercidas fuera del espacio doméstico. Siguiendo el hilo de nuestra trabajo, para coincidir con Balán (y muchos otros) en definir las motivaciones de las mujeres como no económicos – productivos debe conservarse sin críticas la visión de la sociedad y lo social configurada en un espacio público-productivo separado de otro privado-reproductivo y una concepción de las relaciones familiares como pertenecientes a este último espacio. Sin embargo, la unión conyugal (el motivo explicitado) no se expresa como un deseo frustrado de compañía o con contenidos nostálgicos sentimentales sino, sobre todo, bajo imperativos públicos y privados de reunificación familiar. Asimismo, la división social/económico (y el resto de las dicotomías que sustenta) invisbiliza aspectos de las migraciones masculinas. Si bien en este artículo no trabajamos con varones migrantes, en nuestra investigación (así como en toda la vasta literatura sobre cadenas y redes migratorias) es claro que los varones migran también a un espacio en el que se encuentra una persona con la que se mantiene y recrea (en parte por la migración misma) un lazo social que, en general es un familiar. Si la presencia de otras/os familiares condiciona las migraciones femeninas también lo hace en las masculinas sin que a ningún/a teórico/a se le haya ocurrido titular esta migración como privada y/o social. Por otro lado, en la división de motivaciones privadas-sociales para mujeres / públicas-económicas para los varones pareciera erigirse intacta la implícita jerarquía de estas motivaciones en y para la investigación científica: racionalidad versus emotividad, mente versus corazón, razón versus sentimientos. Debate que excede y mucho los objetivos de este trabajo sólo diremos que el paradigma economicista (en todas sus vertientes ideológicas) enfatiza estas jerarquías quedando los sentimientos (que, en general, están asociados a las mujeres y a lo familiar) fuera del interés científico. El fuerte economicismo de las teorías migratorias (re-discutidas en la actualidad) y esta división explica también la invisibilidad de las mujeres en los trabajos migratorios. Uno de los objetivos de las feministas dedicadas a la teoría del conocimiento es atravesar estas dicotomías e introducir como un aspecto fundamental de la vida social los sentimientos, emociones, las acciones cotidianas y las miradas micros que incluyen en el gran abanico de lo que es considerado potencial objeto científico las prácticas de

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lo privado, lo que en nuestras sociedades es casi equivalente a decir las prácticas de las mujeres. Ello significa que lo emocional también se expresa desde códigos y normativas sociales acordes a un momento histórico y cultural específico. C2) Motivaciones sociales – económicas Si bien el trabajo de Balán, al que hemos hecho referencia, es especialmente cuidadoso en no considerar “privadas” las motivaciones de las mujeres actualiza otra dicotomía: motivaciones sociales (¿no económicas?) para las mujeres – motivaciones económicas – laborales para los varones. La familia como excluida del ámbito de lo económico. Las causas de las migraciones nunca son unicausales y se hace necesario complejizarlas si bien quizás sea imposible aprehenderlas en toda su dimensión. De allí que a lo recientemente relatado pueda incluirse otra vía de interpretación. Lo familiar, el imperativo de corresidencia conyugal en este caso, también puede integrarse a una lógica económica al considerar a la familia como una unidad productiva y reproductiva. Cuando las mujeres están solas con hijos/as se les hace más difícil trabajar y su movilidad está restringida a la presencia de familiares o amigos/as. Cuando el marido migra, queda sólo esperar el envío de las remesas y dedicarse a las actividades domésticas. En este sentido son ilustrativos los relatos de aquellas mujeres más reticentes a migrar a nuestro país ya que deciden el movimiento migratorio recién ante la ausencia de las redes locales familiares que les permitían ausentarse de sus hogares. ¿Por qué no considerar que, teniendo en cuenta las identidades productivas de las que dan cuenta las mujeres entrevistadas (y diversos estudios realizados tanto en nuestro país entre migrantes bolivianos como en la misma Boliviaxvi) la reunión familiar es un modo de renegociar los roles o, sencillamente, de generar mayores ingresos familiares? . De este modo, la reunificación familiar adquiere otro sentido que se yuxtapone al anterior, el de la lógica económica y productiva. En sus relatos las mujeres dejan claro que migran para tener mejores condiciones de vida que implica reunirse con sus maridos ya instalados e insertos, generalmente de modo informal, en la economía argentina. Las certidumbres (nunca completas) de posibilidades de trabajo para ellas acompaña la reunificación familiar. De este modo, las experiencias vividas en contextos familiares pueden incluir lógicas económicas y productivas que pueden reconstruirse a partir de sus relatos. Al respecto es ilustrativa la historia de Teresa quien trabajaba mercadeando en Bolivia mientras sus hijos/as eran cuidados por su familia. Su marido se fe a Buenos Aires por trabajo y durante un año y medio Teresa se negó a su migración hasta que... ¿Volvió tu marido? (de la Argentina)

- Volvió, después de un año medio. - ¿Seguías con tres hijos vos allá? - Sí seguía. Para entonces cuando se vino él acá me quedé en su casa de nuevo.

Porque estaba en su casa...Me quedé y para entonces ya mi abuela había muerto, mi abuela murió y mis hermanos se fueron uno y el otro lado...así que quedé sola y dije "bueno, nos vamos"... "vamos", vamos a Buenos Aires.

Teresa, 32 años. Las paradojas que surgían al considerar a mujeres forjadas en lo público que prescindían de ello por motivaciones privadas son trasladadas entonces a otra matriz de interpretación: primero, migrar para cumplimentar con normas sociales sobre los modos adecuados de hacer familias es un modo de hacer prácticos imperativos públicos y privados. Sin embargo, las pre - disposiciones sociales relativas a la familia no pueden comprenderse como imposiciones sin más a los sujetos cuyas prácticas solo estarían

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orientadas a la reproducción de estas normas y valores sociales y personales. Circunstancias personales y sociales ubican de diferente modo a los actores sociales frente a las normativas sociales (y personales). Ahí encontramos a las mujeres reticentes a las exigencias de la corresidencia, cuya decisión de migración representó conflictos y negociaciones y en donde la separación fue una de las opciones consideradas. La migración en sus relatos es configurada también como una estrategia económica (que no implica racionalidad exenta de condicionamientos y emocionalidad). Para todas, cumplimentar el imperativo de la conyugalidad “normal y corresidente” más allá de entenderse como una imposición social es una pieza clave para insertarse y ser reconocidas por los otros y otras significantes. 3. Algunas ideas como conclusiones: Como hemos visto el estudio sobre las familias y aquellos sobre migraciones se nos ofrecen como dos campos de estudio que se potencian al integrarse y traingularse (si bien en este trabajo hemos hecho solo uno de los caminos). Hemos intentado este ejercicio para una dimensión clásica en el estudio de las y los migrantes: las motivaciones del movimiento migratorios, deseos y acciones estructurados pero puestos en marcha de diferentes modos por los actores sociales. Atendiendo a las respuestas y sentidos de nuestras entrevistadas podemos decir que efectivamente la reunificación familiar es proyectada como un fin deseado a ser alcanzado con el accionar migratorio. Sin embargo, este decir debe ser analizado y desconstruido para reconstruirlo sociologicamente. De este modo hemos hipotetizado que el sentido de la reunificación familiar lejos de ser “privado” (como derivación de un supuesto ámbito familiar reino de lo privado en contraposición a lo público) pareciera inscribirse en un ideal cultural y social que prescribe la unión del grupo conyugal como modo de ser y hacer familia. Este imperativo, asimismo, pareciera pesar más entre las mujeres que entre los varones relacionado con la asignación de una imagen deteriorada de la mujer “con familia” pero “sin” ella. No pareciera entonces que sea el “ser madre” lo que diera unidad a las concepciones familiares de las personas entrevistadas sino “ser mujer y varón” en la cercanía, ser mujer y varón cotidianamente, ser familia en la práctica. A partir de ello, se discutió principalmente la división entre motivos “personales/privados” - sociales (para las mujeres) y “públicos” – económicos (para los varones). Las criticas a estas dicotomías se construyeron a partir de la conceptualización y construcción de las experiencias femeninas de migrantes cuya trayectoria familiar y migratoria reproduce en su forma los modelos típicos supuestos para el sostén de dichas dicotomías. Los mismos sujetos, el mismo fenómeno puede ser así interpretado desde diferentes miradas que visibilizan algunos aspectos olvidados en otras miradas (que seguramente olvidará y omitirá otros). Asimismo, la crítica a la dicotomía público privado ha de-mostrado como aplicada al análisis de las motivaciones de migración oculta más de lo que permite analizar. Las relaciones y prácticas familiares deben comprenderse atravesando y configurando ambas dimensiones así como lo hacen las mujeres y varones que las conforman. De este modo, hemos visto que las referencias a motivaciones englobadas en aquello que los analistas han denominado “reunificación familiar” (sentimientos, afectividades, sociabilidades) constituyen aspectos fundamentales del proceso migratorio y pueden (deben) ser analizadas “científicamente”. Aún si en las trayectorias migratorias relatadas en las entrevistas hubiesen resaltado únicamente motivaciones ausentes de racionalidad económica y con contenidos sentimentales, estas dimensiones no están exentas de

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posibilidad de análisis socio-lógicos, es decir que no responden únicamente a conciencias individuales, en el sentido durkheimniano, factores psicológicos o personales. Hemos aquí propuesto una vía de interpretación social asociando dichos contenidos con el deseo de cumplimentar con un ideal (social) de madre y esposa coherente con un ideal familiar que contiene la normativa de la corresidencia conyugal. Esto no significa tampoco un determinismo social tout court dado que cumplimentar normativas deja espacios para estrategias diferenciales o modos de convertir las normas en recursos puestos en prácticas. Por último, ante la artificial separación de dimensiones relacionadas a lo “familiar” y aquellas relativas a las áreas productivas y económicas de las decisiones individuales o colectivas, hemos visto como atravesando y reforzando el ideal de conyugalidad puede entreverse la dimensión económica formando parte de las mismas motivaciones de las prácticas desarrolladas. i La definición de migrante es de complicada delimitación, sobre todo porque más que un estado hace referencia a un proceso que en algunas ocasiones puede durar toda la vida. Por ello, con fines técnicos de conformación de la muestra, hemos decidido que denominaremos “migrantes” a quienes llegan a la Argentina con ánimo de residir (para excluir a lo/as trabajadores temporales) sin importar el tiempo que efectivamente residan en el territorio argentino o los/as que sin que dicho “ánimo” sea parte del proyecto inicial del movimiento por diferentes motivos deciden la radicación. ii Si bien existen diferencias contextuales entre ser migrantes en la Ciudad de Buenos Aires o en Ushuaia para el tema que nos ocupa, el de las decisiones migratorias, las ciudades actuales de destino no marcan fronteras de sentidos. iii El trabajo se realiza a partir del análisis de 18 entrevistas en profundidad realizadas en el año 2004 en la Ciudad de Buenos Aires y en Ushuaia. iv Basta ver para ello los estudios realizados sobre las migraciones “masivas” de principio de siglo. Me parece justo excluir en nuestro país a Devoto cuyas historias de migración complejizan gran parte de las verdades sacralizadas en las teorías. v Proyecto de Doctorado: “Migración y Género”, el caso de la comunidad Boliviana en zonas urbanas. vi A lo largo de este trabajo nuestras principales referencias serán acerca de debates sociológicos dentro del campo migratorio. Los trabajos referenciados son citados de acuerdo a nudos problemáticos. Sin embargo, trabajamos también con un “sentido común” del campo de estudios migratorios que sin estar explicitado aparece en congresos, seminarios y artículos varios. Si bien muchosdebates aquí emprendidos son compartidos por otras disciplinas sociales, sabemos que, por ejemplo, la antropología tiene una larga tradición sobre el estudio de las familias y sistemas de parentesco y un estudio sobre las y los migrantes que difiere en parte del sociológico sobre los que no podremos dar cuenta en esta breve presentación. vii Para una revisión reciente de las teorías migratorias ver Cristina Blanco (2000), el número 165 de la Revista UNESCO (2000) o Pizarro, Jorge Martinez. 2003. "El mapa migratorio de América Latina y el Caribe, las mujeres y el género." Seríe Población y Desarrollo. Celade 44.. viii Ver Parsons (1978) y las referencias al modelo clásico en Cheal (1991) y Moore, Henrietta L. 1996. Antropología y feminismo. Cátedra, Madrid. esta última referida a Malinowski.. ix Para un análisis entre la relación entre concepciones femeninas y nacionalismos ver Nira Yuval-Davis 1993. x Como las tendencias generales de la migración de ultramar hacia los países latinoamericanos Ver Devoto (2003 ) xi Esta dificultad, ya superada por el trabajo constante de muchas investigadoras, queda reflejada en los trabajos sobre mujeres migrantes que han debido justificar su objeto de estudio con cifras estadísticas que demuestren la magnitud del fenómeno. Exigencia de la que han sido eximidos los trabajos basados en el modelo típico descripto. Ver los trabajos de Gregorio Gil (1997), Morokvasik (2000), Ariza (2000), Caccopardo (2004) para nuestro país y los múltiples estudios sobre migración y maquila desarrollados en México. xii Es necesario aclarar que el lugar dado a las motivaciones de la migración no implica de modo alguno desconocer los condicionamientos económicos y sociales que generar las condiciones para que un grupo

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de la población se convierta en emigrable. Lo que aquí se analiza son las representaciones y sentidos de las actrices sociales sobre sus propias acciones con el fin de “interpretar” más que de “explicar” el movimiento migratorio. xiii La migración boliviana a la argentina se inicia generalmente con la migración de los varones de diferentes edades con el fin, entre otros, de trabajar y enviar dinero a sus familias (a diferencia de lo ocurrido con migrantes de Paraguay y Perú no se ha observado que las mujeres bolivianas en un número considerable migren solas, es decir, no se advierte una “feminización de la migración”). (Benencia 2004: 442) xiv Queda claro que en nuestra muestra solo están presentes aquellas que deciden finalmente movilizarse, no tenemos contactos con las que optan por otras modalidades ya sea continuar con sus parejas viviendo en dos países diferentes o las que deciden separarse (mujeres en Bolivia). xv Aclaramos las edades de los hijos/as dado que una vez considerados “responsables” (lo que será diferencial para varones y mujeres) las relaciones pueden, y de hecho se mantienen a través del espacio material. Aquí puede hablarse entonces de familias transnacionales para las relaciones padres/madres -hijos/as pero es la imposibilidad de mantener este tipo de familia lo que ha hecho que las mujeres entrevistadas decidieran su migración. xvi Por ejemplo, Cusicanqui, Harris (2), el mismo Balán, Barrancos, Benencia

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Trajetórias afetivas: sexo e amor como elementos da identidade feminina

Andréa Moraes Alves [email protected]

Universidade Federal do Rio de Janeiro – RJ/Brasil

O jogo da “coqueteria”, como nos lembra Simmel (1969) ao descrever esse tipo de sociabilidade no início do século XX, é uma “forma de associação” que institui através de sua operação cotidiana as dimensões da feminilidade e da masculinidade em relação às exibições de afeto: ao comportamento cortês do homem corresponde uma mise-en-scene da reserva feminina. Nessa atuação, onde a mulher age como se não correspondesse aos avanços do homem, se estabelecem padrões de relacionamento de gênero e se difunde a expectativa de que cabe a mulher o papel de objeto nas relações amorosas.

Nas pesquisas que venho recentemente desenvolvendo sobre afetividade e sexualidade nas trajetórias de vida de mulheres de camadas médias urbanas e nascidas na década de 1940, tenho me perguntado sobre a existência de um padrão socialmente aceito e difundido de exibição do amor e do desejo sexual por parte dessas mulheres. Meu questionamento está centrado na idéia de que diferentes gerações de mulheres podem experimentar essas demonstrações de afeto e sexualidade de maneira diversa e essas experiências servem de gancho para pensarmos a reconstrução da identidade feminina em relação ao amor e à vida sexual. Um aspecto que se sobressai no material de entrevista recolhido pela pesquisa em curso é de que a associação entre sexo e amor é obrigatória. É sobre esse ponto específico que eu vou me dedicar nesse artigo. Antes de aborda-lo, porém, apresentarei um breve perfil das mulheres entrevistadas e a forma como foi feito o contato com essas mulheres.

*

A dificuldade em se estabelecer contornos claros para a definição das camadas médias já se tornou lugar comum na teoria social. No caso brasileiro, desde os trabalhos pioneiros de Gilberto Velho, uma série de antropólogos e sociólogos vem discutindo a formação dessas camadas no Brasil e sua relação com a urbanização. Uma opinião comum se afirma entre esses pesquisadores que se defrontam com o desafio de delimitar empiricamente, no trabalho investigativo, as fronteiras de seu grupo de estudo. Essa opinião está bem representada por Heilborn (2004). A autora, em sua tese de doutorado recentemente publicada, intitulada Dois é par: gênero e identidade sexual em contexto igualitário, sublinha a dimensão da moralidade como aquela que seria mais capaz de expressar a identidade desses grupos médios. Os estratos de camadas médias se diferenciam entre si e de outras camadas marcando as fronteiras simbólicas da distinção, o ethos e o estilo de vida ganham preeminência na conformação desses segmentos. Eles se definem muito mais pela diferença em relação aos outros do que pela ênfase na homogeneidade interna. Embora haja certa fluidez na marcação dos limites, a vantagem “reside em apontar a dimensão plural (donde a fórmula também adotada de segmentos) e simultaneamente não depender de premissas substancialistas contidas na tradição vinculada à estratificação social ou na teoria que deriva a posição das classes dos meios de produção.” (Heilborn:2004,72)

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Nessa pesquisa contei com a participação de duas bolsistas de iniciação científicai. Sou professora da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro e selecionei essas alunas para participarem do projeto. A primeira função das bolsistas foi de buscar possíveis candidatas à entrevista. As leituras sobre pesquisa com camadas médias ajudaram a problematizar essa busca assim como tiveram o efeito de questionar o seu próprio pertencimento de classe. Por várias vezes escutei as estudantes utilizarem a expressão “morar mal” para se referir as suas áreas de residência na cidade. Longe do campus da Praia Vermelha – zona sul – as alunas do curso de serviço social residem em geral na zona norte, no subúrbio e na zona oeste da cidade. Esse deslocamento geográfico marca também uma distinção. A zona sul seria o habitat natural das camadas médias elitizadas, ou seja, mais educadas e civilizadas – no sentido que Norbert Elias (1990) dá ao termo, mas não necessariamente mais ricas, ao passo que o resto da cidade abrigaria uma classe média voltada muito mais para o ethos do trabalho e do esforço para subir na vida. Esse ethos localiza a camada média suburbana numa fronteira entre as camadas populares e os estratos médios. A educação, principalmente a universitária, seria um dos marcadores importantes para a delimitação dessa fronteira, aproximando mais dos quadros médios. Assim, o ingresso na universidade, principalmente pública, é traduzido como “uma conquista”, “fruto de muita luta e trabalho árduo”. O deslocamento espacial implicado nessa entrada numa universidade localizada na zona sul da cidade torna ainda mais real para a estudante esse sentimento de sacrifício e esforço para transitar de uma fronteira social à outra.

A zona sul é o espaço da cidade onde se encontram todas as facilidades para aprimorar aquele estilo de vida mais refinado que é identificado com as camadas médias da região; existem mais opções de cinema, livrarias, restaurantes diferenciados, museus, teatros, shows de música, escolas e equipamentos urbanos que funcionam com mais regularidade. O resto da cidade ficaria com o outro extremo da escala: lá falta tudo isso.ii Quanto mais longe do centro e da zona sul, maior é a defasagem. Deste modo, incentivei as alunas a procurarem também entre suas vizinhas e conhecidas possíveis candidatas à entrevista. Pedi que elas localizassem pessoas que, assim como elas, pertencessem à camada média do subúrbio e da Baixada. Dessa busca, apareceram quatro mulheres moradoras do subúrbio e da zona oeste, sendo que uma delas acabou desistindo de conceder a entrevista. As três mulheres que concederam entrevistas possuem ensino médio completo, nenhuma delas cursou a universidade; são todas casadas; duas trabalharam fora e hoje estão aposentadas. Os trabalhos exercidos foram de auxiliar de enfermagem e auxiliar de escritório, ambos no serviço público. Uma delas atua politicamente na Baixada Fluminense. Um outro grupo de entrevistadas, composto por seis mulheres, pertence a uma rede de amigas de uma professora da faculdade. Essas mulheres têm formação universitária e um mesmo passado de militância política, embora com níveis de adesão diferenciados. Todas residem na zona sul da cidade. Foi a partir da militância na Juventude Universitária Católica (JUC)iii que as vidas dessas mulheres se cruzaram. Entre elas existem casadas, viúvas e separadas.

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Uma terceira rede que, na verdade, transformou-se numa díade porque só duas concederam entrevista, é de mulheres solteiras e que ainda atuam profissionalmente no mesmo ramo: a área da saúde. Elas se tornaram amigas através da profissão e comungam na origem social e no estado civil. Uma delas mora na zona sul e a outra na zona norte. Vieram para o Rio quando jovens para estudar provenientes do nordeste do país e aqui tiveram acesso ao ensino universitário. O contato com elas foi estabelecido pelas alunas que procuravam voluntárias para a pesquisa em um grupo de terceira idade. Uma delas se prontificou e acabou introduzindo também a amiga.

As entrevistas tiveram duração variada: de duas até oito horas. Nas entrevistas mais longas foi necessário mais de um encontro com a entrevistada. Optei por realiza-las na residência da pessoa. Nas primeiras entrevistas, fui com as alunas, elas observavam e eu conduzia. Nas últimas deixei que elas se encarregassem sozinhas de algumas. Em três ocasiões a entrevista foi feita só por mim. As alunas também foram orientadas a fazer um diário de campo sobre o contato com as entrevistadas.

As entrevistas seguiram um roteiro estruturado em quatro blocos: os relatos sobre a

família e a região de origem, as experiências juvenis relacionadas a namoro, família e educação, a entrada na universidade e/ou no mercado de trabalho e casamento/criação de filhos, o cotidiano e os projetos atuais. Em cada um desses pontos foram explorados tópicos relevantes para o assunto da pesquisa, ou seja, que refletissem as representações das mulheres sobre os temas: sexualidade e corpo. Essa divisão em blocos serviu para a formulação do roteiro. Durante as entrevistas não obedecemos necessariamente a essa ordem. Os blocos serviam de guias para a condução da entrevista, perguntas fechadas foram evitadas, a idéia central era fazer com que as mulheres relatassem suas trajetórias de vida com o mínimo de interferência direta da entrevistadora.

*

A convergência obrigatória entre sexo e amor foi encontrada em todas as

entrevistas, compreendendo um certo campo comum de comunicação entre essas mulheres. Tão diferentes em outros aspectos, como a vida profissional e o grau de escolaridade, por exemplo; mas, ao mesmo tempo tão próximas no discurso sobre sua vida afetiva. A sexualidade não se constitui para elas como um domínio “desentranhado” (Duarte, 2004), ela está subsumida ao sentimento de intimidade e de compromisso com aquele ou aquela com quem se estabelece uma relação sexual. Mesmo no caso de uma entrevistada que assumiu sua condição homossexual, a união entre sexo e amor esteve marcada.

Numa interessante resenha sobre as análises sociológicas dedicadas ao tema do

amor, AnáliaTorres (2001: 114) ressalta a existência de formas de controle social sobre a experiência desse afeto, principalmente no Ocidente, onde o “complexo do amor romântico” institui um duplo movimento: “por um lado, a escolha do parceiro (é feita) num clima de liberdade, acentuando os componentes de atração e da lógica dos sentimentos como fatores decisivos, mas , por outro lado, escolhe-se o socialmente próximo, procura-se desde logo compatibilizar esses sentimentos com as expectativas quer dos pares, quer dos ascendentes. Negociam-se aspectos da ritualização do enlace, dá-se sinais de desejo de integração. Ou seja, de forma tendencial, procura-se limar os aspectos eventualmente mais

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disruptivos da escolha amorosa, integrando-a numa lógica social mais global.” As regras matrimoniais são assim vistas como uma forma de disciplinar o amor que, se deixado livre, pode ocasionar um desgoverno das vidas individuais. Essa é também a tônica identificada por Gilberto Velho (2002) em seu estudo com camadas médias urbanas intelectualizadas. As pessoas entrevistadas tinham entre 30 e 40 anos no final da década de 1970 no Rio de Janeiro, eram residentes na zona sul da cidade e falavam de suas experiências afetivas, principalmente da vivência da paixão como tendo a propriedade de acentuar a singularidade de suas experiências individuais. O tom forte e dramático que aparecia no discurso sobre a paixão contrastava com a racionalidade do casamento; as relações de aliança domesticam o potencial de perda de controle que a paixão traz. As razões para o início das relações residem no sentimento de paixão/amor, mas o casamento moldaria esse sentimento, acomodando o papel de esposa e esposo e, conseqüentemente, de pai e mãe. Reprodução e casamento estariam necessariamente ligados, porém o prazer sexual e a vivência das paixões poderiam ocorrer fora dos laços de matrimônio, sendo muitas vezes tidos como motivos legítimos para a separação de um enlace e começo de um novoiv. Velho retoma Simmel para problematizar esse discurso sobre a paixão em oposição à razão como uma marca do pensamento ocidental e que implica também numa visão da paixão como um elemento de enriquecimento da “cultura subjetiva”. O sofrimento e a euforia causados pela paixão seriam vistos como recursos de intensificação da subjetividade e formas de auto conhecimento. Essas emoções são valorizadas pelos segmentos médios urbanizados por lhes conferir acesso ao ideal de individualização difundido pelas sociedades modernas.

As pessoas que concederam essas entrevistas a Gilberto Velho fazem parte da

mesma faixa etária das mulheres que entrevistei. As mulheres que compõem a rede de militantes políticas da JUC se referem a esse universo entrevistado por Gilberto Velho como a geração “sexo, drogas e rock and roll” que, diferente delas, não se dedicaram à atividade política contra a ditadura militar como um projeto individual. Para as ex-militantes da JUC, o trabalho político e a vida profissional se tornaram os eixos centrais de sua subjetividade, mas com o prejuízo de suas vidas afetivas. Em alguns casos, esse prejuízo pôde ser revertido. No entanto, as entrevistadas atribuíam essa reversão ao acaso (sorte) ou a uma guinada individualista-afetiva em suas vidasv. Aqui vida afetiva pode ser tomada em seu sentido amplo: não só as relações homem/mulher como também a relação mãe/filhos; ambas se viram prejudicadas pelo projeto de vida profissional autônoma e/ou pelo trabalho de engajamento político. No que concerne às relações homem/mulher, a experiência da paixão antecedeu ao casamento. Esse, por seu turno, inaugurou a vida sexual dessas mulheres e na seqüência trouxe a maternidade. Mesmo aquelas mulheres que fazem parte das outras redes de entrevistadas compartilham desse processo. As solteiras, no entanto, sofreram uma interrupção do fluxo: elas não se casaram, não tiveram filhos, mas escolheram ter vida sexual ativa o que lhes apresentou um dilema na construção de sua identidade feminina: a incompatibilidade forçada entre casamento e sexo. Essa incompatibilidade gerou também uma insegurança em relação à qualidade afetiva de seus envolvimentos sexuais. Comparando com os entrevistados de Gilberto Velho, as solteiras de meu grupo de informantes não resignificaram a experiência sexual fora dos marcos do casamento e da reprodução como elementos de enriquecimento de suas “culturas subjetivas”, mas como uma obrigação social, uma exigência feita por seus pares para confirmar a vida independente que levavam nas esferas econômica e política. Se para seus

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contemporâneos, elas tinham que perder a virgindade e ter relações sexuais independente do projeto de casamento, para seus familiares essa vivência não poderia aparecer.

“Eu tinha o maior medo que meus pais soubessem, que ficasse escrito na minha

testa que eu não era mais virgem.” (Luzia, 62 anos) “Eu nem lembro da minha primeira vez direito, eu só sei que eu tinha que

resolver aquilo. Na clandestinidade ninguém era de ninguém mesmo. Era um sexo burocrático, sem sentimentos, você nem sabia o nome de verdade daquela pessoa. Foi ali no Aterro do Flamengo, com um companheiro, fui lá, fiz e acabou.” (Ana Clara, 63 anos)

“Olha, eu já tinha 30 anos na cara e todo mundo implicava comigo: Como é

que pode uma mulher independentevi como você ser virgem? Eu tive que acabar com aquilo, entendeu?” (Maria, 68 anos)

Além do conflito com a família de origem e o modelo de casamento e vida afetiva

que eles representavam, essas mulheres tinham também que enfrentar um conflito interno: lidar com os códigos aprendidos de vivência afetivo-sexual. Se o corte entre sexo e casamento era vivido como um dilema, a dissociação entre sexo e amor era impensável. O grande problema para essas mulheres depois de estabelecida a ruptura entre sexo e casamento era buscar, nas suas práticas sexuais cotidianas, marcas de afeto, vestígios do amor. Abandonado o projeto de casamento que houvesse então amor entre ela e seu escolhido. Mas, se elas aprenderam a vida toda que o destino do amor é necessariamente o matrimônio e os filhos, que tipo de amor era esse que elas poderiam viver? A insegurança que essa pergunta trazia a todas aquelas que não se casaram fica refletida em vários momentos de suas entrevistas. Há uma certa sensação de fracasso por não ter realizado, mesmo que temporariamente, o casamento e a maternidade, vistos como sinais da identidade feminina.

“Eu estudei, tenho meu trabalho e minha independência, mas eu também

queria ter casado de véu grinalda, ser mãe, essas coisas...” (Luzia, 62 anos) Para aquelas que foram casadas e se separaram, o dilema era outro: justificar a

separação. O amor existiu em algum momento, estabeleceu-se a união como era previsto, vieram os filhos e o amor extinguiu-se. Essa extinção do amor relatada com muito sofrimento resgata a noção de crescimento pessoal abordada anteriormente e de “coragem”. O rompimento de uma união sem amor e a aventura de conquistar um espaço como indivíduo torna as separadas da década de 1980 personagens de um romance heróico. A separação abre portas para o fortalecimento da vida profissional e para o exercício da vida sexual fora do casamento, embora não sem problemas. O preconceito em relação às mulheres divorciadas era alardeado em acusações de promiscuidade. Essas mulheres também acalentaram a expectativa de uma nova relação, não de um casamento, mas de construir um novo amor com um companheiro, um modelo de homem que pudesse corresponder aos seus anseios afetivos sem o custo da padronização dos papéis domésticos. São essas mulheres que conseguem falar mais abertamente de sua vida sexual e das mudanças sentidas por elas nessa área. Como se a experiência do divórcio trouxesse os

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marcos necessários para viver o sexo como efetivamente separado do casamento, embora não necessariamente do amor e essa vivência independente do sexo tenha se dado com menos culpa e insegurança do que nas mulheres solteiras da mesma geração. Afinal, elas não fracassaram no projeto de casamento, como as solteiras, elas o negaram. No entanto, não devemos ter uma visão épica desses processos de divórcio. Em muitas situações fica claro o sofrimento e a relutância em se separar.

“Eu pensei: não tenho mais vinte anos, já vou fazer quarenta, ou eu tomo

coragem e tomo essa decisão agora ou nunca mais por que aos cinqüenta, sessenta fica mais difícil se separar. Pra mim foi muito bom naquele momento tomar uma posição, me permitiu um desenvolvimento profissional, permitiu relações com dezenas de outras pessoas, relação sem culpa” (Roberta, 63 anos)

“Eu já estava com quarenta e poucos anos, eu achava que era assim um

declínio natural: você casa, tem filho na época reprodutiva, depois acaba, aí a gente se separou e ficou cada um pro seu lado, foi traumático. Eu fiz análise, já tinha feito anteriormente, mas era mais problemas da existência, esse foi pra segurar a barra mesmo porque estava muito pesado.” (Isabel, 64 anos)

As que permaneceram casadas, com exceção daquela que julga ter tido uma história

incomum de companheirismo com seu falecido esposo (o fato dela ser viúva há pouco tempo também pode contribuir para essa “idealização” de seu próprio matrimônio), têm uma visão mais tradicional sobre o amor, o sexo e o casamento; questionam menos a importância desses temas e tratam-nos de uma forma mais racionalista. A paixão é entendida como um momento pré-matrimônio, recordada como algo que ficou no passado e que a realidade do casamento molda e ao moldar traz também vantagens. O amor é tido como um sentimento mais tranqüilo e seguro, os filhos e os netos como esteios da relação, o sexo perde cada vez mais o lugar e entra a categoria nativa de “costume” ou “hábito” para definir a relação do casal. Os conflitos são previsíveis.

“Eu acho que o casamento é muito bom, é um cúmplice que você tem, um

companheiro, mas também cria uma relação...a proximidade é muita. O ideal é que você pudesse ter um marido legal, mas cada um na sua casa, escutando a música que gosta porque alma gêmea não existe, isso é história. Então um gosta do Zeca Pagodinho e o outro de Madre Deus e eu tenho que escutar Zeca Pagodinho e por aí vai, uma série de hábitos diferentes, são duas pessoas diferentes. Morar junto é um exercício de paciência, de compreensão e que nem sempre você está com paciência aí estoura o conflito, às vezes tem que dar briga mesmo. Casamento é um negócio muito difícil. Adoro meu marido, gosto muito, mas é difícil sim.” (Carla, 60 anos)

No universo pesquisado encontramos pelo menos três maneiras distintas de

conceber a interação entre sexualidade a afeto. Essa articulação nos oferece um caminho para pensarmos a construção da identidade feminina em relação à experiência do amor e do casamento. O corte geracional que adotamos permite pensarmos essas maneiras como referências para problematizarmos a vivência afetiva de outras gerações de mulheres.

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i Michelle Terra Esperandio de Sá e Claudia Pontes Porto ii Myriam Moraes Lins de Barros concluiu duas pesquisas com estudantes universitários: Universidade, família e juventude e Juventude universitária, redes sociais, projetos e fluxos culturais. Nesses projetos aparece como dado relevante o deslocamento espacial e simbólico entre as áreas de moradia e o campus universitário. Uma análise parcial das pesquisas está publicada (Lins de Barros, 2004) iii A Juventude Universitária Católica (JUC) era um grupo de militância política e social ligado à Igreja Católica, atuante entre os anos 1950 e 1960 no Brasil. iv Também sobre o tema das relações de casamento e os modelos de casal moderno nos segmentos médios urbanos ver Heilborn (2004 v Maria (68 anos) diz: “Eu tive muita sorte na vida! Eu encontrei um homem aos 40 anos de idade, me apaixonei e ele era alguém capaz de compreender e partilhar comigo. Eu sei que o casamento que eu tive com ele não é modelo pra ninguém da minha geração”. vi A categoria “independência” reaparece em várias falas. A referência que marca a passagem da dependência para a independência está na entrada para o mundo público, sendo o acesso à universidade tomado como o momento inaugural dessa passagem.

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“Algumas garotas preferem garotas”: The L Word, sexualidade e as políticas de visibilidade lésbica1.

Anna Paula Vencato2 [email protected] Universidade Federal do Rio de Janeiro- UFRJ

Resumo: O seriado norte-americano The L Word tem se transformado num fenômeno de mídia nos países em que vem sendo assistido mesmo naqueles em que ainda não passava, como o Brasil. O furor é tanto que no Brasil, por exemplo, há grupos na internet que baixaram os episódios já exibidos nos EUA, legendaram e distribuíram para o público, fazendo com que mesmo aquelas/es que não sabia inglês (mas têm acesso à Internet) pudessem assistir aos episódios já exibidos fora do país quase que imediatamente após sua exibição no país de origem. Nos sites lésbicos brasileiros e estrangeiros, o seriado vem sendo foco constante de criticas, debates, questionamentos e, principalmente, admiração. Nesse contexto, faz-se necessário pensar sobre que tipos de imagens de lésbicas estão sendo expostos no TV show e quais os possíveis impactos e implicações dessas representações nas políticas atuais de visibilidade lésbica.

Sexuality is fluid. Whether you're gay or you're straight, you just go with the flow3. (Shane)

The L Word4 faz referência à “aquela palavra que começa com L e que temos desconforto em pronunciar”. Partindo dessa idéia e associando o L de lésbica a outros L´s (love, lies, loneliness, life, losing, laugh) temos a base de um seriado norte-americano, produzido pelo canal Showtime (interessante notar que com exceção do episódio piloto todos os episódios têm título que começa com a letra L). Está no intervalo da segunda para a terceira temporada nos EUA, e estreou no Brasil e América Latina em julho de 2005, exibido pela Warner Channel. O seriado trata do dia-a-dia de um grupo de amigas, fórmula bastante conhecida já, exceto pelo fato de que tal grupo é composto por mulheres homo e bissexuais (o elemento transgênero até aparece em alguns poucos episódios, mas isso não faz dele algo central para a série). Quando pensei pela primeira vez em escrever sobre The L Word, o seriado ainda não era exibido por nenhum canal de TV no Brasil ou América Latina. Até então, era restrito a países anglofônicos. Isso não significa que, como eu, várias outras pessoas tivessem acesso aos episódios – legendados ou não - no Brasil5. Recentemente, passou a ser exibido também na América Latina e Brasil. A primeira temporada do seriado começou a ser exibida nesses países em versão com cortes, o que se modifica um mês depois da estréia depois de vários protestos feitos à Warner Channel6. Nos EUA a segunda temporada já terminou e a terceira está sendo gravada. Embora eu tenha assistido às duas temporadas na íntegra e alguns dos episódios editados que estão passando no Brasil, nesse texto gostaria de refletir não apenas sobre ele mas, em alguma escala, também sobre algumas coisas que vem sendo escritas sobre o seriado, sobretudo na mídia virtual7 (nacional e internacional) e seus impactos no âmbito da visibilidade lésbica. Até porque, hoje não se pode pensar em visibilidade e militância gay sem prestar atenção a uma maciça presença de sites dirigidos ao público homossexual na

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Internet. Há, inclusive, diversas campanhas de fim político que tomam grande vulto especialmente ao circularem pela Internet. Quando se fala em mídia internacional especializada, não é incomum que se retrate The L Word como um “Sex and the city8 lésbico” ou um “Sex and the city lésbico, mas menos moralista9”. Essa comparação pode ser feita, inclusive, no que tange a padrões de consumo, modelos estéticos e pertencimento de classe. Contudo, as lésbicas de The L Word embora estabeleçam relações de longo prazo em alguns momentos, ou desejem isso, não pautam seu discurso na idéia de “só ser uma mulher completa dentro de uma relação”, mas partem da idéia de que a orientação sexual cria uma série de inserções sociais que não poderiam ser pensadas fora desse contexto, um lugar diferenciado no mundo, cujo instrumento principal de agência é a idéia de que é bom ter este estilo de vida e que é bom estar fora do armário10. O seriado exibido nos EUA propõe discutir a vida de um grupo de amigas, lésbicas e bissexuais, que moram em Los Angeles, são de classes médias, intelectualizadas, alto poder aquisitivo, com acesso a bens culturais simbólicos de prestigio, a boas roupas e cabeleireiros, entre outras coisas. As lésbicas de The L Word têm “glamour” e alto poder aquisitivo (como pode ser visto na propaganda americana da primeira temporada, na imagem11 abaixo). Estão longe de um modelo masculinizado (“butch” ou “dyke”) e, mesmo as drag kings apresentadas são bastante femininas (embora seja difícil pensar numa drag king “feminina/lipstick” no mundo real). Isso causou alguma celeuma nos fóruns internacionais, que reclamavam que as lésbicas masculinizadas deveriam estar representadas não apenas como figurantes eventuais. Essa discussão, contudo, não teve quorum no Brasil, em que a maior parte das discussões passou mais pela idéia de que é bom ver mulheres lésbicas bonitas na TV, uma vez que no imaginário social lésbicas são comumente pensadas como mulheres masculinizadas e descuidadas. Evidentemente, este seria o argumento mais politizado e pouco citado. A beleza das atrizes geralmente é citada muito mais em tom de tietagem que qualquer outra coisa.

Voltando ao que os websites lésbicos internacionais têm discutido, contudo, devo concordar que há, de fato, a ausência de “lésbicas masculinizadas12”. Essa ausência talvez não tenha um impacto maior que o de ausência nos meandros do discurso político americano mas, no caso brasileiro, esse ideal de feminilidade lésbica, especialmente no que concerne ao sexo, pode ter apelo junto ao público heterossexual masculino se pensarmos na idéia de ménage como uma fantasia sexual extremamente comum.

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Contudo, apesar dessa ausência, não se pode pensar em The L Word fora de um movimento de política identitária americanizado e que tenta representar vários sujeitos diferenciados dentro daquele cenário social. A série se esforça em inserir personagens de etnias diversas, discute família, raça, sado-masoquismo, traição, homoparentalidade, etc., tentando dar um tom inclusivo a práticas sexuais diversas. A série traz, também, discussões acerca do sexo conjugal e do sex for fun (sexo pelo sexo), sem tentar, de modo geral, legitimar uma e deslegitimar a outra. Não há uma narrativa sobre sexo seguro na trama, nem sobre doenças sexualmente transmissíveis. O seriado gira em torno de algumas narrativas pertinentes ao grupo: homoparentalidade (no caso, com reprodução assistida), (construção de/ relação com) família, sair do armário - visibilidade, práticas sexuais, conjugalidade - traição, uso de drogas (álcool e outras), homossexualidade13 e trabalho, homossexualidade e lazer, homossexualidade e consumo14. A idéia de festa está presente também, não apenas no nível mais privado de amigas que se reúnem na casa de alguém, mas a freqüência a casas noturnas dedicadas ao público lésbico e também alguns outros (embora poucos) lugares dirigidos ao público gay em geral ou ao público heterossexual (no caso, alguns momentos numa casa de strip tease em que uma das personagens trabalha durante algum tempo e um vernissage na galeria de arte em que a outra trabalha). Uma dessas narrativas diz respeito ao estabelecimento de relações erótico-afetivas no universo lésbico. Nesse ínterim, o seriado nos apresenta um quadro (ver figura abaixo), desenhado pela personagem Alice, que demonstra “quem ficou com quem” em Los Angeles (cidade cenário da série). A idéia é a de que em qualquer círculo de amizades lésbico existiria uma espécie de o troca-troca de parceiras no sentido de que, provavelmente, a maior parte das pessoas compartilha ex-namoradas ou “ex-ficantes”. O argumento da personagem e o de que as pessoas estão conectadas de fato por uma rede de relações de uma proximidade impressionante. No final dessa rede, não apenas mulheres gays estarão ligadas umas as outras por ter “ficado” com alguém que uma amiga ou ex já teria “ficado”, mas provavelmente podem-se inserir personagens do mundo hetero e do universo gay masculino nesse quadro.

É interessante pensar nesse quadro e como de fato corresponde a algo extremamente comum no universo lésbico (não apenas o troca-troca, mas também desenhar o quadro). A prática do troca-troca é, inclusive, bastante discutida nesse meio: sempre citada jocosamente, muito criticada e pouco defendida. Há argumentos que tentam defender essa prática, que normalmente falam da ausência de mulheres disponíveis no mercado, o que estimularia esta certa endogamia afetivo-sexual. Outro discurso comum é o de que é mais fácil estabelecer relações dentro do próprio grupo porque o meio gay tem muita gente que “não presta” e, nesse contexto, seria mais fácil ficar com alguém “decente” quando se está ficando com alguém já conhecido.

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Apesar de alguns discursos favoráveis, e embora amplamente difundida no meio lésbico, a prática não se dá sem conflitos. É bastante comum que, em alguns momentos, essa troca de pares acabe resultando no término de relações longas de amizade, pois ficar com a ex de alguém pode indicar uma certa traição da amizade, especialmente quando ainda há sentimento pela pessoa com quem a amiga passou a ficar ou namorar. O rompimento desses laços de amizade pode ser “para sempre” mas, comumente, tende a ser temporário e, mais tarde, todas as pessoas voltam a fazer parte de um mesmo grupo de sociabilidade (com grau de amizade mais ou menos intenso, dependendo do caso). O argumento contrário à prática mais extremista afirma que é este tipo de comportamento que dá base à idéia de promiscuidade no universo homossexual feminino e que, nesse contexto, a prática aumenta o preconceito contra as mulheres. No caso do seriado, a prática aparentemente não afeta diretamente ao grupo embora algumas das personagens sejam “ex” umas das outras. Em The L Word, a prática é apontada, mesmo, como elemento constituidor do grupo, o que contrastaria com os discursos mais moralistas sobre esta prática, mas é condizente com o que defende uma espécie de estabelecimentos de relacionamento erótico-afetivos mais endogâmicos. Endogamia, aliás, é um termo chave para pensar no conjunto de relações sociais estabelecidas pelas personagens da série, inclusive no que diz respeito ao fato de circularem num meio extremamente protegido, inclusive de ataques homofóbicos. A inserção de grupo das personagens e os locais pelos quais circulam permitem que se mantenham distantes do risco de ataques de conservadores radicais ou grupos que atuem de forma violenta contra homossexuais. Quando se tenta comparar o contexto da série com o contexto brasileiro, esbarra-se no modelo de políticas identitárias americano em contraste com a relativa “mistura” brasileira. Em alguns momentos, aquilo que se está vendo no seriado chega a ser fantasioso demais se comparado ao caso brasileiro. As personagens são mulheres lésbicas, femininas, na faixa dos 25-35 anos (e até por essa razão, “assumidas”), com carreiras relativamente consolidadas e com alto poder aquisitivo. O seriado não possui marcas de classe claras que crie diferenciações entre as personagens principais que, mesmo quando contam alguma história sobre ter sido abandonada pela família de origem e ter vivido em abrigos pertencem, na idade adulta, às classes medias. O recorte étnico existe, mas me parece que menos marcado dentro desse grupo do que o usualmente acionado na a sociedade americana. As marcar étnico-religiosas aparecem com muito mais freqüência em referências a família de origem do que em outros aspectos. O interessante é que, das personagens brancas, apenas uma tem um discurso mais organizado sobre família, com eventuais aparições da mãe nos episódios (a personagem que é bissexual, no caso). As demais até fazem poucas ou nenhuma referência à família, e, quando o fazem acionam um discurso de não-aceitação, distância ou abandono. Castro e Moutinho (2005), em uma pesquisa sobre homossexualidade em favelas cariocas havia apontado isso com relação a jovens negros homossexuais que, não só conseguem circular pelas favelas a despeito das divisões territoriais ocasionadas pelo tráfico mas também por outros lugares da cidade, como os bairros de classes médias e altas. Em The L Word lésbicas brancas, latinas e negras convivem aparentemente sem conflitos étnicos. Isso pode significar que também nos EUA, como no Brasil, dentre homossexuais exista um trânsito possível e maior circulação de pessoas pertencentes a

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diferentes etnias e que isso pode indicar que a orientação sexual pode mobilizar e levadas a cabo essa circulação de sujeitos que possuem sexualidades não-hegemonicas. Talvez isso indique que há um espaço, mesmo dentro da sociedade americana, famosa pela segregação identitária, em que as barreiras da segregação podem ser rompidas. Num texto acerca da publicidade recente e criação de um mercado15 de produtos de beleza para negros no Brasil, Fry (2002), discute que essa demanda não foi produzida pelo estabelecimento de uma classe média negra no Brasil, mas, de fato, foi constituidora dessa classe média. O autor nos informa, contudo, que o fenômeno que descreve é o de um mercado que busca lucro embasando-se em parâmetros culturais que, em principio, não teriam relação com as “forças de mercado”. Ser negro, para esse segmento do mercado, não é pensado como uma questão de ethos ou de cultura, mas por especificidades estéticas. Nesse contexto, os embelezadores, e o acesso a produtos que deixam a pessoa mais bonita pode ser interpretada como um movimento político que constrói uma auto-estima melhor e insere essas pessoas em outra posição social, uma vez que na sociedade brasileira, boa aparência foi utilizada, historicamente, como um sinônimo de branquidade. O investimento em uma certa estética e um certo padrão de beleza, conforme o argumento de Fry, são fundamentais para um reposicionamento do papel desses sujeitos dentro da sociedade brasileira. Não que uma melhor aparência seja equivalente a esquivar-se dos preconceitos históricos contra os negros, mas lhes propicia outros lugares que antes pareciam impossíveis por barreiras fenotípicas significadas como menos belas em nossa cultura. Ou seja, a transformação dos traços fenotípicos seja através do uso de produtos de beleza, seja através do uso de roupas, acessórios e maquiagens reposiciona os sujeitos que lançam mão dessas estratégias dentro da estrutura social. Estendendo este debate ao que poderia interessar numa política de visibilidade lésbica, poder-se-ia retomar a comparação entre The L Word e Sex and The City, pensar os porquês da ausência de mulheres masculinizadas na série, pensar a falta de fragmentação identitária étnica no grupo mostrado pela série e, também, e acho que este é o principal ponto aqui que da mesma forma em que o mercado baliza a possibilidade da construção da identidade de classe média para a população negra no Brasil, um seriado como The L Word em termos de política de visibilidade constrói uma visibilidade lésbica nunca antes vista, assim como na própria construção da identidade social16 desses sujeitos. Conforme aponta Gregori (2004) em relação ao consumo de mercadorias de sex-shops, há uma comodificação das relações implicada nessa construção da sexualidade lésbica e, esta mercantilização traz colada em si uma tendência a investir num certo fortalecimento do self. O mesmo movimento pode ser visto claramente em The L Word. Diferente da idéia de uma lésbica descuidada, as lésbicas ali retratadas constroem carreiras sexuais pautadas num tipo de consumo gay comum ao modelo americano: cruzeiros lésbicos, festas em resorts dirigidos ao público homossexual feminino e, mesmo, o acesso e realização de certas fantasias sexuais que envolvem uso de acessórios, lugares inusitados eventualmente, mas uma sexualidade que pode ser vivida intensamente pois todas, solteiras ou não, possuem sua própria casa montada, palco para encontros de uma noite ou relações mais duradouras.

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Mas não é apenas pela idéia de consumo que a lesbianidade se constrói no seriado. A idéia própria de que duas mulheres juntas fazem sexo e não precisam de um homem para isso, ilustrada de forma contundente na tela da tevê delineia contornos de para um grupo social que sempre viveu a margem dos grupos homossexuais masculinos nas representações midiáticas e, também, em boa parte das populares. Lésbicas - e especialmente lésbicas que fazem sexo - nunca haviam sido mote central para nenhum seriado para a TV, embora estivessem presentes em alguns outros, mas, de modo geral com “conversões temporárias” e posterior retorno à heterossexualidade. Mesmo num clássico televisivo lésbico, “Xena, a princesa guerreira” a orientação sexual da personagem nunca foi claramente posta, embora ficasse subliminar em sua relação com Gabrielle que tinham algo mais que apenas amizade. O mais próximo que se havia chegado até então duma relação homossexual num seriado acontecera em “Buffy - A caça vampiros”, em que a bruxa Willow descobre-se envolvida com outra bruxa, Tara, com que passa a namorar ao longo da série e, mais tarde, com a morte de Tara, passa a namorar Kennedy, uma caça-vampiros em formação. De qualquer forma, em Buffy, apesar do público da série ser inicialmente adolescente, é representado (mesmo que com personagens que vivem num mundo fantasioso povoado de entidades sobrenaturais e não-humanas) pela primeira vez, mas timidamente, a idéia de sexo lésbico com cenas que apontam, por exemplo, para a realização de sexo oral. A meu ver é no que concerne às práticas sexuais entre lésbicas que The L Word de fato tem algo a nos dizer acerca do universo lésbico. Um dos aspectos apresentados na série é a idéia de que mulheres fazem sexo por diversão, que há mulheres que têm várias parceiras sexuais ao longo da vida e lésbicas podem ou não fazer uso de acessórios sexuais, mas que mesmo que o façam isso não indicaria uma vinculação de prazer sexual pautado num modelo de sexo heterossexual (no sentido de englobar necessariamente a penetração de uma vagina por um pênis17). Conforme Duarte, “a afirmação de um critério mundano de ‘satisfação’ e ‘prazer’ como justificação da vida humana é um dos traços mais característicos da inflexão moderna da cultura ocidental e certamente se associa ao processo de requalificação do ‘erotismo’ no quadro das fontes específicas de prazer (...). É de fundamental importância nesse processo a conotação de transgressão na obtenção de prazer.” (2004, p.43-44), sendo que isso é fundamental, inclusive no ideal de indivíduo autônomo em relação a sociedade em que está inserido. Conforme Bozon, “... a atividade sexual constitui atualmente um dos sinais mais reveladores da nova organização das idades e do curso de vida” (2004, p. 63-64). Isso implicaria em dizer que ao falar sobre a atividade sexual entre mulheres como um aspecto importante de suas vidas coloca-se também a questão de que mulheres podem romper em alguma medida, com a idéia de que as mulheres “não transam tanto quanto os homens ‘naturalmente’” e, conseqüentemente, que duas mulheres juntas tenderiam a ter, necessariamente, uma relação mais pautada em afetividade que em sexo. Em termos de como se dá essa busca pelo prazer e vivência das sexualidades, há uma preocupação constante nas narrativas dos episódios de evitar o julgamento moral de várias práticas não-normativas (uso de acessórios de sex-shops, ménage, sexo em locais públicos, entre outros). Contudo, não se pode pensar tal discursividade (nos termos de Foucault, 1999, quando argumenta contra a hipótese repressiva18) fora de um contexto de adequações a uma certa normatividade. O discurso sobre o sexo em The L Word,

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sobre um sexo “liberado” cria um espaço de regulação desse próprio sexo e acaba por legitimar alguns tipos de práticas sexuais enquanto marginaliza outras. Assim, penso que o seriado pode e deve ser pensado dentro da perspectiva proposta por Gregori, quando afirma que “hoje assistimos à criação de um erotismo politicamente correto protagonizado por atores ligados à defesa das minorias sexuais” (2004: 235), e que esse tipo de construção tem implicações na construção das identidades sociais das lésbicas que assistem ao seriado. Referências Bibliográficas BOZON, Michel, GIAMI, Alain. Les significations sociales des actes sexuels, Actes de la recherche en sciences sociales, n° 128, juin 1999, pp. 4-23. _____. Sociologia da sexualidade. Rio de Janeiro: FGV, 2004. CASTRO, Crystiane, MOUTINHO, Laura. Reflexões sobre raça, (homos)sexualidade e pobreza no subúrbio carioca, no prelo, 2005. DUARTE, Luis Fernando Dias. A sexualidade nas ciências sociais: leitura crítica das convenções. In: CARRARA, Sergio, GREGORI, Maria Filomena e PISCITELLI, Adriana (org.). Sexualidade e saberes: convenções e fronteiras. Rio de Janeiro: Garamond, 2004. FACCHINI, Regina. Sopa de letrinhas: Movimento homossexual e a produção de identidades coletivas nos anos 90. Rio de Janeiro: Garamond, 2005. FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I: A Vontade de Saber. Rio de Janeiro: Graal, 1999. FRY, Peter. Da hierarquia à igualdade: a construção histórica da homossexualidade no Brasil. In: Para inglês ver. Rio de Janeiro: Zahar, 1982. pp. 87-115. _____. Estética e Política: Relações entre "raça", publicidade e produção da beleza no Brasil. In GOLDENBERG, Mirian (org.) Nu e Vestido: dez antropólogos revelam a cultura do corpo carioca. Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 2002. pp. 303-326. FREIRE COSTA, Jurandir. A inocência e o vício: estudos sobre o homoerotismo. 3. ed. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1992. GREGORI, Maria Filomena. Prazer e perigo: notas sobre feminismo, sex-shops e S/M. In: CARRARA, Sergio, GREGORI, Maria Filomena e PISCITELLI, Adriana (org.). Sexualidade e saberes: convenções e fronteiras. Rio de Janeiro: Garamond, 2004. HEILBORN, Maria Luiza. Ser ou estar homossexual: dilemas de construção de identidade social. In: PARKER, Richard, BARBOSA, Regina Maria. Sexualidades brasileiras. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1996. pp. 136-145.

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1 Trabalho de conclusão apresentado à disciplina “Tópicos Especiais em Saúde Coletiva: novos temas na abordagem Sócio-Antropológica da Sexualidade”, ministrada pela Prof. Dra. Maria Luiza Heilborn e pelo Prof. Dr. Michel Bozon, no Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva – IMS – UERJ, em 2005/1. 2 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia – IFCS – UFRJ, sob orientação do Prof. Dr. Peter Fry. 3 "Episode Clip 1" for 1x01 "Pilot Episode" - TV Transcript. Disponivel no site http://www.l-word.com/transcripts/. 4 The L Word tem 13 episódios por temporada, com duração de cerca de 45 minutos cada um. Os episódios não são escritos e dirigidos sempre pela mesma pessoa. Algumas das pessoas que produziram ou dirigiram os episódios já tiveram atuação na produção/direção de filmes de temática lésbica, assim como algumas atrizes já representaram lésbicas antes. A primeira temporada tem como personagens principais Jenny Schecter (Mia Kirshner), Tim Haspel (Eric Mabius), Bette Porter (Jennifer Beals), Tina Kennard (Laurel Holloman), Shane McCutcheon (Katherine Moennig), Dana Fairbanks (Erin Daniels), Alice Pieszecki (Leisha Hailey), Kit Porter (Pam Grier) e Marina (Karina Lombard). Marina e Tim saem na segunda temporada e entra outra personagem central à trama, Carmen de la Pica Morales (Sarah Shahi). Apenas Leisha Hailey é lésbica (assumida, pois há boatos acerca das outras) na vida real, e já foi “casada” com a cantora k.d. lang, um ícone lésbico nos EUA. Evidentemente essa informação é usada amplamente por sites que falam do seriado, nem que para citar a peculiaridade de que a única atriz que é lésbica de fato na vida real interpreta a única personagem bissexual da trama. 5 Há um grupo que se especializou em baixar, traduzir e legendar os episódios e distribuí-los pela internet. Contudo, para ter acesso aos episódios era necessário um conhecimento mínimo de internet e acesso à internet não-discado, ou seja, uma conexão rápida. O grupo tem um site (http://www.thelwordbr.com.br/) e também uma lista de discussão (http://br.groups.yahoo.com/group/thelword_br/) e comunidade no Orkut (http://www.orkut.com/Community.aspx?cmm=435211), das quais participo. 6 Conforme matéria de Lilian Fernandes, para o Segundo Caderno do jornal O GLOBO, publicada em 12 de agosto de 2005, entitulada "'L word': cenas de sexo agora sem censura": "Os cortes nas cenas mais picantes de ‘L word’, primeira série a retratar o universo das lésbicas, levou os telespectadores a entupir o Warner Channel de reclamações. Como o cliente sempre tem razão, foram ouvidos. A partir deste domingo, às 23h, quando o sexto episódio irá no ar, a série passará a ser exibida integralmente. (...) Embora tenha anunciado ‘L word’ como ‘polêmica’, o Warner tomou alguns cuidados antes de lançá-la na América Latina, temendo principalmente a repercussão em países mais conservadores que o Brasil, como o Chile. Em janeiro, foram organizados grupos de discussão para avaliar a programação do canal, e os participantes responderam a algumas perguntas sobre a série. O resultado foi animador, mas, por via das dúvidas, o Warner comprou a versão light do programa, oferecida pelo canal a cabo americano Showtime justamente para facilitar sua comercialização. Com a gritaria, a estratégia mudou. - É a primeira vez que o Warner traz um programa desse gênero; então decidimos fazer um teste e optamos por exibir a versão light - diz Wilma Maciel, diretora de programação do canal na América Latina. - Como recebemos elogios pela iniciativa de exibir a série e reclamações por causa dos cortes, compramos agora a versão integral. (...) ‘L word’ ganhará também horários alternativos, outra reivindicação dos fãs. Às segundas, às 2h, será reprisado o capítulo de domingo. Às sextas, no mesmo horário, a série recomeçará do primeiro episódio - agora, sem cortes. A versão light sai do ar." A Warner recentemente afirmou, em matéria da Folha de São Paulo, que a sua audiência cresceu em 30% com a apresentação do seriado [Matéria disponível no link: http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/artigos.asp?cod=343ASP026]. 7 Dentre os sites da mídia especializada que tem falado sistematicamente sobre o seriado e que venho acompanhado posso citar, no Brasil: Labris (http://labris.org/), GLS Planet (http://glsplanet.terra.com.br/), MixBrasil (http://mixbrasil.uol.com.br/) e The L Word BR (http://www.thelwordbr.com.br/). Fora do país, tenho acompanhado o site oficial da produtora do seriado, que não é acessível para computadores de fora dos Estados Unidos (Showtime - http://origin.www.sho.com/site/lword/home.do) e também os sites AfterEllen.com (http://www.afterellen.com/TV/thelword.html), The L Word Fan Site (http://www.l-word.com/), The L Word Online (http://www.thelwordonline.com/main.shtml), BellaOnLine (http://www.bellaonline.com/site/gaylesbian) e LesbiaNation (http://www.lesbianation.com/). 8 Série americana produzida pela HBO (http://www.hbo.com/city/) e exibida no Brasil pelo canal de TV fechada FOX A série fala sobre a vida de quatro amigas na faixa dos trinta - quarenta anos, solteiras, bem sucedidas profissionalmente, que moram em Nova Iorque. O mote da historia são os relacionamentos que estabelecem e as conversas que tem sobre estes e sobre sexo. O seriado é inspirado no livro homônimo da

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jornalista Candace Bushnell, que assinava uma coluna sobre sexo no jornal The New Yorker Observer (cf. informações do site http://www.guiadoscuriosos.com.br/index.php?cat_id=53613). 9 A primeira comparação sobrevive aos cortes primeiramente realizados pela Warner Channel, a segunda não. 10 No quinto episódio da primeira temporada, "Lawfully", há um diálogo entre a personagem Dana (que é auto-homofóbica e refrata a idéia de sair do armário, chegando a recusar-se a ser vista com outra personagem porque era "lésbica demais") e sua namorada Lara, que ilustra como o coming out é pensado dentro da série. Segue o transcrição das falas: Dana: [apologizing to Lara] Can I please try again? I really want to try again. Can I? Lara Perkins: One thing. Dana: [holding back tears] Anything. Lara Perkins: You have to start taking at least take some steps towards being out. Dana: I will. Lara Perkins: Because you're going to be miserable being in the closet. Dana: I know. Lara Perkins: And you are really, really gay. Dana: [almost laughing] I know. Lara Perkins: And it's one of the things I like so much about you. If you hide that, you're hiding the best part. 11 As imagens aqui utilizadas são de divulgação e pertencem ao canal Showtime. 12 Ao que tudo indica uma lésbica masculinizada será inserida na terceira temporada dentre as personagens principais da trama. 13 Uso aqui o termo “homossexualidade”, um termo em princípio político, conforme Fry (1982), que veio como proposta de substitutivo para o patologizante “homossexualismo”. Em outro contexto, poderia fazer uso de homoerotismo, para não cair num discurso sobre uma condição ou identidade homossexual, como poderia me ser dito. Apesar da proposta de usar homoerotismo, conforme propõe Freire Costa (1992), seja interessante porque exclui alusão à patologias, não essencializa a prática e descreve melhor pessoas que sentem desejo por pessoas do mesmo sexo por não indicar identidade - porque não é um substantivo (p. 21), me parece mais adequado a uma análise acerca de politicas de visibilidade lésbica manter um termo que faça, de fato, referência a um modelo identitário. 14 Não tratarei neste texto de questões relativas a homoparentalidade, à construção de um núcleo familiar homoparental e à conjugalidade. Contudo, me parece importante dizer que, no que concerne há várias discussões de fãs brasileiras sobre a questão, que a série deu base (embora não propositalmente) a um certo discurso dentre lésbicas que defendem uma postura conservadora, no sentido de legitimar opiniões que diferenciam moralmente lésbicas “para casar” de outras lésbicas. É como se identidade lésbica se construísse a partir da noção de uma relação estável, monogâmica e “repleta de amor (romântico)” entre duas mulheres, e só dessa forma pudesse ser “verdadeira”. Por vezes aciona-se um discurso que venho chamando de “ideologia do gay limpinho”, que prega que devemos ser respeitados porque homossexuais também constituem família, “se dão ao respeito” e, por vezes, tem filhos/as. Esse discurso pode tornar-se tão perigoso quanto o pensamento de que “pink money is pink power”, o discurso de que gays consomem e por isso devem ser respeitados. Parece-me que ambos os discursos postulam, em níveis diferentes, marcas condicionais (com implicações morais) sobre as bases em que deve ser construído o respeito. Também não vou tratar do consumo de substâncias psicoativas porque não há associação causal no seriado entre a homossexualidade das personagens que as utilizam recreativamente e o efetivo consumo delas. 15 Em termos de mercado, quando se fala de homossexualidade no Brasil é inevitável não lembrar da categoria GLS. GLS significa Gays, Lésbicas e Simpatizantes, sendo um termo mais utilizado dentro de uma lógica de mercado no universo homossexual, extremamente difundido pelas casas noturnas e alguns eventos de moda. De acordo com Facchini (2005) o Movimento Homossexual acaba lançando mão de outras designações mais específicas e com o intuito de contemplar a várias identidades distintas que compõem o movimento e o meio homossexual. Contudo, a autora nos leva, a realizar uma reflexão crítica sobre os perigos dessa fragmentação e proliferação de identidades propostas pelo movimento, a qual poderia nos levar a uma essencialização das diferenças e a um esvaziamento do sentido político das próprias categorias. Para a autora, uma excessiva fragmentação identitária pode esvaziar a identidade reivindicada e prejudicar a visibilidade de uma categoria grupo (que luta por seus direitos, por espaço, por visibilidade, etc.), ou incorrer no risco de criar diversas categorias estanques. Nesse contexto, nos alerta

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que “construir a cidadania a partir do reconhecimento da diversidade, enfrentando o dilema entre a ‘cidadania’ e o ‘orgulho/afirmação de diferenças essenciais e estanques’, (...) parece ser o desafio colocado atualmente tanto para o MHB [Movimento Homossexual Brasileiro] quanto para todos os movimentos que se fundam em demandas especificas de uma ‘comunidade’.” (p.282). 16 A identidade social, conforme Heilborn, é um conjunto de marcas sociais que colocam um sujeito num determinado mundo social e vai apontar para três dimensões de modelação da pessoa: 1) atributos/traços que constituem classificatoriamente o sujeito (gênero, idade, etc.); 2) como esses atributos se inserem num campo de significações sociais (que possui outros tantos atributos próprios); 3) Como esses atributos vão se expressar através de alguns valores, tomando corpo em significados que articulam a imagem de si em relação com o outro (1996: 137). 17 No quarto episódio da segunda temporada, "Lynch Pin", há um diálogo que evidencia como isso é pensado na série:

Alice: Hey guys! Jenny: Hello! Alice: Alright. A fairy godmother comes to visit. She tells you she's gonna give you a penis. Dana: Oh my god. Alice: You only get it for 24 hours, and then it disappears. What do you do with that penis for 24 hours? Shane: I would pee standing up on every bush I could find. Dana: That's all you would do, you would just... just pee. Shane: (nods) Mm-hmm. Yup. Jenny: You really wouldn't try to fuck a lot of girls? Shane: (smiling) I don't need a dick to do that. [Everybody laughs.] 18 De acordo com Bozon e Giami (1999), Foucault levanta a hipótese repressiva mas, antes, Gagnon e Simon já haviam falado em sexualidade menos como um princípio de coerção e mais como um princípio indispensável de produção das condutas sexuais e significados que lhe são atribuídos/vinculados. Segundo os autores, Gagnon e Simon vêem a sexualidade como um comportamento que pode ser explicado e tem origem em outras condutas sociais, e não o contrário.

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“Mulheres de Kêto: um estudo etnográfico sobre lesbianidade, família e política na periferia de São Paulo” Camila Pinheiro Medeiros [email protected] Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro

Em novembro de 2003, conheci Flávia no XIV Encontro Nacional Feminista ocorrido em Porto Alegre. Ela participava do evento como coordenadora de uma associação de mulheres lésbicas, negras, da periferia da cidade de São Paulo. Aceitou ser entrevistada para a pesquisa que eu estava realizando na época a respeito de mulheres que tiveram filhos em um relacionamento heterossexual antes de se assumirem lésbicas, investigação que resultou em minha monografia de graduação em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Santa Catarina. Se o tema da “maternidade lésbica” norteara a entrevista, outras questões naquele momento emergiram, ficando porém como pano de fundo daquela problemática central à época. É sobre aquele “pano de fundo” que se centra meu interesse atual de investigação. Naquele primeiro momento, o método de entrevistas baseadas em histórias de vida levava a um recorte do objeto que privilegiava a comparação entre os depoimentos colhidos em entrevistas com outras mulheres. O objetivo da pesquisa que agora desenvolvo para a dissertação de mestrado segue talvez um “caminho de volta”, uma vez que busco retomar temas da vida de Flávia que não haviam sido explorados com a delimitação do recorte. Assim, se antes a pesquisa era sobre “Flávia, mãe e lésbica”, procuro agora articular o “negra, moradora da periferia, candomblecista”, dentre outros “atributos”, nesta “colcha” que não é de retalhos, pois não apresenta costuras que delimitam espaços. A etnografia permite atenuar estas separações, possibilitando aproximar a “maternidade lésbica” da “vida vivida” de Flávia. Apresentarei a seguir alguns aspectos de sua história de vida.

Flávia, 39 anos, negra, é nascida e criada na cidade de São Paulo, é filha de uma

dona de casa e de um operário, já há muito tempo separados, e irmã do meio entre dois irmãos. Desde muito jovem iniciou uma trajetória de militância política: quando adolescente, realizava um trabalho social junto ao Conselho Regional da Juventude da Igreja Católica na região onde morava; há quatorze anos, quando se mudou para o bairro onde reside atualmente, descobriu que o terreno que havia comprado estava em uma área irregular, e passou, então, a coordenar um movimento de moradia organizado na região. Durante este período, esta mobilização aproximou-a do Partido dos Trabalhadores (PT), ao qual logo se filiou. A partir de sua atuação no movimento de moradia estabeleceu contato com um deputado estadual do PT, e devido principalmente ao trabalho que Flávia começou a desenvolver na associação que criou para mulheres, lésbicas, negras da periferia, esse a indicou para coordenar um dos diretórios de articulação da campanha de Marta Suplicy (PT) – na época candidata à prefeita pela cidade de São Paulo. Neste espaço, passou a desenvolver muitas atividades voltadas para o “segmento GLBT” (Gays, Lésbicas, Bissexuais e Transgêneros), as quais renderam-lhe, com a eleição de Marta, um cargo na Coordenadoria de Participação Popular da prefeitura. Nesta função, da qual foi exonerada na gestão atual de José Serra (PSDB), Flávia atuou sobretudo com a questão GLBT, e nestes quatro anos participou

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ativamente da organização da Parada do Orgulho GLBT de São Paulo – que em 2004, segundo estimativa da organização, reuniu 1.600.000 pessoas. Nestes últimos anos também, passou a integrar – à frente da associação que criou para as mulheres lésbicas e negras de seu bairro – uma rede de discussões que se estabelece entre os grupos feministas e lésbicos de São Paulo e do país.

Quando tinha 32 anos “descobriu-se” lésbica a partir de um contato íntimo que começara a estabelecer com uma amiga do movimento de moradia. Nesta época, Flávia, conforme me narrou, estava em crise no casamento de oito anos que mantinha com o pai de suas duas filhas – Tatiana (atualmente com 12 anos) e Daniela (9 anos). Além disso, ela cuidava da filha de seu irmão mais novo, Vanessa (15 anos), desde quando a menina tinha 4 anos de idade. Foi com esta mulher, então, que teve seu primeiro relacionamento homoerótico, o qual, depois de dois anos, foi terminado em função principalmente do incômodo de Flávia com a forma como sua companheira lidava com a lesbianidade, sempre às escondidas, não querendo assumir. Quando se decidiu separar de seu ex-marido, este chegou a agredir Flávia quando ela expôs a circunstância de sua aproximação com sua primeira companheira. Na época, ele ameaçou requisitar a guarda das filhas, mas logo desistiu da idéia. Atualmente ele está casado com uma outra mulher e pouco mantém contato com Flávia, Tatiana e Daniela.

Há cinco anos, quando ainda estava com sua primeira companheira, conheceu Luiza, 41 anos, durante a campanha da prefeitura. Luiza, que é deficiente visual, estava participando como representante do segmento da mulher com deficiência. Elas estreitaram os laços depois da eleição, pois Flávia, em seu cargo na Coordenadoria de Participação Popular, dava assessoria ao Conselho Municipal da Pessoa com Deficiência, onde Luiza trabalhava – primeiro como conselheira, e há dois anos como presidente eleita. Depois de sete meses de namoro, Luiza foi morar na casa que Flávia residia com suas filhas. Neste espaço também funcionava a associação fundada por Flávia e a ela se juntou a organização dirigida por Luiza que há dez anos trabalha com mulheres com deficiências.

Há dois anos, elas mudaram-se para um apartamento, no qual Luiza estava inscrita, em um conjunto habitacional muito próximo à casa onde moravam, que ficou exclusivamente destinada às associações. Elas conseguiram colocar este apartamento no nome do casal e das duas filhas de Flávia e é lá que as quatro residem atualmente (Vanessa foi morar com a mãe durante este ano). No momento, Luiza continua na presidência do referido conselho na prefeitura, mas não recebe salário pois seu cargo é considerado de “relevância pública” (o qual não prevê remuneração). Como Flávia está desempregada, a fonte de renda familiar é a aposentadoria de Luiza (ela aposentou-se por invalidez aos 20 anos, quando perdeu a visão). Flávia está produzindo artesanatos (velas, camisetas bordadas, biscuits, bijouterias etc.) para complementar o orçamento doméstico. Elas continuam coordenando suas associações e também são importantes articuladoras de um fórum de discussão acerca do “segmento LGBT na periferia de São Paulo” que está se consolidando no bairro onde moram. Sobre a associação que coordena, Flávia falou-me em certa ocasião:

“Porque falta uma formação política. As pessoas acham que é para se mobilizar só para fazer festa, mas tem que ter uma discussão política. Nós temos assim, mais próximas, umas vinte mulheres no nosso grupo. E nós buscamos nos reunir para trabalhar a questão do emprego, auto-estima, relação com a saúde, com os postos de saúde, com as delegacias de mulheres. Tem meninas que nunca foram ao ginecologista, por exemplo, porque acham que porque se relacionam com

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mulheres, não precisam. E se elas vão nesses postos de saúde da região muitas vezes elas sofrem preconceito, porque o médico não leva em consideração a especificidade delas; muitas nunca tiveram uma penetração, por exemplo, e o médico já vai logo enfiando aquele bico de pato. E elas não têm opção de ir a um outro médico. Tem a questão da educação também, porque nós temos meninas que têm dificuldade em ler. E tem também as regressas, aquelas mulheres que foram presas e que tem todo um trabalho de auto-estima para ser feito com elas, porque elas têm relatos, você tem que ver, muito difíceis do tempo em que elas estiveram presas”. Além do cotidiano dessas mulheres estar pautado por militâncias políticas, o

envolvimento religioso também está aí fortemente imbricado. Conforme Flávia designou-me, trata-se de uma “família candomblecista”: em dezembro, ela e a filha Tatiana farão sete anos de santo; Luiza é iniciada há dezessete e no início deste ano ocorreu a iniciação de Daniela. Este “envolvimento múltiplo” é sentido por Flávia, que brinca que elas fazem parte da “exclusão dentro da exclusão”:

“Quando eu vou me apresentar em algum seminário, algum lugar, e eu falo que eu sou lésbica, negra, da periferia, mãe, do candomblé, e que minha companheira tem deficiência, as pessoas ficam loucas, cada uma querendo pegar uma dessas especificidades”. Penso então que o direcionamento da trajetória de militância de Flávia articula-

se com as preocupações suscitadas por eventos de sua vida: se o terreno irregular comprado foi o principal propulsor da mobilização em torno das questões de moradia, sua atuação junto ao segmento GLBT emergiu a partir do momento em que se assumiu lésbica, como uma espécie de resposta política a demandas particulares – uma atitude que parece ser central e que dá sentido ao “ser-no-mundo” de Flávia. Na verdade, é um caminho de mão dupla, pois se Flávia faz sua assunção lésbica reverberar pública e politicamente, é também esta esfera de atuação política que a impulsiona assumir sua lesbianidade.

Retomei o contato com Flávia em outubro de 2004, quando fui a São Paulo

conhecer sua família e a associação que coordena. Nesta ocasião, Flávia ofereceu-me a hospedagem em seu apartamento para a pesquisa de campo que vim a realizar nos meses de fevereiro e março de 2005. Neste tempo em que convivi com uma “família recomposta homoparental feminina” (LE GALL, 2001), pude repensar certas análises que realizei na pesquisa anterior, e o presente artigo é uma tentativa, em certa medida, de reescrever algumas reflexões. A partir desta experiência etnográfica de pesquisa, pude em algum grau vislumbrar uma “vida em movimento” que permitiu reelaborar certos pressupostos: a análise das “esferas em (inter)ação” possibilitou, principalmente, perceber que o “ser mãe” não pode ser dissociado do “ser lésbica”, que por sua vez é impensável sem se abordar a atuação política de Flávia (infelizmente, não será possível desenvolver detidamente neste espaço a vivência religiosa do candomblé, mas sua articulação neste cotidiano, como já referido, não é de menor importância). Não bastasse aquele apartamento ser um universo onde pululavam diversas questões antropológicas – a respeito de família, política, gênero, religião, etc. –, havia uma porta aberta pela qual adentravam outras mulheres que também foram se tornando essenciais para a pesquisa – principalmente no que tange à possibilidade de informarem a respeito

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de reflexões compartilhadas acerca do ser lésbica na periferia, as quais talvez permitam falar em uma delineação de um ethos. Portanto, enfoco primordialmente apenas uma família, mas contestarei este “apenas” a partir da apresentação de uma ‘expansividade’ que este caso pode ter. Justifico uma antropologia a partir de uma pessoa, ou de uma família, ou de um apartamento, expondo que, por si só, estes dados – esta teoria nativa – já têm um potencial questionador da teoria antropológica. Além do mais, Flávia, como um liderança política e centralizadora de uma “rede de relações” (BOTT, 1976), “condensa” opiniões de um círculo maior de pessoas que estão à sua volta. Suas concepções informam, ou melhor, têm uma representatividade que vai muito além daqueles limites físicos impostos pelas paredes de seu exíguo apartamento. É neste sentido, por exemplo, que ela fala pelas lésbicas da periferia em reuniões de organização da Caminhada Lésbica que ocorre em São Paulo um dia antes da Parada do Orgulho GLBT, e discursou no carro de som da Marcha Mundial de Mulheres no 8 de março – que ocorreu na Avenida Paulista, em São Paulo – representando as lésbicas. Seguindo uma idéia de que o que Flávia diz/informa não se refere apenas a ela, é que apresento os dados a seguir.

Significados do ser lésbica como um dado importante para pensar a vida familiar

Antes propriamente de falar de características desta família homoparental no que concerne a “papéis familiares”, relacionamento conjugal, com as filhas e família extensa, penso ser importante apresentar a forma como a lesbianidade é tratada neste contexto, se esta é – segundo distinção exposta por elas mesmas – “estado” ou “condição”. Neste momento, refiro-me então àquelas “reflexões compartilhadas” citadas na introdução deste artigo, já que a lesbianidade foi um assunto debatido em diversas ocasiões – seja em discussões conjuntas na sala do apartamento, ou em circunstâncias de conversas particulares – por outras lésbicas que fazem parte da rede próxima de Flávia. Mães ou não, o consenso é nítido com relação ao assunto: ser lésbica não é uma questão de escolha; nasce-se assim. Conforme desenvolverei abaixo, esta concepção parece-me ser fundamental no sentido de que influencia a delineação de arranjos familiares.

Em uma ocasião, conversava com Cecília (26 anos) na cozinha do apartamento, enquanto ela preparava o jantar. Ela e uma outra moça, Fabiana (28 anos), são as pessoas mais próximas de Flávia e Luiza e estão quase diariamente no apartamento delas – elas são próximas pois, além de vizinhas, são as principais participantes da associação coordenada por Flávia (além disso, Flávia é mãe-pequena – aquela que, no candomblé, auxilia a mãe ou pai-de-santo durante as iniciações – de ambas). Cecília é da Paraíba, e veio morar com os pais em São Paulo quando tinha 7 anos. Os pais voltaram para a cidade de origem e ela ficou em São Paulo principalmente em função do namoro com Fabiana, o qual durou sete anos e terminou há dois. Falava-me sobre seus pais e sobre sua lesbianidade:

“Meus pais vieram para cá, moraram um tempo e depois voltaram. Eu fiquei. De vez em quando eu fico com saudade, mas quando você tem independência, é difícil voltar. Quando eu tinha uns 18, eu fui morar com eles. Mas o que pega mesmo é minha opção sexual. Na verdade, não se pode falar em opção, porque não é uma questão de escolher Natura ou Boticário; é uma coisa que nasce com a gente”.

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Este tipo de discurso foi recorrente enquanto lá estive: “porque com a gente não tem essa de ‘estar’. Eu ‘sou’ [enfática] lésbica” (Fabiana); “Para mim não tem essa história de ‘estar lésbica’” (Luiza). Foi comum também ouvir histórias de mulheres que se descobriram lésbicas aos 9, 12 ou 13 anos de idade. Esta concepção também embasa a argumentação contrária à bissexualidade que elas explicitam. Em uma discussão acalorada entre Flávia, Luiza, Fabiana e Cecília, narravam-se os debates em torno do assunto que aconteceram no último encontro da Liga Brasileira de Lésbicas (a LBL é uma articulação de grupos lésbicos de todo o país, que, além de realizar encontros bianuais, mantém uma lista de discussão na internet), em dezembro de 2004. A partir do surgimento de uma proposta de integrar mulheres heterossexuais e bissexuais na LBL, Luiza indignou-se: “daqui a pouco vai ser a ‘Liga do Vai Quem Quer’!”. Frente ao comentário de uma mulher neste encontro de que Flávia era bissexual porque já fora casada com um homem, ela respondeu: “A pessoa não é bi porque ficou com homem uma vez. É bi porque fica vez com homem, vez com mulher”.

Esta posição contrária à bissexualidade parece ser nodal para estas mulheres, porque centraliza concepções acerca do ser lésbica, do ser lésbica na periferia, e da vinculação no movimento lésbico – dimensões que parecem formar três vértices de um triângulo. O “ser lésbica na periferia” ilumina a concepção do “ser lésbica” na medida em que, para estas mulheres, não se assume lésbica a pessoa que não tem certeza de sua condição. Explicando melhor: o bairro da periferia onde elas moram é caracterizado como de extremo preconceito a lésbicas e gays, e várias situações homofóbicas de agressão física e atentados de morte foram narradas. Por conseguinte, ninguém parece se arriscar a ficar com uma menina se não for para valer, se não tiver certeza de sua condição, porque as conseqüências podem ser duras. A um certo descompromisso que elas por vezes apontam às lésbicas do centro – dentro de uma figura de oposição centro/periferia que elas costumam lançar mão –, contrapõe-se uma, digamos, firmeza de posição daquelas da periferia. Conforme me apontou Fabiana, “é muito diferente você ser lésbica no centro, onde pode tudo, e na periferia, onde as pessoas controlam e onde tem violência”.

Em outra ocasião, voltava com Fabiana da sede de uma associação de “lésbicas do centro”. Saíamos de uma reunião de organização da Caminhada Lésbica – que, como já dito, ocorre anualmente um dia antes da Parada do Orgulho GLBT de São Paulo. Chamou-me atenção o espaço da sede, localizada em um prédio de uma área nobre de São Paulo: era uma ampla sala com computador, uma grande televisão, DVD. No mural, havia chamadas para diversos eventos que lá ocorriam: saraus, festas, videokês, sessões de filmes. Conversávamos a respeito daquele encontro: “Elas sempre deixaram claro que elas não têm uma proposta de formação política. Elas se preocupam em manter aquele espaço”, falava-me Fabiana. Já em casa, quando narramos a reunião para Flávia, ela complementou:

“Nós tínhamos mais proximidade com elas antes. Todo sábado, eu dava um jeito para que fossem duas ou três participarem das atividades lá. Mas é muito diferente, as preocupações são muito diferentes, sabe? E nós apresentamos isso para elas. Elas não têm uma discussão, por exemplo, sobre equipamentos de saúde, sobre atendimentos a lésbicas em postos de saúde, porque todas lá têm convênio médico. Aqui a realidade é outra. E eu não posso separar a discussão lésbica da vida dessas meninas aqui da periferia”.

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Luiza continuou: “elas têm uma outra concepção de visibilidade. Elas não sabem o que é não poder assumir para não sofrer agressão”. Seguindo esta argumentação, a bissexualidade torna-se inconcebível: na periferia só se assume quem está certa de sua condição, e esta idéia de condição, por sua vez, inviabiliza pensar um relacionamento com homens. Experimentar os “dois lados” pode levar a conseqüências nefastas, conforme narrou Luiza: “Aqui na periferia, se uma menina fica com a Fabiana, por exemplo, e depois fica com um rapaz, se o rapaz sabe que ela ficou com a Fabiana, ele acaba com a menina na paulada”. É neste sentido também que a idéia de se “estar lésbica” é muito criticada e é localizada às mulheres do centro da cidade.

Volto à imagem do triângulo (“ser lésbica”, “ser lésbica na periferia”, “vinculação ao movimento lésbico”). Mais de uma vez, presenciei Flávia e Luiza, Fabiana, Cecília e suas respectivas namoradas beijarem-se publicamente, andarem de mãos dadas nas ruas, namorarem dentro dos ônibus. Conforme já exposto, “ser lésbica na periferia” delineia a idéia de condição do “ser lésbica”, e esta noção, somada à atuação política, leva a uma publicização da lesbianidade. A relação entre estes dois vértices talvez possa, então, ser colocada nos seguintes termos: já que se é, luta-se politicamente em torno da questão, e a luta política, por sua vez, requer uma politização da lesbianidade que só é vislumbrada quando a mesma é tratada como condição. Mais uma vez, ser bissexual ou considerar-se como “estando lésbica” implicaria para elas um esvaziamento do teor político, pois significaria ficar em cima do muro por receio das conseqüências que o “ser” pode trazer. A essencialização, portanto, é um propulsor da vinculação política em torno da questão lésbica – é uma estratégia de politização.

O vértice de “vinculação ao movimento lésbico” é fundamental nesta tríade, na medida em que sua ausência leva a uma outra “política da lesbianidade”. Na pesquisa anterior, já havia traçado uma oposição entre mulheres vinculadas a movimentos sociais e aquelas não militantes no que se refere ao posicionamento político da família homoparental e exposição da lesbianidade. Esta dicotomização foi também observada no contexto em que agora pesquiso. Entrevistei Helena (39 anos) e Lila (29 anos), que moram juntas há quinze anos. Elas participam de algumas reuniões da associação mas não têm o mesmo envolvimento de Flávia, Luiza, Fabiana e Cecília na militância política (não vão à Parada, à Caminhada Lésbica, à marcha do 8 de março, a reuniões de militância, por exemplo). Helena tem um filho de 23 anos do primeiro casamento, dois filhos (17 e 15 anos) do segundo e, após a separação, uniu-se a Lila. Atualmente, elas moram em uma casa próxima ao apartamento de Flávia e Luiza, junto com os dois filhos mais velhos de Helena. O mais novo saiu recentemente de casa, por divergências relativas à religião da mãe – Helena e Lila fizeram santo no mesmo barco (grupo de pessoas que são iniciadas conjuntamente) que Daniela, a filha mais nova de Flávia, e também são filhas pequenas desta. Apesar dos dois casamentos, Helena disse que se descobriu lésbica aos 11 anos, mas que se casou principalmente para não decepcionar a mãe, que morreu sem saber que a filha era lésbica. Lila nunca teve relacionamentos com homens. Ambas consideram a lesbianidade como condição, mas – conjecturo – a não atuação em movimentos de militância leva a uma outra política: a do “se resguardar”.

“Não, a gente não tem aquele negócio, entendeu? Eu sempre fui dessa opinião. Ou eu tenho meus filhos, eu tenho uma vida assim... eu não tenho aquela postura, de chegar: “ah, sou isso mesmo...”. Aquela coisa mesmo. Por quê? Porque tem sempre uma cobrança. Então eu não vou fazer assim: “olha, eu sou isso mesmo, porque sou e acabou”. Não. Se eu não tivesse filho, se eu tivesse seguido outra vida e tudo, seria mais fácil para você impor sua presença e tudo.

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Mas a gente se cala mais diante da situação. Diante de você ter filhos, de você morar em um lugar e todo mundo conhecer, então você fica mais assim (Helena)”.

Ambos os casos (Flávia/Luiza e Helena/Lila) tratam a lesbianidade como

condição, mas o fato de ter filhos não leva a uma “política do resguardo” por parte de Flávia, o que parece fortalecer a tese da militância política. Assim, penso que a “política da lesbianidade” varia se esta é considerada como estado ou condição, se a pessoa é do centro ou da periferia, vinculada ou não a movimentos sociais, dentre as variáveis que pude observar. E esta política da lesbianidade terá, por conseguinte, uma repercussão no viver em família, conforme será apresentado a seguir.

Relacionamentos e papéis familiares

Neste tópico, continuarei insistindo na comparação entre os dois casos citados no parágrafo anterior. Em comum, em ambos tratam-se de mulheres da periferia, que pensam a lesbianidade como condição; porém, em uma circunstância há a vinculação a algo que, grosso modo, poderíamos nomear como movimentos sociais (Flávia/Luiza) e na outra não (Helena/Lila). Isto parece denotar uma distinção interessante nas configurações familiares no que diz respeito, principalmente, ao relacionamento conjugal, com os filhos e com a família extensa. O relacionamento com o pai das(os) filhas(os) é semelhante nos dois casos e parece seguir uma tendência já observada na pesquisa anterior: a ausência do pai – fato que me fez repensar a idéia de pluriparentalidade associada a famílias recompostas homoparentais femininas.

“Nós temos uma política de não deixar de falar as coisas na frente das crianças”, explicou-me Fabiana certo dia. De fato, Tatiana e Daniela com freqüência estão presentes em conversas a respeito de temas lésbicos, inclusive tomando a palavra em algumas situações. Flávia e Luiza – que têm seu próprio quarto, com cama de casal – não se furtam de se relacionarem afetivamente na frente das crianças. Uma bandeirinha do arco-íris tem lugar de destaque na estante da sala; Flávia deu o nome de Safos (em uma referência a Safo de Lesbos, poetisa grega da qual se originou a palavra lésbica) a uma tartaruga que Luiza lhe deu e que é seu animal de estimação; é com freqüência que elas estão com camisetas da LBL, da Parada do Orgulho GLBT, do Seminário Nacional de Lésbicas, dentre outros signos que demonstram explicitamente a “orientação sexual”. Estes signos também são usados pelas filhas Tatiana e Daniela: elas inclusive vão para a escola com camisetas e bótons do movimento lésbico, e Tatiana leva pendurado na mochila um chaveiro com um sapinho, o qual ela tem conhecimento da conotação (“sapatão”, que sempre foi – e ainda é – um termo pejorativo para se referir a lésbicas, foi transformado em “sapa”, um sapo feminino, e reapropriado como um emblema para estas mulheres, que o utilizam estampado em camisetas, sob forma de chaveiros, dentre demais usos).

Com esta exposição, há certamente uma preocupação relativa a reações lesbofóbicas que as filhas possam sofrer, mas Flávia busca contornar a situação na base de muita conversa, seguindo uma linha de que é na explicitação que o “inimigo” é desarmado. É neste sentido que isto é mostrado abertamente também à vizinhança desde que Flávia e Luiza se mudaram, conforme Luiza explicou enquanto conversava com um vizinho amigo delas que também assume publicamente sua homossexualidade:

“Todo mundo sabe. E a gente sempre fez questão de não omitir, não ficar escondendo para ninguém saber, até para quebrar com a chance do ‘ah é...’

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[imitando um tom de fofoca]. Então, quando se insinua qualquer coisa, não vai ter nenhum impacto porque não é novidade para ninguém. E não vão usar isso como xingamento também. A gente tem um casal de amigas que teve que se mudar do conjunto onde elas moravam, porque elas sempre esconderam; os vizinhos descobriram e ficou insustentável morar lá”.

Atualmente Flávia é síndica do bloco e, nas duas reuniões de condomínio que

pude acompanhar, é muito respeitada pelos moradores. Ela foi eleita com a incumbência de colocar as contas do prédio em dia, visto que a síndica anterior – que já havia se mudado –, em uma gestão comprovadamente fraudulenta, deixou de pagar diversas mensalidades de água e luz.

Mas Flávia expõe que isto não impede que haja cobranças externas (família extensa, ex-marido, vizinhança etc.) com relação à educação das filhas e argumenta que, por ser lésbica, o cuidado neste sentido deve ser redobrado para evitar os comentários de que se algo sai errado é por conta do “mau exemplo” que se tem em casa. Helena apresentou a mesma preocupação e está muito apreensiva e resistente com o fato de seu filho do meio estar “se enveredando” pelos caminhos do homoerotismo. Ela expôs que tem certeza que isto será julgado negativamente à luz do argumento de que ele é gay por ter convivido quinze anos com sua mãe e a companheira. Mas, ao contrário do que ocorre na casa de Flávia, nunca houve uma conversa entre eles a respeito do vínculo que une Helena e Lila, conforme a primeira apresentou-me:

“Porque na verdade, na verdade, nunca foi sentado e conversado; é mais na brincadeira. Eu tento levar, mostrar as coisas para eles na brincadeira, entendeu? Então não é aquela coisa assim de sentar e perguntar. A gente trata sempre na esportiva assim, mas... Se eles não me perguntam mesmo assim é por respeito. [Pergunto se eles sabem do caráter do relacionamento entre elas]. Sabem, sabem. Exatamente. Mas por respeito mesmo, a mim eles não perguntam (Helena)”.

A postura entre os dois casos aqui analisados também é diferenciada no que se

refere ao relacionamento com demais membros da família extensa, como a mãe, pai e irmãos, por exemplo. A mãe de Flávia sabe do relacionamento da filha e, apesar de sempre insistir que ela deve ter sua própria casa, no mínimo uma noite por semana dorme no apartamento da filha. Seus irmãos também sabem e se relacionam bem com Luiza; seu pai, que é mais distante, também sabe – ele está gradativamente melhorando o seu trato com Luiza ao telefone, conforme elas me apontaram. Por sua vez, Luiza, que é filha única, assumiu-se lésbica com 13 anos, um ano após o falecimento de seu pai. A mãe não aceitou, Luiza saiu de casa e elas ficaram muito tempo sem se falar. No entanto, ela faleceu há aproximadamente dois anos, e os últimos meses de sua vida passou morando na casa de Flávia e Luiza.

Contrariamente a esta situação de apresentação da lesbianidade para a família, Helena, como já citado, nunca falou nada à mãe, sendo que esta ainda era viva nos primeiros anos de relacionamento com Lila. Pais e irmãos são distantes. No caso de Lila, ela perdeu o contato com o pai há muitos anos e, apesar de morar no mesmo bairro da mãe, raramente elas se vêem. Quem cuidou de Lila desde a infância foi sua avó materna, cujo filho (tio de Lila) com quem mora, também é gay. Ela aceita bem tanto a situação da neta, quanto a do filho.

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Além da postura de exposição da lesbianidade, o que parece mudar com relação ao pertencimento ou não a movimentos sociais é a relação conjugal. Sobre “papéis de gênero”, Flávia disse: “é porque nós conversamos muito e por toda a questão feminista também. Mas a Luiza, no começo, não queria que eu trabalhasse”. E complementou: “você acha que não tem gênero também na relação entre mulheres? Tem sim”. Na casa de Helena e Lila, a última é categórica com relação a não deixar a companheira trabalhar. “Eu queria dar tudo para a Helena, porque ela merece”, falava-me Lila. Apesar de elas estarem passando por uma difícil situação financeira decorrente do desemprego de Lila, esta não admite que Helena trabalhe, até por uma questão – conforme Lila me explica – de prezar pela saúde da companheira, que é diabética. Helena já trabalhou fazendo faxinas e, em uma época que fazia serviços gerais em uma escola, Lila, depois de sair de seu trabalho, ia para a referida escola fazer as tarefas que cabiam a Helena.

Em ambos os casos, apesar da proeminência das mães (Flávia e Helena), há uma preocupação do casal relativa à educação das filhas. Na situação de Flávia, cujo apartamento é uma afluência de mulheres formando uma espécie de “rede lésbica”, os homens não têm lugar – “o cheiro do apartamento muda quando tem homem”, conforme Luiza falou-me uma vez. Estas mulheres todas estão, em diferentes graus, comprometidas com os cuidados com as crianças. Por Luiza estar o dia inteiro fora trabalhando – assim também era o cotidiano de Flávia, que agora, devido ao desemprego, permanece mais em casa –, cabe também a Cecília e Fabiana, principalmente, cuidarem para que Tatiana e Daniela façam as refeições, arrumem as camas, vão para a escola, façam os deveres etc. – cuidados que são freqüentemente compartilhados com a mãe de Flávia, que mora próxima à filha.

Por fim, as famílias de Flávia/Luiza e Helena/Lila – seguindo uma constante que também foi observada entre outras mulheres que já havia entrevistado – caracterizam-se pela quase ausência do pai das(os) filhas(os). Durante todo o tempo em que estive no apartamento de Flávia e Luiza, não houve nenhum telefonema do pai de Tatiana e Daniela e elas não passaram nem um dia com ele, que mora na mesma cidade, durante as férias escolares. A ausência do pai faz-se sentir também pelas escassas referências das filhas a ele. Num dos dados que penso ser mais notáveis desta circunstância, Tatiana e Daniela utilizam o prenome para fazer uma distinção entre os dois “pais”: o pai-de-santo e o “pai de verdade” (sic). “Pai Sérgio” é o primeiro; “pai Antônio”, o segundo. “Pai Sérgio” é muito mais recorrente na conversa entre elas e, diversas vezes, quando elas falam simplesmente “pai”, estava implícito que se referiam a Sérgio.

Finalizando considerações: pensando pluriparentalidade e lesbianidade

Esta observação acerca da ausência do pai biológico fez-me refletir a respeito dos pressupostos de parentesco e do conceito de “pluriparentalidade” que embasaram a análise do trabalho anterior. Para posicionar a questão, retomarei idéias de Anne Cadoret e Didier Le Gall, ambos pesquisadores da parentalidade lésbica.

Anne Cadoret (2001a e 2001b) apresenta o caráter profundamente perturbador das famílias homoparentais por não basearem sua organização social em uma complementaridade biológica entre os sexos. Por conseguinte, estas famílias ressaltam ainda mais o caráter social do parentesco, uma vez que enfatizam que a parentalidade pode se configurar a partir de relações sociais e afetivas, e não necessariamente biológicas. No caso das famílias recompostas homoparentais, é notável como as esferas da conjugalidade, sexualidade, procriação e filiação não se dispõem em um eixo comum. A autora se refere a como estas famílias contestam a idéia de que o pai e a mãe

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biológicos são as “figuras de verdade” (sic) na educação dos filhos, apresentando que a noção de que “o biológico no nascimento emoldura o social da aliança (...) não é mais adaptável à família homossexual”. E conclui: “o biológico não é mais o fundamento do social, da família” (CADORET, 2001b:279-80 – livre tradução).

Este argumento vai ao encontro daquele de Le Gall (2001), que também ressalta a característica própria das famílias homoparentais de “agitar” a idéia de justaposição entre procriação, parentalidade e relação de casal. Ele narra que nas situações ideais de recomposição homoparental feminina – que ele caracteriza como sendo quando o ex-marido aceita a lesbianidade da mãe de seus filhos e continua presente na socialização e educação das crianças –, a “madrasta” vem para somar, uma vez que passa a ter um lugar reconhecido, não como concorrente ao do pai, mas no sentido de um terceiro parent, um parentesco adicional baseado na eleição mútua. Este fato ressalta o caráter premente dos laços afetivos em detrimento daqueles de sangue nestas configurações familiares.

O que gostaria de aqui acrescentar, baseando-me nesta experiência etnográfica, é que, talvez, o que o autor chama de “situação ideal” não se encaixe no contexto em questão: Flávia sente pelo ex-marido não procurar as filhas, mas ao mesmo tempo, preza pela situação deste não interferir na educação que dá às meninas – esta não interferência do ex-marido é que parece ser a situação ideal para Flávia e Luiza. Somando-se aos casos que analisei na pesquisa anterior, onde em apenas um deles o pai se faz presente, repito-me chamando a atenção para este afastamento do ex-marido nas situações das famílias recompostas homoparentais femininas. Penso que este quadro faz repensar as bases daquela idéia de pluriparentalidade. Baseando-me nos dados da família de Flávia, a pluriparentalidade pode ser percebida, mas não por uma soma dos três componentes Flávia, Luiza e Antônio. Na “equação” desta família considerada, o pai é eclipsado (pois não é eliminado por completo) e outras “figuras de verdade” entram em cena – no caso em questão, além de Luiza, há a mãe de Flávia, Fabiana e Cecília –, seguindo uma diretriz de que “quem está junto, é para ajudar”. É de Flávia que irradia o motor principal na educação das filhas, mas as ondas emitidas pelas demais também devem reverberar. O que dá a impressão é que, saindo de cena o par biológico, surgem outras possibilidades – mais criativas – de desempenho dos papéis parentais, o que parece delinear uma “família de mulheres”.

Conforme já apresentado, esta “família de mulheres” assim se configura também em função de como é pensada a lesbianidade (sob a luz da idéia de condição). É a respeito deste ponto que desenvolverei uma segunda consideração crítica acerca de uma idéia que havia levantado na referida monografia de graduação: a de que a homossexualidade é concebida como algo tão construído socialmente quanto a heterossexualidade. Esta noção acabou orientando as análises para um caminho onde se buscava localizar na trajetória das mulheres entrevistadas indícios de que a lesbianidade era algo construído, desconsiderando, desta forma, o que o discurso delas sobre o caráter essencializador (o ser lésbica) poderia informar. As conclusões do trabalho, por conseguinte, centraram-se fortemente em uma dimensão de escolha que suas narrativas claramente rechaçavam.

Depois deste trabalho de campo que realizei, busquei empreender um outro movimento, e tentar não mais utilizar a teoria antropológica para, no limite, desconstruir a teoria nativa. Parece-me que na pesquisa anterior, era como se estivesse explicando o que realmente acontecia na trajetória daquelas mulheres com relação à lesbianidade, por elas não estarem em um posição favorável para fazê-lo. Após a experiência etnográfica, repenso esta postura. Se eu estou em uma discussão entre quatro lésbicas – como

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ocorreu enquanto estive lá – na qual se afirma categoricamente que ser lésbica não é uma questão de estado, mas de condição, não posso simplesmente usar da teoria antropológica para tentar desconstruir este argumento e, de repente, a partir de uma análise da trajetória de vida delas, provar que a lesbianidade é algo de fato construído. Se a “violência da escrita” é inevitável, penso que falar em homossexualidade construída quando os discursos nativos apontam sempre para o contrário, é uma forma de acentuar esta violência. Acredito portanto que a questão central não seja a de inferir se é ou não algo construído, mas buscar compreender que orientação esta idéia promove na interpretação destas mulheres acerca de suas histórias de vida – em que medida esta concepção é um motor para certas formas de agir e pensar. Este – a condição inata da homossexualidade – é um ponto de partida interpretativo fundante para a compreensão das trajetórias de Flávia, Luiza, Helena, Lila, Cecília e Fabiana. É ela, por exemplo, que desencadeará rompimentos e arranjos familiares, vinculações políticas e religiosas.

Portanto, o caminho – da teoria antropológica para teoria nativa – deve ser repensado. Se elas contradizem o que antes havia sido exposto, penso que se deve refletir o que as categorias nativas – o sistema classificatório nativo – têm a abalar com relação às “crenças antropológicas”. O sistema classificatório nativo é o propulsor das dúvidas, e levá-lo a sério quer dizer pensá-lo como possibilitador de mudanças da prática acadêmica. A teoria antropológica só pode avançar mediante um movimento infinito onde as dúvidas trazidas pela realidade etnográfica desafiam as certezas da disciplina (BORGES, 2003). Este “desalojar de certezas” é o que possibilita o avanço conceitual da antropologia. Deste modo, a etnografia não pode ser concebida como “uma produção de exemplos”, mas como dados que fazem a antropologia pensar.

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Discurso católico, familia y géneros en Chile, 1925-2004 Carmen Gloria Godoy R. [email protected], [email protected] Antropóloga, Profesora Escuela de Antropología, Universidad Academia de Humanismo Cristiano. Magíster en Estudios de Género y Cultura, mención Humanidades, Universidad de Chile. Abstract This paper presents the results of an investigation(1) focused in the catholic institutional discourse about family and gender during great part of the XXth century and beginning of the XXIst, depending on certain state initiatives implemented in Chile in the social area. The aims of the above mentioned investigation were pointing to know about what way was articulating the ecclesiastic discourse with the discourse and the actions of the Chilean State, with regard to the familiar models and gender patterns, in the frame of the impulse started to the modernization of the private life. And in this context, if the social transformations derived from it had some impact in the discourse of the catholic hierarchy, already be under the form of its denial or resignificance. Resumo Esta conferência apresenta os resultados de uma investigação enfocada no discurso católico institucional a respeito da família e os gêneros durante grande parte do século XX e começos do XXI, em função de determinadas iniciativas estatais implementadas no Chile na área social. Os objetivos de dita investigação apontavam a conhecer de que maneira foi-se articulando o discurso eclesiástico com o discurso e as ações do Estado chileno, com respeito aos modelos familiares e os padrões de gênero, no marco do impulso dado à modernização da vida privada. E nesse marco, se as transformações sociais derivadas disso tiveram algum impacto no discurso da hierarquia católica, já seja sob a forma de sua negação ou resignificação. Palabras claves: Familia, relaciones de género, religión y Estado. Key Words: Family, gender relations, religion and State. Tradición, familia y modernidad En Chile, desde comienzos de la década de 1990 asistimos a un proceso en el que se ha venido haciendo patente la relegitimación del poder de la jerarquía eclesiástica católica para influir política y legislativamente en temas de interés público. Entre otras razones, producto de su capacidad para ejercer presión en debates tales como la Ley de divorcio, la legalización del aborto, la educación sexual, y más recientemente sobre la distribución y acceso a la denominada “píldora del día después” o “método de anticoncepción de emergencia”(2). Toda vez que dichos debates suponen la posibilidad de producir transformaciones en el ordenamiento social existente, fundamentalmente en

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las concepciones tradicionales sobre lo masculino y lo femenino, y los roles asignados a hombres y mujeres en las relaciones sociales de género. A partir de la separación constitucional del Estado chileno y la Iglesia en 1925, se consolidó una tensión permanente entre ambos actores, que osciló entre el pánico de la jerarquía católica ante la posible “destrucción” de la sociedad, la familia y la patria, y una suerte de acuerdo tácito en ciertos momentos claves y frente a situaciones específicas, ya a fines del siglo XX. La resistencia de la Iglesia a los cambios que se producían en la sociedad chilena, y en el mundo en general, se proyectó entonces hacia el mundo de lo privado, expresando -institucionalmente- su interés por la problemática social y acogiendo desde de fines de la década de 1950, cambios estructurales sobre todo en términos económicos y políticos. No obstante, a partir de mediados de los años sesenta, la actitud de la jerarquía respecto a la familia no sufrió prácticamente ninguna modificación durante los siguientes cuarenta años, lo que se refleja más en la oposición al divorcio por cuestiones doctrinales -afirmando la indisolubilidad del matrimonio- que en la aceptación de las nulidades matrimoniales como “mal menor”, en cuanto éstas son reconocidas como situaciones fraudulentas a las que se les debe poner freno.

De hecho, la posición e influencia de la Iglesia Católica en la vida pública no habría sufrido en el transcurso del siglo XX, una transformación tan radical como supuso su separación del Estado. Esto es, el repliegue de su esfera de influencia exclusivamente a la orientación espiritual de los creyentes (3), precisamente porque la importancia de la voz de sacerdotes, obispos y arzobispos –de distintos sectores de la Iglesia- en los debates sobre la familia, sufrió una suerte de actualización durante los últimos años que da cuenta de alguna manera de la profundidad de su influencia en la sociedad chilena. Ello, porque no obstante, las distintas corrientes y movimientos que conforman la Iglesia Católica, existe una suerte de imaginario compartido por todos aquellos que de una u otra forma hemos recibido una formación católica, asociada a una identidad cultural, que trasciende el ámbito de las creencias religiosas, y que otorga sentido a las relaciones sociales(4).

Es en el denominado “debate de temas valóricos” que comenzó a tomar forma en el país en los inicios de la década de los noventa –coincidentemente con el retorno a la democracia- donde los sectores más conservadores de la sociedad chilena levantan un discurso organizado en torno a “la nostalgia por el pasado”, y a una “tradición vinculada a la identidad nacional que debe ser preservada como el elemento clave para enfrentar lo que se aprecia como una ‘crisis de la familia’(5), y no como la transformación de sus sentidos y funciones como resultado de procesos económicos, sociales y también políticos, de carácter ya no sólo local sino también global(6). En este sentido, la pregunta que surge apunta no sólo a la tan mentada discusión sobre la “modernidad incompleta” de la sociedad chilena, sino también al creciente protagonismo que adquieren hoy los discursos conservadores acerca de lo privado, que promueven modelos de familia y género hegemónicos, que parecen acoger las transformaciones económicas, sociales y políticas de carácter global, pero continúan sobrevalorando los roles de género tradicionales al interior de las familias, y a ésta como soporte del orden social establecido, no así como instrumento y/o expresión de las transformaciones ocurridas a lo largo de casi un siglo.

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La persistencia ideológica del discurso Si bien durante el transcurso del siglo XX y sobre todo a mediados de los años sesenta, se produjeron sucesos importantes que aparecían como promesas de cambio -entre ellos la celebración del Concilio Vaticano II y la emergencia de nuevas corrientes de pensamiento de carácter latinoamericano- las bases ideológicas del discurso católico en torno a la familia y los géneros no sufrieron una modificación sustancial (7).

A lo largo de casi ochenta años el matrimonio religioso, la indisolubilidad de las uniones y luego, el rol de las mujeres en la vida social han tenido fuerte presencia como temas de debate en sí, y como elementos que constituyen las bases del orden social. De esta forma, si bien la concreción ( al menos oficial) del proceso de secularización que se lleva a cabo mediante la separación de la Iglesia del Estado genera resistencia por parte de aquélla y de los sectores conservadores, se termina por reconocer la obligatoriedad del matrimonio civil pero siempre relevando su carácter antinatural. Para mediados de los años ‘50, su importancia radica en que asegura los derechos civiles de los contrayentes y sus hijos, pero eso no le otorga necesariamente legitimidad moral a la unión.

El llamado Matrimonio Civil (...) no es el matrimonio primitivo establecido por Dios en nuestros primeros padres, vigente en los pueblos no cristianos (...) La Santa Iglesia, sin embargo, manda que todo matrimonio se inscriba en el Registro Civil, para asegurar a sus hijos y esposos sus derechos civiles, también lo mandan las leyes del Estado y deben observarse por todos los ciudadanos. José María Card. Caro Rodríguez (21de Enero 1955) (R.C. Pastoral. “Acerca de la familia cristiana”. Enero-Abril 1955. N°971. p.218)

No obstante, más adelante será tanto la estabilidad social como cultural la que se juega en la indisolubilidad del matrimonio, civil y religioso. La metáfora de la nación como familia, le da una profundidad simbólica mayor a la institución familiar, que la que tendría sólo por el hecho de apelar al ordenamiento social. Son los hijos de los hogares disueltos por el divorcio, los que en el futuro se constituirán en una amenaza contra la sociedad, de forma tal que el amor y la seguridad son derechos que sólo se obtienen al interior de una familia fundada en el matrimonio.

El rol que la Iglesia dice tener en este aspecto, es el del “esclarecimiento” de una madre que habla a la conciencia de “sus hijos”. El interés por el Bien Común, no es más que el interés por preservar la fortaleza de la nación.

Nadie puede ignorar la importancia que para el progreso de una Nación tiene la familia bien constituida y estable. Debilitar la familia es también, necesariamente, debilitar la Nación. La disolución de los hogares suele causar en los hijos heridas psicológicas profundas, y favorecer en ellos el resentimiento contra una sociedad que no les brindó el amor y la seguridad que necesitaban y a que tenían derecho. (Declaración del Comité Permanente de Episcopado a propósito del proyecto de Ley de Divorcio Civil. 5 agosto de 1964)

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No obstante, las denominadas “encíclicas sociales” introdujeron un cambio en la mirada sobre los problemas de los sectores más pobres de la sociedad, expuestos a situaciones de vulnerabilidad, sobre todo de las mujeres y los niños. Si bien la familia permanece como un espacio “moralizante”, se reconocen situaciones de hogares “mal avenidos” y violencia que desestabilizan internamente a las familias, y que requieren de soluciones concretas.

Hay mucho que hacer por la familia en Chile, sobre todo por las familias más desposeídas: mucho que hacer de positivo por su afianzamiento, en vez de planear la forma legal de su posible disolución. Sugerimos, por vía de ejemplo, una política más orgánica de asignaciones familiares, así como una legislación que proteja mejor los derechos de la mujer abandonada y de los hijos, que son generalmente los más afectados por las situaciones irregulares. (“Matrimonio y Divorcio” Declaración del Comité Permanente del Episcopado. 6 de febrero de 1971)

El divorcio, en este sentido, será visto no como una solución, sino al contrario como un factor que contribuye al empobrecimiento de las mujeres, ya que permitiría que el varón se desligue de todas sus responsabilidades con respecto a su esposa y sus hijos. Una vez instalados los militares en el poder, las relaciones entre Iglesia y Gobierno fueron difíciles, y sólo en materia familiar y reproductiva llegaron a puntos de consenso. La Política de población del año 1979, resumió la postura de aquel respecto al uso y difusión de ciertos métodos anticonceptivos, y especialmente sobre la práctica del aborto (8). Se estableció que el Estado no podía interferir en las decisiones que los grupos familiares tomaran respecto a la planificación familiar, argumentando el carácter cristiano del “pueblo chileno” y el principio de subsidariedad del Estado, que plantea que una sociedad menor (la familia) no puede abandonar en una sociedad mayor (el Estado) responsabilidades que le son propias. No obstante, cabe destacar el hecho que durante el período dictatorial claramente la familia adquirió una importancia fundamental, muy superior a la que tuvo en otros gobiernos, y similar tal vez a lo que sucede actualmente cuando la discusión sobre el tema se ha extendido a todas las áreas de la vida social. La familia fue relevada como una metáfora de la nación chilena (9), y se convirtió en el espacio físico y simbólico donde se desarrollará la vida de los ciudadanos, en la medida que se consideraba que la crisis política recientemente experimentada por el país, también había tocado a la familia. Ahora bien, gran parte de la relegitimación del poder de la Iglesia en la regulación de las prácticas del mundo privado se apoyaría hoy en la autoridad moral que le confirió su preocupación por los problemas sociales y su defensa irrestricta de los derechos humanos durante el régimen militar. El primer aspecto se expresó en su preocupación –afianzada en la mirada crítica al capitalismo y al marxismo que planteaba la encíclica Laborem Excersens- por la manera en que los problemas económicos generados por la implantación del modelo neoliberal afectaban a la población, y especialmente a los sectores populares. Esto parece contradecir, no obstante, la actitud que la institución adoptó una vez que retornó la democracia al país, ya que la reflexión sobre la familia progresivamente irá replegándose sobre sus propios límites. Una vez finalizada la

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dictadura, retornó con mayor fuerza un discurso crítico sobre las transformaciones en las conductas y opciones individuales, remarcando el peligro del divorcio y el aborto. Así como en 1925 la separación del Estado generó temor a los cambios, a principios de los años noventa también se produjo temor e inquietud en la institución eclesiástica, que instala un debate sobre los límites de la moral individual y colectiva, con la familia y el matrimonio como sus bastiones principales. Inaugurando en cierta forma, el escenario de nuestro actual “drama” social, en el que la familia adquiere un papel protagónico en la definición de las identidades individuales y colectivas. Las nuevas libertades conseguidas y la reaparición de ideas y conductas silenciadas por años, generaron el escenario propicio para instalar en el año 1990 un debate que fue conocido como la “crisis moral”. Frente al temor al “mal uso” de la libertad conseguida, el entonces arzobispo Carlos Oviedo reflexionaba sobre el abandono generalizado de la moral natural, sobre todo entre quienes se autodefinían como católicos pero no aceptaban “la moral de la Iglesia, ni en la vida privada ni en la pública”. No obstante, esto se ajusta a la política que desde el Vaticano se ha venido desarrollando intensamente a partir del papado de Juan Pablo II, caracterizado por su tendencia conservadora y restauradora, y focalizada en la familia, la cual aparece como elemento cohesionador no sólo de la sociedad sino también de la identidad cultural, en el marco de la “amenaza” que subyace en el proceso globalizador. En ese contexto, la Política de Educación en Sexualidad elaborada por el Misterio de Educación en 1993, tuvo importantes repercusiones durante los años posteriores. En dicho documento se señalaba que si bien la educación sexual era primariamente responsabilidad de la familia, ésta podía participar en la elaboración de diagnósticos y la definición de contenidos escolares referidos al tema, y se requería también de la colaboración de distintos actores, de tal manera que la educación sexual se convirtiera en una tarea que comprometiera a la sociedad. Evidentemente, la controversia con la Iglesia no se hizo esperar, y la educación se convirtió en una estrategia para promover planes propios en los establecimientos educativos de orientación católica, centrados en los temas de sexualidad y familia. La creación de la Vicaría para la Familia en 1998, concentró estos esfuerzos orientando su acción hacia la formación de agentes pastorales y el desarrollo de cursos de preparación al matrimonio, la atención a parejas con problemas, entre otras actividades, articulándose con centros de orientación y mediación familiar dependientes de instituciones de educación superior y técnico-profesional de orientación católica. La presentación en el año 1998 del proyecto de Ley de matrimonio civil que se concretó finalmente en el 2004, también generó una fuerte reacción, constituyéndose junto a los derechos sexuales como los dos ejes fundamentales del periodo 2000-2004, ya que la discusión del proyecto de Ley de divorcio en el Congreso y la anticoncepción de emergencia, generaron una fuerte oposición de la jerarquía eclesiástica. La tensión respecto a las acciones del Estado, en este sentido, tal como en 1925, vuelven claramente a un punto de quiebre, y se manifiesta el repliegue hacia una moral conservadora, apoyándose para ello en organismos privados que comparten esa mirada, lo que revela una cierta contradicción entre las críticas al modelo económico neoliberal

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que produce la desigualdad como consecuencia de la injusta distribución de la riqueza, y esta suerte de alianza generada en pro de la “defensa de la familia”. Los discursos conservadores acerca de lo privado adquieren creciente protagonismo promoviendo modelos de familia y género hegemónicos; acogen formalmente las transformaciones económicas, sociales y políticas de carácter global, pero continúan sobrevalorando los roles de género tradicionales al interior de las familias, y a ésta como soporte del orden social establecido, no así como instrumento y/o expresión de las transformaciones ocurridas a lo largo de casi un siglo. También desde los años noventa, algunos sectores empresariales y políticos han venido manifestando un “tradicionalismo ideológico”, rechazando toda forma de intervención estatal en lo económico y exaltando las ventajas del libre mercado, pero adhiriendo a la vez a una moral conservadora en el ámbito de las relaciones sociales, la familia y los derechos de las mujeres, específicamente los derechos sexuales y reproductivos. A esto se agrega la alta convocatoria generada en estos sectores por movimientos católicos de carácter ultraconservador tales como Opus Dei y Legionarios de Cristo. Así como en la creación de instituciones como Fundación Chile Unido, vinculada a grupos políticos y empresariales conservadores, con una importante presencia en los medios de comunicación a través de campañas en contra del aborto y a favor del “fortalecimiento de la familia”. Cabe recordar en este sentido, que las alianzas mencionadas surgen en una coyuntura histórica muy particular. La necesidad de establecer consensos como una manera de asegurar la estabilidad política y social desvía el conflicto hacia la sexualidad, convirtiéndola en una amenaza permanente. En este sentido, el tema de los derechos sexuales y reproductivos, aparece como la otra columna del debate que se ha desarrollado con intensidad desde los años noventa, y acentuado con el último gobierno de la Concertación de Partidos por la Democracia. Por otra parte, este discurso hegemónico que articula la posición de la Iglesia con la de los sectores más conservadores de la sociedad, se opone a la comprensión de las diferencias sexuales desde la categoría género, precisamente porque en ella tales diferencias operan como una construcción histórico-cultural, no una ley natural. De esta forma, las identidades tanto de hombres como mujeres dicen ser concebidas desde principios que trascienden su condición biológica, para unificar cuerpo y espíritu. Sin embargo, es sólo la identidad de las mujeres la que aparece más expuesta a los riesgos de que sus funciones biológicas predominen en la definición de su “esencia”. Así, la maternidad continúa siendo determinante, proyectada desde lo físico a lo simbólico, y consistente, la diferencia fundamental que la Iglesia plantea entre hombres y mujeres. Sin embargo, ante una sociedad que funciona sobre un modelo económico agresivo, la religión -y que en el caso de la religión católica se le asigna el carácter de elemento constitutivo de la identidad chilena- vuelve a ofrecer sentido a la experiencia humana, presentándose como una fuente valórica y un discurso convocante frente a la ausencia, o más bien, la paulatina emergencia de nuevos proyectos políticos y sociales. No obstante, la resistencia a los avances de un mercado deshumanizante, también podría llegar a traducirse en la resistencia a establecer un diálogo con individuos que no se rigen por la moral católica y todo lo que ella implica en cuanto estilo de vida, convirtiendo así a la familia más que en un lugar de socialización primaria y de constitución de afectos, en

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un espacio constrictor y tensionado que impide la afirmación de los sujetos y la construcción de nuevas formas de convivencia social.- Notas 1. Síntesis realizada sobre la tesis para optar al grado de Magíster en Estudios de Género y Cultura, mención humanidades: Acerca de la familia cristiana. Discurso católico, familia y géneros, 1925-2004. Universidad de Chile (2005). Este trabajo abordó, sobre la base de la revisión de un extenso corpus documental, el discurso católico acerca de la familia y el matrimonio, las identidades y roles femeninos y masculinos -incluyendo la dimensión sexual- y fue realizado como tesista dentro del marco de un proyecto más amplio del Fondo Nacional de Ciencia y Tecnología (FONDECYT) N°1030150, “Modernización y vida privada en tres grupos sociales de Santiago”. También se basa en un trabajo anterior de la autora sobre los contenidos de La Revista Católica –publicación oficial de la Iglesia Católica en Chile- entre los años 1925 y 2000, correspondiente al artículo: “Discurso católico, familia y géneros. La Revista Católica entre 1925-2000”. En: Candina, Azún et.al. Conservadurismo y Transgresión en Chile. Reflexiones sobre el mundo privado. Colección de Investigadores Jóvenes. CEDEM-FLACSO, Santiago, 2005. 2. De acuerdo a la Asociación Chilena de Protección a la Familia (APROFA), la Anticoncepción de Emergencia consiste en una serie de métodos orientados a evitar el embarazo antes de que transcurran 72 horas de haber realizado un coito sin protección, un accidente anticonceptivo o de una violación. La polémica se suscitó ante la posibilidad de acceder libremente al fármaco Postinor 2, cuyo componente es el Levonorgestrel, más conocido como “píldora del día después”. Su venta se hace con receta médica retenida. Fuente: “Anticoncepción de Emergencia”. Asociación Chile de Protección a la Familia (APROFA) Disponible al 14 de septiembre de 2005 en < http://www.aprofa.cl> 3. Si bien el Vaticano aceptó desde mediados de los años ‘20 la separación de la Iglesia del Estado, para evitar ser atacada por los regímenes fascistas que comenzaban a instalarse en Europa, prohibiendo a los sacerdotes participar en actividades políticas, promovió la participación de los laicos en movimientos apostólicos no partidistas y mantuvo estrechas alianzas, aunque de carácter informal, con los partidos católicos. En Chile, la Iglesia continuó aliada al Partido Conservador –de carácter confesional y al cual el clero apoyaba explícita o implícitamente- hasta fines de la década de 1950, entre otras razones por su común temor al comunismo. Correa, Sofía. “Iglesia y política: el colapso del partido conservador”, en Mapocho, N°30. Revista de Humanidades y Ciencias Sociales, DIBAM, Santiago, segundo semestre 1991. pp.137-138. Ver también de Hans Küng, La Iglesia Católica. Mondadori, Barcelona, 2002. 4. Es claro que no es posible caracterizar el pensamiento de la Iglesia Católica como unitario y homogéneo, si bien como se plantea, sustenta un imaginario cultural tanto en Latinoamérica como en Chile, y desde la perspectiva de algunos autores constituye el eje articulador de una cultura mestiza latinoamericana que producto del proceso de conquista y colonización, supuso la conformación de un ethos y una nueva cosmovisión. Las divinidades masculinas fueron desplazadas de su lugar dominante, y “sobre ellos se posó la figura de una diosa poderosa, representada por la Virgen-Madre y vinculada a

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las divinidades femeninas precolombinas, así como a diversos aspectos de su mitología”. El “modelo mariano” ejercería así fuerte influencia en la conformación de las identidades de género femenina y masculina. Ver de Sonia Montecino, Madres y Huachos. Alegorías del Mestizaje chileno. Editorial Sudamericana, Santiago, 1996 (1ª ed. 1991) p. 65 5. Valdés S., Ximena y Araujo K. Katia. Vida privada. Modernización agraria y modernidad. Santiago, Centro de Estudios para el Desarrollo de la Mujer (CEDEM), 1999. p.31. 6. Dichas transformaciones se expresan entre otros fenómenos, a través de una serie de reformas tendientes a la promoción de la igualdad y democratización en las relaciones entre géneros y generaciones, tales como la Convención para la Eliminación de todas las formas de Discriminación contra las Mujeres (CEDAW) y la Convención sobre los Derechos del Niño y de la Niña, y entre otras, la promulgación de la Ley de violencia intrafamiliar 19.325 (1992), la Ley 19.585 (1998) que modifica el Código Civil, igualando a los hijos nacidos dentro y fuera del matrimonio, la Ley 19.688 (2000) que establece el derecho de las alumnas embarazadas de continuar sus estudios, y la nueva Ley de Matrimonio Civil (2004) que sustituye la ley de 1884, otorga validez al matrimonio religioso y establece el divorcio vincular. 7. No está demás recordar que la Iglesia Católica opera en términos de universalidad, y sobre la base de un poder vertical, de tal manera que las acciones de las iglesias locales deben ajustarse a los preceptos emitidos desde el Vaticano adaptándolos a sus particularidades culturales.

8. En Chile el aborto está penalizado en todas sus formas, y se considera como un problema de salud pública que afecta principalmente a las mujeres (las leyes contra el aborto se encuentran en el Código Penal, Artículos 342 A y 245, bajo la denominación “Crímenes y Delitos contra el Orden Familiar y la Moralidad Pública), sin embargo, el aborto terapéutico constituyó una excepción permitida por el Código de Salud entre 1931 y 1989, al considerar que toda mujer cuya vida estuviera en peligro podía solicitar un aborto si contaba con la aprobación de dos médicos. En 1989 la dictadura militar eliminó esta excepción, la que sigue sin ser revocada. Fuente: “Aborto en Chile”. Foro Red de Salud y Derechos Sexuales y Reproductivos, Chile. Disponible al 14 de septiembre de 2005 en < http://www.forosalud.cl > 9. Este tema fue desarrollado más ampliamente en el trabajo realizado como tesis para optar al grado de Antropóloga Social, “Identidad nacional. Femenino y masculino en el régimen militar, 1973-1986”. Universidad Academia de Humanismo Cristiano, Santiago, 2001. Ms. Referencias bibliográficas Correa, Sofía. “Iglesia y política: el colapso del partido conservador”, en Mapocho, N°30. Revista de Humanidades y Ciencias Sociales, DIBAM, Santiago, segundo semestre 1991. Godoy Ramos, Carmen Gloria. “Discurso católico, familia y géneros. La Revista Católica entre 1925-2000”. En: Candina, Azún et.al. Conservadurismo y Transgresión

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en Chile. Reflexiones sobre el mundo privado. Colección de Investigadores Jóvenes. CEDEM-FLACSO, Santiago, 2005. ------------------------------------------- Acerca de la familia cristiana. Discurso católico, familia y géneros, 1925-2004. Tesis para optar al grado de Magíster en Estudios de Género y Cultura, mención Humanidades, Universidad de Chile, Santiago, 2005. Ms. --------------------------------------- “Identidad nacional. Femenino y masculino en el régimen militar, 1973-1986”. Tesis para optar al grado de Antropóloga Social, Universidad Academia de Humanismo Cristiano, Santiago, 2001. Ms. Küng, Hans. La Iglesia Católica. Mondadori, Barcelona, 2002. Montecino, Sonia. Madres y Huachos. Alegorías del Mestizaje chileno. Editorial Sudamericana, Santiago, 1996 (1ª ed. 1991) Valdés S., Ximena y Araujo K. Katia. Vida privada. Modernización agraria y modernidad. Santiago, Centro de Estudios para el Desarrollo de la Mujer (CEDEM), 1999. Fuentes documentales La Revista Católica. Seminario Pontificio Mayor. Números 563-1.127. Santiago, 1925-2000. José María Card. Caro Rodríguez (21de Enero 1955) (R.C. Pastoral. “Acerca de la familia cristiana”. Enero-Abril 1955. N° 971. Declaración del Comité Permanente de Episcopado a propósito del proyecto de Ley de Divorcio Civil. 5 agosto de 1964 (Versión electrónica disponible al 31 de marzo 2005 en <http://www.iglesia.cl>) “Matrimonio y Divorcio” Declaración del Comité Permanente del Episcopado chileno. 6 de febrero de 1971(Versión electrónica disponible al 31 de marzo 2005 en <http://www.iglesia.cl>) Presidencia de la República de Chile. Política Poblacional. Oficina de Planificación Nacional (ODEPLAN), abril 1979. “Moral, juventud y sociedad permisiva”. Carlos Oviedo, Arzobispo de Santiago. Carta pastoral 24 septiembre 1991. (Versión electrónica disponible al 31 de marzo 2005 en <http://www.cfg.uchile.cl>) “La Iglesia Católica y el Proyecto de Ley sobre Matrimonio Civil”. Conferencia Episcopal de Chile, 15 de agosto 1998 (Versión electrónica disponible al 31 de marzo 2005 en <http:// www.iglesia.cl>) Ministerio de Educación de Chile. Política de Educación en Sexualidad. Hacia un mejoramiento de la calidad de la educación. Santiago, 2001 (4º ed.) “Aborto en Chile”. Foro Red de Salud y Derechos Sexuales y Reproductivos, Chile. (Disponible al 14 de septiembre de 2005 en <http://www.forosalud.cl >)

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“Anticoncepción de emergencia”. Asociación Chile de Protección a la Familia (APROFA) (Disponible al 14 de septiembre de 2005 en <http://www.aprofa.cl >)

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AUTOR/A: Dialvys Rodríguez Hernández INSTITUIÇÃO: Centro De Antropología, Ministerio De Ciencia, Tecnología Y Medio Ambiente (Citma), Ciudad De La Habana. E-MAIL: [email protected] TÍTULO: Una Perspectiva De Género: El Hombre Y La Mujer De La Reserva De La Biosfera “Península De Guanahacabibes”. RESUMO: En este trabajo se hace una caracterización de la condición del hombre y de la mujer, enfocado desde una perspectiva de género, a la población que habita en las comunidades El Valle de San Juan, El Vallecito y La Bajada, enclavadas en la Península de Guanahacabibes, Pinar del Río, Cuba. Se analiza el papel del hombre y la mujer en el quehacer cotidiano de estas comunidades, y el desempeño de cada uno de ellos en el desarrollo de la familia como unidad básica de la sociedad, estudiando la influencia que esto ha tenido en el nivel educacional, el estatus laboral, e incluso en los índices de salud y el estado nutricional de cada individuo. Como ha sido reportado anteriormente, es la mujer la máxima responsable del mantenimiento de la familia y la más afectada en los índices analizados.

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Título : Performances do querer: masculinidades que se reinventam.

Autor: Eduardo Steindorf Saraiva

Psicanalista. Mestre em Educação (UFRGS). Doutorando no Doutorado

Interdisciplinar em Ciências Humanas (UFSC), na linha de Estudos de Gênero.

Orientadoras: Profª Drª Miriam P. Grossi e Profª Drª Mara Lago.

Professor do Departamento de Psicologia da Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC),

Rio Grande do Sul.

Palavras-chave: Gênero, sexualidade, masculinidades, identidade, subjetividade,

heteronormatividade.

Este artigo é fruto de uma inquietação que assume uma forma de investigação

acadêmica que está em andamento, em processo.

No doutorado estou desenvolvendo uma pesquisa etnográfica junto a homens

“maduros” (acima dos 30 anos de idade), de classe média, urbanos, nível superior, que

viveram uma longa experiência afetivo-sexual-conjugal com mulheres, experiência

reconhecida como heterossexual, mas que em algum momento de suas vidas se vêem

envolvidos de forma muito intensa com outro homem. Tal envolvimento implicou em

separação (das esposas), rearranjos familiares (mudança na relação com filhos, parentes,

etc.), rearranjos identitários (compreensão sobre si mesmo, sua sexualidade) e a adoção de

um vínculo nomeado e reconhecido por “homossexual” (esta é a expressão corrente entre

os informantes) por se tratar de uma relação com alguém do mesmo sexo.

Logo no início dessa minha aventura pelo campo, em determinado momento,

quando pensava sobre as referências teóricas necessárias para me ajudar a compreendê-lo,

me peguei indagando se esses homens seriam homossexuais, bissexuais,

heterossexuais...ou?? Perguntava-me se haveria uma outra possibilidade de compreensão

que não passasse necessariamente por estas categorias, até mesmo porque, como refere Joel

Birman (1999), existem novas modalidades de inscrição das subjetividades no contexto

atual das sociedades contemporâneas, tornando necessário repensar os fundamentos de

nossa leitura da subjetividade:

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“Trata-se, pois, de pensar nos destinos do desejo na atualidade, já que esses destinos nos permitem captar o que se passa nas subjetividades.” (p.16)

Tal pensamento me ajuda a justificar e dar consistência ao que percebo como crucial

para aqueles que se propõem a investigar os novos territórios subjetivos, singulares, das

recomposições desejantes. Ou seja, o necessário trabalho de pôr em questão alguns dos

“fundamentos normativos” que operam no sentido de confinar as subjetividades em

“identidades”, principalmente daqueles fundamentos que sustentam um caráter natural e/ou

essencial para as identidades, tornando-as substâncias.

Comecei, então, a indagar sobre o lugar do desejo nas experiências dos meus

informantes, do sentimento amoroso, e da relação entre desejo/amor/sexualidade.

Partilho de uma concepção na qual tanto as categorias hetero/homo/bi quanto

desejo/amor/sexo não são “naturais”, essenciais, dadas a priori, porém são vividas pelos

sujeitos como se fossem. O fato é que são realidades vividas e sentidas, realidades

lingüísticas, nomeadas, significadas, portanto construídas na articulação

sujeito/subjetividade/cultura/sociedade.

Mesmo as experiências consideradas mais íntimas, interiores, individuais (e o são!)

como as experiências sexuais ou desejantes, estão inscritas na linguagem, são tecidas ali, o

que não significa que estejam para sempre prisioneiras de um único sentido ou significado.

Nesse sentido, uma das primeiras questões que coloco é: o que faz alguém se

reconhecer, nomear o que sente e o que vive enquanto algo homossexual? Heterossexual?

Bissexual? Com base em que e no que pode o sujeito afirmar que o seu desejo é

homossexual? Ou, que foi heterossexual e agora é homossexual?

Com certeza, estas perguntas remetem para a noção de sexo e de como esta noção é

construída de dentro da matriz heterossexual (BUTLER, 2000;2003).

Parafraseando Butler (2003) pergunto: podemos referir-nos a um “dado” sexo ou

um “dado” gênero, sem que haja uma investigação sobre como são dados o sexo e/ou

gênero e por que meios? Afinal, o que é o “sexo”? Qual a concepção de sexo que autoriza o

uso da expressão “pessoas do mesmo sexo?”

Estas perguntas já indicam a direção conceitual que irei tomar: acredito que o sexo

tem história, ou seja, está inscrito historicamente, não se trata simplesmente de um dado da

natureza. O que não significa negar a sua materialidade, sua corporeidade, existência

concreta. Significa sim, afirmar na via de uma investigação crítica, tal como Foucault

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propõem na genealogia, que as categorias fundantes do sexo, gênero, desejo, são efeitos de

uma formação específica de poder.

Tal como na crítica genealógica, entendo que não se trata de buscar as origens do

gênero, a verdade íntima do desejo, uma identidade sexual genuína ou autêntica que a

repressão impede de ver; ao invés disso, investigar as apostas políticas, designando como

origem e causa categorias de identidade que, na verdade, são efeitos de instituições,

práticas e discursos cujos pontos de origem são múltiplos e difusos.

Nesse sentido, “o próprio conceito do sexo-como-matéria, do sexo-como-instrumento-de-significação-cultural, é uma formação discursiva que atua como fundação naturalizada da distinção natureza/cultura e das estratégias de dominação por ela sustentadas.”(Butler, 2003: 66)

Para dialogar com a teoria, irei trazendo alguns fragmentos das entrevistas que

venho realizando com os meus informantes.

MARCOS, 32 anos:

Lembra de um evento da sua adolescência, um episódio que ocorrera por volta dos seus 17, 18 anos. Um amigo muito próximo, em uma determinada ocasião enquanto assistiam a um filme, começou a tocá-lo, e ele deixou. Conta que “rolou tudo” penetrou e foi penetrado, gostou da experiência. Foi a primeira experiência com alguém do mesmo sexo nesse período da vida, antes disso somente quando criança, em brincadeiras com os primos.

Após essa experiência sexual com o amigo, lembra que começou a fazer comparações entre esta e as experiências sexuais que havia tido com namoradas. E então percebeu, nas suas palavras: “com ele senti prazer pela primeira vez”.

Poucos anos depois desta experiência, intensa, Marcos se casou. Ao relembrar estes eventos, pergunta se o que viveu na experiência com o amigo poderia ter precipitado sua “necessidade” de casar. Algo como: gostou do que viveu, mas sentiu medo do que poderia vir pela frente (mudança de orientação sexual), então resolveu casar para se proteger.

Afora as experiências sexuais na infância com os primos, e a experiência com o amigo na adolescência, meu informante afirma que durante o tempo em que foi casado não teve qualquer relacionamento homossexual.

Trouxe lembranças sobre estratégias de encobrimento do desejo homossexual. Por exemplo, lembrou que quando sua esposa viajava, ele alugava filmes pornográficos gays, isso estimulava fantasias, nunca concretizadas.

Percebo através deste fragmento, que para este informante o desejo sexual está

compreendido enquanto algo, expressão, da sua “natureza”, que precisa ser “controlado”,

reprimido. Reprimir o quê? Por quê?De que forma? Neste caso, a opção por casar-se com

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uma mulher foi uma tentativa estratégica. Precisava encontrar um lugar na cultura, qual

lugar: de homem heterossexual. Como se casando com uma mulher afirmasse o desejo

heterossexual. A questão é: ele não poderia desejar também a mulher? Acredito que sim.

Aparece aqui essa forte relação, instituída historicamente, entre casamento e ideal

heterossexual.

Entendo que a sua fala remete para a tensão naturezaXcultura, como se fosse uma

tensão absolutamente natural, e não uma estratégia de dominação forjada pelas normas

regulatórias do sexo.

Onde localizar a estratégia de dominação? No fato de que este sujeito irá produzir,

inexoravelmente, uma identidade. Identidade homossexual, por oposição e exclusão do que

viveu. A estratégia de dominação está em fazer acreditar que a identidade é natural, quando

é a própria noção de “natural” que é forjada para produzir, imediatamente, uma identidade.

PAULO, 46 anos:

Isso estava adormecido dentro de mim. Eu tinha muitas fantasias na adolescência. Mas aí, com a vida social do colégio... tive uma namorada, tinha aquela história de grupinho de colégio, de amigos que tinham namoradas, íamos nos barzinhos... até conhecer a minha esposa. Logo depois eu fiquei noivo, por volta dos 26 anos. Eu me casei com 27 anos. - E as fantasias passaram?

Sim, nunca mais, nada, nada. - Como eram as tuas fantasias?

Era uma coisa de corpo, de toque, de nu. Era neste sentido. - E nunca rolou nada?

Não. Tanto que todos os meus amigos da adolescência eram heterossexuais e eu também. A gente brincava, fazia gozação. As brincadeiras de guri. Concursos de masturbação quando era mais guri. Mas na minha infância, quando eu tinha 8 anos, eu tive uma experiência com um primo meu. Aquela coisa de um segurar o pênis do outro. O troca-troca. Mas acho que isso é normal, todas as crianças devem fazer isso. - E quando adulto?

Quando eu olhava um filme que envolvia um homossexual, aquilo me despertava. Na época, Calígula. Outro filme foi sobre a história de um padre que teve uma relação com um cara. Aquela relação dele, do beijo, do contato, do proibido... me deixava excitado. - Você era casado?

Sim. - E aí o que você pensava?

Que não tinha nada a ver. Aquilo me bloqueava logo em seguida. - Você não fazia nenhuma questão de ver o que era?

Não, eu não queria nem pensar no assunto. - Por que você tomava essa atitude?

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Olha, não sei, eu não cheguei a analisar muito bem isso. Mas talvez possa ter sido por causa dos filhos, por causa do meu casamento, porque eu tinha escolhido outra vida pra mim.

Eu não chegava a questionar isso, porque eu tinha uma relação sexual que eu tinha prazer. Então se eu sentia prazer, se eu gostava e se eu dava prazer, eu estava me sentindo bem sexualmente. Eu não me sentia insatisfeito. Se você tem uma relação e se sente bem insatisfeito com ela, alguma coisa está errada. Tem que procurar resolver isso. Não era o meu caso. Tinha prazer e dava prazer. Estava muito legal. A minha relação de ser pai, ter uma esposa, uma casa ... era tudo perfeito. Até que o próprio desgaste da relação trouxe à tona essas minhas fantasias. Foi aí que eu comecei a questionar... Foi aí que eu tive a primeira experiência. Então sim, percebi que eu gostei mais desta relação homo, e que era isso que eu queria. Isso tudo tinha ficado adormecido este tempo todo.

Na fala deste informante destaco as expressões “isso”, “aquilo”, “adormecido”.

Seria inominável? Perturbador? Este sujeito vinha mantendo uma coerência dentro daquilo

que é socialmente esperado. É tudo bem lógico no seu contexto. O que não poderia

irromper? A natureza? Instinto? Muito interessante a tensão que ele refere entre o que

“tinha escolhido” e aquilo que ele nem queria pensar. Do que está falando? Do controle?

Não somente, pois afirma ter tido experiências prazerosas e com muito sentido em sua vida.

Porém, fala como se fossem experiências impossíveis de coabitarem no mesmo sujeito. É o

desconforto, o desassossego. Acordar “aquilo” significaria produzir uma incoerência. Para

não ficar “incoerente” precisa recorrer a uma identidade. Entretanto, o que é o “coerente”?

Aí percebemos a força da estratégia de dominação.

Por isso que a categoria do “sexo” é, desde o início, normativa, é parte de uma

prática regulatória que produz os corpos que governa:

“o sexo é um construto ideal que é forçosamente materializado através do tempo. Ele não é um simples fato ou a condição estática de um corpo, mas um processo pelo qual as normas regulatórias materializam o sexo e produzem essa materialização através de uma reiteração forçada destas normas.” (BUTLER, 2000, p.155)

As normas regulatórias do “sexo” trabalham de uma forma performativa para

constituir a materialidade dos corpos, para materializar o sexo do corpo e a diferença sexual

a serviço da consolidação do imperativo heterossexual (Butler, 2000). Tanto assim o é,

que uma característica atribuída ao sexo e muito articulada ao conceito de

homossexualidade, é a propriedade de ser dividido em dois, o sexo do homem e o sexo da

mulher. Tal característica fundamenta a idéia de heterossexualidade e homossexualidade.

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Por que? Pela postulação dos princípios: atração pelo sexo oposto, atração pelo

mesmo sexo. Quem deseja o mesmo sexo? Quem deseja o sexo oposto?

A estratégia de heterossexualização do desejo requer e institui a produção de

oposições discriminadas e assimétricas entre “feminino” e “masculino”, sendo

compreendidos como atributos expressivos de “macho” e “fêmea”. E a coerência ou a

unidade internas de qualquer dos gêneros, homem ou mulher, exigem uma

heterossexualidade estável e oposicional.

Os gêneros “inteligíveis” são aqueles que, em certo sentido, instituem e mantêm

relações de coerência e continuidade entre sexo, gênero, prática sexual e desejo.

Então, a “coerência” e a “continuidade” não são características lógicas ou analíticas

da condição de pessoa, mas, ao contrário, normas de inteligibilidade socialmente

instituídas e mantidas por uma concepção de gênero que pressupõe uma relação causal

entre sexo, gênero e desejo. Supõe-se que a unidade metafísica dos três seja

verdadeiramente conhecida e expressa num desejo diferenciador pelo gênero oposto –

numa forma de heterossexualidade oposicional. Butler resgata a expressão de Irigaray, “velho sonho da simetria”, para mostrar a

marca do paradigma naturalista que estabelece uma continuidade causal entre sexo, gênero

e desejo. É a visão do gênero como substância, pois também está pressuposto aí que um “eu

verdadeiro” é revelado no sexo, no gênero e no desejo.

Entendo que é a este “eu verdadeiro” que os informantes se referem quando

remetem à noção de essência. E se referem porque estão acreditando que ele exista, e mais

do que isso, ele está diretamente relacionado à sexualidade.

A instituição de uma heterossexualidade compulsória e naturalizada exige e regula o

gênero como uma relação binária em que o termo masculino diferencia-se do termo

feminino, realizando-se essa diferenciação por meio das práticas do desejo heterossexual.

(BUTLER, 2003)

Para exemplificar estas noções de inteligibilidade enquanto coerência entre sexo,

gênero, desejo e prática, mostrando sua fórmula socialmente instituída, trago um exemplo

que tomei de Jurandir Freire Costa: “Em 1837, na Nova Inglaterra, um jovem de 19 anos escrevia em seu diário longas e ardentes cartas de amor para suas amadas Julia e Elizabeth e seus amados Anthony Halsey e John Heath. Albert Dodd não parecia constrangido, culpado ou envergonhado por apaixonar-se por homens e mulheres.

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Dirigia-se à Júlia no mesmo tom em que dizia: ‘John, querido John, eu o amo, realmente o amo. O que sinto por você é uma amizade de um tipo mais forte, um amor sincero, viril, puro, profundo e fervoroso...eu sou capaz de amar. Deus sabe que eu sou capaz de amar.” (1992, p.41)

Porque nasceu antes da invenção histórica do homossexual, Dodd podia referir-se a

seus amores masculinos na linguagem do romantismo, mantendo, ao mesmo tempo, a

imagem de virilidade que tinha de si mesmo. O fato de amar homens não o fazia

representante de uma outra espécie de homem, simplesmente era capaz de sentir-se atraído

por pessoas do mesmo sexo.

Porém, este “erotismo rebelde e indiferenciado” precisava ser controlado e

redirecionado, para tanto foi transformado em “homossexualismo”: “Nos fins do século XIX a empresa chegava a seu termo. O antigo ‘vício que não tinha nome’ transformara-se no ‘amor que não ousa dizer seu nome’. O homoerotismo vivia sua era científica de culpa, vergonha e maldição. Antes, pecado contra a alma, era, agora, aberração moral, psíquica e cívica.” (COSTA, 1992, p.43)

Além disso, e contrariamente ao período em que Dodd expressava seu amor tanto

para homens quanto para as mulheres, e assim o podia nomear, “Em nossa cultura, toda linguagem amorosa, que é

essencialmente a linguagem do amor romântico, foi imaginariamente rebatida sobre o casal heteroerótico. Da primeira ‘paquera’ até o altar e depois ao berçário, tudo que podemos dizer sobre o amor está imediatamente associado às imagens do homem e da mulher.”(COSTA, 1992, p.93)

Voltando aos meus informantes, e pensando nesta questão do amor que não ousa

dizer o nome, penso que estes sujeitos afirmam uma experiência amorosa, além da sexual.

Por exemplo:

FABIO, 53 anos, 25 anos de casamento, quatro filhos. Já havia tido experiências sexuais com outros homens, porém sem vínculo afetivo. Como é que se consegue controlar isso? Explica. Você tinha envolvimento sexual, mas sem afeto?

São os compartimentos. Estou compartimentalizado. Até aqui é aqui. É um pouco germânica a coisa. É até aqui e ali eu não passo. Até que passou e eu não tive mais controle. Por que com esse? O que você acha que este teve que os outros não tiveram?

Não sei. Sabe que eu sempre me fiz essa pergunta várias vezes. Mas não consegui saber por que. Não consigo.. não consigo... Simplesmente...

A coisa não foi simplesmente assim, também.

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Foi um processo? Sim, um processo, um convívio. Ele tinha uma relação estável. Então, foram, na

verdade, seis meses. Eu escondia da minha família, e ele, do seu caso. Ele sabia que você era casado?

Sim. E eu sabia que ele tinha uma relação estável. Embora não vivessem juntos, moravam muito próximos, duas quadras. E era uma relação... Eram casados praticamente, só tinham casas separadas. Tanto que quando eu ia ao apartamento dele era sempre escondido. Foi um processo estranho, difícil. PAULO, 46 anos, 15 anos de casamento, dois filhos.

Terminei a minha relação com o Cláudio porque percebi que, na realidade, eu não gostava dele, só queria ter uma experiência. E não é correto estar com alguém só para ter uma experiência. Mas eu terminei a minha relação e voltei para a minha mulher. Ela me aceitou de volta, mesmo porque ela não sabia que estava tendo um caso com um homem. - Você voltou?

Sim. Eu voltei por causa dos meus filhos, sentia muitas saudades, estava muito carente, eu queria estar mais com eles. E a minha ex-mulher começou a fazer, de certa forma, uma chantagem emocional. E eu acabei ficando novamente envolvido. Mas a relação já tinha terminado. Mas dois meses depois eu comecei a sair com o Claudio. Foi uma grande paixão, tanto da minha parte como da dele. A gente se encontrava e o sexo era maravilhoso. Era ardente. E a gente queria sempre estar junto. ZÉ, 42 anos, 15 anos de casamento, uma filha. Fiquei separado da minha esposa, eu acho que quase dois anos. Foi quando eu realmente tive coragem e fui, digamos assim, desvirginado no universo gay. Aí eu conheci o, digamos assim, o primeiro amor da minha vida. Aí eu realmente vi que não era ... que tudo que eu sentia pela minha mulher era uma coisa um tanto quanto forçada e, assim por diante, e ele foi fantástico, porque ele teve o carinho necessário, a paciência necessária. Em termos de homossexualidade ele tinha muito mais experiência, tinha muito mais vivência. Os pais dele já sabiam, já conviviam com isso há muito tempo, ele era filho único, então não tinha problema nenhum, apesar do pai dele ser gaúcho, da fronteira, esse tipo de coisa toda, ele sempre foi muito transparente. E eu não tava preparado pra isso na época, porque em função da formação religiosa do meu pai, não tanto da minha mãe, apesar de na adolescência e na juventude ter tido muitas conversas com a minha avó a respeito de sexualidade, que ela não casou virgem, das orgias nos anos 20 e por aí afora e coisas do gênero, foi um sofrimento muito grande. Foi um período de muito sofrimento pra mim e pra ele também. MARCOS, 32 anos, sete anos de casamento, um filho.

Foi na “recaída”, ou seja, já separado e tentando namorar a ex-esposa, que um dia estava ele andando no centro de Porto Alegre em direção a sua casa (estava morando sozinho) quando parou em uma banca de revistas. Nisso um homem passou por ele e fitou-o nos olhos de uma forma incisiva. Ele retribuiu o olhar. Pensou: “que homem bonito.” Continuou andando, mas de vez em quando olhava para trás e percebia que o homem continuava lá, parado e olhando para ele.

Quando já havia se afastado do local, parou no viaduto próximo da sua casa e ficou contemplando a cidade. Ouviu uma buzina, olhou e percebeu que era aquele rapaz “bonito” que estava no carro. Foi até o carro “tremendo todo”, o rapaz o convidou para entrar, conversarem, percebeu que os dois estavam “tremendo”, resolveu entrar. Então o rapaz lhe disse: “sei que essa é velha, mas eu acho que te conheço”. Ao que Marcos respondeu: “não

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lembro de ti”. Ele então pergunta se Marcos competia na modalidade de ginástica olímpica, Marcos responde que sim. O rapaz lhe fala de uma competição que tinha ocorrido há uns dez anos atrás, lembrava do local, e também que meu informante lhe chamou a atenção, guardava lembranças do seu sorriso e carisma.

Marcos ficou impressionado, era uma história de amor. Iniciaram um relacionamento, um processo lento de aproximação, tanto física quanto afetivamente. Foi somente aí que Marcos decide, definitivamente, separar-se da esposa.

É inegável que estas experiências produziram desestabilizações nos sujeitos citados.

Por exemplo:

FABIO: Faz três anos que nós nos conhecemos (se referindo ao atual companheiro), somos colegas de profissão. Começamos na brincadeira e íamos levando. Chegou um ponto que não conseguia levar mais, porque houve muito, mas muito afeto. Era uma coisa que transbordava. - E que brincadeira era essa?

Brincadeira no sentido de sexualidade. Nesse sentido. - Você era casado ainda?

Sim. Na época eu era casado. Mas, na realidade, não foi em função dele. Fazia um ano mais ou menos que eu acessava a Internet. Os guris me ensinaram a acessar. E eu, por minha conta e risco, entrava nas salas. E vi quantas pessoas acessavam essas salas. Aí eu encontrei colegas, inclusive pessoalmente. A gente fazia umas brincadeiras. E eu sempre achei que ia ficar somente nas brincadeiras, que nunca ia passar disso. Foi um período muito difícil, mas muito difícil mesmo. - Essa coragem que você tem é em nome do quê? De amor, de desejo? No que está

sustentada essa coragem? Acho que é amor, porque é o colorido da vida.

E por que estas experiências tiveram uma maior força de desestabilização do que as

experiências exclusivamente sexuais? Podem ser consideradas práticas perturbadoras1?

As emoções sempre têm uma dimensão social2, e o espaço para a expressão destas

está sujeito a regras, entretanto a paixão trás algo de original e transforma o cotidiano, ao

mesmo tempo em que é uma das formas mais dramáticas de vivenciar a existência e a

relação com o outro. A irrupção da paixão não está ao nível da representação consciente,

prevista, embora seja encarada como possibilidade.

Dentro de uma compreensão psicanalítica, é possível afirmar que, pelo erotismo, o

sujeito pode efetivamente colocar a sua vida em risco. Pode-se morrer de amor e de

carência erótica, pois o registro biológico da vida seria permeado pelas pulsões.

1 BUTLER, 2003. 2 VELHO, G. 2002.

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Conforme Birman (1998; 1999), é pelo erotismo que o sujeito busca a todo custo a

completude corporal, o fechamento de suas fendas, para barrar o abismo existente entre o

dentro e o fora. Desta maneira, seria a incompletude corpórea e a não suficiência do sujeito

o que criaria a condição de possibilidade do erotismo.

Para a psicanálise, quando se enuncia que o sexual é permeado pela economia

pulsional, está se dizendo que na sexualidade as dimensões da intensidade e do afeto são

fundamentais.

A existência de algo inquietante que se impõe ao psiquismo e que estaria além do

controle do sujeito, indica os limites da racionalidade para lidar com essa irrupção. Isso

revela a dimensão de paixão que funda o conceito de pulsão que está, por sua vez, no

centro da leitura psicanalítica de subjetividade:

“(...) a paixão é sempre algo que o sujeito sofre como paciente e nunca como agente, pois a paixão toma literalmente o sujeito, dele se apodera, de maneira a assujeitá-lo.” (BIRMAN, 1998, p.116)

A pulsão afeta o sujeito, estando então no registro do afeto e da afetação, ela põe o

sujeito em movimento, funcionando pela lógica da paixão.

Então, esta lógica da paixão produziu uma certa “desordem de gênero” nos sujeitos

da minha investigação. Para dar conta disso penso que eles precisaram recorrer, novamente,

à matriz de inteligibilidade cultural e tentar forjar um sentido para essa experiência. Uma

lógica que desse conta de explicar como e por que um homem que estava tão estabilizado

dentro dos critérios de gênero tal qual conhecemos, se perturba afetivamente por outro

homem. Não tem registro? Muitos vão buscar na infância, no passado remoto, criando uma

certa ficção particular sobre as origens. Como se procurassem por algo ou alguém

responsável por isto, perguntando-se de onde vêm?

O recurso de remeter à “essência” vem responder um pouco a essa desestabilização.

Por exemplo:

MARCOS, 32 anos. Marcos diz que viveu uma condição heterossexual, mas também percebe que

sempre lutou e batalhou muito para anular o que chama de sua essência. Percebe hoje que sempre teve muita atração por homens, tanto que em uma conversa recente com sua ex-esposa disse a ela que teria encontrado sua cara-metade.

Atualmente Marcos assume para si mesmo e para alguns amigos mais próximos, que é gay, e não bissexual como alguns chegam a pensar, considerando que teve uma relação heterossexual. Para justificar seu autoconceito como gay ao invés de bissexual, diz

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que não sente mais tesão ou atração por mulheres. Sentia tesão por sua ex-mulher no início do casamento, inclusive tinham uma boa relação sexual. PAULO, 46 anos Você disse para si mesmo que era/é um homossexual?

Sim, com certeza. Por que?

Eu era o que sempre fui: um homossexual. Eu nasci assim, eu não me tornei homossexual depois de 40 anos. Você nasceu assim?

Com certeza, todos os homossexuais nasceram assim. Então, você bloqueava?

Sim, acho que é o que acontece com todas as pessoas. Algumas se liberam, outras não. Outras permanecem casadas, levando uma vida dupla, com casos esporádicos. Outras nunca tiveram essa experiência, porque não é a praia deles.

Acho que as pessoas são gays porque têm isso dentro delas. Ninguém influencia. Muitas vezes o pai e a mãe têm uma relação normal e o filho é gay. Por que eu sou gay? Porque a minha mãe deu mais atenção para o meu pai? Há tantos casais que fazem o mesmo e nem por isso os filhos se tornam gays.

Para que a heterossexualidade permaneça intacta como forma social distinta, ela

exige uma concepção inteligível da homossexualidade e também a proibição dessa

concepção, tornando-a culturalmente ininteligível. Não é à toa que os sujeitos usam as

expressões “isso”, “aquilo”, ao mesmo tempo em que estão referindo-se a algo que,

supostamente, sempre esteve “neles”, “dentro deles”, por ser tão íntimo torna-se

desconhecido.

Recorrer à essência, nestes casos, pareceu-me uma forma de realocarem-se em uma

identidade. Essência como sinônimo de substância.

A noção de uma substância permanente é uma construção fictícia, produzida pela

ordenação compulsória de atributos em seqüências de gênero coerentes. A regulação dos

atributos de gênero se dá conforme linhas de coerência culturalmente estabelecidas: “...a unidade do gênero é o efeito de uma prática reguladora que busca uniformizar a identidade do gênero por via da heterossexualidade compulsória. A força dessa prática é, mediante um aparelho de produção excludente, restringir os significados relativos de ‘heterossexualidade’, ‘homossexualidade’ e ‘bissexualidade’, bem como os lugares subversivos de sua convergência e re-significação. O fato de os regimes de poder do heterossexismo e do falocentrismo buscarem incrementar-se pela repetição constante de sua lógica, sua metafísica e suas ontologias naturalizadas não implica que a própria repetição deva ser interrompida – como se isso fosse possível. E se a repetição está fadada a persistir como mecanismo da reprodução cultural das identidades,

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daí emerge a questão crucial: que tipo de repetição subversiva poderia questionar a própria prática reguladora da identidade?” (BUTLER, 2003, p.57)

Que tipo de repetição subversiva poderia questionar a própria prática reguladora da

identidade?

Nesse sentido, o que venho escutando dos meus informantes é algo ambíguo a esse

respeito, pois tanto pode ser subversivo quanto não ser. Concordo com Butler quando ela

afirma que a repetição é muito difícil de ser interrompida, mesmo nas configurações

homoeróticas há a inscrição em modelos sociais vigentes, fruto da matriz de inteligibilidade

heterossexual. No entanto, quando há a experiência perturbadora dos afetos e o

desdobramento desses afetos na prática sexual, na desestabilização de um arranjo, isso me

parece subversivo.

O “impensável” está, assim, plenamente dentro da cultura, mas é plenamente

excluído da cultura dominante. Associo impensável com a expressão: “o amor que não ousa

dizer o nome”3, por estar diretamente associada com a relação homoerótica.

Ousar. Ousar dizer o nome. Pensemos nas práticas muito comuns entre homens,

mesmo entre aqueles casados, heterossexuais: no exercício de algumas fantasias eróticas

eles podem experimentar tocar o sexo de outro homem, olhar, transar, porém é regra o

anonimato. Nestas situações não se diz o nome, o nome próprio. Isto implica em uma outra

posição do sujeito naquela experiência. Ato por ato, não precisa ser nomeado. É como se a

relação se desse entre “partes” do corpo, pênis com pênis, olhos com pênis, pênis com

ânus”, mas de quem é não importa muito. Ou seja, onde está o sujeito nesta ação? Que, com

certeza, é uma ação desejante, porém sem implicação amorosa.

Nas salas de sexo na Internet, alguns homens heterossexuais se permitem dizer para

outro homem: quero sexo. Quando deparados com alguma pergunta sobre envolvimento

amoroso com outro homem, respondem: isso é coisa de viado! De gay. Sou macho. Isto

não estaria evidenciando o dilema identitário? Porém, não se trata simplesmente de pensar

em identidade, mas nos elementos envolvidos aí, principalmente entre o sexo e o amor. E a

relação destes com as normas de inteligibilidade dos gêneros.

O que é ousar dizer o nome? Por que esta relação com o amor?

3 COSTA, 1992.

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Indo além, lembro de algumas passagens dos filmes A Vila e Harry Potter, em que

uma das estratégias usadas por aqueles de posição social dominante e que detinham um

saber, para se referirem ao Mal usavam as expressões: “Aqueles que não devemos

pronunciar”, “Aquele que não devemos dizer o nome”. Dizer, nomear, invocar, atiçar,

provocar, saber, conhecer.

Tomar um desejo enquanto algo da natureza é uma forma de afirmar que se sabe

não sabendo, sabe-se apenas que, desde sempre, esteve ali. Afirmar sua presença,

cristalizando-a. Também é uma forma de dizer: o mal inevitável ou, a minha condenação.

Acompanhado dessa idéia está uma noção muito forte do “reprimido”. Para ser

percebido como essência, precisa do discurso do reprimido. Tanto é essência, substância,

que lutou contra tudo e todos para se tornar presente, se materializar. Também muito

associado a uma lógica do sofrimento.

Vivemos em uma cultura presa à noção de essência, de “verdade última do sujeito”,

onde a invenção não tem lugar. O trabalho das subjetividades seria um trabalho de lutar

contra o que reprime, e não o de reinventar o desejo.

É também a cultura das identidades. Para Butler (2000), “identidade” é assegurada

por conceitos estabilizadores de sexo, gênero e sexualidade, tanto que ela própria se

torna um ideal normativo ao invés de uma característica da experiência.

Entendo que tais ideais normativos inscrevem-se pela linguagem, principalmente

pela sua força performativa na construção das subjetividades, considerando que

subjetividade pode ser compreendida como “um efeito das linguagens, das práticas

lingüísticas que determinam suas regras de formação e reconhecimento privado e público.”

(Costa, 1992:15; 1995)

As realidades subjetivas são realidades lingüísticas. E realidade psíquica ou

lingüística é tudo que tem efeitos performativos sobre as subjetividades. E esta é uma

observação importante quando se trata das identidades sexuais: “Heterossexuais, homossexuais, bissexuais, perversos, normais, anormais, doentes, sadios ou desviantes sexuais não existem “na natureza”, nem dependem exclusivamente de pretensos fatores biológicos para serem reconhecidos como realidades subjetivas particulares.(...) São seres verbais ou figuras de discurso que podem ter, como, de fato têm, uma enorme força performativa na definição das subjetividades humanas. Homossexuais e heterossexuais não são realidades lingüísticas ilusórias ou delirantes. São identidades sócio-

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culturais, que condicionam nossas maneiras de viver, sentir, pensar, amar, sofrer, etc.”(COSTA, 1995, p.43)

A noção de que pode haver uma “verdade” do sexo, tal como denomina Foucault, é

produzida precisamente pelas práticas reguladoras que geram identidades coerentes por via

de uma matriz de normas de gênero coerentes. Portanto, o caráter imutável do sexo é

contestável, por ser um construto tão culturalmente construído quanto o gênero.

Este caráter de “construído” vai ser enfocado através de diferentes campos do

conhecimento, desde as teorias construtivistas na produção contemporânea da antropologia

no campo das sexualidades, até a psicanálise.

Então, a diferença sexual4 não é, nunca, simplesmente, uma função de diferenças

materiais que não sejam, de alguma forma, simultaneamente marcadas e formadas por

práticas discursivas.

POSSIBILIDADES OUTRAS...

O sexo adquire um efeito naturalizado, mas também se produzem instabilidades,

algo que escapa à norma, e está justamente nessa instabilidade a possibilidade

desconstitutiva no próprio processo de repetição, podendo colocar as normas do sexo em

uma crise potencialmente produtiva.

Butler ressalta que os corpos não se conformam, completamente, às normas pelas

quais sua materialização é imposta, sempre há instabilidades e possibilidades de

rematerialização:

“o que constitui a fixidez do corpo, seus contornos, seus movimentos, será plenamente material, mas a materialidade será repensada como o efeito do poder, como o efeito mais produtivo do poder. Não se pode, de forma alguma, conceber o gênero como um constructo cultural que é simplesmente imposto sobre a superfície da matéria – quer se entenda essa como o ‘corpo’, quer como um suposto sexo. Ao invés disso, uma vez que o próprio ‘sexo’ seja compreendido em sua normatividade, a materialidade do corpo não pode ser pensada separadamente da materialização daquela norma regulatória. O ‘sexo’ é, pois, não simplesmente aquilo que alguém tem ou uma descrição estática daquilo que alguém é: ele é uma das normas pelas quais o ‘alguém’ simplesmente se torna viável, é aquilo que qualifica um corpo para a vida no interior do domínio da inteligibilidade cultural.” (2000, p.155)

4 Conceito fundamental no discurso psicanalítico, pois é através do reconhecimento da diferença sexual, e pela ação do recalque que o sujeito se subjetiva enquanto masculino ou feminino.

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FABIO, 53 anos Você se define hoje em dia como homossexual?

É, com certeza. Por quê?

Eu estou feliz com a relação que estou tendo. É uma coisa que me deixou feliz e intenso. Há um grande debate sobre se é opção, se é a natureza, se é a cultura etc. etc. Você

alguma vez pensou nisso? O que será isso em mim? De onde vem? Eu acho que não é opção. A opção foi agora.

De assumir? Sim, de assumir. Isso foi opção, anteriormente não. Eu morei dois anos e meio na Espanha. Logo que eu voltei, em 1996, eu tinha 44 anos. Eu me acidentei e fiquei em coma. A minha vida tem esse marco. As coisas mudaram muito E isso marca muito.

Marca em que sentido? Acho que o homem tenta justificar a supremacia da raça em outra vida. E eu tive a nítida sensação de que ali terminaria tudo. A sensação é de que temos de viver bem aqui. Na verdade, essa é a essência daquela experiência. Esta foi uma das coisas. Amigos também... Eu passei a ser muito seletivo. Em valores gerais, em termos do dia-a-dia inclusive. Você passa a ter outra percepção das coisas.

Este informante valoriza um aspecto da experiência de vida associado ao

reconhecimento das possibilidades de mudança. Desgrudou-se de alguma coisa. Cortou,

selecionou, uma forma de afirmar que podia “escolher”.

FINALIZANDO

Os informantes se reconhecem em uma natureza sexual. Entendo que é uma

estratégia própria às normas de regulação dos sexos, dos desejos, que não podem ser

tomados como experiência, e sim, como essência. E esta é uma estratégia de dominação, de

regulação identitária, até mesmo porque não ter o reconhecimento social como

heterossexual efetivo é perder uma identidade social possível em troca de uma que é

radicalmente menos sancionada.

Entretanto, acredito que tais experiências podem ser consideradas focos de

disseminação de “desordens do gênero”, práticas perturbadoras e até mesmo subversivas,

como propõe Butler (2003), à matriz de inteligibilidade heteronormativa.

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VELHO, G. Subjetividade e sociedade: uma experiência de geração. 3ed. Rio de Janeiro:

Jorge Zahar Ed., 2002.

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AUTOR/A: Elizabeth Zambrano INSTITUIÇÃO: UFRGS E-MAIL: [email protected] TÍTULO: “Quem Precisa De Filhos?” Afirmação De Gênero Nas Construções De Parentalidade De Homens Gays, Travestis E Transexuais RESUMO: O trabalho se propõe a refletir sobre como homens homossexuais, travestis e transexuais, que tem ou pretendem ter filhos, acionam representações de parentesco, e como essas representações se constituem enquanto elementos legitimadores da sua identidade de gênero. Busca-se analisar como pessoas até então consideradas não capazes de constituir “família” passam a construir novas configurações familiares, considerando as identidades e as posições relacionais dessas pessoas em seus grupos familiares (re)construídos. Pensa-se que o uso do termo “familia homoparental” exige a explicitação de uma “identidade” dos pais (de sexo, de gênero e de orientação). Considera-se as inúmeras possibilidades dessas combinações e as dificuldades de classificação daí decorrentes. Levanta-se a hipótese de que a existência dos filhos é uma das possibilidades encontradas para reafirmação da identidade masculina nos homossexuais e feminina nas travestis e transexuais. Os dados sobre os quais se embasa esse trabalho fazem parte da pesquisa do projeto “Direito à Homoparentalidade”, em andamento desde setembro de 2004, com apoio do PROSARE e Fundação McArthur.

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VI REUNIÓN DE ANTROPOLOGIA DEL MERCOSUR.

Grupo de Trabalho 9 : Família, Gênero e Sexualidades: perspectivas

contemporâneas em debate.

Coordenadoras: Flávia de Mattos Motta - UFSC e

Anna Paula Vencato - UFRJ

Ponencia: Familias y Democratización

Graciela Di Marco. Coordinadora Programa de Democratización de las relaciones Sociales. Escuela de Posgrado Universidad Nacional de San Martín. Argentina [email protected] [email protected]

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Familias y Democratización.1

¿Cómo se convierten, pues, la libertad y la democracia no sólo en forma de gobierno, sino también en forma de vida?

Ulrich Beck, Hijos de la libertad

I. Introducción.

La incorporación en los últimos treinta años de las mujeres en el mercado laboral,

acompañada por una creciente conciencia de su situación desigual, sumada a su papel

activo y protagónico en las luchas sociales, permite corroborar una mayor afirmación de

sus derechos, lo que se confirma en cambios visibles y en los diferentes instrumentos de

regulación jurídica que se han generado en el nivel internacional, regional y nacional.2

Sin embargo, la desigualdad, la discriminación, el maltrato y la violencia no han

desaparecido.

1 Esta ponencia resume los puntos centrales desarrollados en el libro: Di Marco, Graciela (2005) Democratización de las Familias. UNICEF. * Esta ponencia y las presentadas en los grupos de trabajo once y veintinueve se articulan , ya que forman parte del acervo de reflexiones que estamos realizando en el Programa de Democratización de las Relaciones Sociales de la UNSAM 2 En el nivel internacional: Conferencias Mundiales sobre la Mujer, impulsadas por las Naciones Unidas, la Convención sobre la Eliminación de todas las formas de Discriminación contra la Mujer (Naciones Unidas, 1979), la Convención Interamericana para prevenir, sancionar y erradicar la violencia contra la mujer (Belem do Pará, OEA, 1994). En el nivel nacional: La reforma de la Constitución de la Nación de 1994, en el capítulo cuarto, artículo 75, inciso 22, establece que los tratados de derechos humanos tienen jerarquía constitucional: la Convención sobre la Eliminación de todas las formas de Discriminación contra la Mujer (aprobada por la Asamblea General de las Naciones Unidas. Ratificada por Ley Nº 23.179 del año 1985); la Convención sobre los Derechos del Niño (Naciones Unidas, 1990); el Pacto de San José de Costa Rica. Las leyes sancionadas en estos veinte años de democracia son las siguientes: ley que otorga el derecho a pensión del/de la concubino/a; divorcio vincular (1987); reforma el Régimen de Patria Potestad y Filiación del Código Civil; Cuota mínima de participación de mujeres; aprobación de la Convención sobre la Eliminación de todas las formas de Discriminación contra la Mujer; decreto sobre acoso sexual en la Administración Pública Nacional; Protección contra la violencia familiar; aprobación de la Convención Interamericana para prevenir, sancionar y erradicar la violencia contra la Mujer, Convención de Belem do Pará; institución del Día Nacional de los Derechos Políticos de las Mujeres; Decreto Igualdad de Trato entre Agentes de la Administración Pública Nacional; Decreto Plan para la Igualdad de Oportunidades entre Varones y Mujeres en el Mundo Laboral; Reforma laboral: introducción de la figura de despido discriminatorio por razón de raza, sexo o religión; delitos contra la integridad sexual, modificación del Código Penal; Régimen Especial de Seguridad Social para Empleados/as del Servicio Doméstico; Reforma laboral: Estímulo al Empleo Estable: incorporación de dos incentivos para el empleo de mujeres; creación de un Sistema de Inasistencias Justificadas por razones de Gravidez; Participación Femenina en las Unidades de Negociación Colectiva de las Condiciones Laborales (Cupo Sindical Femenino).

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Por otra parte, las tendencias actuales muestran las profundas modificaciones

que se están produciendo en las familias: retraso en la formación de parejas y vida en

común sin matrimonio; divorcios, separaciones, nuevas uniones, familias ensambladas,

familias con un solo progenitor, varios grupos familiares emparentados que deciden

compartir una vivienda por deterioro de las condiciones económicas. Las formas

familiares emergentes muestran diferentes relaciones de afecto, de sostén y de

reproducción. Estas nuevas formas muestran cómo los lazos familiares se crean y recrean

continuamente.

En La Argentina hemos desarrollado un programa de democratización de las

familias como construcción de aportes para el impulso de nuevas políticas públicas

dirigidas a los miembros de las familias considerados como sujetos de derecho,

mediante la redefinición de las relaciones de autoridad y poder entre mujeres y varones

y el reconocimiento y puesta en práctica de los derechos de la infancia, trabajando desde

dos ejes fundamentales de intervención y análisis simultáneos: la equidad de género y

los derechos de niñas, niños y adolescentes, en un marco que promueve la articulación

entre la ética del cuidado y la ética de los derechos.

El punto de partida de esta propuesta es la necesidad de elaborar estrategias

para evitar o mitigar la incidencia y reproducción del autoritarismo y la violencia, tanto

dentro de la familia como en las relaciones sociales en general, promoviendo una

convivencia basada en el respeto de los derechos y en el cumplimiento de

responsabilidades, en un marco de cuidado y de interdependencia mutuos.

Para ello, ponemos el acento en la dimensión política de las relaciones de

género y en la necesidad de una reflexión crítica sobre los valores y las costumbres

culturalmente arraigados y sostenidos desde el sistema patriarcal, así como sobre las

relaciones de autoridad masculina, de subordinación femenina y de ejercicio de poder

de los adultos y adultas sobre niños, niñas y adolescentes, con el fin de estimular el

respeto y la autonomía en su educación, además de su protección y cuidado. Con este

propósito buscamos que el ejercicio de la autoridad de adultos y adultas se desarrolle en

un contexto de seguridad y confianza para aquellos.

La propuesta de democratización de las relaciones familiares pretende la

construcción de políticas públicas integradas que articulen los esfuerzos de varias áreas:

desarrollo social, salud, educación, justicia y derechos humanos, a nivel provincial y

municipal, enfatizando la planificación estratégica de las acciones que se emprendan.

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El enfoque está basado en la perspectiva de derechos humanos, por lo cual

consideramos que la intervención del estado para recoger experiencias de

transformaciones en marcha, y multiplicarlas en otras poblaciones, está vinculada con

aquellos, ya que el extremo del autoritarismo en las familias se traduce en violencia

contra las mujeres y niños/as, que son consideradas violaciones de los derechos

humanos.

La familia ha sido la institución patriarcal clave como generadora de relaciones

autoritarias y desiguales. Por tal motivo las políticas públicas que se replantean a cada

uno de sus miembros como sujetos de derechos se proponen promover la igualdad de

oportunidades entre hombres y mujeres y el fortalecimiento de los vínculos basados en

la autonomía de sus miembros.

Por estas razones, el programa que desarrollamos puede contribuir a las

transformaciones en varios niveles:

- En las relaciones familiares, para el desarrollo de relaciones más

democráticas, que favorezcan la igualdad de oportunidades para mujeres y

para varones y la elaboración pacífica de los conflictos, y que contribuyan

al descenso de la violencia ejercida hacia las mujeres, niños y niñas.

- En el estado, para la construcción e implementación de políticas integrales

desde una perspectiva de democratización, basadas en la ética de los

derechos y la del cuidado.

- En el de las diversas acciones que realizan los profesionales en las áreas

sociales del estado, para la profundización de las prácticas que permiten la

convergencia de los derechos, en especial, de las mujeres y niños y niñas.

II. Marco conceptual

La base teórica está constituida por el conjunto de las investigaciones que

venimos realizando desde 1989 en Argentina.3 Como resultado de las mismas,

hemos hallado dos prácticas que tienen un potencial transformador del autoritarismo

en las familias: a) la acción colectiva de las mujeres, en el caso de que se trate de un

espacio genuino de desarrollo de capacidades sociales y personales -y no cualquier

tipo de participación- y b) las prácticas de negociaciones democratizadoras al

interior del grupo familiar, que permiten instalar, mediante un discurso de derechos,

3 Di Marco, 1992, Schmukler y Di Marco,1997, Di Marco y Colombo,2001, Di Marco, 2002

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nuevas formas de ejercer la autoridad familiar entre varones y mujeres y enfrentar

los conflictos, teniendo en cuenta el desarrollo hacia la autonomía de los niños,

niñas y jóvenes.

Estas prácticas pueden ser impulsadas – tanto a nivel de los decisores políticos,

de los agentes de las áreas sociales, como de la misma población- a través de

propuestas elaboradas desde un enfoque que considere las relaciones entre hombres

y mujeres como relaciones de poder asimétricas.

Este programa se basa en la perspectiva de ampliación de la ciudadanía y

propone promover activa y simultáneamente los derechos de las mujeres y de niños,

niñas y jóvenes en los grupos familiares. Nos referimos a la ciudadanía como el

derecho a tener derechos, asumiendo una conceptualización que no considera a la

ciudadanía como una propiedad de las personas, sino como una construcción

histórica y social, que depende de la sinergia entre la participación y la conciencia

social.

II. I La construcción de la perspectiva de democratización de las relaciones

familiares.

En este apartado mencionaremos algunas notas distintivas de los procesos de

democratización social. Este concepto especifica los procesos de cambio del

autoritarismo y la desigualdad de poder y de los recursos existentes en las

instituciones públicas y privadas, y los mecanismos participativos que facilitan la

incorporación a la ciudadanía de actores desplazados tanto en virtud de su género,

como por su edad, religión, etnia, etc. Nos referimos a un progresivo aunque

contradictorio desarrollo de una cultura democrática a nivel macro y microsocial,

con valores tales como la participación, el pluralismo, la desnaturalización de la

dominación, la redefinición de la autoridad y el poder, la concepción de la vida

cotidiana como lugar, no sólo de las pequeñas cosas, sino como fermento de la

historia (Hopenhayn, 1993, Heller, 1977).

Los procesos democratizadores se vinculan a la revisión de los supuestos que

sustentan las bases de la autoridad, la explicitación de la desigualdad para los

actores marginados o subordinados, la distribución de los saberes y recursos de un

colectivo social. La toma de conciencia de los actores institucionales, acerca de los

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mecanismos que permiten la desigualdad social, es parte incuestionable de la

democratización, ya que fomenta la ampliación de la ciudadanía.

El discurso de derechos hace visible y legible al poder, lo desmitifica y

permiten revisar y deconstruir los viejos contratos y acuerdos autoritarios de la

sociedad, en los niveles macro y micro-políticos. Estos discursos incorporan el

reconocimiento de las diferencias, la búsqueda de la dignidad, la desmitificación de

las relaciones de poder establecidas, la construcción de interdependencias entre

actores y organizaciones, permitiendo la democratización de la democracia

(Giddens, 1992).

La democratización no se refiere únicamente a la dimensión política, sino que

avanza a hacia las diferentes esferas en las que se construye -o no- el discurso

democrático, entre ellas, las relaciones familiares. Las familias pueden ser los

ámbitos del amor, la intimidad, la seguridad, y simultáneamente, los de la opresión y

la desigualdad, tanto en las relaciones de género, como en las de las generaciones,

estabilizando conflictos surgidos de la naturalización de las relaciones de

subordinación (como la violencia y abuso hacia mujeres y niños y niñas o personas

mayores).

Desde el enfoque de democratización se pone el acento en que las mujeres

puedan posicionarse desde un lugar de autoridad y poder en sus relaciones, y que

este proceso forme parte de una ampliación del reconocimiento de sus derechos. En

consecuencia, más que referirnos a procesos de empoderamiento, preferimos

considerar los procesos de reconocimiento del poder de las mujeres en diversos

ámbitos, esto es, reconocimiento de la legitimidad de ese poder (autoridad), siendo

un eje central el proceso de reconocimiento de su autoridad en la familia.

La perspectiva de democratización de las relaciones familiares es un proceso

abierto, que se nutre de diversos aportes teóricos, articulándolos en un marco

conceptual que permita fundamentar políticas y acciones vinculadas con las

familias, tal como lo hemos expresado en el desarrollo del libro.

Para finalizar, proponemos la posibilidad de repensar la autoridad (y el

poder), no dentro de la lógica del patriarcado, donde hay un solo vértice en la

pirámide, sino con otra lógica por construir, donde la autoridad pueda ejercerse

situacionalmente y no dependa de una jerarquía que otorga privilegios basados en

criterios tradicionales.

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Además, es necesario incorporar en las políticas sociales nuevas

dimensiones: las de la mutualidad o interdependencia, la asistencia, el cuidado y las

emociones (Tronto, 1994; Shakespeare, 2000; Shanley, 2001). Se trata de la

elaboración de discursos que articulan la justicia y el cuidado -de uno mismo y de

otros y otras- y los derechos de los que reciben asistencia a ser parte activa en la

definición de sus necesidades (especialmente en el caso de ancianos y

discapacitados), sin que los que los cuidan los subordinen. El aspecto del cuidado

vinculado a la interdependencia existe como encuentro de sujetos autónomos: todos

y todas necesitamos cuidar, y ser cuidados, para que la vida social tenga sentido.

Esta tarea, que ha estado centralmente a cargo de las mujeres, es así reconsiderada

para ser la responsabilidad tanto de las mujeres como de los hombres. Vincular la

ética de los derechos con la ética del cuidado permite avanzar en una concepción de

la política social que tiene presentes a los sujetos en su integralidad.

La articulación interdependiente de la redistribución, el reconocimiento, el

cuidado, el respeto a la integridad corporal, está íntimamente ligada a la

democratización de las relaciones sociales, especialmente las de los grupos

familiares.

Por estas razones, el enfoque de democratización familiar:

- pone el acento en las relaciones de poder y autoridad;

- considera que los desafíos actuales se centran en la ampliación de las

ciudadanías, con una concepción de simultaneidad de derechos, que no

pueden ser abordados por etapas. Los ejes centrales son la igualdad de

género y los derechos de la infancia. Los derechos de los niños y niñas

son específicamente tomados en cuenta, especialmente en las relaciones

en los hogares, pero también en las escuelas y en otras instituciones;

- se ubica en la interacción entre políticas de distribución y

reconocimiento para acercarse al ideal emancipatorio de la justicia social;

- introduce la concepción critica de los enfoques de las masculinidades

para repensar la equidad de género;

- intenta dar mayor visibilidad teórica y práctica a las dimensiones

vinculadas a las emociones, el cuidado, la interdependencia y la

mutualidad;

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- enfatiza el ejercicio de maternidades no subordinadas a lo privado

doméstico, sino maternidades sociales, que convierten las necesidades

vinculadas a sus hijos e hijas en acciones políticas.

II.II Ciudadanía, derechos, justicia social.

Consideramos de central importancia el desarrollo de las condiciones necesarias

para que las personas desarrollen capacidades para elegir la vida que quieren vivir,

reconociendo la diversidad y heterogeneidad de las necesidades, vinculadas con las

diferencias personales - sexo, edad, incapacidad, enfermedad- con el medio ambiente,

con las relaciones sociales en un contexto determinado, con la distribución del poder

dentro de la familias. La capacidad de participar en las decisiones que se tomen en el

conjunto de la sociedad, es una dimensión central para evaluar la calidad de vida de ese

conjunto social (Sen, 2000: 94)

El derecho a un nivel de vida adecuado se vincula con la ciudadanía social, más

allá de la posición económica del individuo, así como de su desempeño en el trabajo o

cualquier otro ámbito de mercado. Se trata de una concepción de la solidaridad social

amplia, colectiva y universalista, que alcanza a la población entera, por contraposición

al enfoque focalizador de la asistencia social, estigmatizador para los receptores. Nos

referimos con esto a las políticas que focalizan en virtud de la asignación de recursos, y

no a aquellas que propician acciones afirmativas (discriminación positiva) para

colectivos en desventaja, con el fin de lograr una posterior igualación.

Consideramos conjuntamente los dos aspectos centrales de la justicia: la

redistribución y el reconocimiento (Fraser, 1997). La autora citada aboga por un

paradigma que pueda contener a ambos. Los reclamos redistributivos (productos de la

injusticia socioeconómica), se vinculan a un reparto más justo de bienes y recursos, y

los de reconocimiento de las diferencias (productos de la injusticia cultural), a una

aplicación más amplia de los derechos de las personas, que no esté ligada

exclusivamente a las normas y valores culturales considerados “normales” o

naturalizados. Fraser puntualiza como núcleo normativo de su concepción la idea de

paridad en la participación: la justicia requiere que todos los miembros de la sociedad

sean considerados como pares, para esto es necesaria la distribución de bienes

materiales que asegure la independencia y la “voz” de los participantes y que las pautas

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culturales de interpretación y valor aseguren la igualdad de oportunidades y el respeto

por todos/ as. Se enlazan, entonces. la justicia social y económica, la identidad y el

reconocimiento, la redistribución y la participación. (García y Lukes, 1999).

Raczynski (1998) presenta la siguiente categorización de las políticas sociales:

- políticas de inversión en servicios básicos de educación y salud,

- políticas y subsidios para vivienda, equipamiento comunitario e

infraestructura sanitaria;

- políticas de apoyo a la organización social y de capacitación para proveer

de información para tener “voz” y participar en la toma de decisiones;

- políticas laborales y de remuneraciones, ,

- políticas asistenciales, de empleo de emergencia o de transferencias

directas de dinero y/o bienes.

Los programas que apuntan al reconocimiento, se concretan en el tercer tipo de

políticas mencionadas en el párrafo anterior, aquéllas que contribuyen a la igualdad de

oportunidades, favoreciendo las organizaciones colectivas, que intentan contribuir a la

democratización de las relaciones sociales, a través de promover la participación, la

capacidad para tener “voz” en los asuntos que nos competen. La propuesta de

Democratización de las relaciones sociales como política social puede ser considerada

cómo una política de reconocimiento, pues pone el acento en la afirmación de los

derechos de las mujeres y de niños, niñas y adolescentes y la puesta en práctica de

estrategias para hacerlos cumplir efectivamente y en forma simultánea..

La redefinición de la autoridad femenina, replanteando las relaciones de poder y

subordinación entre los géneros y la transformación de los contratos autoritarios que

naturalizan la subordinación femenina y que no contemplan en toda su magnitud los

derechos de la infancia, son dimensiones centrales del mismo. La interdependencia

entre participación y conciencia social es una base fundamental para el desarrollo de

procesos democratizadores, pues es en la acción colectiva donde se pueden iniciar y

desarrollar estas transformaciones.

En el enfoque se pone el énfasis en repensar el poder y la autoridad, tomando

como eje las dificultades de reconocimiento de la autoridad de las mujeres, esto es, de

la legitimidad de sus decisiones, basadas en sus deseos y necesidades. El enfoque de

poder, autoridad y comunidad que desarrollamos nos ha llevado a apartarnos de la

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noción actual de “empoderamiento”, por esto hacemos hincapié en la noción de

democratización4.

II.III Categorías teóricas clave.

Esta perspectiva incluye la concepción integral de los derechos de niños, niñas y

adolescentes y de otros miembros de la familia, como las personas mayores,

discapacitados y discapacitadas5, además de las nuevas concepciones que se van

construyendo acerca de las masculinidades, dimensiones necesarias para promover una

transformación democrática de las relaciones de autoridad en las familias. La

incorporación de las reflexiones acerca de las construcciones de la masculinidad que

proponemos se sustenta en la necesidad de promover vínculos entre hombres y mujeres,

en los que se respeten las diferencias de cada uno o cada una, para que estas diferencias

no se conviertan en motivos que justifiquen la desigualdad y la subordinación y, por lo

tanto, no interfieran en la construcción de la ciudadanía plena para hombres y mujeres.

El papel de las familias en la socialización de las generaciones jóvenes puede ser

considerado como el de simple reproductor de los patrones de jerarquía por sexo y edad,

de la desigualdad y el autoritarismo, o como el lugar donde se configuran y recrean

sistemas de creencias y prácticas acerca de varias dimensiones centrales de la vida

cotidiana, entre ellos, los relacionados con los modelos (convencionales o no) de género

y autoridad. En las interacciones familiares, es posible que se expresen acuerdos,

desacuerdos o prácticas contradictorias en relación con esos patrones culturales. Las

familias, entonces, pueden ser comprendidas como los sitios de la reproducción de

valores y normas culturalmente tan arraigados que se los considera “naturales” o bien

como aquellos sitios donde se cuestionan y se cambian las reglas, es decir, donde se

producen procesos de transformación.

La posibilidad de repensar los modos autoritarios de relación familiar, que someten

a niños, niñas y mujeres a situaciones de violencia (verbal, emocional, física) y facilitan

el desarrollo de más violencia en una escalada en la que todos y todas se involucran, es

una forma de comenzar a plantear el desarrollo de otras relaciones autoritarias. La

4 ver libros citados. 5 Desde este enfoque de derechos se contemplan todas las diferencias que generan desigualdades, aunque desde el programa que desarrollamos nos centremos estratégicamente en los derechos de las mujeres y de la infancia y adolescencia.

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democratización de las relaciones de familia puede retroalimentar la democratización de

las instituciones próximas a la vida cotidiana.

Por estas razones, se formula una estrategia conceptual que apunta a las causas

profundas del autoritarismo y la violencia, y no meramente a sus efectos más visibles e

inmediatos. Las hipótesis desde las que se parte consideran que la democratización

social comienza por su práctica en los ámbitos donde transcurre la vida de la gente: la

familia, la vecindad, la escuela, el hospital, el centro de salud, la asociación

comunitaria.

Para que las formas de convivencia más democráticas se transformen en estilos de

vida se requiere un cambio cultural en los modelos de género, de autoridad, y en la

concepción de los derechos de la infancia, junto con una concepción del cuidado mutuo

entre todos los miembros del grupo familiar.

Las elaboraciones teóricas y las discusiones conceptuales que planteamos

pretenden dar cuenta de una situación histórica y culturalmente creada de desigualdad

entre hombres y mujeres (desigualdad que asume diferentes formas: descalificación,

desvalorización, sometimiento afectivo y/o sexual, disciplinamiento, violencia física),

que se produce y luego reproduce en todas las instituciones sociales. Consideramos que

la familia es un núcleo indispensable de socialización donde se tejen las relaciones

básicas para el desarrollo de la vida social y al mismo tiempo el lugar donde se gestan y

se desarrollan con más claridad las relaciones de desigualdad. Nuestro objetivo es

repensar la organización desigual de las relaciones familiares de manera tal que

hombres y mujeres puedan tomar conciencia de sus posibilidades de transformarlas,

cada vez que sea necesario, para favorecer el ejercicio de una autoridad democrática

Somos conscientes de la multiplicidad y de la diversidad de comportamientos y

conductas que asumen las personas en sus relaciones cotidianas, pero es cierto que esta

multiplicidad permanece enmarcada en un sistema de relaciones de género que

privilegia a un género (el masculino) sobre otro (el femenino). Por esta razón,

consideramos indispensable trabajar desde el “colectivo” mujeres, ya que su impulso ha

permitido transformar muchos aspectos de la realidad en los últimos años.

Para aproximarnos a la democratización de las relaciones en los grupos

familiares, la transformación de las relaciones sociales entre los géneros requiere de un

enfoque complejo que trabaje, según metodologías apropiadas, tanto la construcción de

las subjetividades femeninas como la de las masculinas. Por eso, para abordar la

problemática de la democratización de las relaciones familiares y para desarrollar

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herramientas adecuadas que la lleven adelante, consideramos que es conveniente

reflexionar sobre algunos conceptos teóricos clave:

Las familias: como institución social, la conformación de los modelos

hegemónicos de relaciones familiares y las modificaciones del sistema patriarcal en la

sociedad occidental. Esta presentación no está indicando que los grupos familiares de

los diversos países occidentales se ajustaron al modelo patriarcal en forma homogénea,

sino que estos modelos son aquellos sobre los cuales se realiza la interpretación y

valoración de la normalidad o no de las familias concretas. Asimismo, se analizan la

familia y la maternidad en la Argentina, considerando las relaciones existentes entre

feminidad y maternidad, destacando la centralidad de la experiencia de la maternidad en

las vidas de muchas mujeres, así como las implicaciones que ésta tiene en la

construcción de ciudadanía, en la medida que la maternidad es resignificada por las

mujeres.

Los conceptos acerca de las relaciones de género: La construcción de las

identidades de género como parte de un aprendizaje familiar y social de pautas y valores

asociados a cada género, en el cual los sujetos no son entes pasivos que absorben estas

normas sin contradicciones. Se analizan los sistemas de poder y autoridad dentro de la

familia y las jerarquías implícitas en las relaciones de poder entre sus miembros.

La construcción social de la niñez y de la adolescencia. A partir de una revisión

histórica y crítica de las concepciones sobre estas categorías se llega hasta la aprobación

de la Convención sobre los Derechos del Niño, donde se pone en evidencia la aparición

de un nuevo paradigma, desde el cual se considera a niños,niñas y adolescentes como

sujetos únicos de derechos y se deja de considerarlos como objetos pasivos de

intervención por parte de las familias, la escuela y el Estado para reconocerlos como

portadores de derechos especiales según las etapas de desarrollo que estén transitando.

Se tienen en cuenta la influencia de los modelos que la sociedad ofrece a la infancia y la

adolescencia, en el pasaje por ciertas instituciones, rituales, tradiciones y espacios de

socialización que perpetúan desigualdades y comportamientos autoritarios.

Masculinidades: Se aborda la relación entre la construcción de masculinidades y

las relaciones que los hombres establecen dentro de sus familias. Desde la definición y

desde las características centrales de las masculinidades, se analiza la ubicación de

privilegio de los hombres dentro de las relaciones de género y la manera en que ésta se

inserta en la familia, identificando rupturas y continuidades del modelo patriarcal. Allí

se reconocen las identidades masculinas –y las femeninas– como construcciones

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culturales que se reproducen socialmente, a través de distintas instituciones: familia,

escuela, Estado, iglesias, etc., que vehiculizan modos de pensar y actuar, a la vez que

establecen lugares de jerarquía de la masculinidad dentro de las relaciones de género

mediante mandatos que subyacen en los comportamientos, actitudes, afectos y

relaciones vinculares.

Los conflictos: Se analizan las situaciones conflictivas que suceden en el ámbito

familiar: las vinculadas con las relaciones de pareja y aquéllas relacionadas con hijos e

hijas. Además se señalan las formas violentas de resolver conflictos y se considera la

relación entre conflicto, poder y autoridad. Se plantea la democratización de las

relaciones familiares, se proponen procesos de negociación que cuestionen las

relaciones de poder y autoridad y se diferencian las negociaciones tradicionales de las

democratizadoras, haciendo especial referencia al concepto de “discurso de derechos”.

Las políticas sociales y las bases teóricas e ideológicas de aquellos discursos

sobre los que se asientan los programas y las prácticas de intervención. Se analizan los

discursos de tres perspectivas relevantes en el análisis de género, exactamente aquellas

que tienen efectos a la hora de ser utilizadas para la fundamentación de políticas y

programas. Por último, se analiza el concepto de empoderamiento, muy usado en estos

discursos, y se propone el concepto de democratización para presentar una concepción

de la política social que concibe a los sujetos en su integridad, vinculando en forma

interdependiente la redistribución, el reconocimiento, el cuidado y el respeto por la

integridad corporal.

III. Algunas reflexiones.

Durante diez años la mayor parte de los programas que se realizaron desde el

estado estuvieron referidos al tema de la violencia contra las mujeres, propiciados por

un clima favorable a su visibilización como agravio a los derechos humanos de las

mujeres y a la implementación de leyes y políticas referidas a este problema. Estos años

fueron fructíferos en capacitaciones específicas y en el armado de dispositivos

institucionales para hacer frente a las consecuencias de la violencia en las mujeres y

niños/as.

En cambio, la propuesta desplegada estimula el reconocimiento de los factores

que facilitan socialmente el maltrato y la violencia. Esta perspectiva necesita tiempo

para ser desplegada y asumida por los actores institucionales, para que, sin dejar de

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atender los estragos de la violencia, pudieran despegar su mirada de las víctimas, para

repensar los contratos autoritarios que naturalizan la desigualdad en la de que ésta

reposa, mas allá de los efectos de espejismo que ciertas condiciones de las mujeres

actuales pudieran provocar, en el sentido de considerar que las relaciones de género se

han tornado igualitarias6. Estas razones nos hicieron pensar que debíamos generar un

programa cuyo propósito actual es el de generar una masa critica de diversos actores

sociales (agentes institucionales, miembros de movimientos sociales y de

organizaciones no gubernamentales) formados/as en este enfoque, para que de su

práctica se desprendan proyectos que puedan contribuir a sostener la perspectiva

propuesta.

6 Para este punto ver: Di Marco (2005) Democratización de las Familias. UNICEF y Di Marco, Graciela (2005) Democratización de las Familias. Estrategias y alternativas para la implementación de programas Sociales. UNSAM-Baudino.

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AUTOR/A: Ivonne Dos Santos INSTITUIÇÃO: FHCE - UDELAR E-MAIL: [email protected] TÍTULO: Paternidad Y Familia: Jóvenes De Sectores Pobres Urbanos RESUMO: Las transformaciones producidas en el plano de la sexualidad, de los roles de género y de las estructuras familiares, inciden sin duda en la conformación de las identidades y de las relaciones familiares. Lo que nos lleva a preguntarnos cómo los cambios sociales repercuten en los sujetos y cómo sus prácticas transforman su propio contexto. El considerar el efecto de las prácticas de los sujetos en sus familias nos permitirá entender cómo se retro-alimenta la configuración social estructurando los grupos familiares en un contexto de pobreza urbana. Me propongo analizar aquí las representaciones de jóvenes varones acerca de la paternidad y cómo sus prácticas reproductivas inciden en las dinámicas y estructuras familiares, buscando problematizar los conceptos de padre-paternidad-genitor. Por otro lado visualizar cómo los arreglos familiares funcionan como modelos a seguir por parte de los jóvenes y cómo las proyecciones discursivas entorno a “cómo son los hombres” a “cómo son los padres” construyen un “deber ser” y un “ser” (representaciones y prácticas) con relación a las prácticas reproductivas y vinculares de éstos jóvenes.

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“Anticoncepción y maternidad en mujeres migrantes de sectores populares residentes en hoteles-pensión de la ciudad de Buenos Aires” Juliana Marcús ♦ [email protected] Instituto Gino Germani / Universidad de Buenos Aires / CONICET Introducción La ponencia centra su mirada en algunos aspectos de mi proyecto de tesis doctoral1 jusobre la socialización urbana y sus efectos en los consumos, la afectividad y la sexualidad de jóvenes migrantes, provenientes en su mayoría de sectores populares de las provincias del Noroeste y del Noreste argentino, que habitan en hoteles-pensión de la ciudad de Buenos Aires. En esta oportunidad, indagamos sobre el sentido que las mujeres de sectores populares urbanos le otorgan a la maternidad y sobre cómo es percibido y valorado socialmente el “ser madre” al interior del sector estudiado. Se trata de mujeres migrantes, provenientes de sectores populares, que han sido socializadas en la gran ciudad durante los últimos quince años, en contacto e interacción con otros códigos culturales diferentes a los propios y que por lo tanto han asimilado nuevos comportamientos relativos a al “ser mujer”, la educación de sus hijos, la anticoncepción (conocimiento y acceso a los MAC) y las relaciones de género. Sin embargo, luego de varios encuentros con ‘nuestras nativas’, percibimos ciertas tensiones y contradicciones entre la herencia cultural que portan estos sujetos y los nuevos saberes y creencias que van asimilando de a poco. Como veremos, por un lado utilizan métodos anticonceptivos para regular su maternidad, práctica asimilada a través del contacto con “otros culturales”, con el objetivo de realizarse personalmente en otras esferas de la vida social, pero por otro lado muchas de ellas la perciben como algo “natural”, inherente al ser mujer, representación que reproduce y reactualiza su habitus de clase. Nuestra hipótesis se orienta a afirmar que existen diversos factores que están incidiendo en las prácticas de estas mujeres, asociados a las representaciones que poseen acerca de los papeles sociales que deben desempeñar, los modelos de maternidad y familia internalizados, los mandatos culturales y prohibiciones acerca de la sexualidad, las significaciones relativas a la pareja y al cuerpo. Aspectos metodológicos Al interior de los sectores populares existe una gran heterogeneidad, con lo cual deberíamos hablar de “maternidades” y no de maternidad. En este sentido, nos referimos a una heterogeneidad que combina varios factores. Aquí nos ocuparemos sólo de algunos: la espacialidad / hábitat2 (pueden habitar en villas, asentamientos, propiedades intrusadas, hoteles, inquilinatos, etc.), el lugar de origen (provienen del conurbano, interior del país y países limítrofes) y la generación. Los resultados de investigaciones anteriores3 nos han revelado que en los sectores populares la maternidad cobra un sentido distinto en madres adolescentes y madres jóvenes y adultas (generación), pero también la incidencia del espacio juega un papel sumamente significativo. El modo en que se vivencia la maternidad no es el mismo si se trata de

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mujeres que residen en zonas marginales, en condiciones de pobreza, precariedad material, inestabilidad ocupacional; escasamente integrados en las instituciones de la sociedad civil y del Estado, donde tienen menos posibilidades de traspasar las fronteras del propio grupo, que si se trata de mujeres que viven en hoteles-pensión ubicados en la ciudad de Buenos Aires, integrados en cierta medida a la dinámica de las instituciones sociales (ámbito laboral, establecimientos educacionales, ONGs, cooperativas, hospitales, etc.) interactuando constantemente con otros códigos culturales, diferentes a los propios, es decir, aquellos imperantes en los sectores medios. Mediante la utilización de técnicas etnográficas (observaciones prolongadas, sucesivas visitas a los grupos familiares, entrevistas en profundidad e historias de vida), realizamos visitas reiteradas a los hoteles e indagamos sobre la vida cotidiana de cinco mujeres con el objetivo de acceder a sus historias, comprender el universo cultural4 en el que desarrollan sus vidas, y particularmente las significaciones que ellas otorgan al “ser mujer”. Utilizamos el método de la descripción densa (Geertz, 1987:37) donde nos ocupamos de interpretar, rescatar e inscribir lo dicho por los nativos, es decir, “establecer la significación que determinadas acciones sociales tienen para sus actores”. Para desentrañar las estructuras de significación atendimos a la conducta de los actores (representaciones, discursos y prácticas) puesto que en ella las formas culturales encuentran articulación. Aportes conceptuales sobre la(s) maternidad(es)

El amor materno no es un amor natural; representa más bien una matriz de imágenes, significados, prácticas y sentimientos que siempre son social y culturalmente producidos.

Nancy Scheper-Hughes

Lo importante al desnaturalizar el concepto de maternidad es abolir la supuesta existencia de una maternidad basada en el instinto, considerada como algo nato en la mujer. Lejos de poseer este carácter esencial, la maternidad es cultural, se construye contextualmente, a lo largo de la historia, a través de luchas por la imposición de un sentido legítimo del ser madre. Por ende, deben analizarse con sentido crítico las teorías que históricamente han postulado como generales o universales las normas de lo que debe ser una buena madre diseñada de acuerdo a los patrones de la familia occidental, moderna y de clase media. Estos planteos fueron los propuestos por Rousseau y Freud, que con ciento cincuenta años de distancia elaboraron una imagen de mujer coincidente: destacan su sentido de la abnegación y el sacrificio, que según ellos caracteriza a la mujer “normal”, donde la primera condición de una buena maternidad es la capacidad de adaptarse a las necesidades del hijo. En contraposición se esgrime el argumento de la mala madre como aquella “incapaz o indigna”. Al postular que la maternidad genera naturalmente amor y la dedicación al niño, las aberraciones eran percibidas como excepciones patológicas a la norma (Badinter, 1991:264). Siguiendo a Badinter, durante décadas la prensa francesa no escatimó la imagen estereotipada de la buena madre que se queda en casa, ni las desdichas que acechan al hijo abandonado por la madre que trabaja.

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En la Argentina, durante la década del ’40, las feministas intentaron reformular la maternidad. Fundamentalmente la consideraron una “función social” y para algunas, incluso, una “posición política”: el ejercicio de la maternidad era una forma de hacer política. Puesto que eran o podían ser madres, no podía privarse a las mujeres de derechos civiles, sociales y políticos (Nari, 2000). Las feministas eran plenamente conscientes del doble carácter de la maternidad: valiosa para la libertad, valiosa para la opresión. Con relación a las mujeres de la clase obrera se insistía en las condiciones materiales inadecuadas en que se veían forzadas a ser madres (trabajos insalubres, violencia familiar, abandono de sus esposos). Para las mujeres de sectores medios o incluso de la elite, la opresión parecía venir de la mano del afianzamiento del modelo maternal hegemónico impulsado por los médicos. En los años ‘60, once años después de la aparición de El segundo sexo de Simone de Beauvoir, nació en Estados Unidos un importante movimiento feminista cuyo objetivo prioritario fue cuestionar los fundamentos de la concepción freudiana de femineidad. Al destruir el mito freudiano de la mujer normal, pasiva y masoquista, volvió caduca la teoría de la madre naturalmente abnegada, hecha para el sacrificio. Kate Millet, perteneciente al feminismo radical norteamericano5, supo mostrar las fallas del razonamiento freudiano. Si la virilidad en sí misma es un fenómeno superior, tal como argumenta Freud, debiera poder probarse. Millet piensa que hay que buscar la respuesta en la sociedad patriarcal y en la situación que esa sociedad les reserva a las mujeres (citado en Badinter, op.cit.: 280). Para el psicoanálisis, la anatomía es destino. Según Freud, la pasividad, el masoquismo y el narcisismo propios de la personalidad femenina, representaban la norma de un correcto desarrollo femenino. Poco importaba que la educación y los factores de socialización hayan inducido a las mujeres a adoptar esas actitudes; “lo adquirido se declaraba innato” (Badinter, op.cit.: 281). Freud parece pensar como un determinista biológico, pues arguye que “la exigencia feminista de derechos iguales para ambos sexos no nos llevará muy lejos, pues la distinción morfológica se expresa obligatoriamente en diferencias de desarrollo psíquico” (Freud, 1924: 178; citado en Chodorow, 1984: 230). Para Freud hay un destino reservado a las diferencias anatómicas entre los sexos. El lenguaje de la “naturaleza” recubre suposiciones patriarcales sobre la pasividad (en las mujeres) y la actividad (en los hombres) (Chodorow, op.cit.). Las teorías contemporáneas del sentir maternal 6 o amor materno son el producto de un momento histórico que coincide con la transición demográfica y con el auge de la familia nuclear moderna burguesa. Esta concepción moderna del amor materno es el resultado de una estrategia reproductiva que promueve “tener pocos hijos e invertir a fondo (emocional y materialmente) en cada uno de los que nacen” (Scheper Hughes, 1997: 385). Desde esta noción de la maternidad no se consideran moralmente correctos ciertos “sentimientos maternales” diferentes, como aquellos de los sectores más pobres de la sociedad, donde se encuentran presentes otras prácticas maternales. Sin embargo, esta estrategia resulta ajena a los significados compartidos por la mayoría de las mujeres que vive en situaciones de extrema pobreza. En condiciones de alta mortalidad ocurre que las mujeres suelen tener muchos hijos, aunque sobreviven sólo algunos de ellos. Asimismo, desde hace cientos de años que en las familias campesinas la lógica de la reproducción se relaciona con la inversión en un gran número de miembros del grupo que garantice el mantenimiento de la mano de obra. También, aún hoy en la cultura

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reproductiva de los sectores populares tener muchos hijos es símbolo de prestigio, poder y abundancia del grupo familiar (Wang, 2004). La percepción de la maternidad al interior de los sectores populares El mandato cultural de “ser madre” recae sobre toda mujer sin importar clase social (Mancini, 2004), aunque su significado adquiere diferentes características según la clase social y las diferentes culturas. Si bien en nuestra cultura occidental, la maternidad es el principal organizador de la vida de la mujer, las pautas que cada sociedad transmite en cuanto al momento para ser madre o al número de hijos, varían de acuerdo a los diferentes estratos socioculturales. Por ejemplo, si bien tanto en los sectores populares como en los sectores medios y altos funciona el mandato cultural de la maternidad, los significados que se le atribuyen son diferentes: en los sectores populares la maternidad aparece como el principal o único proyecto de vida que una mujer puede tener, mientras que en los sectores medios y altos, la maternidad aparece como un proyecto casi insoslayable pero no exclusivo. La maternidad es percibida socialmente en los sectores populares como un valor positivo donde “(…) se potencia la valorización de la maternidad como principal proyecto de vida y símbolo de la identidad femenina”(Mancini y Wang, 2003: 236). En estos estratos la maternidad temprana es culturalmente más aceptada, así como la cantidad de hijos por mujer suele ser bastante más elevada que en los sectores medios. En los sectores populares se liga directamente a la mujer con el ser madre, puesto que el ser madre otorga identidad como mujer. La figura de la madre acarrea prestigio y valoración social a las mujeres. Se sienten un individuo completo en tanto madres, pues su hijo es su alegría y su justificación. A través de él termina de realizarse socialmente. Una frase que lo resume es soy mujer porque soy madre. Muchas veces los embarazos no son planificados ni buscados por estas mujeres y junto al sentimiento de gratificación que supone ser madre se superpone otro: el de una aceptación a veces resignada como un destino inherente al ser mujer: soy madre porque soy mujer. Es el feminismo quien viene a cuestionar el lugar de la mujer-madre como biológicamente determinado. En cuanto al valor atribuido a los hijos y el significado de la maternidad en sus vidas, los hijos tienen un valor simbólico como afirmación de su identidad, constituyen una fuente de legitimidad social, autoridad moral y gratificación emocional (González Montes, 1994; citado en Ariza y De Oliveira, 2003: 45). La maternidad también es vista como una fuente de poder. Las mujeres de sectores populares urbanos verbalizan que, además de dar sentido a sus vidas, la maternidad las reivindica frente a la comunidad al tiempo que les permite ejercer un control sobre los hijos. Sentir a sus hijos como propios, es decir, como parte de sus pertenencias, reproduce y afirma aún más el lugar de madre como dadora de identidad. Los hijos se convierten en elementos clave a partir de los cuales se define esta identidad, ya que el rol maternal les brinda recompensas y gratificaciones que no encuentran en otros ámbitos de sus vidas. Es posible ver en el embarazo y la maternidad una forma de afirmación de la subjetividad de las jóvenes y de proyección a futuro. La maternidad es parte importante del proyecto de vida. Al comprender las prácticas populares se puede pensar que, en el caso de las jóvenes del sector, la maternidad funciona como posibilidad de tener un

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proyecto propio, lo cual no supone ubicar tal proyecto como ausencia de otros proyectos o mero relleno de un futuro inimaginable para ellas. “Estas mujeres les asignan a sus hijos un valor afectivo y ‘reparador’, pues de ellos esperan recibir ‘amor y compañía’, así como darles lo que a ellas les faltó de niñas.” (Pantelides, Geldstein, Infesta Domínguez, 1995: 59). En el caso de Cristina7, una de nuestras jóvenes entrevistadas, ser madre aparece como una forma de realización personal. Si bien al principio la noticia no fue recibida con buenos augurios, más tarde Cristina consideró que sus hijas otorgaban un sentido de trascendencia a su vida. En definitiva se sintió realizada como mujer, pues “- una mujer sin hijos no es una mujer completa” nos decía en uno de nuestros encuentros.8 Si bien es sabido que es a través del rol materno como la familia ejerce su principal influencia en la conformación de la subjetividad de los hijos, no hay que perder de vista la “otra cara” de la maternidad, es decir, aquella responsable de las representaciones con las que se subordina a la mujer identificándola con la esfera privada, como soporte afectivo y doméstico (Schmukler, 1989). Parecería que algunos argumentos postulados en el siglo XVIII, aún siguen vigentes en los sectores populares más marginales: “la mujer debe limitarse al gobierno doméstico, no mezclarse con los asuntos de fuera, mantenerse dentro de la casa” (Rousseau, 1762: 872; citado en Badinter: 1991: 204-205).

Ser madre en mujeres de sectores populares residentes en hoteles-pensión de barrios céntricos de la Capital Federal En este apartado nos centramos en las entrevistas e historias de vida que realizamos en el marco de nuestra investigación a mujeres migrantes provenientes de sectores populares que han sido socializadas en la ciudad mediante su residencia en hoteles-pensión ubicados en los barrios porteños de Balvanera, Constitución, Congreso y Barracas. Vivir en zonas céntricas de la Ciudad de Buenos Aires supone para estas mujeres cierto grado de integración a las instituciones de la sociedad civil. Residir cerca de los hospitales, del colegio de los niños, de los comercios, de ciertas organizaciones sociales, es considerado un beneficio que otorga la ciudad. Al mismo tiempo, les posibilita interactuar con “otros culturales”, es decir, con sujetos de sectores medios que adscriben a pautas culturales distintas y a veces desconocidas por ellas. Por todo esto, consideramos que estas mujeres ocupan una posición más ventajosa (social, cultural y simbólicamente) al interior de los sectores populares respecto a la población de mujeres socializadas en contextos marginales como las villas miseria, los barrios populares del Gran Buenos Aires y las zonas semi-urbanizadas del interior del país, que no han podido traspasar los límites de su grupo social de pertenencia donde ocasionalmente comparten su vida cotidiana con los pobladores de otras zonas de la ciudad. En este sentido, sus interacciones son siempre con otros que forman parte del mismo ambiente sociocultural, lo que empobrece su sociabilidad (Merklen, 2000). En el discurso y las prácticas de nuestras entrevistadas se evidencia la fuerte influencia del hábitat urbano y la interacción con otros/nuevos códigos y mandatos culturales asociados a las capas medias de la sociedad, como la realización personal por fuera de la esfera afectiva y doméstica. La socialización urbana de estas mujeres de origen popular, condiciona sus formas de vida y adaptación, generando nuevos saberes y formas culturales, esquemas de percepción y comportamiento.

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Si bien la maternidad es percibida como un rol dador de identidad, la realización personal y el sentirse plenas no radica exclusivamente en el “ser madres”, es decir, no lo encuentran como único proyecto posible. En este sentido, todas ellas han tenido entre dos y cuatro hijos, pues ya han “cumplido” con el mandato y el deseo de la maternidad y ahora prefieren dedicar sus vidas a la realización personal en otras esferas sociales como la del trabajo, el estudio y concretar el sueño de la “casa propia”. Las representaciones de estas mujeres influidas por nuevos mandatos culturales se diferencian a las de aquellas pertenecientes a los sectores populares más desfavorecidos de la sociedad donde la realización como mujer reside casi exclusivamente en el hecho de “tener hijos”. Por un lado, cada hijo concebido refuerza y potencia su identidad como mujer y como madre. Por otro lado, no encuentran ni existen proyectos alternativos9 a ser madre que demanden una consciente planificación de la maternidad, regulando el número de hijos. Creemos que estos factores socioculturales inciden en la falta de uso o uso ineficiente de los métodos anticonceptivos sin perder de vista las condiciones de precariedad material que dificultan el acceso a la información. Como argumentamos más arriba, para nuestras entrevistadas los hijos cumplen un papel muy importante en sus vidas, pero como veremos se trata de un proyecto más que completa su realización como mujer y sujeto social.

“Mis hijos para mí son lo más valioso de mi vida (...) una de las mejores cosas que me han pasado en la vida es tener mis hijos (...) ser madre, es una cosa linda que a una mujer le puede pasar” (Mirta, 5 hijos) “Me sentía diferente con ellas, no me sentía tan sola. Me hacían sentir alguien” (Cristina, 29 años, provincia de Buenos Aires. Vive en la Capital Federal desde los 6 años. Es madre de 2 hijas) “Mi gran amor es mi hijo, no cambiaría un segundo de mi vida por tenerlo. La verdad soy muy feliz. Mi mejor proyecto hasta ahora, mi mejor logro es mi hijo. Es lo más importante que tengo en mi vida. Él es todo, él es mi motor, yo me levanto cada día por él, yo hago mi vida en función de él. Cuando uno tiene un hijo sabés que hay cosas que vas a poder hacer y otras que no. Pero las que no podes hacer valen la pena”. (Ana, 30 años, oriunda de San Juan. Vive en la Ciudad de Buenos Aires desde los 5 años. Tiene un hijo.)

Uno de los proyectos que aparece con más fuerza es el de tener la “casa propia”, puesto que se trata de mujeres que han vivido durante muchos años en reducidas piezas de hotel, junto a sus familias.

“Nunca me gustó vivir en hotel porque aquí no hay vecinos permanentes, aquí la gente está de paso y no podés hacer amigos, ni hablar con alguien. Tampoco me gusta tener que compartir el baño y a veces limpiarlo para que las nenas lo usen. Siempre sueño con tener mi casa propia (...) ojála (sic) pudiera comprar un terreno y construir mi casa para asegurarles el futuro a mis hijas.” (Susana, 28 años, correntina. Vive en Buenos Aires desde 1992. Es madre de dos hijos) “El proyecto mío que de a poco se va cumpliendo, que con mi mamá siempre lo tuvimos, es de tener mi casa. Ese fue un proyecto que tuve desde chica.

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Poco a poco lo voy concretando. El día que yo me muera se que me voy a morir tranquila porque se que yo he hecho mi casa, que he llegado al logro que tanto anhelaba yo y que tanto quería y que después va a quedar para los chicos.” (Mirta, 42 años, mendocina. Hace 25 años llegó a Buenos Aires)

El trabajo y la posibilidad de estudiar también representan un medio de realización y de desarrollo de la personalidad. Como vimos, la realización personal excede al de ser madres, lo cual refleja cierta asimilación de mandatos culturales propios de los sectores medios de la sociedad.

-¿Te gustaría tener más hijos? -Sí, me gustaría, por qué no?. Pero bueno también desarrollar mi persona está puesta en otras expectativas. Ya madre soy. (...)Hay una etapa después de los 20, por los 21, 23 años que tenía como una sensación de que se pasaba el tiempo. Tenía la necesidad de realizarme como mamá. (...) Sentí que cuando fui madre algo ya completé de mi persona. Pero me parecía que necesitaba algo más. -¿Tenías otros proyectos o ese era el único proyecto a perseguir? -Mi proyecto era realizarme con alguna profesión. El proyecto de la casa propia se está empezando a dar. Pero el tema de realizarme profesionalmente todavía no se me pierde porque no hay edad. Lo que pasa que el tema de los hijos te absorben el tiempo. No se me perdieron las esperanzas de llegar a estudiar algo, porque yo quería ser profesora de inglés y yo hice hasta segundo año y después dejé. (Alejandra, cordobesa, 34 años. Llegó a Buenos Aires a los 5 años de edad. Tiene 2 hijas.) “Ahora estoy sin trabajo pero en el momento en que tengo trabajo me siento más realizada todavía. Falta que tenga trabajo para sentirme totalmente realizada en todo, igualmente me siento realizada en el sentido de ser madre, pero me falta el trabajo. Y con la cooperativa [Cooperativa de vivienda, El Molino] me siento sumamente realizada porque vengo a trabajar para tener mi vivienda. Me siento realizada como mujer y como persona.” (Mirta) “Trato y quiero superarme. Yo soy una persona que le gusta estudiar y sé que quiero progresar para mí y para mi hijo. No me quiero quedar acá. Ahora mis proyectos son terminar la carrera (profesorado de educación física) y trabajar como profe, obviamente y bueno ahora con el tema de formar la cooperativa, tener mi lugar, mi propia casa, trabajar para pagar mi lugar. Es bueno estudiar porque el hecho de saber evita que la gente te lleve por delante. A la gente ignorante es más fácil dominarla. Si estudiás además podés tener un trabajo mejor. (...) Yo estoy orgullosa de trabajar, no me gusta ir a pedir nada. Por eso no fui a Pavón y Entre Ríos a pedir pieza [Secretaría de Desarrollo Social del Gobierno de la Ciudad de Buenos Aires], ni plan jefes y jefas ni vale de comida.” (Ana)

Ahora bien, una primera contradicción aparece en sus discursos y sus prácticas cuando por un lado se evidencia un esfuerzo por valorarse como mujeres no sólo ejerciendo la maternidad sino por fuera de ella, persiguiendo la realización personal en el trabajo, el estudio y la participación en organizaciones civiles, y por otro lado son ellas mismas quienes se ubican en un lugar ausente y relegado, donde sus gustos y deseos no son tenidos en cuenta. En este sentido, festejan los cumpleaños de sus hijos y su marido pero nunca el de ellas, salen de compras para agasajar a su familia, pero ellas no se

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obsequian nada, cocinan las comidas favoritas de sus hijos y esposo, subordinando sus gustos a los de ellos. En segundo lugar se evidencian ciertas tensiones y contradicciones entre la herencia cultural que portan estas mujeres y los nuevos saberes y creencias que van asimilando de a poco. Por un lado utilizan métodos anticonceptivos para regular su maternidad y así poder realizarse por fuera de la esfera afectiva, práctica asimilada a través del contacto con “otros culturales”.

- Sí, nos cuidamos. Yo me cuido con anticonceptivos y él usa su preservativo. - ¿Él no pone ninguna resistencia al preservativo? - Le costó un poco... los hombres son un poco... pero bueno tratemos de respetarnos (...) Decíamos, “tratemos de cuidarnos”, “todavía no”, “mirá en qué situación estamos, estamos alquilando”. Pero llegó un momento que estábamos necesitando tener hijos, y fue así. Si vos querés planificar los embarazos tenés que cuidarte porque si no obviamente que van a venir de sorpresa (Alejandra, 34 años, nacida en Córdoba. Llegó a la Provincia de Buenos Aires a los 5 años con su madre y una de sus hermanas luego de la separación de sus padres. Desde los 18 años reside en la Capital Federal) “Yo me cuido con pastillas. Empecé a cuidarme con pastillas cuando tuve la cuarta hija que fue una nena que es Erica” (Mirta) “Después de tener a Lucas [su segundo y último hijo], yo me hice poner el DIU, Aunque tengo el DIU a la otra persona le digo que use preservativo, lo tiene que usar y sino le gusta, bueno, lo siento. (...)yo no sé si tiene algo y me lo pasa a mí y después que hago porque hay diferentes enfermedades de transmisión sexual. No está solamente el SIDA sino también la sífilis, la gonorrea.” (Susana)

Pero por otro lado perciben la maternidad como algo “natural”, inherente al ser mujer. La maternidad es vivida por las mujeres de sectores populares como un atributo de la esencia femenina, como un instinto. En sus representaciones y discursos se reproducen los modelos teóricos que sostienen que la ‘biología es destino’ (Rousseau, 1762 y Freud, 1924; en Badinter, 1991). Este sentido de la maternidad como algo nato en la mujer, ha sido impuesto socialmente por la sociedad patriarcal entre los siglos XVIII y XX, ocultando su construcción social y cultural a lo largo de la historia. Sin embargo aún sigue vigente en los intersticios de la sociedad, recayendo sobre algunas fracciones como los sectores populares.

“Llegó un momento que [ser madre] parecía que era una necesidad. Hay ciertas etapas de la mujer... yo después de los veintipico sentí la necesidad de ser madre. Yo a la más grande la tuve a los 24. Y después es algo natural.” (Alejandra)

Una tercera tensión vinculada a la anterior, es que el hecho de tener hijos puede ser vivido por muchas mujeres como un servicio que se le presta a la pareja. En un contexto en el que los hijos son vistos como una prueba de virilidad y masculinidad, “darle hijos” a la pareja puede funcionar como un modo de complacer al varón (Mancini y Wang, 2003). En este sentido, las relaciones de género tradicionales no logran ser permeadas por roles de género más igualitarios.

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Para él ya está, es como que la satisfacción de él ya la cumplió. Él me dice, ‘para mí esto ya es todo, ya me diste dos hijos hermosos’ (Mirta) Mi marido me dijo que quiere que le dé otro bebé. Yo ahora estoy muy absorbida por muchas cosas. Lo que pasa que un día dijimos que cuando la chiquita tenga tres ó cuatro años íbamos a tener otro y ya va tener tres!, pero yo no quiero saber nada ahora (Alejandra)

“Ser madre es un hecho natural”: la reactualización del habitus de clase La maternidad es vivida por las mujeres de sectores populares como un atributo de la esencia femenina, como un instinto, como algo natural, pues en su percepción se pueden leer las huellas que ha dejado la visión del mundo hegemónica, impuesta por el patriarcado: hacer parecer natural lo que en realidad es una construcción social y cultural. En este sentido, aquel mandato cultural reactualiza y reproduce el habitus de clase recayendo del mismo modo sobre toda fracción de los sectores populares donde la maternidad es pensada como un destino inherente al ser mujer. Según Chodorow (op.cit.), la reproducción del ejercicio de la maternidad es la base de la reproducción de la situación de las mujeres y de su responsabilidad en la esfera doméstica. Las mujeres, en su rol doméstico, se reconstituyen a sí mismas físicamente y se reproducen a sí mismas en tanto madres en la generación siguiente. De este modo contribuyen a la perpetuación de sus propios roles sociales y a la posición que ocupan en la jerarquía de los sexos. Muchas feministas se han empeñado en destruir el mito de la maternidad natural. Para hacerlo, han cuestionado el concepto de instinto maternal. Elisabeth Badinter – discípula de Simone de Beauvoir - cuenta en su obra ¿Existe el instinto maternal? (1991) que en lugar de instinto, ¿no sería más válido hablar de una presión social dirigida a que la mujer se realice exclusivamente a través de la maternidad?, ¿Cómo saber si el legítimo deseo de maternidad no es un deseo alienado en parte, una respuesta a presiones sociales, a una herencia cultural que pesa sobre la mujer (penalización de la soltería y de la no maternidad, reconocimiento social de la mujer en tanto madre), a un deseo social de ser madre inscripto en las mujeres?. Simone de Beauvoir argumenta en su obra El segundo sexo (1999) que si la niña mucho antes de la pubertad se presenta ya como sexualmente especificada, “no es porque misteriosos instintos la destinen inmediatamente a la pasividad, la coquetería y la maternidad, sino porque la intervención de otro en su vida es casi original” (op.cit.: 208). Reflexiones finales Ni la biología ni los instintos ofrecen una explicación adecuada de las razones por las cuáles las mujeres llegan a ejercer la maternidad. El ejercicio maternal de las mujeres, en cuanto es un rasgo de la estructura social, requiere de una explicación en los términos de la estructura social. Las mujeres ejercen la maternidad porque antes ésta fue ejercida en ellas por otras mujeres (Chodorow, op.cit.). Partiendo de la gran heterogeneidad que se vislumbra al interior de los sectores populares, deberíamos hablar de “maternidades” y no de maternidad. Como vimos, la

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maternidad se vive y percibe distinto en madres de sectores populares marginales y madres de sectores populares deslocalizados, que habitan en la ciudad y se encuentran en permanente contacto con los códigos culturales imperantes en los sectores medios10, donde priorizan no sólo el rol maternal, sino también la realización en otras esferas de su vida. Resulta evidente, pues, que no existe un comportamiento maternal suficientemente unificado como para que pueda hablarse de instinto o de actitud maternal “en sí” (Badinter; op.cit.: 292). Para Condorcet “el genio femenino no se limita a la maternidad, sino que la mujer puede acceder a todas las posiciones, porque sólo la injusticia, y no la naturaleza, les impide el conocimiento y el poder” (1791: 281; citado en Badinter, op.cit.: 140). En este sentido, sostiene que son las condiciones sociales las que llevan a la desigualdad social y de género. Bibliografía -ARIZA, Marina y De Oliveira, Orlandina (2003), “Acerca de las familias y los hogares: estructura y dinámica”. En C. Wainerman (comp.), Familia, trabajo y género. Un mundo de nuevas relaciones, Buenos Aires, FCE. -BADINTER, Elisabeth (1991), ¿Existe el instinto maternal?, España, Ed. Paidos. -BOURDIEU, Pierre (1991), El sentido práctico, Madrid, Taurus. -CHODOROW, Nancy (1984), El ejercicio de la maternidad, Barcelona, Ed. Gedisa. (primera edición en inglés en 1978, Universidad de California). -CLIMENT, Alejandra y Arias, Diana (1996), “Estilo de vida, imágenes de género y proyecto de vida en adolescentes embarazadas”. En AA.VV., Taller de Investigaciones Sociales en Salud Reproductiva y Sexualidad, Buenos Aires, CENEP, CEDES, AEPA. -DE BEAUVOIR, Simone (1999), El segundo sexo, Buenos Aires, Ed. Sudamericana. (primera edición en 1949 por Editorial Gallimard, Paris) -DOROLA, Evangelina (1989), “La naturalización de los roles y la violencia invisible”. En A. M. Fernández, y E. Giberti (comp.), La mujer y la violencia invisible, Buenos Aires, Ed. Sudamericana. -EISENSTEIN, Silla (1980),“Hacia el desarrollo de una teoría del patriarcado capitalista y el feminismo socialista”. En Z. Eisenstein (comp.), Patriarcado capitalista y feminismo socialista. Buenos Aires, Siglo XXI. -GEERTZ, Clifford (1987), La interpretación de las culturas, México, Gedisa Editores. -GIDDENS, Anthony (1998), La transformación de la intimidad. Sexualidad, amor y erotismo en las sociedades modernas, Madrid, Ed. Cátedra. -JELIN, Elizabeth (1998), Pan y afectos, la transformación de las familias, Buenos Aires, Fondo de Cultura Económica. -MANCINI, Inés (2004), “Modelos de maternidad entre las jóvenes de los sectores medios de Buenos Aires”. Ponencia presentada en el VII Congreso Argentino de Antropología Social, Universidad Nacional de Córdoba, Argentina.(mayo). -MANCINI, Inés y Wang, Lucía (2003), “Prácticas anticonceptivas en las mujeres jóvenes”. En M. Margulis y otros, Juventud, cultura, sexualidad. La dimensión cultural en la afectividad y la sexualidad de los jóvenes de Buenos Aires. Buenos Aires, Ed. Biblos. -MARCÚS, Juliana (2003), “ ‘Por nuestras hijas’, vínculos en las familias”. En M. Margulis y otros, Juventud, cultura, sexualidad. La dimensión cultural en la afectividad y la sexualidad de los jóvenes de Buenos Aires, Buenos Aires, Ed. Biblos. -MARGULIS, Mario (1994), La cultura de la noche, Buenos Aires, Espasa Calpes.

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-MARGULIS Mario y otros (2003); Juventud, cultura, sexualidad. La dimensión cultural en la afectividad y la sexualidad de los jóvenes de Buenos Aires, Buenos Aires, Ed. Biblos.. -MERKLEN, Denis (2000); “Vivir en los márgenes: la lógica del cazador. Notas sobre sociabilidad y cultura en los asentamientos del Gran Buenos Aires hacia fines de los 90”, en Maristella Svampa (editora) Desde abajo. La transformación de las identidades sociales, Editorial Biblos / UNGS, Buenos Aires. -MINUJIN, Alberto (1998), “Vulnerabilidad y Exclusión en América Latina”. En E. Bustelo y A. Minujin, Todos entran, Colombia, Santillana/UNICEF. -NARI, Marcela María Alejandra (2000), “Maternidad, política y feminismo”. En F. Gil Lozano, V. Pita y G. Ini, Historia de las mujeres en la Argentina, tomo II, siglo XX. Buenos Aires, Editorial Taurus. -PANTELIDES, Edith; Geldstein, Rosa; Infesta Domínguez, Alejandra (1995), Imágenes de género y conducta reproductiva en la adolescencia. Buenos Aires, Cuaderno del CENEP Nº 51. -PASTRANA, Ernesto; Bellardi Marta; Agostinis, Silvia y Gazzoli, Rubén (1995), Vivir en un cuarto: inquilinatos y hoteles en el Buenos Aires actual. Buenos Aires, Revista Medio Ambiente y Urbanización, Año 14, Nº 50-51, IIED. -PISCITELLI, Adriana (1995), “Ambigüedades y desacuerdos: los conceptos de sexo y género en la antropología feminista”. En Cuadernos del Instituto Nacional de Antropología y Pensamiento Latinoamericano, N° 16. pp. 153-169. Buenos Aires. -ROSTAGNOL, Susana (1991), “Género y división sexual del trabajo. El caso de la industria de la vestimenta en Uruguay”. En M. del C. Feijoo, Mujer y sociedad en América Latina, Buenos Aires, CLACSO. -SCHEPER-HUGHES, Nancy (1997), La muerte sin llanto. Violencia y vida cotidiana en Brasil, Barcelona, Ediciones Ariel. -SCHMUKLER, Beatriz (1989), “El rol materno y la politización de la familia”. En A. M. Fernández y E. Giberti (comp.), La mujer y la violencia invisible, Buenos Aires, Ed. Sudamericana. -WANG, Lucía (2004), “La dimensión cultural de la maternidad de las jóvenes que asisten a un hospital municipal de Buenos Aires”, ponencia presentada en el VII Congreso Argentino de Antropología Social, Universidad Nacional de Córdoba, Argentina. (mayo). ♦ Lic. en Sociología (UBA). Doctoranda en Ciencias Sociales, UBA. [email protected] 1 Este trabajo de investigación se desarrolla en el marco del Proyecto UBACyT SO10, titulado "Cultura y Juventud en Buenos Aires: cambios en los códigos culturales relativos a la afectividad y la sexualidad", dirigido por el Profesor Mario Margulis e integrado por un grupo de jóvenes investigadores, docentes y estudiantes. 2 Las características del hábitat, ese ambiente que media las interacciones con los demás considerado como espacio simbólico y cultural, influyen y condicionan las prácticas de los actores. 3 Al respecto ver Margulis y otros: Juventud, Cultura, Sexualidad. La dimensión cultural en la afectividad y sexualidad de los jóvenes de Buenos Aires, Buenos Aires, Ed. Biblos, 2003. Este libro presenta algunos resultados de investigaciones realizadas entre 1998 y 2003 por un equipo de investigación de la UBA del cual formo parte, con subsidios UBACyT otorgados por la Secretaría de Ciencia y Técnica de la misma universidad. 4 Entendemos por cultura al “conjunto interrelacionado de los códigos de la significación, históricamente constituidos, compartidos por un grupo social, que hacen posible la identificación, la comunicación y la interacción” (Margulis, 1994: 13). 5 El feminismo radical forma parte de la teoría feminista de la diferencia cuyos postulados se inclinan por la valoración positiva de la femineidad (propensión de las mujeres a la ternura, el cuidado), es decir, encontrar la especificidad femenina que no sea la que el patriarcado ha impuesto históricamente. La gran creadora de esta teoría es la lingüista y psicoanalista Luce Irigaray (1974), quien ha contribuido a elaborar

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una “identidad subjetiva sexuada” (Rivera, 1994: 32). Critica al feminismo de la igualdad, pues dicha igualdad entre el varón y la mujer hace perder la identidad femenina. Irigaray fue en Francia una de las primeras psicoanalistas que refutó el modelo freudiano. Sostiene que en Freud la mujer aparece como lo negativo, como la carencia, quedando asimilada al deseo masculino. El psicoanálisis hace que la niña se aleje de su primera identificación que es la madre, existiendo un rechazo hacia ella. Hay una desvalorización del propio sexo femenino considerando a la niña como un varón imperfecto y mediocre. Por otro lado, el feminismo de la igualdad postula que la diferencia femenina es un producto cultural, una construcción social impuesta por el patriarcado que supone la sumisión de la mujer al hombre. Esta corriente tiene por objetivo la superación de las diferencias de género y culturales que suponen la sujeción de un género (femenino) a otro (masculino). De aquí se desprende la afirmación que reivindica Simone de Beauvoir en su obra El segundo sexo: “no se nace mujer, se llega a serlo” (1999: 207). 6 Para un análisis más completo de las teorías del sentir maternal desarrolladas por Klaus, Kennell y Ruddick, ver Scheper Hughes (1997). 7 Los nombres utilizados son ficticios para resguardar la identidad de las entrevistadas. 8 Balzac en su obra Mémoires de deux jeunes mariées le hace decir a uno de sus personajes: “una mujer sin hijos es una monstruosidad; estamos hechas solamente para ser madres” (citado en Badinter, op.cit.: 212). 9 Tener en cuenta que el proyecto de vida se liga a la maternidad no implica olvidar que ello también funciona como indicador de una situación económica y social desventajosa, donde la falta de oportunidades profesionales y educativas terminan imponiéndose y estableciendo que la maternidad se constituya en su principal destino y objetivo en la vida. 10 En cuanto a los sectores medios y altos, cuanto más jóvenes, instruidas y activas son las mujeres, asocian en menor grado el logro y la felicidad femenina con la maternidad. En ellas persiste con vigor el deseo de desarrollarse en el mundo del estudio y del trabajo. La maternidad se posterga hasta alrededor de los treinta años, planificándola con relación a otros aspectos de la vida (Datos obtenidos de una encuesta --155 casos- realizada en 1999 por el equipo de investigación dirigido por el Prof. Mario Margulis en el marco del Proyecto UBACyT TS25, “La dimensión cultural en la afectividad y la sexualidad de los jóvenes de sectores medios”. El universo que compuso la muestra de la encuesta se orientó hacia jóvenes de sectores medios, de 18 a 32 años de edad, en su gran mayoría estudiantes universitarios y profesionales que habitan en barrios de clase media de la Ciudad de Buenos Aires).

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“Gênero, Sexualidade e Reprodução entre os Pataxó hãhãhãi” Jurema Machado de Andrade Souza [email protected] Universidade Federal da Bahia, Brasil

Resumo:

Inserido no campo da etnologia dos índios do nordeste do Brasil, seguindo uma perspectiva

mais geral de gênero, o artigo tece considerações a respeito das denúncias de esterilização

de mulheres indígenas do povo Pataxó Hãhãhãi, localizado no sul da Bahia, na década de

noventa do século passado. Isso será feito ao propósito de demarcar questões relacionadas

ao desenvolvimento de minha pesquisa de mestrado (em andamento) sobre práticas e

representações de gênero, sexualidade e reprodução à luz dessas denúncias de esterilização.

Palavras-chave: Pataxó-hãhãhãi, esterilização, sexualidade, reprodução.

Introdução

Em 1998, a imprensa do sul do Brasil divulgou a ocorrência de uma esterilização em massa

entre as mulheres em idade fértil, notadamente as Pataxó hãhãhãi, das aldeias Bahetái e

Caramuru, no sul da Bahia, mediante a laqueadura tubária. Por sua vez, através de

declarações à imprensa e de documentos elaborados sobre o tema, líderes indígenas

masculinos relacionaram o fato às condições de vida desses grupos, caracterizado-o como

uma prática genocidaii e racista. Em uma notícia-crime dirigida à Procuradoria Geral da

República em Salvador, as lideranças informaram haver tomado conhecimento do fato

mediante um “diagnóstico das condições de saúde” realizado nas aldeias Pataxóiii. Naquele

mesmo ano, este diagnóstico constatou que, entre as 14 aldeias incluídas, a de Bahetá,

situada em Itaju do Colônia, apresentava um surpreendente índice de laqueaduras, que

abrangia 100% das mulheres em idade reprodutiva existentes nas 10 famílias que compõem

a aldeia (CIMI 1998:2).

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Os líderes dizem que, constatado o fato, convocaram uma reunião com a população daquela

aldeia. Nessa ocasião, as mulheres confirmaram a realização das laqueaduras; às quais

teriam sido induzidas por agentes da campanha política de um médico, e deputado, o Dr.

Roland Lavigne; e, ainda, que não teriam sido submetidas a exames médicos prévios para a

realização dessas intervenções cirúrgicas. Diante do fato consumado, os líderes – o

presidente do Conselho de Saúde Indígena, o cacique geral das aldeias Pataxó setentrionais,

e o cacique da aldeia Bahetá – denunciaram o ato cirúrgico e interpretaram-no

politicamente, associando-o a mais uma possível investida dos fazendeiros, que invadem a

reserva indígena e que têm tentado, reiteradas vezes, eliminar a presença dos índios na

região. Assim, sem meias palavras, afirmam que “(...) os fazendeiros e os políticos

envolvidos pretendem exterminar o povo Pataxó hãhãhae” (ibid.).

A denúncia repercutiu e mobilizou a grande imprensa. Segundo uma repórter do jornal O

Globo, “Na aldeia Bahetá, não há sequer uma índia grávida, nem têm nascido mais

crianças. Espremidos entre a cidade de Itajú do Colônia -- a 110 Km de Ilhéus --, e

propriedades de grandes fazendeiros que se apoderam de parte da reserva, os Pataxó estão

vendo sua nação minguar” (O Globo, 30.08.98). Não é difícil imaginar o que levou as

mulheres casadas de Bahetá a fazerem a esterilização. Os índios vivem numa pequena área,

de um alqueire de terra seca e improdutiva e sem alimentos. O rio Colônia, que corta a

aldeia, vem sendo represado pelos fazendeiros da região e já não tem mais água nem peixes

suficientes. Os índios passam fome e sobrevivem da cesta básica fornecida pelo governo.

Apesar das dificuldades, quatro anos depois das primeiras cirurgias (feitas em 1994), o

povo Pataxó hãhãhãi mostra aparente arrependimento pela decisão antes tomada, e que, na

época, parecia ser a salvação para quem não tinha como alimentar suas crianças (ibid.).

A mesma matéria traz os depoimentos de duas mulheres. A primeira, com 40 anos e seis

filhos, afirmou ter-se arrependido “porque ainda poderia aumentar minha família de índios.

Hoje, olho para a minha aldeia e vejo eles se acabando”; e a segunda, mãe de cinco filhos e

com o marido doente, confessou que, “acabou convencida de que não teria condições de

sustentar outras crianças e resolveu fazer a operação” (ibid.).

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134134

O Conselho Indigenista Missionário (CIMI) obteve números referentes a mulheres

indígenas de outras aldeias, que também teriam sido esterilizadas, notadamente as das

aldeias de Panelão e Caramuru. Os exames realizados nas mulheres esterilizadas

concluíram pela irreversibilidade do processo, o que, para o assessor jurídico do CIMI,

caracterizaria mesmo uma tentativa de esterilização, agravando a situação criminal dos

responsáveis pelo ato, já que este pode provocar a gradativa extinção do povo indígena

(CIMI 1998:2).

Através da Procuradoria da República no Estado da Bahia, o Ministério Público da União

resolveu instaurar inquérito civil para apurar “a efetiva ocorrência dos procedimentos

médico-cirúrgicos de esterilização noticiados, e investigar seus autores, verificando as

circunstâncias em que foram realizados, e as conseqüências imediatas e mediatas para a já

reduzida população Pataxó hãhãhãi, a fim de identificar, nessas condutas, a possível

existência de infração das normas constitucionais e infraconstitucionais estabelecidas para

proteção e garantia dos direitos individuais, indisponíveis, coletivos e difusos, (...) em

especial as que disciplinam o planejamento familiar (...)” (Diário da Justiça, 1998:52). E

apurar, também, a eventual responsabilidade da União, por omissão, dado que lhe cabe

proteger as comunidades indígenas e defender seus direitos. Além disso, averiguar também

o eventual prejuízo contra o patrimônio da União, em face do uso irregular de verbas do

Sistema Único de Saúde – SUS, que, segundo consta, teriam custeado tais procedimentos

(ibid.).

Como se pode ver, a questão é complexa, e se desdobra em várias dimensões, nos planos

étnico, sócio-econômico, demográfico, reprodutivo, jurídico-político, entre outros. A

esterilização é, hoje, o método de controle de natalidade mais largamente usado no mundo.

Segundo Guaraci Adeodato de Souza, “analisa-se como nas classes populares, as crescentes

e desiguais conquistas de sobrevivência dos filhos e a radicalização da medicalização da

vida social, particularmente da medicalização da procriação, nesta conjuntura, reforçaram

pressões ou estímulos para o encerramento das carreiras reprodutivas” (Souza, 1996: 229).

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135135

É importante esclarecer que meu interesse não incide apenas sobre a questão da

esterilização propriamente dita. De fato, a esterilização pode ser tomada como ponto de

partida para a investigação que desenvolvo no mestrado, cujo objeto, muito resumidamente,

constitui o universo das concepções, práticas e representações das mulheres Pataxó Hãhãhãi

sobre sexualidade, reprodução e contracepção. Eu parto do pressuposto, baseada nos

noticiados fatos sobre as esterilizações, que os Pataxó hãhãhãi, notadamente os da aldeia

Bahetá e Caramuru, estão “experimentando mudanças nos padrões de reprodução e

sexualidade, o que, por sua vez, constitui forte evidência de alterações em curso nas

relações entre os gêneros” (Carvalho, 1998). Isto, especialmente, no que diz respeito à

condição feminina na composição interna dos grupos domésticos.

Assim, o meu interesse na pesquisa surgiu na medida em que o caso revelava, ou pelo

menos apontava, alterações no campo dos gêneros entre essa população, já que, segundo os

depoimentos dados pelas próprias mulheres ao Ministério Público Federal, as cirurgias

teriam sido feitas, na maior parte dos casos, sem conhecimento dos maridos, dos líderes ou

da própria FUNAI. A esterilização evidencia, portanto, mudanças no campo dos gêneros,

notadamente no que diz respeito ao corpo, à sexualidade e à reprodução. Por outro lado, a

laqueadura é apresentada pelos índios como prática comum de contracepção, e não

exclusiva das índias Pataxó hãhãhãi – como, aliás, o demonstraram os dados da pesquisa

realizada pela ANAÍ (Associação Nacional de Ação Indigenista - Bahia) sobre DST /

AIDS, entre índias do norte e sul do Estado da Bahia. Nessa pesquisa, constata-se que a

grande maioria das índias, tanto do sul como do norte, adotaram a laqueadura como o mais

recorrente método contraceptivo (Carvalho & Souza, 2002).

A partir das considerações tecidas, pretendo dar continuidade a um trabalho iniciado na

graduação, que culminou na minha monografia de conclusão de curso, preenchendo

possíveis lacunas no recolhimento do material etnográfico e na sua análise, especialmente

no que se refere ao caso das esterilizações, tratando o tema da laqueadura no contexto

indígena para tentar descrever possíveis especificidades. Em suma, o fato de a etnologia

indígena se tratar de um campo composto por sociedades/culturas cujos níveis de

organização/observação são estreitamente relacionais, obriga o pesquisador a acolher outras

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variáveis, especialmente significativas em situação de contato interétnico, como memória

histórico-social, identidade étnica e relações econômico-sociais e simbólicas com a terra.

O suposto e o objetivo da pesquisa Como atestam as evidências empíricas de significativo conjunto de etnografias, o

comportamento reprodutivo dos grupos indígenas deixa-se orientar – salvo em situações

adversas pós-contato, ou outro fator inibidor — pela prática de “deixar vir os filhos até a

menopausa” (Souza apud Carvalho 1998). Algo assim, ao mesmo tempo em que confere às

mulheres “segurança ontológica” enquanto seres humanos produtores (Almeida apud

Carvalho 1998: 69), parece suscitar nos homens os sentimentos de que exercem certa

dominação sobre suas parceiras e gozam de autonomia, manifesta na sua maior exposição

pública. As esterilização de mulheres Pataxó hãhãhãi, ao interromper esse processo,

sinalizaria para modificações produzidas nas identidades em conjunção, que estariam

afetando, talvez mais particular e intensamente, a própria identidade masculina, a

masculinidade, devido à forte ideologia masculina de virilidade relacionada ao desempenho

reprodutivo masculino – que parece preconizar que os filhos, não obstante pertençam às

mães, são “feitos” pelos pais (Carvalho, 1998). Neste sentido, pretendo responder as

seguintes questões:

• Quais são as práticas e representações relacionadas à sexualidade e reprodução,

dando conta do sistema de relações significativas (modos de ação e cognição) no

qual está imerso o sistema de relações de gênero dos Pataxó hãhãhãi;

• Quais os fatores motivadores da escolha da esterilização como método

contraceptivo, bem como outras práticas contraceptivas, inclusive aquelas tidas

como tradicionais, admitindo que estes fatores possam se alterar a depender do

indivíduo e das circunstâncias em que ele esteja envolvido;

• Analisar as distintas posições de homens e mulheres na estrutura social e as

reações dos líderes masculinos frente à esterilização;

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• Identificar as repercussões das práticas contraceptivas no padrão demográfico

dos distintos grupos étnicos que compõem a Reserva Caramuru-Paraguaçu, e no

próprio padrão demográfico registrado no Brasil para outros grupos indígenas.

Campo Etnográfico

Como já mencionado anteriormente, o campo a ser investigado é a Reserva Caramuru-

Paraguaçu, localizada nos municípios de Pau Brasil, Itajú do Colônia e Camacã,

notadamente a área concernente à cidade de Pau Brasil, ou seja, as localidades de Mundo

Novo (Aldeia Caramuru) e Água Vermelha.

Em 1926, o então Serviço de Proteção aos Índios – SPI criou a Reserva Caramuru-

Paraguaçu, em terras devolutas do Estado da Bahia, para “gozo dos índios Pataxós e

Tupinambás” (Lei Estadual nº 1916/26)iv. A criação da Reserva, que hoje abarca 54.099

hectares dos municípios de Pau-Brasil, Itaju do Colônia e Camacã, objetivava conter os

índios que ainda se encontravam nas matas do sul da Bahia e representavam empecilho à

expansão da lavoura cacaueira. A partir de 1936, a reserva passa a apresentar uma nova

configuração administrativo-espacial, com a divisão da área em dois Postos Indígenas: o

Caramuru, estabelecido ao norte, para o recolhimento e “pacificação” dos “índios

apanhados na mata” (Nimuendaju, 1938 apud Carvalho & Souza, 2000), ou seja, dos

Pataxó Hãhãhãi e Baenã; e o Paraguaçu, ao sul, reservado aos índios oriundos de outras

aldeias extintas. A partir da década de 30 do século XX, as terras da referida reserva

começam a ser alvo da cobiça de grandes fazendeiros, ao mesmo tempo em que pequenos

lotes nas suas margens começam a ser arrendados a não-índios pelo próprio SPI. Após

sérias e violentas investidas, a quase totalidade das terras dos dois postos da reserva foi

invadida, o que culminou na quase total expulsão dos índios. Aqueles que resistiram

tornaram-se empregados nas fazendas vizinhas, ou permaneceram no que restou da sede do

posto localizado no norte da reserva, o Posto Caramuru, distante apenas 1,5 km da cidade

de Itaju do Colônia. Entre as décadas de setenta e oitenta do século XX, o governo do

Estado da Bahia concedeu títulos de propriedade aos invasores da reserva, com a

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justificativa de que alí “não havia mais índios, só meia dúzia de descendentes no posto

abandonado de Itajú do Colônia”v. Em 1982, a Fundação Nacional do Índio – FUNAI

entrou com um processo de Ação de Nulidade de Títulos junto ao Supremo Tribunal

Federal. Até o resultado do julgamento, inicialmente previsto para o ano de 2003, os índios

deverão se manter nas áreas retomadas através de ações de manutenção de posse ou de

negociações de pagamento de benfeitorias. Dos 54.099 hectares demarcados para a

instalação da reserva Caramuru-Paraguaçu, os índios gozam, apenas, da ocupação de

12.000 hectares, em áreas descontínuas e retomadas muito recentementevi.

A Metodologia do Trabalho

A investigação se apóia na observação sistemática, compartilhada, realizada em etapas

distintas, no decorrer das quais lançarei mão de entrevistas semi-estruturadas (individuais e

com grupos), através das quais poderei reconstituir micro-histórias de vida (das trajetórias

de contato e dos ciclos reprodutivos).

Após sistematizadas, as informações serão revertidas para o grupo investigado, a fim de

contribuir para a discussão e reflexão sobre o tema. O material coletado deverá servir aos

índios em diversas ocasiões, como, por exemplo, nas reuniões dos agentes de saúde e

Grupo das Mulheres Hãhãhãivii da aldeia Caramuru.

Como preocupação central desta proposta, decorre o requisito fundamental de atentar para

o complexo mosaico étnico que caracteriza a Reserva Caramuru-Paragussu – coexistência

de índios Pataxó hãhãhãi, Kamakan, Baenan, Kariri-Sapuyá, índios de Olivença. Neste

sentido, atenção especial será conferida à comparação dos próprios objetos descritos.

Como bem observa Fredrik Barth, “(...) trabalhando com os termos de uma moderna

concepção de cultura, não pode haver um método comparativo para as comparações feitas

entre objetos mais distantes e mais contrastivos (geralmente chamadas de comparações

entre culturas ou sociedades) e outro método (que poderíamos chamar de análise detalhada)

para as comparações feitas entre diferentes casos e vozes de um grupo designado, não

importando que o grupo designado ao qual consideramos que eles pertencem e ao qual eles

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consideram pertencer seja pequeno (...). Se reconhecemos a natureza contínua da variação

na cultura (...) e o caráter arbitrário das nossas distinções entre sociedades (...), as próprias

idéias de dentro e entre parecem perder sua força e utilidade” (Barth 2000: 195).

Considerações Finais

Para tentar dar conta das questões propostas, eu parto do suposto de que o gênero intersecta

modalidades de identidades discursivamente construídas – raciais, de classe, étnicas,

sexuais e regionais, o que torna impossível separar gênero de intersecções políticas e

culturais, nas quais é, invariavelmente, produzido e mantido (Butler 1990:3).

Deste modo, cumpre também levar em consideração as observações de Cecília Busby, que

aponta para o fato de que a definição do que venha significar as classificações de gênero em

uma determinada população é algo sempre sujeito a uma construção. Assim, mais do que

propriamente diferenças corporais, a questão do gênero está relacionada ao modo como as

pessoas negociam e alternam suas percepções de gênero e corpo nas várias relações que

constituem sua vida social (Busby, 1997).

Neste sentido, para tentar nortear a investigação, busco sempre levar em conta a premissa

de que as categorias de gênero são relacionais, e que no caso a ser pesquisado, são

interseccionadas por variáveis como memória histórico-social, identidade étnica, idade,

etc., e apoiadas em relações sociais com a terra, o trabalho, casamento e grupo doméstico.

Igualmente, serão privilegiados os modos de ação e as representações, buscando-se

verificar a relação entre a estrutura e a prática, ou como esta reproduz o sistema, e como

este, reciprocamente, pode ser mudado pela prática (Carvalho, 1998).

Algo assim tende a levar em consideração a acepção de Bourdieu, segundo a qual “as

representações são enunciados performativos que pretendem fazer acontecer o que eles

enunciam, ou então, restituir ao mesmo tempo as estruturas objetivas e a relação com estas

estruturas, é o mesmo que se munir do instrumento capaz de dar conta mais completamente

da “realidade”, portanto, de compreender e prever mais exatamente as potencialidades nela

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contidas, ou melhor, as possibilidades que ela oferece objetivamente às diferentes

pretensões subjetivas” (Bourdieu, 1998:112).

As interações que pautam a vida cotidiana dos índios Pataxó hãhãhãi nas relações de

sociabilidade que estabelecem com seus pares e com os não-índios engendram as

concepções de mundo que regulam a vida social na aldeia. Assim, as práticas cotidianas e

as relações de sociabilidade estão norteando a construção de um anteparo interpretativo que

faz do agregado de indivíduos uma coletividade específica, e revestem essas mesmas

práticas de significação e legitimidade, na medida em que possibilitam que dispositivos de

reconhecimento do grupo sejam acionados.

Notas

i A aldeia referida recebeu o nome da índia Bahetá, que, falecida em 1996 (supostamente de cólera) era considerada a última representante do povo indígene HãHãHãi, que, em 1926, juntamente com outros grupos (Baenã, “índios de Olivença”, Botocudo, Mongoió, Kamakan e Kariri-Sapuyá), foi estabelecido, pelo SPI, na Reserva Paraguaçu-Caramuru, no sul da Bahia, criada em 1926 com 20 léguas quadradas em florestas gerais e acatingadas. Os arrendamentos sucessivos celebrados pelo SPI, com regionais, levariam à completa intrusão da área e à expulsão dos índios, compelidos à dispersão pelas fazendas vizinhas. ii Genocida, no sentido de haver sido realizada com a intenção de destruir, no todo ou em parte, o grupo étnico, através de lesão grave à integridade física de membros do grupo; da imposição, intencional, de condições de existência capazes de ocasionar-lhes a destruição física total ou parcial; e da adoção de medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo (Lei No. 2.889 de 1º de outubro de 1956). iii A literatura etnológica divide, à luz de critérios geográficos e sócio-culturais, os Pataxó em dois ramos, ou seja, os setentrionais, aqueles a quem estou referindo, localizados no sul da Bahia, nos municípios de Itaju do Colônia, Pau Brasil e Camacã; e os meridionais, no extremo sul da Bahia, nos municípios de Porto Seguro, Santa Cruz de Cabrália, Itamaraju e Prado. iv Estado da Bahia. Diário Oficial. Salvador, 11/08/1926. Pp. 9935. v Depoimento de Maura Titia, índia Baenã, sobre a resposta que lhe foi dada pelos representantes do governo, quando questionados sobre a ilegalidade da distribuição dos títulos numa área demarcada para reserva indígena. vi A primeira retomada da área deu-se em 1982, uma fazenda denominada São Lucas, de 1079 ha. Em 1997 mais três fazendas foram retomadas. O processo de aceleramento de retomada do território teve vez a partir de 1999, quando os índios conseguiram avançar para áreas mais distantes do núcleo onde se concentravam. vii As mulheres Pataxó hãhãhãi reúnem-se, intermitentemente, para realização de atividades, como a preparação de remédios, considerada “medicina tradicional”, e confecção de roupas, bem como discussões que possam articular a participação dessas mulheres na vida política do grupo.

Referências Bibliográficas

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VI Reunião de Antropologia do Mercosul - “Identidad, Fragmentación e Diversidad”

O "povo de santo" do subúrbio carioca:

homoerotismo, religiosidade e 'cor'

Laura Moutinhoi Silvia Aguiãoii

Crystiane Castroiii

Grupo de Trabalho: Família, Gênero e Sexualidades: perspectivas contemporâneas em debate.

Coordenadoras: Flávia de Mattos Motta - UFSC e Anna Paula Vencato - UFRJ

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Introdução A negação, estigmatização e desconforto com a presença de homossexuais nos

candomblés são um ponto nevrálgico da literatura sobre as chamadas religiões afro no Brasil. Parte dos estudiosos compreendeu que os homossexuais eram motivo de “constrangimento” e um elemento a mais no estigma que sempre pairou sobre o candomblé, uma religião tida como menos prestigiosa na hierarquia religiosa (Birman, 1997: 229).

Assumir a identidade homossexual em alguns segmentos do “povo de santo” não

aparece, entretanto, como um dilema particularmente expressivo. Relacionar-se sexualmente com pessoas do mesmo sexo, tampouco aparece como um interdito, mas em alguns níveis, como, por exemplo, na idéia de formalizar a união no plano religioso, esta relação surge eivada de tabusiv. A despeito do visível crescimento das igrejas evangélicas, os candomblés se mantêm – de modo particularmente visível nos subúrbios e nas favelas cariocas -, como um espaço fundamental não somente de vivência e expressão da religiosidade mas, igualmente, de sociabilidade, lazer e encontros amorosos.

Neste paper, que possui, em verdade um caráter profundamente exploratório será

dado destaque aos cultos de possessão mais como espaço de sociabilidade do que como expressão de religiosidade. Esta é uma distinção que funciona apenas para um primeiro contato com o tema, posto que o ponto de partida que informa a presente pesquisa está calcado na idéia de que neste segmento as esferas religiosa e erótica aparecem não somente com uma ênfase particular mas, sobretudo, como fortemente intercruzadas. Maria Lina Leão Teixeira (1986) coloca o corpo no cerne deste cruzamento, por ser um “veículo” através do qual os orixás se manifestam, e, igualmente, uma das formas de expressão de si. (:02) Para Teixeira uma “sexualidade mítica” informa a construção das identidades sexuais neste contexto. Além disso, na interpretação de Patrícia Birman (1995), a homossexualidade encontra um lugar no candomblé por conta da própria lógica que estrutura o culto, posto que a possessão funciona como mecanismo de construção da diferença entre os gêneros. Voltarei a este ponto.

Por ora, entretanto, gostaria de destacar que alguns dos relatos surgidos no trabalho

de campo ainda que apresentem situações e apontem para espaços de acolhimento, não excluem a tensão que de modo mais ou menos explícito perpassa o tema da homossexualidade. Estas questões ganham contornos ainda mais complexos quando à homossexualidade são agregados a diferenciação racial, a miscigenação e o racismo. Os relacionamentos afetivo-sexuais heterocrômicos entre homossexuais são, neste sentido, um campo privilegiado para a análise. Desta forma, o objetivo deste paper é analisar a dinâmica dos afetos e prazeres presente nos relacionamentos afetivo-sexuais heterocrômicos entre parcerias gays que freqüentam os cultos de possessão do subúrbio carioca e discutir uma das formas (entre as muitas existentes) com que o “povo de santo” se insere na cena gay carioca.

Inicialmente, pretendia incluir na análise as parcerias heterocrômicas entre as

lésbicas freqüentadoras do barracão, que venho visitando há mais ou menos um ano e meio. O candomblé, entretanto, entrou em crise nos últimos meses por conta de uma série de divergências entre alguns filhos-de-santo com o pai-de santo local que vem sendo acusado de negligência e desleixo por estar sendo absorvido em excesso com um novo

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amor. Venho acompanhando de longe o conflito, pois o adév que me acolheu e abriu as portas do grupo está, justamente, no centro da disputa. Não quis me afastar do grupo pelo fato de, por um lado, não querer me perder de uma genealogia específica que se espraia pelo subúrbio carioca (todos ligados a um influente pai-de-santo do bairro de Madureira); por outro lado, além do candomblé o grupo costuma circular por algumas boates e/ou casas de amigos da região. Trata-se de um percurso interessante de sociabilidade, no qual eles me acolheram animadamente. Seguir este itinerário com eles tem me permitido compreender alguns dos caminhos e descaminhos do desejo que anima o grupo. Modificar a estratégia do campo iria, assim, comprometer o desenho da pesquisa.

Esta dinâmica ficará mais clara nas próximas páginas. A seguir irei apresentar com

o trabalho de campo foi estruturado e está se desenvolvendo.

O desenho da pesquisavi Há cerca de três anos venho entrevistando e convivendo com gays e lésbicas,

moradores de diversas regiões do Rio de Janeiro, como as favelas da Maré e Rio das Pedras,vii bairros do subúrbio e da zona sul, que tenham mantido ao menos, em algum momento de suas trajetórias, um relacionamento afetivo-sexual heterocrômico. A esfera religiosa não havia sido pensada no desenho original da pesquisa. Meu foco eram os casais, rolos e ficantes inter-raciais e não tinha intenção de explorar diretamente de que forma essa dimensão se inter-relaciona com outros aspectos da vida dos sujeitos da pesquisa.

O erótico e a própria dinâmica dos afetos e prazeres estão, como dito, fortemente

intercruzados com a esfera religiosaviii no candomblé. Além disso, como nos demais ambientes religiosos, o candomblé também funciona como um espaço de lazer e facilitador de encontros amorosos. A diferença reside, entretanto, no fato de que neste segmento homossexuais “assumidos” não somente circulam abertamente como possuem um espaço, ainda que eventualmente tenso, no próprio culto. Assim, a partir de certo momento do trabalho de campo, para ter acesso às trajetórias sexuais/amorosasix foi necessário que eu adquirisse alguma competência no santo. A leiga, como fui chamada, passou a perguntar e tentar entender como “raça”, (homos)sexualidade e religiosidade eram articuladas, construídas e vividas neste segmento religioso, bem como se intercruzam com as esferas normativa e erótica.

Desde minha primeira visita à favela da Maré, subúrbio do Rio de Janeiro, na busca

por casais, rolos, ficantes “inter-raciais”, o “povo do santo” foi, por assim dizer, entrando em minha pesquisa e me conduzindo para outras regiões como os bairros de Madureira, Vila Kennedy, Senador Camará e Brás de Pina. Trata-se de “um povo” que paquera e namora muito entre si. Como me disse um dos entrevistados ao ser perguntado sobre as relações afetivo-sexuais no barracão: “uai, minha filha (...) você está para o seu santo, mas não é cego, né?! Festa de santo é festa nossa....”.

O trabalho de campo consiste em entrevistas no formato história de vida, quando procuro registrar tanto a trajetória afetivo-sexual dos entrevistados quanto as experiências religiosas, escolares, no mercado de trabalho, bem como os cálculos que cada um faz com relação à prevenção às DSTs/Aids. Além disso, percorro candomblés, boates, esportes ou qualquer situação de lazer que seja convidada para participar. As fofocas sexuais compõem um importante espaço da pesquisa, sobretudo, no caso dos jovens. Aconteceu algumas

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vezes de após uma entrevista ou depois de uma animada conversa sobre sexo e paqueras com o grupo, ser puxada para um canto e ouvir aos sussurros que o que “fulano” falou não é bem assim e que, na verdade, ele gosta de...e a conversa envereda para detalhes picantes, sempre contado em tom de riso e galhofa, sobre um ou mais membros do grupo. Este tipo de rumor, ainda que disseminado e presente nas conversas, como aliás, a freqüente desconfiança com relação à performance viril dos ogãsx, não foi apresentado como possuindo um caráter poluidor, no sentido que lhe empresta Mary Douglas (1966), mas como parte de um jogo lúdico, que não oferece exatamente perigo de perda de prestígio ou posição. Importante destacar, neste sentido, que as fofocas e as relações jocosas não são diretamente despertadas pelo tema da pesquisa. Como vários autores destacaram este segmento religioso tem como marca as rivalidades e fofocas, disputas e ironias, ou seja, aquilo que literatura destaca como “xoxação”. (Cf. Fry, 1982; Teixeira, 1986; Birman, 1995, entre outros).

São muitos os mapas ou territórios de encontros que vêm se delineando na

pesquisa. Algumas boates apareceram nas falas de meus entrevistados como locais de encontros amorosos entre indivíduos de classes e cores diferenciadas. O Buraco da Lacraia no Bairro de Fátima, o Cabaré Casa Nova na Lapa, a Le Boy em Copacabana, foram citados como espaços onde gays e lésbicas de distintas regiões do Rio de Janeiro se encontram, paqueram, fazem sexo e se separaram (ou não).

Há outros circuitos mais fechados, digamos assim, para certas “tribos”. Na zona sul

carioca, além da festa X-Dementexi, faz parte do que pode ser chamado de ‘circuito GLS’ underground carioca, boates como Dama de Ferro (Ipanema), Galeria Café (Ipanema), Fosfobox (Copacabana), Fredoom (Barra), 00 (Gávea) que tem somente um diaxii dedicado a este público e festas como a B.I.T.C.H. (cuja sigla significava “Barbies in total control here”)xiii.

No subúrbio carioca as “quartas-feiras gays” do Shopping Madureira, o “vôlei dos

gays” da praça do Cemitério de Irajá às terças e quintas-feiras, a 1140, boate de Jacarepaguáxiv, bem como o próprio circuito dos barracões de candomblé e as escolas de samba, também apareceram na pesquisa, cumprindo este papel.

Cabe destacar, ainda, um ponto importante, que faz com que o circuito dos

barracões de candomblé adquira relevância no interior de um eixo mais amplo: os homossexuais masculinos, tanto os moradores do subúrbio quanto das favelas parecem ter um “campo de possibilidades” (Cf. Velho, 1994) a ser explorado no mercado afetivo-sexual carioca diferenciado das moças e rapazes heterossexuais destas regiões. Para os mais escuros, em especial, é possível percorrer e ultrapassar de diferentes modos e com distintas interações as linhas de classe do Rio de Janeiro. Neste aspecto, é importante ter em mente, o idioma de gênero, “raça” e sexualidade dominante nestas regiões e sua articulação com violência e o tráfico de drogas em cada território observadoxv.

Por fim, é preciso explicitar que a análise de Luiz Fernando Dias Duarte (2003) traz

um importante aporte para o presente estudo. Duarte vem trabalhando com uma perspectiva que inverte a lógica tradicional que explica a adesão religiosa. A perspectiva tradicional destaca a influência da religião sobre o ethos e estilo de vida dos fiéis. O autor problematiza

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essa perspectiva defendendo, ao contrário, que seria o estilo de vida que influenciaria a escolha religiosa. Duarte fornece, neste sentido, um novo aporte que, no caso da pesquisa em questão, permite explorar sob outro ângulo a(s) escolha(s) religiosa(s) dos entrevistados e a forma com que eles vivem e refletem sobre suas experiências amorosas e sexuais neste e em outros ambientes. O mercado dos afetos e prazeres homossexual e heterocrômico entre o “povo de santo”

No candomblé, os namoros e as paqueras hetero- e homossexuais devem seguir

uma etiqueta cuja a tônica é a discrição. De acordo com alguns relatos de gays que entrevistei, no ritual os “viados” “respeitam mais que o sapatão”: trocar de roupa na frente de um “irmão de santo”, por exemplo, não é problema, mas “a sapatão” expressa certa “malícia” neste momento.

O comportamento dos homossexuais masculinos, entretanto, está freqüentemente

sob suspeição e a percepção generalizada é de que eles precisam de limites, pois são homens e, quando “além de homem é homossexual, a coisa piora”, como destacou Saulo, “moreno”, de 18 anos. A idéia de que os homens, especialmente os homossexuais, estão sempre prontos para a “caça sexual” (Heilborn, 2004), é recorrente nos estudos sobre homossexualidade.xvi Neste contexto, entretanto, esta questão ganha contornos particulares.

Patrícia Birman (1995) seguindo uma pista aberta pioneiramente por Peter Fry

(1982)xvii forneceu a chave para se entender o lugar dos homossexuais no culto, ao explorar as construções de gênero nos cultos de possessão e explicitar que o candomblé opera através da possessão (e não da ordem biológica), uma contínua inversão simbólica dos gêneros. Desta forma, o masculino é definido no candomblé em oposição à possessão. O pólo feminino, entretanto, não é definido como oposto do masculino, o que significa que acolhe indivíduos que, do ponto de vista biológico, podem tanto ser do sexo masculino como do feminino. Deste modo, o gênero feminino “recebe santo”, não importando se o sujeito é biologicamente masculino.

A sobreposição entre a etiqueta do santo e a social é ainda compreendida por parte

da literatura que trata do tema como resultado do impacto do escravismo na organização religiosa, que reforçou a família do santo, em detrimento da sanguínea. A sexualidade aparece como um dos elementos que ganharam contornos particulares neste cenário, como por exemplo, na desvinculação do sexo da reprodução, contribuindo para a elaboração de um idioma de gênero distinto daquele que informa e organiza a sociedade mais ampla. (Cf. Segato, 1995; entre outros autores).

Nesse sentido, como parte da literatura consultada reconhece, nos rituais estas esferas podem, eventualmente, ser inter-cruzadas, com os flertes se superpondo à performance do santo. A narrativa de João, 22 anos, “moreno-branco” é ilustrativa:

“vamos dizer, você tá na roda do candomblé, você vê... - homem em si já é mais nervoso, mais atirado, imagina sendo homossexual?! Os homens, até mesmo as mulheres, elas tão dançando mas a gente tá vendo tudo o que tá acontecendo, você vê que a gente fica assim olhando, prestando atenção em tudo, porque a gente tem

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que tomar conta da casa, né? (...) Aí, vamos supor, entra... sou sozinho, entra o [fulano] e eu me interesso. Eu vou dar uma encarada pra ver qual é e tal”. Para Mateus, negro, de 18 anos, o barracão não é local de paquera. Ele até

conheceu um ex-namorado branco em um candomblé, mas concebe o barracão e o momento ritual como de dedicação aos orixás. Mateus esclarece, assim, que quando está no candomblé “se dedica ao santo” mas que às vezes acontece envolvimento porque “há muita gente bonita aqui”. E contou que certa vez “fui para assistir uma coisa e... acabei fazendo outra”. Como a “festa do santo é festa nossa”, o ritual para o santo pode se intercruzar com o ritual de paquera. Assim, não se paquera com as entidades, mas entre um despertar ou outro, sempre se olha em volta. As relações entre homens e entidades transformam a paquera em um ritual de duas dimensões, nas palavras de João:

“se a pomba-gira te encosta... A pomba-gira pode falar... ela pode deixar um recado pro médium que ela está incorporada de que é pra tomar cuidado com a pessoa, que a pessoa não vai ser boa pro cavalo”. Mas há limites: “interferir... a pomba-gira virar e falar: ‘eu que encostei em fulano pra fulano sair’. Isso não existe, é mais coisa que o povo fala. Usa o nome da pomba-gira pra fazer tudo o que tem vontade”.

O fato de distintas esferas de vivência estarem imbricadas coloca freqüentemente sob suspeição a performance no santo, chamando atenção para as “falsas possessões”. Vejamos um relato ilustrativo: “a primeira vez que [fulano] viu a pomba-gira do meu pai eles pensaram até que a pomba-gira tava cantando ele porque a pomba-gira chegou pra ele e falou assim: ‘quando o senhor precisar de mim, fala comigo e com o meu menino’”. Só falou assim... “Esse viado tá de fingimento... Tá me cantando...”. Para Fry (1982), uma das facetas da falsa possessão está diretamente relacionada à

paquera. Recorre-se ao transe e à autoridade que os espíritos conferem para explorar interesses sexuais e eróticos. João, inclusive, é categórico sobre este ponto: “rola muito fingimento...Por que Pomba Gira vai perder o tempo dela pra cantar alguém por mim?”. Birman (1997) associa este evento, assim como o próprio lugar dos adés no ritual, à lógica de alteridade e do feminino que estrutura o candomblé. Os adés não são aqueles que exploram a aflição ou a queixa, mas sim, as potencialidades abertas pela linguagem do santo, do sexo e do erotismo.

Os amores vividos podem receber a intervenção das entidades. Nesse sentido, a

transgressão que exsuda dos jogos de cena e brincadeiras adquire um sentido particular na hierarquia religiosa do candomblé. Na perspectiva apresentada por João, essa dupla esfera de ação está relacionada às experiências terrenas dos orixás. Os santos católicos experimentaram a vida terrena de modo santificado, com “uma vida muito voltada para a caridade”. No caso do candomblé, todo exu, por exemplo, é apegado à vida mundana e os orixás, ainda que possuam “mais luz”, trazem parte da experiência humana.

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A “compostura” como atitude que impõe respeito e proteção contra as fofocas, os rumores e os mal-entendidos se coadunam com uma certa etiqueta religiosa, que reaparece quando a questão racial entra em cena. João, por exemplo, diz que “gosta de sair com preto”, por ter “muita atração” pela cor:

“Olha, acho que tudo é a forma como você se porta. Tudo é sua postura. Vamos botar assim: se você tiver passando na rua, na frente de um bar onde tem um monte de homens bebendo passar um homossexual preto de unha pintada de rosa, de short curto desfiado aparecendo a popa da bunda, cabelo pintado de loiro, vários brincos na orelha... ele tá pedindo o quê? ‘Bicha preetaa!’ É a primeira coisa que falam. É a primeira, porque se você perceber todo mundo discrimina um pouco a cor negra”.

Assim, para João não é complicado sair e namorar um negro, se ele tiver “boa

postura”. Tal atitude seria capaz de neutralizar a discriminação racial. Enquanto conversávamos sobre o tema, João recriminou o racismo dos homossexuais, pois considera que aquele que sofre tanta discriminação, “tem que ser a última pessoa a ter discriminação, a discriminar qualquer coisa”. O próprio termo “racismo” é freqüentemente utilizado como sinônimo de discriminação – formulações como “havia muito racismo contra homossexuais” são registros comuns no trabalho de campo. Para Mateus e vários outros entrevistados, tem muito casal inter-racial nos barracões “porque o povo do candomblé está acostumado com os pretos”xviii. Por este motivo ele também defende que não há racismo neste espaço. Como no universo das relações heterocrômicas e heterossexuaisxix a idéia de “convivência” é chave para que se possa compreender sua posição: “a gente convive mais e, é claro, mistura! Tem preto, tem branco, tem moreno... Então, não rola isso, não...”. É interessante notar, entretanto, que a “convivência” não aparece como vetor explicativo com relação ao preconceito contra os homossexuais, sobretudo, no espaço da rua. Ele diz assim: “às vezes você passa na rua, você nem mexe, a gente nem fala nada. Aí a gente ta passando e: “viadinho!” ou “ah, vai marica, bichona!”. Entre os brancos entrevistados a cor negra como fator de atração aparece como o motivo principal dos encontros amorosos-sexuais. No dizer de Paulo, pai-de-santo branco, com cerca de 30 anos: “eu acho a cor mais bonita, mais chamativa. Especialmente, a cor mulata...quer dizer, um mulato acaba sendo um negro mas de cor mais clara, tonalidade mais clara”. Para João: “vamos botar assim, o homem é negro e assim se veste bem, anda perfumado, unha feita, é vaidoso, aquilo me atrai...”.

Interessante notar que quando o assunto muda para a beleza dos ogãs negros que

tocaram na saída de uma Iaôxx que eu tinha assistido uma semana antes, a cor negra perde relevância. Para João, os “gays” se atraem pela postura viril dos ogãs e os ogãs se atraem pelos gays porque “eles fazem o que as mulheres não gostam de fazer...Aí, eles acabam procurando o que? Os viados!”.

Vejamos a seguir como o universo do “povo de santo” se inter-relaciona com outros espaços próprios da cultura GLSxxi carioca.

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Intersecções do desejo: do circuito do “santo” para o circuito da “pegação” A maior parte dos entrevistados não se mantém apenas nos candomblés, escolas de

samba e boates do subúrbio. Ir às boates, à praia de Copacabana e à Lapa é um programa que eles fazem com alguma regularidade. Às vezes vão para “zoar” e paquerar, outras vezes para “fazer dinheiro”.

Saulo, um rapaz negro, morador do subúrbio de 24 anos, faz parte deste grupo de

amigos – todos de santo - que circula pelos points do subúrbio e da zona oeste. Às vezes ele vai à boate Le Boy, em Copacabana ou na boate Help, situada no mesmo bairro, para “pegar” uns “gringos” e “fazer um trocado”. Ele faz sucesso entre homossexuais brancos e estrangeiros e com os negros forâneos disse passar despercebido para os angolanos, pois “eles só querem branquinhos”. Os mais bonitos, entretanto, são os negros norte-americanos. Com eles, Saulo já “saiu”. É interessante notar como as noções de raça e cor intercruzadas com nacionalidade compõem um quadro hierarquizado de ofertas sexuais no mercado do amor e do sexo em Copacabana. Alguns destes contatos podem, inclusive, desdobrar-se em um vínculo mais longo. Saulo aponta o negro africano como o menos prestigiado neste contexto.

Este é um aspecto interessante. Marcelo Ferreira (2005) trabalha exatamente com o

desconforto do mercado do turismo carioca com negros norte-americanos de alto poder aquisitivo, que somente circulam por locais “brancos”. Neste “turismo afro-americano”, com viés fortemente militante, as mulheres negras aparecem, de acordo com o autor, em um lugar central. Trata-se, de fato, de um turismo mais “família”, que tem como destino principal o Rio de Janeiro e a cidade de Salvador, no qual a demanda por viver (e se alimentar) de um mercado étnico/racial é organizada pelas mulheres. A busca por “autenticidade” (Piscitelli, 2004) é uma categoria-chave neste universo. No caso do chamado “turismo sexual”, Ferreira notou que ao invés de grandes grupos, este viajante vem no máximo com três pessoas, com pouco interesse pelos pontos turísticos tradicionais e mesmo pela forma como se organizam as relações entre brancos, negros e mestiços no Brasil. Para estes viajantes a “mistura” não aparece como um problema.

De acordo com Blanchette e Silva (2004) que analisam o mercado sexual

(heterossexual) carioca, especialmente, o que prevalece em Copacabana, o Rio de Janeiro funciona como um “campo de diversões sexuais” para estrangeiros por conta da desvalorização do Real frente ao Euro e ao dólar; pela idéia de que em relação a outros mercados como a Ásia, África, Oriente Médio, o Rio de Janeiro seja tido com um espaço relativamente seguro e pelo fato de que o mercado do sexo conta com uma estrutura qualificada de organização, com termas e boates. Dentre os fatores perfilados pelos autores chama atenção, embora não surpreenda, a crença na sensualidade particular da mulher brasileira. É significativa a percepção de que as garotas de programa se prostituem, mas “não agem como putas”. Deste ponto, interessa-me reter a idéia de que a situação assim percebida facilitaria a transformação dos envolvimentos sexuais em afetivos. Uma percepção que também se faz presente entre as garotas de programa.

Piscitelli (2001) trabalha com um conceito de turismo sexual que auxilia na

compreensão deste universo, que, como vem evidenciando meu trabalho de campo, não se

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restringe ao turismo heterossexual. Vejamos o que diz a autora: “o turismo sexual é (...) qualquer experiência de viagem na qual a prestação de serviços sexuais da população local em troca de retribuições monetárias e não monetárias seja um elemento crucial para a fruição da viagem”.

As trajetórias de Saulo e de outros rapazes negros guardam, inclusive, semelhanças

interessantes com as das mulheres pesquisadas por Piscitelli (2004), no qual a sexualidade alarga a “agência” dos entrevistados, bem como desestabiliza o roteiro tradicional da desigualdade carioca. A trajetória de Marcos expressa o que estou tentando enfatizar. Marcos tinha pouco mais de 20 anos quando eu o entrevistei, fazia telecurso, nunca tinha tido namorado ou ficado com uma mulher: “nunca nem beijei mulher”, ele disse. Afirmou também que gosta muito de homem bonito, que freqüenta a Lapa, uma boate de Bangu e algumas outras de Copacabana. Foi em uma delas que ele conheceu um namorado europeu, branco, com quem namorou por seis meses, chegando a morar com ele em Ipanema. Marcos contou que ele e vários de seus amigos negros vão para as boates da zona sul encontrar os gringos: “Tem muitos gays que vem para o Brasil e eles gostam muito de paquerar os negros”. Segundo sua explicação, os gringos acham que os “negros tem mais calor, que tem uma coisa diferente”. E para ele os gringos “são legais” porque “eles têm uma cultura diferente”. Marcos não acha os gringos fisicamente muito atraentes, não. Ele se “atrai” pelo “jeito de ser”: “ser pessoas de fora, de outro país”. Disse ainda que “é legal ter contato com uma pessoa que me mostra coisas que eu só vejo na televisão”. Marcos explicou da seguinte forma este tipo de encontro: “trocar informação. Ele fala dele; como ele vive lá e eu falo como vivo aqui. Então isso é muito interessante, é bem legal você explorar isso dele e ele explorar isso da gente”.

Sexualmente ele diz que é “normal”. Mas que os gringos acham que eles são fogorosos! No mercado do amor e do sexo Marcos considera que não tem chance com os brancos brasileiros, “porque eles dão preferência ao pessoal que é dali, da zona sul” E que com os “gringos” isso não acontece. “Eles acabam dando preferência para a gente, principalmente por ser negro. Amigos meus, gays e brancos dizem: “puxa! O que vocês têm? A gente fica de escanteio”. Eu também não sei o que é isso...”, disse ele gesticulando enfaticamente de modo a expressar espanto e incerteza. A perspectiva apresentada por Marcos é muito interessante pois está todo o tempo falando em troca. Ele morou com o gringo, ele ia a festas, conheceu gente de vários países: ele aprendeu e deu informações e ao mesmo tempo também as recebeu. Interessante, por exemplo, é que quase todos os dias ele voltava para a região onde reside para ver os amigos, para matar saudade, como explicou de modo evasivo... Sobre discriminação, ele me disse que é muito difícil ser negro e homossexual: “nenhuma família merece!”. Mas que onde mora é mais complicado ser gay do que ser lésbica. Ele acha que elas são mais respeitadas. Ele se sente muito discriminado mas é “boyzinho” (quer dizer se veste como homem) e que o pior mesmo é ser “travesti”. Disse que os homens nem conversam com “travesti”, porque se ele sentar com uma para conversar vai todo mundo dizer que “ele tá pegando um travesti, uma “travola”’, como elucidou.

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Marcos disse que sentia atração sexual por homens brancos, mas o outro motivo que o levava a não sair com negros se referia a “oportunidade”. Sua fala possui eco com a de outros entrevistados: “parece que um negro não gosta de outro negro. (...) Acho que dentro deles deve existir algum preconceito, algum bloqueio, alguma coisa”.

Perlongher (1987), em O Negócio do Michê demonstra como gênero, classe e idade e, de forma mais porosa, “raça”, constituem categorias que funcionam como tensores libidinais que orientam os sujeitos na busca por corpos e prazeres. A representação corrente de um forte erotismo associado à cor negra – que neste ponto não se diferencia nas relações homo ou heterossexuais, nas quais o negro ou o pólo mais escuro aparece associado à maior excitação e desempenho sexuais – não deve ser percebido de forma estática. O contraste branco/negro – mais claro/mais escuro povoa o universo erótico dos encontros. A cor e a raça também aparecem como um elemento a mais – e de fundamental importância – na elaboração estética que acompanha e constitui, por exemplo, o espaço do candomblé.

Faz-se necessário enfatizar, por fim, que, na pesquisa realizada até o momento, a correlação entre cor/raça e erotismo entre parcerias gays e lésbicas heterocrômicos, não apresenta diferenças substantivas em relação aos relacionamentos afetivo-sexuais inter-raciais entre heterossexuais (Cf. Moutinho, 2004). Além disso, tem sido mais difícil trabalhar com a questão racial neste campo do que anteriormente (idem). De fato, o referencial da homossexualidade se sobrepõe ao da raça. Ainda que nos jogos eróticos encenados no candomblé e em outros espaços a cor e a raça apareçam associadas ao erotismo e que todos considerem que o candomblé seja mais acolhedor para com relacionamentos afetivos-sexuais heterocrômicos.

Vale ainda destacar que tanto nos arranjos heterocrômicos homossexuais quanto

entre os heterossexuais a raça/cor não evoca uma distinção moral. Caráter, por exemplo, é algo que se desenvolve com a criação (socialização) não tem a ver com raça. As falas remetem, sobretudo, para a dificuldade de se articular duas formas distintas de desigualdades. Por um lado, raça/cor e homossexualidade compõem na fala dos entrevistados um somatório de discriminações (Cf. Stolcke, 1991). Por outro lado, no eixo da discriminação, a homossexualidade e a homofobia aparecem como categorias dominantes, que encompassam o racismo.

De acordo com alguns jovens filhos-de-santo negros, a principal dificuldade sentida refere-se à forte articulação entre virilidade e raça negra. Tal associação possui enorme atrativo no mercado dos afetos e prazeres cariocaxxii, mas também contribui para dificultar a aceitação da homossexualidade em certos contextos, sobretudo, em certas regiões empobrecidas e favelizadasxxiii.

O universo pesquisado se aproxima de algumas das reflexões tecidas por Perlongher

(1993), em especial, das que dizem respeito às questões relativas à territorialidade, à identidade e aos desejos que animam os mercados do prazer e do sexo. Para o autor, em vez de dissertarmos sobre identidades talvez seja conveniente falarmos de territorialidades - uma sugestão particularmente interessante posto que o tema ora sob análise se desenrola em um espaço profundamente marcado por facções violentas, que atuam em inúmeros territórios na cidade do Rio de Janeiro, conferindo, neste sentido, contornos específicos às distinções de raça, sexualidade e gênero.

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Assim, os sujeitos circulam por uma “trama” e por “redes” definindo-se a partir de

sua “trajetória e posição ‘topológica’ na rede”. O ponto da reflexão de Perlongher que interessa diretamente a esta pesquisa refere-se a maneira de compreender os sistema classificatórios: são “sinalizadores” de intensidades libidinais, cujas mudanças tornam visíveis (como, por exemplo, as trajetórias de Marcos e Saulo evidenciaram), alguns dos (des)caminhos de um desejo “viceja na transgressão” (Bataille, 1988) e está em contínuo movimento, mas, igualmente, que (re)ordena, reconfigura e por vezes obscurece as hierarquias e desigualdades que conformam o tecido social.

Notas i Doutora em antropologia pelo PPGSA/UFRJ, professora visitante do PPGSC/IMS/UERJ e pesquisadora do Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos - CLAM/IMS/UERJ. [email protected] ii Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva (PPGSC/IMS/UERJ) e pesquisadora assistente do Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos - CLAM/IMS/UERJ. [email protected] iii Estudante de graduação do curso de Ciências Sociais (UERJ) e assistente de pesquisa do Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos - CLAM/IMS/UERJ. [email protected] iv A relação entre homossexualidade e religiosidade foi explorada mais detalhadamente no artigo “Homossexualidade, cor e religiosidade: flerte entre o “povo de santo” no Rio de Janeiro”, que será publicado na Coletânea Família, Religião e Sexualidade, organizada por Maria Luiza Heilborn e Luiz Fernando Dias Duarte (no prelo). v São assim chamados os homens que mantém relações sexuais com homens e que entram em transe no culto. No candomblé em questão a categoria mais utilizada para homens que mantém relações sexuais com homens é “entendido”, considerada mais amena e respeitosa do que outras que eles também utilizam como “viado”, “bicha” e “gay’. vi Esta pesquisa integra o projeto Recém-Doutor que desenvolvo no âmbito do IMS e do CLAM. A pesquisa foi apoiada inicialmente pelo CNPq e atualmente faz parte do “Projeto Integrado Sexualidade, Gênero e Família: rupturas e continuidades na experiência da pessoa ocidental moderna”, coordenado por Luiz Fernando Dias Duarte (PPGAS/MN/UFRJ) e Jane Russo (CLAM/IMS/UERJ). Recebe, no momento, subsídios da FAPERJ e do programa “Cientista Jovem do Nosso Estado – FAPERJ/2003”. Nesta parte do trabalho, venho contando com o apoio fundamental de Crystiane Castro, estudante de ciências sociais da UERJ. Fazem parte da equipe de pesquisa: Silvia Aguião (pesquisando a favela de Rio das Pedras), Vítor Grunvald (bolsista de Iniciação científica pela FAPERJ, que pesquisa na Internet e nos chats homossexuais) e Débora Baldelli (festas/boates de música eletrônica da zona sul carioca). vii Sobre o intercruzamento entre raça, gênero e violência na favela de Rio das Pedras, Cf. Moutinho, 2002. viii De acordo com Bataille (1988), o erotismo “viceja na transgressão”.Em termos formais pode-se dizer que enquanto o cristianismo se construiu em oposição ao “espírito da transgressão”, no candomblé estes domínios não foram elaborados em oposição. Mas no caso do catolicismo brasileiro é preciso ter mente que o sincretismo entre santos católicos e os orixás torna a experiência religiosa muito mais dinâmica e complexa do que a primeira aproximação que estou esboçando neste paper permite entrever. Além disso, há que se considerar a crença de que - como apontou, entre outros, Gilberto Freyre - o catolicismo que adentrou em solo brasileiro trazia junto com o colonizador português a sensualidade e uma forte cultura sexual. Sobre o tema do erotismo, ver também Gregori (2003). Sobre o caráter excludente das religiões cristãs, ver Carrara & Ramos (2005). Sobre homossexualidade e pentecostalismo, ver Natividade (2003 e 2004). ix A noção de carreiras sexuais/amorosas tem como aporte a idéia de que a sexualidade é experimentada, percebida e vivida de acordo com os roteiros de socialização - com base em gênero, raça/cor, orientação sexual e religiosa, classe, idade entre outras categorizações -, aos quais os indivíduos estão submetidos ao longo de suas trajetórias de vida. Cf. Heilborn, 1999.

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x Forma como são chamados os homens iniciados que não entram em transe. Diferentemente dos adés a performance dos ogãs é viril e seu desejo sexual se dirigem à meninas e não meninos como no caso dos adés. xi A X-Demente é conhecida como a festa das “Barbies”, referência para a identificação de homens gays fortes, malhados e musculosos, geralmente de peito raspado, que compõem a maior parte do público freqüentador da festa. A X-Demente é composta por um público predominantemente masculino e branco, sendo reconhecida como uma festa de “pegação gay masculina”. (Baldelli & Moutinho, 2004:5/6) xii No período em que a maior parte do trabalho de campo foi realizado nesta área, era aos domingos, recentemente as quintas-feiras passaram a ser o dia da semana dedicado ao público GLS. xiii Sobre o tema Cf. Baldelli & Moutinho, 2004. xiv A 1140, junto com a Le Boy de Copacabana, a Freedom na Barra da Tijuca e a Hábeas da Tijuca compõem o circuito mais amplo das “boates gays”, que não se restringem ao gênero eletrônico. xv Sobre o tema Cf. Moutinho, 2002. xvi Cf. Heilborn (2004), entre outros. xvii Fry (1982) foi o autor que enfrentou pioneiramente a polêmica em torno da etnografia de Ruth Landes (1947), abrindo espaço para que a homossexualidade pudesse ser analisada sob nova perspectiva. Landes inaugurou as análises sobre gênero e homossexualidade no candomblé, adotando uma perspectiva que foi, entre outros motivos, responsável pela sua exclusão acadêmica. Sobre o tema ver, entre outros, o prefácio de Mariza Corrêa e a apresentação de Peter Fry à 2ª edição de A Cidade das Mulheres, publicada em 2002. xviii Para uma relativização de que as religiões afro eram populares e freqüentadas exclusivamente por negros, ver Maggie, 2001. xix Cf. Moutinho 2004 a. xx Iaôs são “filhos de santo (...) que estão cumprindo seus deveres religiosos e aprendendo o conhecimento gradativo que o processo iniciático supõe. Tem um papel menor na estratificação do grupo, mas são a mão-de-obra maior utilizada nos serviços. (...) Não devem questionar as ordens que lhes são dirigidas pelos irmãos mais velhos ou pela hierarquia de mando do terreiro”. (Teixeira, 1986: 210) xxi Sigla para Gays, lésbicas e simpatizantes ou suspeitos como se diz em tom anedótico e provocativo. xxii Cf. Moutinho, 2002 e 2004. xxiii Sobre o tema Cf. Brandão (2004), Alvito (2001), Cunha (2002), Moutinho (2002), Zaluar (1994). Bibliografia ALVITO, Marcos (2001) As cores de Acari, Rio de Janeiro: Editora FGV. BALDELLI, Débora & MOUTINHO, Laura (2004) “‘Hoje eu vou me jogar!’ – Indivíduo, corpo e transe ao som da música eletrônica”. Paper apresentado na XXIV Reunião Brasileira de Antropologia, Olinda, Pernambuco. BATAILLE, Georges (1998). O Erotismo. Lisboa, Ed. Antígona. BERQUÓ, Elza (1988). “Demografia da Desigualdade”. Novos Estudos (Cebrap), nº 21, pp. 74-85. BIRMAN, Patrícia (1995) Fazer estilo, criando gênero. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1995. BIRMAN, Patrícia (1997) “Futilidades Levadas a Sério: o candomblé como uma linguagem religiosa do sexo e do exótico”. In: Vianna, H (Org) Galeras cariocas: territórios de conflitos e encontros culturais. Rio de Janeiro: UFRJ. BLANCHETTE, T. e SILVA, Ana Paula A mistura clássica; o apelo do Rio de Janeiro como destino para o turismo sexual. Rio de Janeiro, Leitura crítica, 2004. BRANDÃO, André Augusto (2004) Miséria da Periferia: desigualdades raciais e pobreza na metrópole do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Pallas Editora; Niterói: PENESB. CARRARA, Sérgio, RAMOS, Sílvia (2005). Política, direitos, violência e homossexualidade: 9ª Parada do orgulho GLBT – Rio 2004. Rio de Janeiro: CEPESC/IMS/UERJ.

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Título: Gênero, Gerações e Modos de Vida. Autora: Mara Coelho de Souza Lago 1 [email protected] Instituição: Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC Margens – Núcleo de Pesquisa Modos de Vida, Família e Relações de Gênero.

Titulação: Doutora em Psicologia Educacional – UNICAMP- SP Mestra em Antropologia – UFSC-SC

Resumo

Em pesquisas realizadas em municípios da Região Metropolitana de Florianópolis

(Antônio Carlos e Biguaçú), sobre gênero, gerações e subjetividades, focalizando as

trajetórias de sujeitos egressos do meio rural, no processo de migração para a cidade, ou de

urbanização de seus espaços de vida e trabalho, foram entrevistados mulheres e homens de

três gerações.

A análise das entrevistas tem trazido um material precioso para refletir sobre gênero

e gerações suscitando questões específicas sobre vínculos familiares, escola, trabalho,

parentalidade, aposentadoria, viuvez, a casa e os afazeres domésticos.

O trabalho tem se desdobrado com a utilização de técnicas da antropologia visual,

produzindo fotos e vídeos que, além de ilustrarem melhor todo o contexto das pesquisas,

têm propiciado um retorno interativo do trabalho de campo aos sujeitos entrevistados.

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As questões teóricas, o trabalho de campo, os sujeitos

Gênero é um tema interdisciplinar e esta afirmação já é um lugar comum. Numa

posição acadêmica interdisciplinar na área das ciências humanas (sociais, portanto), com o

interesse flutuando entre disciplinas (antropologia – psicanálise – psicologia social), com

diferentes olhares sobre o(s) mesmo(s) objeto(s), os esclarecimentos conceituais se fazem

mais necessários (do que realmente já o são, no interior de uma mesma disciplina, a partir

de diferentes quadros teóricos).

– Quais as questões? – Que conceitos precisam ser explicitados?

Da discussão sobre sujeitos, subjetividade, identificação, identidade (conferir Lago

1999, 2004) retomemos a questão das identificações. Identificação como uma categoria

diferenciada e superadora da concepção de socialização, tão cara às explicações

sociológicas que repetidamente caem na distinção opositiva entre indivíduo e sociedade.

No centro das análises desta linha de pesquisa há uma concepção de sujeito cuja

dimensão social não resulta de um processo gradativo de inserção, em um indivíduo,

daquilo que desde fora lhe é ensinado/acrescentado, num movimento de internalização (a

socialização é reduzida, assim, à sua dimensão de aprendizagem). Ao contrário, o processo

de constituição de sujeito se dá no sentido da individuação de um ser desde sempre cultural.

Um ser biológico em absoluto estado de desamparo, necessitando de cuidados (função de

mãe, função de pai, sejam exercidas por quem for), que nasce na cultura, na sociedade, na

linguagem, que é falado, significado e fala, significa. Identificado, identifica-se, diferencia-

se, constitui-se em particularidades e, se pode dizer eu de si mesmo, é porque nos processos

inconscientes de identificações, vai construindo a memória de si, um conhecimento

organizado de sua própria trajetória, uma história de vida que o particulariza, individualiza.

Sujeito significante, culturalmente significado, sujeito do inconsciente, da falta, incompleto,

desejante. Sujeito cultural que transita na cultura e não pode ser oposto à dimensão social.

Uma concepção que se distancia do sentido (mais atraente) de sujeito da vontade,

consciente e dono de si.

Sujeito em posições, de gênero, gerações, classe, etnia e outras diferenças que se

façam presentes em diferentes contextos e situações históricas. Subjetivação/objetivação.

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Quando vamos a campo pesquisar nossos informantes, sujeitos em diferentes posições,

estamos no terreno do empírico.

Além do que podemos observar e além de todas as informações que podemos obter

em documentos de vários tipos sobre eles e seus contextos, vamos atrás de seus relatos, das

narrativas que nos possam fazer de suas experiências, suas histórias pessoais, seus modos

de vida. È este, em geral, o material que privilegiamos nas pesquisas que denominamos

etnográficas, pesquisas qualitativas por excelência (Fonseca, 1999), que não produzem

dados no sentido duro, e que resultam de relações que almejam ser dialógicas (Cardoso de

Oliveira, 2000) marcadas pela intersubjetividade, pesquisas que se objetivam nos

documentos (escritos, visuais, audiovisuais), em análises interpretativas, como lembra

Clifford Geertz (1996) interpretações de interpretações, que refletem fortemente a

subjetividade do/a pesquisador/a, marcadas pelas teorias que dirigem seu olhar (e que o/a

disciplinam, no trocadilho que faz Cardoso de Oliveira, inspirado que é também por

Foucault).

Estamos em campo, então, frente a outras subjetividades, buscando familiaridade

com o desconhecido, procurando colocar-nos no lugar do informante, do seu ponto de vista

e, ao mesmo tempo, esforçando-nos para nos despirmos de pré-noções sobre o diferente e

tentando estranhar o que nele nos é familiar. (Da Matta, 1981).

Em campo, as diferentes posições dos sujeitos se impõem aos nossos olhares –

sujeitos de gênero, de origem étnica, de classe, habitantes do campo ou da cidade, com

modos de vida e formas de trabalho diferenciados, sujeitos de gerações, que “vivem uma

certa não contemporaneidade de contemporâneos”, como refere Alda Motta (2004),

reportando-se a uma concepção de Karl Mannheim (1982).

Minhas pesquisas centradas em sujeitos que vivenciam a urbanização de seus

espaços de vida e trabalho (Lago, 1992, 1996), iniciaram com os descendentes de açorianos

na Ilha de Santa Catarina e agora se dirigem para os descendentes de alemães que fundaram

a antiga colônia de São Pedro, próxima à Florianópolis. Colonos que viviam da agricultura,

em lavoura de pequena propriedade, produzindo para o consumo com mão de obra familiar

e que, buscando novas terras para cultivo nos arredores, fundaram outras colônias (como o

município de Antônio Carlos, que resultou da expansão desse território).

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Os trabalhos etnográficos, que se constroem muito especialmente sobre as narrativas

dos informantes, nesta perspectiva inspirada por concepções (pós)-estruturalistas e

semióticas de sujeito e cultura (Geertz, leitura lacaniana de Freud, estudos de gênero), têm

como foco muito central a consideração da linguagem, a fala, a dimensão simbólica que

define o humano.

As falas

Assim, precisamos nos deter, de início, no termo “colono”, como “colono alemão2”

definidor de etnia (identidade étnica) e de posição diferenciada no mundo do trabalho.

Homens e mulheres rurais, cuja primeira língua, o alemão, não era substituída por um nível

satisfatório de domínio do português apreendido nas escolas (isoladas, cursadas em geral

até as primeiras séries primárias, pelas gerações dos adultos entrevistados que agora estão

com mais de 40 anos).

A vergonha de falar “errado”, com sotaque, carregando nos erres, e a recusa em

continuarem a ensinar o alemão a seus filhos. Vergonha do idioma, revelando uma posição

desprivilegiada na escala social de classes, corroborada pelas atividades que realizam no

mercado de trabalho no processo de urbanização: construção civil, trabalho doméstico,

enfim, setor de serviços, como mão de obra não qualificada3.

Esta é uma questão dos “colonos alemães” oriundos da região de São Pedro, colônia

que “não deu certo” se comparada (e é sempre comparada) à da região do Vale do Itajaí,

mais especificamente, à colonização de Blumenau. Não deu certo porque não alcançou o

desenvolvimento industrial e o nível de urbanização de Blumenau e outras cidades do Vale,

que se constituíram como importantes pólos industriais do Estado de Santa Catarina, a

importância de cada uma crescendo ou decrescendo em diferentes momentos, a partir do

sucesso ou insucesso de diferentes empreendimentos industriais, empresariais.

Quando consideramos condições objetivas e subjetivas dos contextos sócio-

histórico-culturais vivenciados, podemos destacar alguns aspectos diferenciais que se

concretizam. Os habitantes urbanos de Blumenau, Brusque e Joinville4 e outras cidades do

Vale, mais orgulhosas de suas origens, identificam-se como “alemães”, ensinando o alemão

(como primeira língua) a seus filhos, em diversas gerações (Seyferth, 1974) e ressaltando

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características positivas de identidade cultural, em relação aos que chamam de “brasileiros”

(Schulze, 1996; Paquette, 1994). Características que talvez não sejam valorizadas da

mesma forma pelos “colonos” que vivem da agricultura nos arredores rurais destas mesmas

localidades urbanas.

(O modo de falar)... é um traço distintivo de identidade a ser exibido com orgulho ou a ser disfarçado com vergonha, conforme seus falantes sejam valorizados ou, ao contrário, denegridos, como acontece muito com as populações de origem rural e pobre (LAGO, 1996, p. 24).

Tomemos alguns dos sujeitos falantes para refletir sobre questões que suas

narrativas nos trazem (e que possibilitam/desencadeiam interpretações).

Escuta/interpretação

Um autor importante para orientar nosso olhar nesta linha de pesquisa tem sido

Louis Dumont (1985, 1992) (e seus tradutores5 na antropologia brasileira, entre os quais

destaco Luiz Fernando Duarte, 1986). As análises e concepções de Dumont são

esclarecedoras para refletir sobre as sociedades ocidentais contemporâneas, que ele

caracteriza como marcadas pela ideologia do individualismo, o indivíduo como valor, em

contraposição às sociedades “tradicionais”, hierárquicas, em que o valor está ligado ao

todo, ao interesse coletivo. Sua concepção de que todo e parte não são oposições

dicotômicas e que se articulam numa relação de englobante/englobado, posições que podem

ser invertidas de tal forma que, em determinadas circunstâncias, o elemento englobado

passe a ser o englogador e vice-versa, tem sido extremamente importante para pensar sobre

transformações sociais, no caso, sujeitos de origem rural vivenciando o processo de

urbanização. Estas contribuições teóricas têm fundamentado as reflexões da linha sobre as

questões que articulam, nas pesquisas empíricas, famílias, sujeitos e suas posições de

gênero, gerações, classe, origem étnica, trabalho, etc.

Tomemos a narrativa do informante de 55 anos, entrevistado em momento anterior

da pesquisa (Lago et al, 2000). Ele mora em um município vizinho ao de Antônio Carlos,

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onde nasceu e viveu trabalhando na agricultura desde criança até os 34 anos, quando casou

e passou a trabalhar no setor de construção civil em Biguaçú, Florianópolis e arredores. Em

suas palavras “... a mulher puxou para sair do sítio (...) a gente veio morar aqui e no

primeiro tempo não se acostumou...”.

Em toda a sua entrevista este informante permanece entre o campo e a cidade,

comparando, mudando de posição, opinião), avaliando o antes e o agora, o trabalho rural e

o trabalho na cidade, a aposentadoria lá e cá. Na realidade, ele foi puxado para/pela cidade

e está sempre olhando para o modo de vida anterior, comparando o seu cotidiano com o dos

irmãos que permaneceram no campo, a qualidade de vida cá e lá.

Um parêntese: nas entrevistas com os homens as questões ligadas ao trabalho

ganham um maior destaque e penso que isto se dá não apenas por eles se referirem mais ao

trabalho, mas porque nós entrevistadoras/es costumamos centrar nossas perguntas nessas

dimensões da vida social. Pesquisadoras, inclusive, que acabam(os) referindo mais os

homens à vida no espaço público, à função de principais responsáveis pelo sustento da

família. Mesmo nesta família, dou-me conta, que acompanho e sei serem os encargos

fundamentalmente divididos, o salário da mulher sendo tão (ou mais) importante que o do

marido, já que ela trabalhava à cerca de 15 anos no mesmo emprego, enquanto ele

costumava passar alguns meses recebendo o seguro desemprego entre os trabalhos numa e

noutra construção, já que não fazia parte de equipes regulares de construtoras específicas.

Entressafras em que procurava serviços de pedreiro por conta própria, ganhando por dia

menos que uma diarista em trabalho doméstico. Fecha parêntese.

Os pais deste informante tiveram 13 filhos (2 falecidos). Seus irmãos que vivem na

agricultura têm cinco, seis filhos. Ele, apenas três. Seus pais já faleceram e as terras, que

tinham sido do avô e do pai, ficaram com dois irmãos mais velhos, que compraram as

partes dos outros e permaneceram no trabalho rural. “... hoje já tem uma porção de

sobrinhos morando no mesmo terreno...”, mas poucos deles se mantendo apenas com a

produção agrícola e, em geral, durante os períodos em que não estavam empregados em

outras atividades (conforme nos mostraram as observações no local).

Os/as irmãs/os que saíram de Antônio Carlos foram para localidades próximas em

Santa Catarina, exceto a “irmã mais velha que foi lá pra Pouso Redondo em cima do Rio

Grande do Sul (...) tinham que sair porque ficar tudo também não dava, não”. (Esta

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expressão em cima do Rio Grande do Sul é intrigante. – Tem a ver com a condição de

agricultor, em cima da terra, a terra como elemento fundamental de trabalho, como

condição de vida?).

Na continuidade de sua fala, o informante prossegue na comparação dos modos de

vida “... mas quem tá lá ainda reclama... tem gente que tá aqui e reclama e vai lá no sítio e

acham que não ta bom. Mas hoje ta melhor pra eles, do que antigamente...” Em sua

avaliação, o fator que propiciou esta melhora foi a obtenção da aposentadoria pelos

agricultores, uma questão que ele percebe com ambigüidade “... igual meus irmãos, lá eles

fazem 55 anos e os homens se aposenta e ganha um salário mínimo, e a mulher 50 anos.

Mas eles têm tudo assim, de planta, e têm vaca de leite, tudo, e com aquele salário eles

vivem bem”. Em outro momento de sua entrevista, falando da aposentadoria que tentava

obter como operário, agregando o tempo que fora agricultor, revela: “quando eu tinha os

papel pronto o governo tinha traçado aquilo ali, fechou (...) dia 10 de setembro, dia 15 eu

peguei os papel (...) eu falei com advogado e ele disse que era pra eu esperar fazer 65 anos

que eu posso me aposentar por mais... Isso eu acho errado, o operário tem que ter 65 anos

na idade prá se aposentá e o colono se aposenta com 55 pelo mesmo salário e não paga a

bem dizer nada, o lavrador. E a mulher com 50”. Lembrado que o colono trabalha desde

criança, ele ressalta “Mas eu também, porque quem trabalha nesse serviço que nem eu é só

gente do interior...”.

Em seu relato, ele está subjetivando os temas do êxodo rural, do trabalho na cidade

como mão de obra não qualificada, a dependência das pessoas em relação às decisões

arbitradas pelo governo sem formas efetivas de reação, tendo que seguir o que foi traçado

pelo poder institucional. Traçados que em certas circunstâncias beneficiam os sujeitos, no

caso, os irmãos agricultores que têm perspectivas diferentes das que os pais tiveram “já

antigamente com os nossos pais, naquele tempo se os filhos ajudavam e sustentavam, tudo

bem, senão eles passavam mal, hoje nesse ponto o sítio até que tá melhor”.

Mas os sujeitos falam de uma aposentadoria que se distancia das discussões atuais

sobre os déficits dos sistemas previdenciários das “sociedades de mercado democráticas”

em que a aposentadoria que foi “... institucionalizada como um meio de compensação ao

risco de privação advinda da perda da capacidade para o trabalho devido ao declínio

físico do envelhecimento” (Simões, 2004) passa a ser questionada, à medida em que deixa

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de ser a marca de entrada na velhice, para se tornar uma etapa de novas oportunidades de

lazer e aprendizado. Etapa que busca outras designações, novos patamares geracionais,

“uma terceira idade” de jovens velhos, contraposta a uma “quarta idade”, de velhos

velhos (Motta 1997, 2004, Debert, 1997), em função da evolução dos níveis da perspectiva

de vida e outros fatores.

Primeiro, porque estes colonos que trabalham/ram na terra de sol a sol desde

criança, trazem nas mãos, na pele, no corpo, as marcas do labor nos sinais de

envelhecimento. Também portam as mesmas marcas, esses/as homens e mulheres do

campo que vieram buscar trabalho na cidade, nos setores de serviço, tendo que se contentar

com atividades que não exigem qualificações específicas. As/os aposentados/as do meio

rural não deixam de trabalhar porque “o mínimo” que o Estado lhes paga só ajuda na

sobrevivência, não os/as isentam de continuar plantando e produzindo leite, ovos, carne,

etc., para o consumo. Da mesma forma, o informante, para quem a aposentadoria não era

percebida como inatividade, mas como um reforço seguro que lhe possibilitaria uma

continuidade mais tranqüila da atividade remunerada, enquanto possível. Um homem de 56

anos, a quem se podia atribuir mais idade, bem como à esposa, que ficava irritada quando

lhe franqueavam as filas de idosos no comércio, estando ela ainda alguns anos distante dos

60.

O processo de envelhecimento é referido pelo entrevistado com a expressão “estar

com uma idade boa”. Assim, inquirido sobre o desejo de voltar para o meio rural, ele

respondeu “Hoje não adianta mais, agora os filhos não querem mais e a gente está com

uma idade muito boa e não adianta mais”. Falando sobre escolaridade e informando que

estudara até a terceira série primária com 12 anos ele contou que não se interessava em

continuar os estudos porque “... daí já tem uma idade boa, daí não”. Apesar de várias

dificuldades arroladas, apesar das aulas serem “mais fracas (...) a gente pouco se

interessava também (...) era só até a quarta série do primário (...) os pais davam tempo prá

gente ir à aula e naquele tempo era assim, quem aprendia, aprendia, quem não aprendia

ficava assim... eu tinha um irmão que... não aprendeu nem ler nem escrever e foi passado

para trás...”, um motivo forte para ele deixar os estudos foi a idade boa.

Esta adjetivação de boa ou muito boa para se referir a mais idade ou bastante idade

me fez refletir e levou-me à associação com outra fala do entrevistado “Hoje pros filhos tá

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muito melhor... eu até digo pros meus irmãos mais velhos que hoje tá mais fácil ser filho do

que ser pai”. Ser pai, ser homem, ser mais velho, podia significar algo bom na sua infância

e juventude (tempo de identificações estruturantes), no modelo hierárquico de família, em

que os filhos trabalhavam nas terras dos pais e os ganhos eram para “o monte”, com a

figura paterna responsável pelas decisões familiares. Aí não era tão bom ser criança/jovem

e a idade que se acrescentava à vivência de cada sujeito era boa. Ser adulto, constituir

família e deixar a casa paterna, ser responsável, tomar as decisões pela família, era ter uma

idade boa/muito boa. Agora que está mais velho (com uma idade que deveria ser muito

boa), ele vive numa sociedade urbana, com outros valores, outros modelos de família. Aqui

ele precisa continuar a dar estudo para os filhos que, quando trabalham, são estudantes que

já trabalham (diferentes dos informantes de Brandão, 1985), cujos ganhos, se ajudam nas

despesas familiares, são dirigidos principalmente para atender às suas próprias necessidades

individuais (roupas, estudos, transporte, lazer, etc., ainda quando formados em 2º ou 3º

grau). Jovens, eles passam a trabalhar para si e para as famílias que constituem, ganham

independência e não trabalham “pro monte”.Tomam suas próprias decisões e os pais têm

que aceitá-las.

O informante constata e reflete com os irmãos que, embora continuando no meio

rural vivenciam experiências semelhantes com os filhos (a cidade já chegou lá), concluindo

que agora já não é tão bom ser pai, adulto, idoso, é melhor ser jovem. A idade muito boa já

não tem as mesmas compensações. Foi transformada pelas práticas e ideário

individualistas.

Mas seriam sempre muito boas essas idades? E quando os pais ficavam dependentes

dos filhos, por não poderem mais trabalhar? Quando precisavam vender parte da

propriedade, às vezes aos próprios filhos, para terem um pecúlio na velhice, confome

relatou uma das entrevistadas? Percebe-se que ser “velho velho” também era uma questão

delicada mesmo no meio rural, em grupos familiares extensos, com modelos mais

hierárquicos de família.

Uma senhora de 62 anos entrevistada em Antônio Carlos, viúva recente, mãe de

muitos filhos, ressaltou a importância, da mesma forma que outras mulheres desse

município e de Biguaçú, de serem as mulheres descendentes de alemães muito

trabalhadeiras6 . Ela mora numa casa antiga construída pelo avô de seu marido, a qual

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mostra com orgulho, destacando todos os afazeres domésticos que sempre desenvolveu,

concomitante ao trabalho na roça do qual participava com o marido e os filhos. Em sua

condição de trabalhadeira ela também fazia bolos e salgados para festas, que são parte

importante ainda, da vida na localidade, onde a produção de hortifrutigranjeiros é a

atividade econômica relevante, embora se possa perceber entre os adultos jovens e entre as

moças e rapazes entrevistados, a tendência ao abandono do trabalho na agricultura.

Na ocasião da pesquisa, tendo a filha mais moça e o genro morando com ela, pais de

uma menina pequena, fazia crochê e bordados para fora, além de ensinar estas artes a um

grupo de terceira idade do qual participava, na paróquia do município. Fez uma relato sobre

a importância subjetiva dessa participação, destacando o convívio de pessoas de sua

geração, os passeios que realizavam e o fato de manter-se ativa, na linha de depoimentos

obtidos em outras pesquisas (Motta, 1997).

Apesar do convívio com os filhos, mesmos os que saíram do município e moram em

Florianópolis e Blumenau, ela discorreu bastante sobre o sentimento de solidão que a

viuvez, lhe trouxe após mais de trinta anos de casamento com vida, trabalho e interesses

partilhados. Contou sentir-se também restringida em sua autonomia, já que passou a

depender mais da carona dos filhos para os acontecimentos sociais, precisando adequar-se

aos seus horários de permanência nos locais e eventos a que comparecia.

Se a freqüência ao grupo de meia idade a aproxima da experiência dos “velhos

jovens” contemporâneos em ambientes urbanos, a viuvez não é vivenciada por ela como

uma oportunidade para livrar-se do ambiente doméstico ou de restrições impostas pelo

cônjuge, conforme ocorre com algumas mulheres (Motta, 2004).

Sua residência foi a primeira construção em estilo germânico restaurada no

município e ela relata:

“Olha, pra falar a verdade às vezes eu digo pros meus filhos que a minha casa tem

100 anos, fez ano passado, mas eu me sinto tão bem nessa casa que eu não trocaria

ela por uma casa nova (...) Queres ver, eu abro a porta aqui pra ti, ela tem uma

vista muito bonita, de tarde eu prefiro ficar aqui. Mas eu mais gosto mesmo é da

minha casa”.

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A casa que lhe pertence, e à qual ela mostra pertencer, parece ter antecipado um

movimento de restauração das construções de estilo alemão da localidade, processo que

está ocorrendo com intensidade atualmente.

A forma como ela e as outras informantes mais jovens se referiram às tarefas

domésticas e o cuidado que mostraram com suas casas (as antigas e as novas), tem

motivado a continuidade da pesquisa, agora centrada na recuperação/visibilização do

trabalho doméstico e da importância subjetiva da casa para as mulheres, os homens, para as

famílias, enfim 7. Pesquisa que projeta desdobramentos na produção de um documentário

áudio-visual e de material fotográfico sobre as casas germânicas restauradas, com vistas a

uma exposição de fotos no município de Antônio Carlos. Material (vídeo e fotos) que

servirá para um retorno mais efetivo dos estudos realizados aos sujeitos que os têm

possibilitado.

Ressaltando que os sujeitos pesquisados têm vivenciado as experiências de

urbanização de seus espaços e modos de vida, um a um, em suas particularidades, com suas

histórias de vida, trazemos algumas de suas falas:

“Vai ter festa junina (...) eu não vou fazer nada, só vou me vestir de jeca e vou ir lá

na festinha (...) a professora não escolheu”

P. E tu não gostaste de não ser escolhida?

R. Ah, eu odiei! Eu queria fazê o pau de fita (...) todo mundo não ia dar ... tem

pouca fita. E foi difícil de ensaiar, quase todo mundo errô (...) eu vou usar meu

vestido melhor (...) Minha tia se casou (...) eu ia ser dama, só que daí eu era muito

grande e o vestido era muito caro pra mim ... Daí foi bem legal o casamento. Mas

o buquê não deu pra jogar porque era da loja lá (...).

Quando eu era pequena eu também ajudava bastante. E continuo ajudando.

Tinha aqui, sabe aquelas promoção (...) eu não pude ir porque pagava muito caro

os brinquedo ... Agora tinha ingresso na escola, tinha dois acompanhante, o

acompanhante levava ... Tinha que pagar 42 reais, e eu tinha um ingresso. Era lá

no Beto Carreiro World ... Não pude ir (...) Eu não fui em nada aqui (...) quando a

gente crescer a gente trabalha e depois ganha dinheiro e daí pode ir.

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Agora tô chegando mais cedo da escola, porque não sei o que que deu na escola

que to chegando mais cedo, daí agora eu posso assistir toda vez Pokemon”.

(Menina, 8 anos)

Esta menina não falou só de frustrações e carências. É a única filha entre três

homens, dois do primeiro casamento do pai, e está feliz porque ganhou um sobrinho. É bem

protegida pela família e pelos parentes que moram perto, em Biguaçú, tendo migrado do

trabalho no campo no extremo oeste de Santa Catarina. Trouxe essas falas porque ela me

pareceu bastante diferente das crianças de camadas médias urbanas, no seu inconformismo

consumista, e mesmo das crianças filhas dos adultos mais jovens que entrevistamos em

Antônio Carlos.

“As pessoas se restringiam aos estudos até na 4 ª série e depois paravam e

auxiliavam os pais na roça, porque era necessário, né? E desde aos poucos anos de

idade, aos 5, 6 anos, todas as crianças, além de estudarem ajudavam nos serviços

da casa, da roça, daquilo que eles que eles podiam (...) Afinal, a vida era difícil e

todos tinham que ajudar (...) tendo aí a necessidade dos casais terem muitos filhos,

porque senão era difícil a atividade que eles faziam sem essa mão de obra. Então

os filhos eram uma mão de obra que eles tinham ... quer dizer, não era gratuita,

mas também eles não tinham que pagar (...) É claro que humanamente falando

talvez as crianças sofriam muito, mas era um jeito que os pais tinham de controlar

a situação e ... era até um tipo de escravidão que hoje muitos adultos têm

lembranças ruim daquele tempo...”.

(Professor, 3º grau completo, ex-agricultor, 36 anos)

Este relato traz a questão do trabalho infantil na agricultura, profissão que os

informantes não aprenderam na escola, mas participando das atividades dos pais. Sua fala,

como professor graduado, parece estar dialogando com o discurso institucional no Brasil,

sobre o problema do trabalho infantil, distanciando-se do relato defensivo dos agricultores,

quando enfantizam que as crianças precisam aprender o hábito do trabalho desde cedo.

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“O pai que reina um pouquinho, mas quem manda é a mãe mesmo (...) final de

semana quando ela tá em casa é sempre ela que faz comida, essas coisas (...).

A mãe manda a gente fazer. Se bem que pra mim ela não precisa mandar muito

assim, eu sempre faço (...) ele ( irmão) só fazia quando não tinha ninguém em casa,

ou quando a mãe não deixava alguma coisa pronta prá ele, daí ele fazia só prá ele

mesmo. Mas o resto ...

Eu quero me casar, todo mundo quer né, mas não é assim né eu tenho que casar,

tem gente que se não casa, se não tá com namorado, morre. (...) Mas eu não, eu

levo a minha vida (...) eu queria me formar primeiro e depois casar, ter filho, tudo

isso aí. Mas eu queria mesmo me formar primeiro. Que é o meu primeiro objetivo, é

esse”.

(Moça, cursando pré-vestibular, 18 anos).

Este relato traz a questão do projeto de futuro para as novas gerações, vinculado a

continuidade dos estudos. A constituição de família, a maternidade são vistas pela jovem

como algo que “todos querem”, mas que deve vir depois do término dos estudos, a

escolaridade colocada como condição para o trabalho no meio urbano. E o trabalho

feminino fora do lar, como atividade inquestinável.

À guisa de fechamento podemos ressaltar, nessas pesquisas com classes

trabalhadoras no/entre o campo e a cidade, a centralidade das formações familiares para as

diversas gerações pesquisadas. Famílias que, como ensina Duarte8, são o lócus de sua

própria contradição, como grupos com interesses coletivos educando indivíduos

individualistas.

Notas 1.Esta linha de pesquisa tem contado com a colaboração valiosa de alunos de graduação, bolsistas de Iniciação Científica. Nas investigações referidas neste trabalho, teve como auxiliares de pesquisa Carla Nichele Serafim, Mariana Grasel de Figueiredo e, atualmente, Erikson Kaszubowski, Carolina Duarte de Souza e Marina Silveira Soares. Agradeço a todos o inestimável trabalho que têm realizado. 2. E não colono de origem alemã, como seria mais correto falar – indicando aí a questão importante da identidade cultural (e pessoal!).Conferir Lago(1999).

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3. Uma questão geracional, já que seus filhos estão tendo melhores oportunidades de escolarização nos espaços urbanizados, ou através da migração para outras cidades da Região Metropolitana, sempre em função do investimento de mães/pais em sua escolaridade. 4. Municípios com expressiva população de descendência alemã, entre outras etnias. 5. Tradução no sentido da “viagem” das teorias para outros países, falantes de outras línguas, analisando outras realidades empíricas. 6. Fato reconhecido em toda a região metropolitana de Florianópolis, onde essas mulheres são valorizadas para os empregos de domésticas, diaristas e também nos setores comercial, de saúde, etc. 7. As mulheres, os homens, as casas. (Lago, Kaszubowski, Souza, Silveira). Projeto com bolsistas IC/CNPq. 8. Conferência de Luis Fernando Duarte, proferida na UFSC em 2003. Referências BARROS, Myriam M. Lins de. Velhice na contemporaneidade. In: Peixoto, C. E. (org) Família e Envelhecimento. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2004. BRANDÃO, Carlos Rodrigues. A educação como cultura. São Paulo: Brasiliense, 1985. CARDOSO de OLIVEIRA, Roberto. O trabalho do Antropólogo. Brasília: Paralelo 15; São Paulo: UNESP, 2000. DA MATTA, Roberto. Relativizando: uma introdução à antropologia social. Petrópolis: Vozes, 1981. DUARTE, Luis Fernando. Da Vida Nervosa nas Classes Trabalhadoras Urbanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed./ CNPQ, 1986. DUMONT, Louis. O individualismo: uma perspectiva antropológica da ideologia moderna. Rio de Janeiro: Rocco, 1985. _______________. Homo Hierarquicus: o sistema das castas e suas implicações. São Paulo: EDUSP/CNPq. FONSECA, Cláudia. Quando cada caso não é um caso: pesquisa etnográfica e educação. Revista Brasileira de Educação. N. 10 jan/fev/mar/abr., 1999. GEERTZ, Clifford. A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: LTC Editora, 1996. LAGO, Mara C. S. Memória de uma comunidade que se transforma: estudo de caso do processo de urbanização de uma comunidade de origem açoriana no litoral, da Ilha de Santa Catarina. In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catarina. N. 11, 1992. _______________. Modos de Vida e Identidade: sujeitos no processo de urbanização da Ilha de Santa Catarina. Florianópolis: Ed. UFSC, 1996.

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MASCULINIDADE, SEXUALIDADE E PREVENÇÃO DE IST/AIDS ENTRE

HOMENS RURAIS NO NORDESTE DO BRASIL: UM ESTUDO DE CASO

Maria de Fátima Paz Alves

Doutoranda em Antropologia/UFPE

[email protected]

No trabalho buscamos entender como homens rurais residentes num município

da zona da mata de Pernambuco/Brasil concebem o masculino e as relações de gênero e

como representam suas práticas sexuais e de prevenção de IST/AIDS. O trabalho tem

por base 22 entrevistas semi-estruturadas com estes homens e observação do cotidiano

local. Os resultados indicam que os homens apresentam um modelo de masculinidade

pautado em valores tradicionais, destacando-se uma rígida separação dos universos

masculino e feminino. A sexualidade caracteriza-se por uma dupla moral de gênero,

admitindo-se múltiplas parceiras para os homens, principalmente solteiros. É

reconhecido o desejo feminino e valoriza-se a reciprocidade nas relações sexuais ao

tempo em que se distingue o que se faz com a “mulher de casa e de rua”. Alguns

homens relatam experiências homoeróticas na infância e adolescência, atribuídas à

imaturidade, que não afetam a construção da identidade masculina. O uso do

preservativo, percebido negativamente, é inconstante e irregular, concorrendo com o

conhecimento da parceira. As ISTs são pouco temidas ao passo que a AIDS é associada

à morte, não percebendo-se os entrevistados sob risco de contraí-la. As ambigüidades

presentes no discurso, assim como a atuação pouco eficaz dos serviços de saúde locais e

campanhas de prevenção acentua a vulnerabilidade dos homens e suas parceiras às ISTs

e a AIDS.

Palavras Chave: Gênero, masculinidade, sexualidade, prevenção, ambigüidade.

MASCULINIDADE, SEXUALIDADE E PREVENÇÃO DE IST/AIDS ENTRE

HOMENS RURAIS NO NORDESTE DO BRASIL: UM ESTUDO DE CASO

Apresentamos e discutimos neste artigo os significados atribuídos ao masculino

por homens rurais, explorando diversos aspectos que configuram à masculinidade e as

relações de gênero, assim como a sua visão da vivência da sexualidade e da prevenção

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de IST/AIDS1.Ele tem por base pesquisa realizada num município da zona da mata de

Pernambuco2, quando foram entrevistados 22 homens residentes em três localidades

situadas na zona rural do município de Vitória de Santo Antão, sendo também realizada

observação participante do cotidiano nas localidades investigadas3.

Tomamos como referência a perspectiva de gênero, que inspirada na crítica

feminista afirma a construção social e histórica das vivências e significados relativos ao

ser homem e mulher, reconhecendo a existência de relações assimétricas entre os

gêneros (Scott, 1990; Heiborn, 1992; Fonsêca, 1996). Na construção e vivência das

masculinidades e das feminilidades destaca-se o significado das inserções de classe,

raça, etnia, geração opção sexual, entre outras, capazes de configurar contornos

específicos às vivências e seus sentidos considerando as especificidades dos distintos

contextos (Connel, 1997; Kimmel, 1997; 1998; Oliveira, 1998; 2000; Almeida, 2001)4.

Consideramos para efeito de análise a existência de modelos centrais de

masculinidade que representam referência para os homens, exercendo coerção em

relação a atitudes e comportamentos, reconhecendo, entretanto, que há uma

significativa flexibilidade nos elementos que configuram estes modelos, como também

na forma como ele se concretiza no cotidiano (Connel, 1997; Oliveira, 1998, 2000;

Almeida, 2001).

Entendemos também que as expectativas e experiências que dizem respeito à

construção e vivência do masculino (e do feminino), entre as quais aquelas relativas à

sexualidade são constituídas e compartilhadas por homens e mulheres, há sempre o

contraponto feminino na afirmação da masculinidade, já que a assimetria não anula a

1Na realização da pesquisa da qual deriva este trabalho contamos com bolsa do Programa interinstitucional de treinamento em metodologia de pesquisa em gênero, sexualidade e saúde reprodutiva, apoiado pela Fundação Ford. 2A zona da mata é formada por uma faixa de terra que fica entre o litoral e o agreste do estado, suas terras férteis tem sido ocupadas desde o início da colonização portuguesa, com o plantio de cana-de-açucar, que ainda persiste, embora no século XX tenha havido significativa mudança em sua organização econômica e social (FIDEM, 2001). 3A pesquisa foi realizada entre outubro de dezembro de 2001 nos engenhos Galiléia,área desapropriada para assentamento na década de 60; Engenho Cachoeirinha, onde funciona uma usina de açúcar e Engenho Pitu3, engenho desativado onde só se planta cana na atualidade. A maioria dos entrevistados (treze) se situam na faixa etária entre 18 e 30 anos; sete entre 30 e 35 anos e dois tem mais de 40 anos. Doze são solteiros, nove são casados (dois encontram-se no segundo casamento) e um estava separado no momento da pesquisa. Há entre eles 10 católicos, 9 protestantes e 3 que declararão não ter religião. Eles apresentam em sua maioria baixa escolaridade e tem renda média de um salário mínimo. Os entrevistados exercem algum tipo de atividade relacionada ao campo ou, residem no campo e já desenvolveram. 11 são assalariados rurais, 8 se denominam agricultores (dispondo ele ou a família de um terreno para plantio e criação), um é agente de saúde, um aposentado e um é servente. 4Neste trabalho nos detemos na análise de homens que grosso modo se assemelham enquanto categoria social, não tomando como objeto a relação entre estes e seus patrões ou superiores.

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importância e o lugar das mulheres na vida dos homens (Fonsêca, 1992; Leal, 1997;

Leal e Boff, 1996; Portela e Nascimento, 2000; Alves, 2001).

A sexualidade é concebida como uma construção social e histórica de relações

que atendem a múltiplos sentidos e finalidades, afastando-nos de uma perspectiva

“naturalista” que a toma como algo inerente à natureza biológica e/ou psicológica do

humano (Heilborn 1999; Loyola, 1998).

A idéia de que o gênero informa ou mantém relação estreita com a vivência e

representação da sexualidade por homens e mulheres tem sido demonstrada em diversos

estudos. Eles demonstram que isto se dá desde o processo de socialização, na formação

das identidades e das expectativas em relação ao comportamento sexual, condicionando

às carreiras sexuais, onde a negociação não se desloca das relações assimétricas entre

estes/as (Heilborn, 1996; 1999, 2001; Leal e Boff, 1998; Vilela e Barbosa, 1998,

Knauth, 1999; Monteiro, 1999, 2002).

A difusão da AIDS mais recentemente (a partir dos anos 90) tem sido vista como

produto de fatores políticos, econômicos sociais e culturais (Daniel e Parker, 1991;

Parker, 2000).Nesta perspectiva, se ultrapassa a idéia inicial de que as informações

sobre a infecção por HIV e as formas de transmissão evocariam uma proteção

individual e adoção de medidas eficazes de prevenção.Destaca-se em diversos contextos

a concepção da AIDS como “doença do outro” (Loyola, 1994; Knauth, 1998,1999;

Alves, 2001), condizente com uma não preocupação com a prevenção. Enquanto em

outros, verifica-se sua banalização (Knauth, op.cit).

Ressalta-se ainda a falta de prioridade dada a homens heterossexuais nas

estratégias de prevenção ao HIV (Vilela,1998), relacionada a uma introjeção da lógica

de gênero na abordagem a estes. Para Vilela (op.cit), os homens heterossexuais não se

percebem como minorias, nem se sentem impelidos a lutar por seus direitos, inclusive

sexuais. Também não se vêem como "grupo de risco", termo que conduz a se pensar

seu oposto: "grupo sem risco", "os normais", cujo modelo é o casal heterossexual, no

qual o homem tem ampla liberdade para exercer sua sexualidade.

1. Prerrogativas, limites e flexibilizações na representação da Masculinidade

Ser homem na visão dos entrevistados significa ser “homem de respeito”, “de

caráter“ e “de moral”: “um cabra rochedo”, que é honesto, trabalhador, sabe chegar e

sair dos lugares; sustenta e protege sua família. Se casado, procura atender às

expectativas relativas às suas atribuições enquanto marido e pai; se solteiro goza de

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maior liberdade, devendo, entretanto, respeitar os pais e “não se juntar com quem não

presta”.

A categoria respeito é bastante significativa para se compreender os valores

vigentes no campo, particularmente, o que significa ser homem no contexto analisado.

O respeito associa-se tanto a capacidade de não desprender ação que possa prejudicar

alguém quanto ao agir de modo “pacato”, tendo amizade com todos, sabendo “entrar e

sair dos lugares” sem criar confusão, fazer bagunça ou ser motivo para chacota. Não ser

visto como “homem de respeito” significa fugir das prerrogativas afetas ao modelo de

masculinidade idealizado localmente, passando a servir como referência negativa para a

comunidade, sendo desqualificado por esta, o que se aproxima da representação do que

seja o “homem que não presta”.

O homem que não presta neste contexto é o “maconheiro”, “o fresco”

(homossexual), o que bate em mulher, o ladrão, o assassino, o homem que sai com

outras mulheres e despreza a “mulher de casa”. Neste sentido é interessante observar

uma contradição potencialmente conflituosa: se os homens arrumam mulher fora, isso

lhe valoriza perante outros homens, mas também pode tornar-se motivo de repúdio

quando exageram, fragilizando o laço conjugal e familiar e favorecendo a infidelidade

da mulher. Com outros homens se mantém sempre uma relação de amizade e

competição, tendo em vista, particularmente, o significado da traição feminina neste

contexto.5

O álcool é um elemento importante na sociabilidade cotidiana dos homens que

não são “crentes”. É comum visualizar diariamente nos bares rodas de homens que

conversam, riem e bebem juntos. Por sua vez, se se bebe demais, ou se “não sabe

beber”, destoa-se do padrão de masculinidade idealizado na área, sendo o bêbado alvo

de chacotas que o desqualificam enquanto homem, feminilizando-o.

Ser evangélico neste contexto é distinguir-se dos demais, apresentando um

comportamento “mais recatado”. A religião parece representar uma espécie de salvo

conduto para a masculinidade. O “crente” não precisa fazer o que os outros fazem

porque supostamente a vida de “renúncia do mundo” já representa uma prova6. Alguns

entrevistados demonstram dificuldade, embora queiram, de serem evangélicos, pois não 5 Vale de Almeida (1996) teve semelhante percepção em seu estudo da masculinidade numa aldeia portuguesa. 6Vez por outra se comenta que alguns crentes não correspondem às expectativas santidade que apregoam fazendo coisas que não devem. Eles por sua vez tendem a passar uma imagem de correção num discurso onde se observam por vezes contradições entre representações e vivências, particularmente em relação o lazer e à sexualidade.

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agüentariam tantas restrições. Esta distinção, por sua vez, não anula a assimetria com as

mulheres, por vezes, até esta parece afirmar-se em função dos ditames da igreja.

Para os entrevistados o casamento representa uma significativa mudança, que se

acentua com a chegada dos filhos. A vida de solteiro é caracterizada pela liberdade em

relação ao uso do tempo e aos deslocamentos, ao exercício da sexualidade e a falta de

compromisso financeiro. A vida de casado caracteriza-se pelo seu oposto: pela

responsabilidade, principalmente financeira, diminuição da liberdade de ir e vir (fica

mais caseiro), e maior controle da sexualidade, que deve ser exercida com a mulher de

casa preferencialmente, podendo eventualmente se dar “pulos de cerca”, de forma

discreta para não desestabilizar o laço conjugal.

É quase sempre considerada boa a vida de casado, na medida em que dá um

norte às suas vidas, retirando-os da “desordem” da vida de solteiro, sendo a formação

da família algo fundamental para a construção da identidade masculina adulta. O

casamento é pensado para a vida toda, mas acontecem separações, atribuídas

principalmente à traição feminina, como no caso de dois entrevistados. A chegada dos

filhos é um fato visto sempre de forma positiva pelos homens e que acentua a

transformação ou a consolida, ressaltando-se o afeto e a responsabilidade pelo sustento

destes.

Esperam-se mudanças no comportamento dos homens com o casamento7, sem

as quais não se verifica a consolidação da identidade adulta do homem, sendo mal visto

o homem que permanece solteiro além do tempo considerado adequado, por vezes

sendo tido como “donzelo” (aquele que aparentemente não tem vida sexual) ou

“fresco”. Isto pode se relacionar tanto com a visão da sexualidade como algo necessário

a uma vida “normal” como pela homofobia que perpassa as suas concepções sobre o

ser homem.

A comunidade de parentes e vizinhos/as pode ser vista como um cenário

importante, talvez o principal, na configuração da masculinidade nas localidades,

considerando-se a constante e próxima convivência entre as pessoas por vezes desde a

infância. É neste cenário que se constrói as prerrogativas de um modelo que se

flexibiliza em função de recortes que demarcam distinções coletivas e individuais entre

os homens, considerando-se neste sentido, as relações que eles estabelecem com outros

homens e com as mulheres.

7Um homem separado entrevistado coloca-se como se tivesse voltado a vida de solteiro “Agora, mudou de novo, Eu ando prá todo canto assim mais os amigos”.

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Representa-se a socialização das mulheres como relacionada à contenção de

comportamentos e a uma maior circunscrição ao espaço doméstico ao passo que a

socialização masculina se daria preferencialmente no espaço público e denotaria um

movimento de ocupação cada vez maior deste espaço, legitimado como masculino8. A

menina deve ser criada para ser esposa, “para arrumar alguém que tome conta dela”,

sendo vista em geral como uma futura dona de casa. Parece contribuir para a

manutenção deste modelo a baixa empregabilidade da mão de obra feminina, que

acentua a dependência econômica das mulheres do pai ou companheiro.

Evidentemente nem sempre tudo funciona como no modelo, até mesmo por

conta do desemprego ou sub-emprego de muitos homens nas localidades. 03 das

esposas dos entrevistados exercem atividade remunerada como costureiras, uma outra é

merendeira e outra agente de saúde. Os entrevistados tendem a minimizar ou negar a

importância da renda auferida pelas mulheres possivelmente porque este

reconhecimento lhes afetaria tendo em vista ser o provimento da família uma

prerrogativa importante do ser homem9.

A disposição para o trabalho ou o ser trabalhador é um dos requisitos mais

importantes do ser homem, uma vez que se relaciona diretamente com o bom

desempenho das atribuições do seu papel de provedor ou mesmo com os gastos

referentes à vida de solteiro. Contudo, o trabalho em si, especialmente o assalariado

representa mais uma obrigação não se lhe atribuindo uma conotação positiva para além

da afirmação de que este lhes permite que se mantenham e as suas famílias, que

adquiram o que precisam ou possam desfrutar melhor as horas vagas e, que é melhor

ter emprego do que estar desempregado.

Nas horas vagas tanto os solteiros (mais estes) como os casados relatam uma

gama ampla de coisas que podem fazer, e quando falam de ficarem em casa se referem

a descansar muito mais que ficar com os filhos ou fazendo algum tipo de atividade

doméstica. A liberdade traduz-se no termo andar, que tanto pode significar vaguear

pelas redondezas, como caçar, pescar, jogar bola, tomar banho de bica, passear na

cidade, sair com os amigos ou ir para o bar ou para o cabaré. Para os mesmos é

preferível a companhia dos amigos a dos parentes em suas horas vagas, distinguindo-se

8Concepção semelhante tem sido identificada em sociedades tradicionais, como a Cabília, analisada por Bourdieu, (1999). 9Portela e Nascimento (2000) destacam a importância das aposentadorias rurais para a população da zona da mata, o que embora tenha sido visto na pesquisa de campo, não foi explicitado nas entrevistas.

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basicamente os programas que se faz com os amigos, com a família e com a esposa ou

namorada no caso dos solteiros.

Os evangélicos ressaltam que sua condição os impede de se divertirem como as

“pessoas do mundo”, o que não representa uma queixa, já que se dizem plenamente

satisfeitos nessa condição, na qual inclusive se sentem protegidos “do que não presta”,

além do que costumam participar ativamente das atividades da igreja. Embora isto não

seja visto para eles como lazer ou diversão, parece assumir este papel no seu cotidiano.

Verifica-se a existência de nuances relativos à noção de masculinidade no

contexto focalizado. As relações dos homens com diferentes instituições e a forma

como atuam em distintos campos da sua existência estabelece diferenciais entre

homens e grupos de homens, constituindo, portanto várias masculinidades, algumas que

se aproximam mais de um padrão idealizado e outras que parecem distar deste.

Levando em conta vários recortes, entre os quais: geração, pertencimento religioso,

orientação sexual, condição de solteiro e casado, posição no núcleo familiar e as

interações cotidianas entre homens e entre homens e mulheres, observa-se uma

atualização e um redimensionamento das prerrogativas relativas à definição do que

signifique ser homem.

Entretanto, aquém dos caracteres diferenciais que a heterogeneidade masculina

sinaliza, há características que prevalecem estabelecendo um ponto em comum, que

homogeneíza as diferentes masculinidades: as relações assimétricas que travam com as

mulheres. Por outro lado, mesmo considerando-se as especificidades do contexto local,

que parece pouco favorável à realização de um projeto de autonomia feminina, não se

pode dizer que a assimetria entre homens e mulheres necessariamente retire delas todo

o poder de barganha com estes. Isto fica evidente, entre outros aspectos, quando se

aborda a forma como se dão as relações de gênero na vivência da sexualidade,

conforme veremos a seguir.

2. Alguns elementos relativos à representação da vivência da sexualidade pelos

homens

Os entrevistados parecem divididos entre a idéia do sexo como “necessidade,

prazer e obrigação”. Eles consideram que o desejo sexual é um atributo tanto dos

homens quanto das mulheres, embora eles o tenham em maior intensidade, elas como

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que por compensação tem a capacidade de ter mais orgasmos, o que é traduzido na

afirmação de que as mulheres gostam mais de sexo.10

Para eles parece difícil aceitar que alguém possa não ter vida sexual, o que,

principalmente se for homem só poderia estar relacionado a algum tipo de

anormalidade ou doença, senão poderá vir a resultar em doença, considerando o

acúmulo.

Por outro lado, sexo demais também faz mal, podendo prejudicar o desempenho

no trabalho, já que o sexo é visto como uma espécie de tarefa pesada, na relação sexual

o homem se alivia, mas se for de mais suga sua energia, fazendo com que ele fique

fraco. Observa-se uma visão da sexualidade feminina como capaz de exercer um efeito

devastador, esgotando as energias masculinas, o que remete a representação desta como

algo perigoso, o que também foi observado nos estudos de Malinowski (1983);

Godelier (2001) e Bourdieu (1999), entre outros.

Alguns entrevistados afirmam que já transaram por obrigação, o que dizem ter

tido péssimo, contrariando de certa forma a visão predatória e animalizada do sexo que

tendem a colocar. Ao que parece, diante da convocação de uma mulher, que poderá

julgar sua performance, aprovando-o ou valorizando-o diante de outros homens não há

possibilidade de uma negativa. Neste caso fica bastante explícita a construção social da

“necessidade” explicitando-se também que há outros nuances para além da relação de

subordinação- dominação entre homens e mulheres, mesmo num contexto de assimetria

de gênero.

Verifica-se uma distinção na forma como os homens denominam as mulheres

com quem se relacionam sexualmente fora do casamento, ora denominando-as de

“negas”11, termo que significa uma mulher de pouco valor: “uma prostituta” ou uma

mulher fácil; e “menina”, vista em geral como uma moça não virgem (mãe solteira ou

separada) que mantém com eles relações sexuais sem pagamento, contudo diferencia-se

da namorada e da esposa, em principio não pensando-se nela para uma relação estável e

duradoura12. Com as últimas a sexualidade ganha uma conotação de sexo domesticado:

“tranqüilo”, também referido como feito com cuidado ou com amor.

10 Dos homens que responderam a pergunta: quem gosta mais de sexo: seis disseram que eram as mulheres, três, os homens e sete os dois. 11 Este termo remete a uma alusão clara a desvalorização da mulher negra, embora não se relacione com a cor/raça da mulher em questão. 12Heilborn (1999) constatou algo semelhante em suas pesquisas, verificando que as categorias de classificação que opõem mulheres “fáceis”, “que dão mole”, e mulheres para casar ordenam o modo

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Os entrevistados apresentam uma visão negativa em especial da mulher do

cabaré, relacionada aos seguintes aspectos: ao fato de cobrar pelo sexo, de fazer sexo

com vários homens, de fazer um sexo apressado, pensando já no próximo cliente, e por

ser arriscado transar com elas, que representariam o maior perigo de contrair infecções

sexualmente transmissíveis. Mais ainda, ao que parece, pelo fato de precisarem delas e

pagarem para isso, sentindo-se dependentes. Melhor mesmo é quando conseguem uma

“pessoa certa” com quem ficam regularmente, com a qual inclusive podem vir a ter

uma relação com mais afeto. Por outro lado, a mulher de cabaré é vista como mais

“carinhosa”13, no sentido de ser “safada”, fazendo coisas que as outras não fazem para

conseguir o dinheiro do homem.

A referência ao cabaré é feita em geral pelos homens solteiros ou pelos casados

em relação ao tempo de solteiros, e pelos evangélicos quando eram solteiros e /ou não

eram crentes. Os homens casados, segundo os entrevistados, devem preferencialmente

ter relações com as suas mulheres, podendo eventualmente vir a se relacionarem com

outras ou mesmo ir ao cabaré, mas sem comprometer o convívio no núcleo familiar,

seja financeiramente, seja pelo conhecimento por parte da comunidade do fato ou de

sua continuidade ou constância, ou trazendo doenças para a mulher de casa.

Os critérios de escolha de uma moça para namorar evidenciam a distinção na

forma como concebem as mulheres com quem namoram ou estão casados e aquelas

com as quais ficam, ou seja, tem relações sexuais fora do casamento ou namoro. Para

Sebastião, a moça que ele escolhe para namorar “tem que ser bem direitinha, certinha,

quietinha, aquela que o cara sabe que presta”. Se a moça é virgem é preciso ter

cuidado para não vir a ter problemas caso venha a ter relação com ela. Com os

evangélicos se acentuam estas objeções, pois só podem namorar com moça da igreja e

um namoro com regras mais rígidas. Os jovens solteiros evangélicos por vezes

demonstram-se pressionados entre a “necessidade” e os ditames da igreja.

Os entrevistados afirmam que a virgindade não é fundamental em sua escolha

para o casamento, entretanto a mulher não virgem ou separada em seu ponto de vista

corre grande risco de ser vista como “de um e de outro”, cabendo um comportamento

bastante exemplar nestes casos para que tenham chance de serem vistas como “mulher

direita”, passível de compromisso.

como os homens se aproximam das figuras femininas em e relações que são organizadas por um princípio de valorização do masculino, ainda que tendo como contraponto o masculino. 13Carinho na linguagem dos homens representa a depender do contexto tanto a demonstração de afeto quanto a prática de carícias mais ousadas na relação sexual.

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Verifica-se uma certa ambigüidade na adoção de valores “tradicionais” e

“modernos”, ora persistindo uns ora outros, pois, se os homens fazem uma separação

clara entre categorias de mulheres, também dizem não dar importância à virgindade, na

prática, se casam com mulheres não virgens ou transam com as namoradas. A constante

referência a “moças de família” que transam com o namorado ou engravidam também

parece admitir que a separação entre as categorias de mulheres não funciona

exatamente como nos padrões tradicionais, embora estejam presentes no modelo,

enquanto representações.

Para os entrevistados tanto o homem como a mulher deve ser fiel, mas é visto

como natural a possibilidade de traição do homem, assim como a negação desta para a

mulher. A aceitação social da infidelidade masculina relacionada à percepção da

sexualidade masculina como mais próxima da animalidade aliada a dependência

econômica das mulheres desfavorece a ocorrência de um conflito mais sério quando o

homem é infiel, sendo concebida em geral a traição do homem como um fato banal,

um “pulo de cerca”, um incidente de percurso, ao contrário da feminina.

Apesar da infidelidade feminina ser considerada um fato grave é freqüente nas

localidades a referência a sua ocorrência, assim como pelos entrevistados. Dois deles

disseram que se separaram por haverem sido traídos, dois afirmaram se encontrar com

mulheres casadas no momento, e três referiram já ter se relacionado anteriormente.

A homossexualidade é vista como algo que fere a natureza já que “Deus fez o

homem para a mulher e a mulher para o Homem”14. Verifica-se no discurso dos

entrevistados uma distinção e uma espécie de continuum entre o homem maduro, de

moral e de respeito, que não deve se envolver com outro homem, se o faz é considerado

“cabra safado”; o homem incompleto, garoto que ainda não tem experiência ou mesmo

o homem solteiro que pode vir a ter por inexperiência, ou necessidade, no exercício de

sua liberdade ou mesmo por dinheiro; e o “fresco”, efeminado, quase que desprovido

de características masculinas.

A referência ao sexo com outro homem sugere um comportamento ativo,

embora nem sempre isto fique muito claro no depoimento dos homens. Verifica-se uma

incompatibilidade entre o estereótipo de homossexual representado pelos entrevistados

e a gama de experiências sexuais de que falam. O “tipo ideal” que surge nesta

14 Trata-se de uma visão também encontrada em outras análises, em particular sobre as classes populares (Parker, 1994; Nascimento, 1999; Alves, 2001).

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representação aparece como um elemento raro nas comunidades enquanto as

experiências homoeróticas parecem ser relativamente comuns, o que sugere que na

prática estas se dão entre homens que não se enquadram necessariamente neste modelo,

embora persista enquanto representação uma relação de atividade-passividade entre um

homem que mantém as características da masculinidade (ainda que por vezes

incompleto) e um outro homem efeminado conforme padrão explicitado por Parker

(1994; 2000).

Ao que tudo indica não parece haver uma relação necessária entre identidades e

práticas sexuais neste contexto (Lago, 1999). Ou seja, ser homem não significa

necessariamente ser ativo, abrindo-se o leque para outros requisitos que podem vir a

fortalecer a masculinidade, como por exemplo, o status ocupacional mais elevado.

Destaca-se, em relação à construção e vivência da masculinidade, a forma como se

reconhece e legitima as práticas homoeróticas entre distintas categorias de homens.

3.Concepções sobre a Prevenção de IST/AIDS

Todos os entrevistados dizem conhecer o preservativo, identificado

principalmente como método preventivo contra ISTs e AIDS. Oito deles declararam já

ter usado camisinha, enquanto sete afirmam que usam na atualidade. Seu uso é visto

como necessário com mulher de cabaré, pelo fato delas transarem com muitos homens

ou porque lá é obrigatório15.

O uso da camisinha aparece como inconstante e irregular, colocando-se como

possibilidade em determinadas circunstâncias e não em outras. Não é necessário o uso

do preservativo segundo os homens: em casa com a esposa porque ambos são fiéis ou

porque se usa o preservativo fora; com pessoa conhecida, em geral uma mulher das

proximidades com a qual se fica, sem que se tenha um compromisso efetivo; quando

através de uma espécie de teste pode-se avaliar se a parceira está saudável, observando-

se um sinal, como modo de andar ou a presença de secreção na calcinha, ou fazendo um

certo tipo de toque nos órgãos genitais da mulher. Neste caso, em princípio qualquer

mulher seria elegível desde que passasse no teste. A idéia sobre o conhecimento da

parceira, neste último caso, concorre com o preservativo, assim sendo, transa-se com

camisinha ou com mulher conhecida.16

15 Esta questão da obrigatoriedade nem sempre se confirma. Um entrevistado afirmou que a dona do cabaré que ele freqüenta exige que as suas funcionárias usem, mas que lá dentro elas não usam.Cinco homens declararam nunca terem usado o preservativo. 16Esta característica aparece como um aspecto recorrente em vários estudos, entre os quais: Guimarães, 1996; Loyola, 1994; Berquó, 1994.

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Embora se reconheça a importância do uso da camisinha para evitar ISTs e

AIDS, há uma percepção negativa desta quando se considera a possibilidade de utilizá-

la. Para eles, o preservativo não permite que se “sinta o gosto” ou tira o prazer; pode

favorecer a uma performance ruim ou fraca, levando-o a broxar; prende e retém algo

que deveria ser solto, e jogado no útero da mulher. Esta parece ser a representação mais

forte em relação ao preservativo. Verifica-se ainda a idéia de que o uso da camisinha faz

mal a mulher, deixando seu útero seco, quando deveria se molhado pelo sêmen do

homem.

O preço do preservativo não é visto pelos entrevistados como empecilho a sua

aquisição. Eles o consideram barato, embora por vezes se atrapalhem na hora de dizer

quanto custa, dada a falta de familiaridade. Vários referem a existência de doação de

preservativos nos postos de saúde da cidade.

Alguns depoimentos revelam a existência de um contra-discurso bastante

difundido entre os homens a respeito da camisinha, capaz de inibir o uso por parte dos

mais jovens. Aliás, parece haver uma significativa circulação de informação, à maneira

deles, também sobre ISTs, sua prevenção e tratamento, que pode ser canalizada para se

pensar em estratégias de intervenção.

Os entrevistados tem conhecimento de diversas ISTs ou porque já tiveram ou

porque conhecem outros que tiveram. Elas são identificadas, por vezes, por nomes

conhecidos localmente, que nem sempre foi possível traduzir. Foram citadas: sífilis,

gonorréia de sangue e de pus, capim, formigueiro, mula e crista de galo. Para o

tratamento das ISTs há referência a consulta a um médico, a um farmacêutico ou

utilização de chás ou fórmulas caseiras, comumente indicadas pelos amigos.

Todos os entrevistados já ouviram falar da AIDS. As informações que tem nem

sempre são verdadeiras ou consistentes, mostrando-se em geral muito genéricas e

parciais. Em alguns depoimentos o assento e o beijo aparecem como formas de infecção

por HIV. A AIDS é concebida pelos entrevistados como uma doença que não tem cura,

que mata aos poucos, faz a pessoa secar, ao passo que as ISTs incomodam, mas tem

remédio.Alguns entrevistados sabem que existe medicação para prolongar a vida do

portador de HIV, um deles afirma ser muito caro e não estar ao alcance dos pobres.

O homem é visto como tendo mais facilidade de pegar ISTs e AIDS,

principalmente porque se relaciona com qualquer mulher, “não escolhe”, “é feito

cachorro”. Há referencia também ao fato dele não se cuidar como a mulher, e penetrar,

ficar em contato com a parte interna da mulher.A mulher que tem muitos homens

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aparece em seguida como mais vulnerável e por último o homossexual, o que pode

relacionar-se a própria negação da relação homoerótica, mesmo considerando a

referência a esta como de domínio público nas localidades.

A esposa ou companheira nunca é vista como passível de transmitir ISTs ou

AIDS. Em geral a prostituta é pensada como fonte de doenças17, aparecendo uma

fantasia em relação a esta, bastante ameaçadora. Afirma-se que ela ao saber que está

com AIDS se vingará de todos, escondendo a doença. O risco é avaliado em função do

número de parceiros que se imagina que alguém teve, da quantidade.

Os entrevistados não se vêem como estando em risco em relação a ISTs e

principalmente a AIDS, pois acreditam tomarem os devidos cuidados, por se valerem

de critérios que consideram confiáveis para a escolha das parceiras. Para eles o risco de

contrair ISTs não representa algo tão grave assim, associando-se à virilidade. A AIDS,

por sua vez, ainda é vista como “doença do outro”18.

4.Considerações finais

Os entrevistados demonstram uma concepção tradicional dos atributos alocados

à masculinidade e a feminilidade, que são flexibilizados em função de distintos

contextos e circunstâncias. Destaca-se o significado do casamento e da chegada dos

filhos na formação da identidade masculina madura, assim, como o lugar das mulheres

(em suas várias categorias) na construção e vivência desta. As mulheres representam

um contraponto para a construção da masculinidade, podendo-se mesmo dizer que em

algumas situações ou circunstâncias podem colocá-la em xeque.

Embora predomine uma visão tradicional das relações de gênero, verifica-se em

alguns aspectos, notadamente no que diz respeito à sexualidade, uma certa

ambigüidade, observando-se uma oscilação entre “valores antigos e modernos”. As

informações sobre a AIDS e as DSTs e sobre suas formas de prevenção e tratamento,

baseiam-se num conhecimento impreciso e inconsistente. Verifica-se uma percepção

negativa do preservativo, e uma visão distorcida e distante do risco em relação às ISTS

e a AIDS, o que parece se relacionar diretamente com o seu não uso.

As campanhas de prevenção parecem não ter um impacto significativo sobre

estes homens talvez pela falta de conhecimento do seu universo cultural, não se

17 Esta representação assemelha-se aquela de que fala Carrara (1994) ao discorrer sobre a transmissão da sífilis no século XIX, quando a prostituta era vista como a fonte do mal. 18 Diversos autores encontraram representação da AIDS como doença do outro. No contexto brasileiro ver Knauth,1998; 1999; Loyola, 1994; Parker, 1994 e Guimarães, 1996).

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utilizando de uma linguagem que os coloque a par do que é a epidemia, para eles

representada pela fatalidade, na associação com a morte, estereótipo do qual se afastam.

Diversas características presentes no discurso dos homens em relação à

construção da masculinidade, sexualidade e prevenção das ISTS e da AIDS, parecem

indicar que há um elevado nível de exposição ao risco de contraí-las. O que demanda a

realização de trabalhos efetivos de informação e intervenção adequados a sua realidade.

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SIGNIFICADOS E REPRESENTAÇÕES DA PARCERIA CIVIL REGISTRADA ENTRE HOMOSSEXUAIS MASCULINOS EM CUIABÁ

Moisés Alessandro de Souza Lopes - [email protected]

Mestre em Ciências Sociais, Brasil.

1. Introdução

Esse artigo tem como fim desenvolver uma análise dos significados e das representações sociais que homossexuais masculinos que vivem uma relação de conjugalidade tem da Parceria Civil Registrada, bem como da possibilidade de regulamentação de sua união. Essa análise só está sendo possível pelo desenvolvimento de uma pesquisa que está sendo financiada com recursos do Programa Interinstitucional de Treinamento em Metodologia de Pesquisa em Gênero, Sexualidade e Saúde Reprodutiva promovido pelo Programa de Estudos e Pesquisas em Gênero, Sexualidade e Saúde/IMS/UERJ com apoio da Fundação Ford.

Essa pesquisa tem como objetivo principal identificar e analisar como os homossexuais que vivem relações estáveis significam suas relações, como as vêem, as constroem e as vivem cotidianamente, tendo como metodologia a pesquisa qualitativa sendo que a estratégia metodológica empregada para a coleta de dados está sendo a realização de entrevistas face a face por meio de roteiro semi-estruturado. Além disso, destaco que essa pesquisa assume importância por analisar um dos maiores núcleos urbanos do interior do país e o maior do oeste brasileiro, a Grande Cuiabá que conta com uma população total superior a 700 mil habitantes, segundo o censo de 2004. Esse núcleo urbano é formado pelas cidades de Cuiabá e Várzea Grande, sendo a primeira composta por mais de 500 mil habitantes.

Desse modo, esse artigo assume relevância por desenvolver uma análise, ainda preliminar, dos significados e das representações sociais que homossexuais masculinos têm da regulamentação civil da união entre pessoas do mesmo sexo. Resta destacar ainda que a pesquisa não se encontra concluída com a necessidade de um retorno a campo com a realização de mais entrevistas, fato que ocorrerá em novembro desse ano. Resta dizer, que

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2. Conjugalidade homossexual no Brasil, situando os termos do debate.

Durante os últimos anos, as uniões civis entre pessoas do mesmo sexo têm assumido gradualmente espaço na mídia nacional e internacional. Inúmeros países de quase todos os continentes aprovaram ou colocaram em discussão leis específicas com o fim de regulamentar a possibilidade de existência jurídica dessas famílias formadas por gays e lésbicas. Vale ressaltar que uma característica comum de quase todos os projetos aprovados é a proibição da adoção de filhos por parte dos casais homossexuais, tendo sido derrubada apenas na Holanda e encontrando-se em discussão em alguns outros países. Devem-se destacar também aqui os diversos estudos desenvolvidos principalmente na França em decorrência da aprovação do Pacte Civil de Solidarité (PACS) em 1999.

No Brasil, a discussão sobre o reconhecimento da conjugalidade homossexual emergiu no cenário político1 por volta do final da década de 90, mais especificamente em 1994, no âmbito das eleições para a Presidência da República, inserida na proposta do programa de governo do candidato Luiz Inácio Lula da Silva do PT. Sob pressão de grupos conservadores essa proposta foi retirada do programa presidencial de governo, mas não abandonou o cenário político, pois deputados eleitos2 assumiram o compromisso de defender essa proposta. A luta por conjugalidade teria como justificativa a legalização de uma situação de fato e a garantia de amparo aos(as) homossexuais que perdem seus(suas) parceiros(as) principalmente em decorrência da AIDS (Almeida Neto, 1999).

Assim, a principal preocupação daqueles parlamentares e também do movimento dos(as) homossexuais ao se buscar o reconhecimento da conjugalidade entre pessoas do mesmo sexo era assegurar o direito à inclusão dos(as) parceiros(as) na Previdência Social e em planos de saúde privados, bem como direitos relativos à herança. É somente após a realização do 1º Congresso da Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Travestis (ABGLT) e da 17ª Conferência da Internacional Lesbian and Gay Association (ILGA), em 1995, que a Deputada Marta Suplicy, em parceria com especialistas e lideranças do movimento dos(as) homossexuais, define a proposta original do Projeto de Lei de Parceria Civil Registrada (Almeida Neto, 1999). Nas palavras dela3, “Apresentei a idéia e contei com grande colaboração dos grupos gays. Houve um intercâmbio muito intenso, eles participaram mesmo. Refiz o projeto baseada nas observações deles”.

É a partir da apresentação e publicização desse projeto na Câmara dos Deputados que a discussão sobre a conjugalidade homossexual ganhou impulso e foi colocada em foco na mídia brasileira de maneira mais sistemática. No entanto, esse projeto que busca garantir aos(as) homossexuais a condição de cidadãos(ãs) não foi até hoje para a votação na Câmara dos Deputados estando engavetado. Já a discussão sobre a união entre homossexuais na sociedade não seguiu o mesmo caminho, se tornando pública com manifestações de apoio e repúdio de diversas instituições em diversos momentos, vale destacar aqui as manifestações das igrejas católicas e evangélicas contrárias ao projeto, bem como de diversas ONGs favoráveis. Além dessas ocorreram manifestações por parte dos(as) próprios(as) homossexuais que colocavam em questão a união homossexual e o preconceito sofrido, como os beijaços que ocorreram nos shoppings e restaurantes das grandes cidades como Rio de Janeiro e São Paulo, as passeatas do orgulho gay que em dado momento tiveram como tema a união homossexual e a criação de fóruns e grupos de debate na internet, entre outras iniciativas.

Na academia ocorreu, paralelamente a esse movimento de maior visibilização das uniões entre pessoas do mesmo sexo, uma expansão de estudos sobre as

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homossexualidades e as diversas manifestações homoeróticas, incluindo entre elas a conjugalidade homossexual. Destacam-se aqui a tese de doutorado de Maria Luiza Heilborn (1992) que desenvolve um estudo comparativo entre a conjugalidade de heterossexuais e homossexuais (gays e lésbicas) e aponta similitudes e diferenças; a tese de doutorado de Luiz Mello de Almeida Netto (1999) que desenvolve uma análise da construção social da conjugalidade homossexual; bem como, a tese de Anna Paula Uziel (2002) que desenvolve uma análise da relação entre família e homossexualidade a partir de duas ilustrações, uma no campo do Legislativo e outra no campo do Poder Judiciário.

No entanto, poucos estudos no Brasil se preocuparam em analisar como os(as) próprios(as) homossexuais significam e representam sua relação estável, diante disso esse estudo adquire importância por buscar identificar e analisar como os homossexuais que vivem relações estáveis significam suas relações, como as vêem, as constroem e as vivem cotidianamente, tendo como metodologia a pesquisa qualitativa sendo que a estratégia metodológica empregada para a coleta de dados está sendo a realização de entrevistas face a face por meio de roteiro semi-estruturado. Além disso, destaco que essa pesquisa assume relevância por analisar um dos maiores núcleos urbanos do interior do país e um dos maiores do oeste brasileiro, a Grande Cuiabá que conta com uma população total superior a 700 mil habitantes, segundo o censo de 2004. Esse núcleo urbano é formado pelas cidades de Cuiabá e Várzea Grande, sendo a primeira composta por mais de 500 mil habitantes.

Partindo disso, para apreender como se dá a construção da conjugalidade homossexual masculina dentro da complexidade e fragmentação da sociedade contemporânea tomo como ponto de partida o conceito de projeto desenvolvido por Velho (1999, 1981) que em suas palavras se refere a,

[...] conduta organizada para atingir finalidades específicas. Embora o ator, em princípio, não seja necessariamente um indivíduo, podendo ser um grupo social, um partido, ou outra categoria, creio que toda a noção de projeto está indissoluvelmente imbricada à idéia de indivíduo-sujeito. Ou invertendo a colocação – é indivíduo-sujeito aquele que faz projetos. A consciência e valorização de uma individualidade singular, baseada em uma memória que dá consistência à biografia, é o que possibilita a formulação e condução de projetos. Portanto, se a memória permite uma visão retrospectiva mais ou menos organizada de uma trajetória e biografia, o projeto é a antecipação no futuro dessas trajetória e biografia, na medida em que busca, através do estabelecimento de objetivos e fins, a organização dos meios através dos quais esses poderão ser atingidos (1999, p.101).

Assim, se torna essencial para a consistência do projeto uma memória que forneça a noção de um passado que produziu o presente constituindo uma trajetória e uma biografia do indivíduo. Nesse sentido, projeto e memória se articulam com o fim de significar a vida e as ações dos indivíduos construindo, conseqüentemente, sua identidade social e possibilitando a esse sujeito situar e ordenar suas experiências individuais dentro de uma sucessão de etapas (trajetória). Vale destacar, que a noção de projeto busca dar conta da margem relativa de escolha que indivíduos e/ou grupos tem em determinado momento histórico em uma sociedade.

Somando-se a isso, temos de levar em conta que o projeto sempre leva em consideração a existência do outro, pois é na verdade um instrumento de negociação da realidade com outros atores, indivíduos ou grupos, existindo assim como meio de comunicação, de expressão de interesses, objetivos, sentimentos e aspirações para o mundo. Velho (1999, p.101) destaca que, as “[...] circunstâncias de um presente do indivíduo envolvem, necessariamente, valores, preconceitos, emoções”. Nesse sentido, o projeto deixa

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de ser exclusivamente racional sendo resultado de uma deliberação consciente diante das circunstâncias que envolvem o indivíduo (campo de possibilidades). Nas palavras do autor:

Para lidar com o possível viés racionalista, com ênfase na consciência individual, auxilia-nos a noção de campo de possibilidades como dimensão sociocultural, espaço para formulação e implementação de projetos. Assim, evitando um voluntarismo individualista agonístico ou um determinismo sociocultural rígido, as noções de projeto e campo de possibilidades podem ajudar a análise de trajetórias e biografias enquanto expressão de um quadro sócio-histórico, sem esvaziá-las arbitrariamente de suas peculiaridades e singularidades (Velho, 1999, p.40).

Desse modo, ao me referir a um projeto de conjugalidade entre homossexuais masculinos levarei em consideração a ação deliberada que resulta em um planejamento para o estabelecimento desse objeto e/ou a intenção de realizá-lo, independente da possibilidade de existência de um plano detalhado passo a passo ou dele ser vago, sendo importante nessa pesquisa a formulação e colocação em prática desse projeto de vida a dois. Levarei também em consideração que o projeto individual de conjugalidade é resultado de uma interação deste com diversos outros projetos individuais dentro de um campo de possibilidades.

Segundo Velho (1999) por ser produto de uma interação entre indivíduos e/ou grupos, o projeto tem um caráter marcadamente dinâmico, de constante reelaboração e releitura do passado pelo ator, que com isso, acrescenta novos sentidos e significados a sua biografia provocando repercussões em sua identidade. A identidade nas sociedades urbanas contemporâneas, teriam assim uma maior margem de manobra, pois estariam apoiadas em um “anonimato relativo” e em uma diversificação de papéis e domínios, associada à possibilidade de trânsito entre estes, resultando em uma produção de identidades multifacetadas e de relativa estabilidade. Esse autor intitula essa diversificação de papéis de “potencial de metamorfose” que permite, em suas palavras,

[...] aos indivíduos transitarem entre diferentes domínios e situações, sem maiores danos ou custos psicológico-sociais, ao contrário do que se poderia esperar, a partir de uma visão mais estática de identidade. Dentro desse repertório, portanto, desenvolvem-se papéis e desempenhos mais especializados, sem que isso signifique uma exclusão dos outros indivíduos. Pelo contrário, trata-se de uma característica mais generalizada da sociabilidade contemporânea, que faz com que todos, potencialmente, possam participar de n códigos e mundos. As diferenças, claramente existentes, se devem a especificidades de trajetória, origem, poder, prestígio, associadas à natureza da estrutura social (p.82).

A problemática do “anonimato relativo” se agudiza e se complexifica ao se tratar do estabelecimento de um projeto de conjugalidade homossexual devido a existência no imaginário de uma infinidade de representações sociais de caráter negativo sobre as homossexualidades, bem como pela existência do preconceito e da homofobia. Esse preconceito e homofobia dispersos no imaginário social acabam influenciando a construção de um projeto de conjugalidade entre pessoas do mesmo sexo e, quando já estabelecido esse projeto, acabam provocando um silenciamento da própria união e uma escolha sobre as possíveis pessoas que poderiam ser portadoras desse “segredo”. Tarnovski (2003) afirma que:

A existência de estereótipos negativos, assim como de pré-julgamentos que tomam a homossexualidade como uma doença ou falha de caráter moral, tornam mais difícil o momento da revelação. Nesse sentido, dizer-se gay ou homossexual é o primeiro e mais difícil momento de um longo processo de desconstrução das imagens negativas associadas à homossexualidade e aos homossexuais (p.17).

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Se “assumir-se” como homossexual é o ponto inicial do processo de desconstrução das imagens negativas associadas à homossexualidade, assumir um projeto de conjugalidade igualmente passaria por um processo de desconstrução de estereótipos e representações negativas que abarcariam agora dois indivíduos. Assim, a revelação do “segredo” de uma união homossexual passaria por um processo de diálogo/negociação de visibilidades e de aceitação das respectivas homossexualidades, tornando mais complexa a possibilidade dessa visibilização.

Não podemos nos esquecer também que é somente a partir da década de 90 que se busca o reconhecimento da conjugalidade entre pessoas do mesmo sexo, busca que se iniciou na Europa e nos Estados Unidos e que, como dito anteriormente, vai culminar no Brasil com a apresentação do Projeto de Parceria Civil Registrada em 1995. Antes disso, nas décadas de 70 e 80, a luta do movimento homossexual se fazia pautada principalmente na idéia de liberalização sexual que implicava na existência de múltiplos(as) parceiros(as) sexuais (Arán, 2003; Grossi, 2003).

Grossi (2003), aponta que no final da década de 90, no Brasil, ocorreu a emergência do reconhecimento civil da conjugalidade homossexual, e que esse fenômeno assinala uma etapa significativa nos modelos ocidentais modernos de parentesco, marcados pelo modelo de um conjunto formado pela díade do casal heterossexual com sua prole. Em suas palavras,

Há várias explicações para esse desejo de conjugalidade entre indivíduos do mesmo sexo. Alguns autores enfatizam a emergência do modelo individualista moderno constituído, particularmente, por lésbicas e gays vivendo em grandes metrópoles mundiais, que assumiriam modelos de fechamento no conforto do lar tecnologizado dos casais DIWC (duplo salário sem filhos). Outros ressaltam o impacto da AIDS sobre a comunidade gay, que teria sido um propulsor da busca por conjugalidade em relações homoeróticas como forma de autoproteção à contaminação. A forte demanda por reconhecimento legal destas uniões, através das leis de parceria civil, seria uma das conseqüências dos inúmeros casos dramáticos de pessoas que perderam, por causa da AIDS, além do companheiro, moradia e renda, devido à inexistência de amparo legal para a união entre dois indivíduos do mesmo sexo.

No entanto, Heilborn (1992), Féres-Carneiro (1997) e Grossi (2003) chamam atenção para especificidades que as diferenças de gênero nas questões referentes às homossexualidades implicam. Assim, se a busca pela conjugalidade homossexual masculina é pautada como uma maneira de “proteção” a epidemia de AIDS, na homossexualidade feminina essa não é a questão principal, e sim a assunção de um modelo conjugal igualitário.

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3. Universo de entrevistados e configuração da pesquisa.

Um dos princípios relevantes para a delimitação dos sujeitos participantes da pesquisa foi a auto-definição de estar vivendo uma situação de conjugalidade. Essa escolha foi motivada pelos objetivos da pesquisa que busca analisar as representações e os significados da conjugalidade entre indivíduos homossexuais que vivem uma união. Assim, busquei eliminar indivíduos que se auto-declaram como sozinhos (mesmo que vivam uma situação conjugal com outro homem), bem como o universos de homens que vivem uma vida “dupla”, isto é, se relacionam tanto com homens quanto com mulheres.

O trabalho de campo foi realizado durante todo o mês de agosto em Cuiabá (infelizmente não tive acesso a nenhum casal homossexual que morasse na cidade de Várzea Grande até o momento) e compreende seis entrevistas gravadas que serão analisadas nesse artigo. Cada uma das entrevistas totalizou uma média de 60 minutos e foi realizada (quase que na totalidade) na casa dos entrevistados após um primeiro contato por telefone, no qual foi marcado um encontro pessoalmente para explicar os motivos da pesquisa.

Além disso, também foi feito um diário de campo com o fim de anotar informações sobre o contexto das entrevistas, relatos das conversas não gravadas (tanto antes quanto depois das entrevistas) e contatos estabelecidos (pessoalmente ou por telefone) que não resultaram em entrevistas. As entrevistas tiveram por base um roteiro semi-estruturado que foi organizado em torno de quatro blocos temáticos, quais sejam:

1.) Dados do sujeito e do parceiro: dados que permitiram estabelecer o perfil sócio-econômico e cultural dos sujeitos entrevistados e de seus parceiros, tais como: idade, religião, escolaridade, profissão, tempo de relação e configuração da família de origem do entrevistado (número de irmãos(ãs), conjugalidade dos pais).

2.) Significados e vivências da homossexualidade: questões que buscavam analisar os significados da sexualidade e como se refletiram na construção do sujeito, tais como: etapas da trajetória de vida em que a homossexualidade apareceu como “problema” ou ponto de inflexão significativo e envolvimento da família de origem, redes de sociabilidade, conhecimento de terceiros de sua homossexualidade, no trabalho, entre os amigos, vizinhos e parentes, discriminações sofridas individualmente.

3.) Conjugalidade homossexual: questões que deram acesso a representações e significados da conjugalidade que incluíam: questões referentes a tipos de parceria afetivo/sexuais, comparação com a conjugalidade heterossexual, regulamentação da conjugalidade homossexual, questões sobre o conhecimento de legislação sobre união civil entre pessoas do mesmo sexo e sobre o estabelecimento de contrato de parceria.

4.) Relação conjugal atual: questões que buscaram compreender como ocorreu a construção do projeto de vida em comum, que incluíam: questões relativas ao modo de estabelecimento da parceria afetivo/sexual, negociação de dificuldades e conflitos; questões referentes a características da relação conjugal, co-habitação, fidelidade, tempo de relação e nomeação do parceiro; questões referentes a organização de tarefas e funções domésticas; bem como, questões referentes a preconceitos ou discriminação sofridos como casal.

O acesso ao campo foi realizado através de contatos mediados por pessoas de minha rede de relações, amigos e conhecidos que apresentaram amigos e conhecidos dentro dos critérios estabelecidos para que a pesquisa pudesse ser desenvolvida, resultando em um total de seis entrevistas realizadas e mais algumas a serem realizadas no mês de

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novembro. Esse tipo de acesso aos informantes, apesar de guiado por critérios pré-definidos como classe social e auto-definição de vida em comum, ficou dependente da possibilidade de identificação e acesso a esses informantes. Essa dificuldade de acesso pode apontar para uma característica importante desse tipo de relação na cidade de Cuiabá, qual seja: os casais homossexuais não formam um grupo visível e de fácil identificação.

Outra característica importante é que apesar de não haver essa visibilidade ocorre a formação de redes de sociabilidades específicas que envolvem geralmente indivíduos que vivem também uma situação de conjugalidade ou outros que buscam igualmente uma situação de conjugalidade. Essa característica aponta para um processo de vivência da conjugalidade fora do âmbito doméstico, mesmo que ainda em um ambiente receptivo e relativamente “seguro” para tal vivência.

Assim, para a realização das entrevistas tive acesso, através de um amigo, a uma dessas redes de sociabilidades e realizei a partir dela três entrevistas. Os outros três entrevistados não se conheciam nem faziam parte dessa rede de sociabilidades e me foram apresentados por três diferentes amigos. O quadro abaixo resume até o momento o perfil dos participantes da pesquisa:

Nome

(fictício)

Idade

Escolaridade

Profissão

Tempo de relação

Rodrigo 31 Pós-graduação Professor e revisor de

textos

7 anos

Paulo 29 3º grau incompleto Professor e guia turístico 2 anos

André 33 3º grau cursando Técnico em enfermagem 1 ano e meio

Marcos 42 3º grau completo Professor 6 anos

Marcelo 35 3º grau incompleto Promotor de eventos 10 anos e meio

Murilo 20 3º grau cursando Bancário 2 anos e meio

Os informantes Rodrigo, Paulo e André fazem parte de uma rede de sociabilidades mista, na qual casais heterossexuais e homossexuais e, também indivíduos homossexuais que aspiram a um relacionamento estável, se reúnem com uma certa regularidade para realização de almoços e jantares. Já os informantes Marcos, Marcelo e Murilo não se conhecem nem tem nenhum contato entre si, nem com os indivíduos dessa rede de sociabilidades.

Além desses informantes alguns outros me foram apresentados por uma amiga pessoal para a realização da entrevista, entrei em contato com dois desses por telefone, um deles se prontificou a ser entrevistado, marcamos a entrevista e no dia anterior a realização desta, esse possível informante me ligou desistindo de participar; já o segundo, fiz o contato por telefone e pessoalmente, mas esse também desistiu de participar da pesquisa. Após a realização dessas entrevistas surgiu a necessidade de realização de uma análise dos dados obtidos com a possibilidade de retorno ao campo para a realização de mais entrevistas, fato que acontecerá no mês de novembro desse ano.

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4. Mundo gay de Cuiabá, visibilidade e discrição.

Embora cidades como Rio de Janeiro e São Paulo tenham se tornado os centros mais importantes da vida gay no Brasil, devido a seu porte e complexidade, é necessário apontar a formação de “culturas gays” cada vez mais visíveis em diversas cidades menores do país, entre essas destacam-se: Fortaleza, Belém, Belo Horizonte, Porto Alegre, Curitiba, Recife (Parker, 2002). Analisando o tamanho dessas cidades poderia se dizer que em sua maioria todas se destacam como capitais, centros regionais e/ou nacionais de desenvolvimento marcadas por uma grande concentração populacional e existência de um “anonimato relativo” nas relações interpessoais, que permitem uma maior diversificação de papéis, bem como a produção de identidades multifacetadas e de relativa identidade (Velho, 1999).

Estabelecendo uma comparação com essas cidades, Cuiabá se estabeleceria como uma cidade média, apesar de capital, e se somada a Várzea Grande (cidade vizinha) comporia a chamada Grande Cuiabá. Essa conurbação teria uma população de mais de 765 mil habitantes com Cuiabá respondendo por 525 mil e Várzea Grande por 240 mil habitantes, mesmo assim ficaria bem abaixo da cidade menos populosa supra-citada que compreenderia mais de 1 milhão de habitantes.

Assim, a Grande Cuiabá se enquadra entre as cidades de porte médio do Brasil e, em comparação com cidades maiores, tem uma vida gay muito mais circunscrita e restrita, marcada pela menor possibilidade de estabelecimento de um “anonimato relativo” como nas outras cidades. Mas temos também de levar em consideração que em comparação com cidades menores ao seu redor a Grande Cuiabá torna-se local de turismo, prazer e lazer no período de férias e finais de semana para homossexuais, e também, local de migração para os que buscariam “se libertar da família” estabelecendo uma vida mais autônoma e independente. Segundo Bozon (2004), essa migração de cidades pequenas para grandes é motivada pela esperança de encontrar anonimato e indiferença a sua maneira de viver, é também uma busca explícita para comunidades com reputação estabelecida e organizada, tanto em termo de lazer quanto de saúde e resistência à discriminação.

Analisando a procedência de meus entrevistados e seus companheiros, constatei que a maioria não é natural de Cuiabá, apenas quatro dentre eles são naturais da cidade, sendo que o informantes restantes ou são procedentes do interior do estado (4 deles), ou são de outras cidades do interior de outros estados também consideradas pequenas (3 deles) e, apenas um é procedente de uma outra cidade do mesmo porte que Cuiabá. Ou seja, entre os seis indivíduos entrevistados e seus companheiros apenas 5 são de cidades médias e nenhum é procedente de uma cidade maior que Cuiabá, sendo que o restante (7) migrou de cidades menores do que Cuiabá.

Esse fluxo de homossexuais para Cuiabá também fica explícito quando da realização da Parada Gay da cidade, que atrai caravanas de diversos municípios do interior e também de outros estados. A Parada Gay de Cuiabá é realizada desde junho de 2003, organizada pelo grupo Livre Mente, uma ong fundada em 1997 com o objetivo de possibilitar um espaço para a discussão de problemas comuns entre homossexuais.

Em sua primeira edição, a manifestação teve como título “I Parada da Diversidade de Cuiabá” sendo realizada em 26 de junho de 2003 com a participação de cerca de duas mil pessoas, entre homossexuais, transeuntes e curiosos, de acordo com o jornal “Folha do Estado”, em matéria do dia posterior a parada,

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Lésbicas, gays, travestis, transexuais e simpatizantes contagiaram os curiosos, os desconfiados e os desavisados que aderiram ao movimento. O espetáculo, acompanhado por som de trios-elétricos, mobilizou estudantes, idosos, transeuntes e, até quem estava em horário de trabalho não resistiu e prestigiou a parada. Havia gente amontoada em porta, janela, mureta, nos telhados, disputando um melhor ângulo na avenida.

Em sua segunda edição, no dia 19 de junho de 2004, o título da parada foi “Pouca vergonha é o seu preconceito” e segundo dados da Polícia Militar promoveu a concentração de cerca de 7 mil pessoas, já segundo da organização reuniu cerca de 10 mil pessoas. Já a terceira edição ocorreu no dia 29 de julho de 2005 e, intitulada “O mundo mudou, traga sua família”, reuniu cerca de 10 mil pessoas de acordo com a Polícia Militar e cerca de 18 mil segundo organizadores do evento.

É importante destacar que a referida parada acontece anualmente nas principais praças, ruas e avenidas do centro da cidade, paralisando o fluxo de veículos em horário comercial. Destaca-se também a existência de alguns outros eventos que ocorrem na semana da Parada tais como, apresentação de teatro, apresentação de filmes e palestras a respeito da discriminação homossexual. Somando-se a isso, vale a pena lembrar a existência de uma grande presença de “curiosos” que exclusivamente assistem a parada, bem como a existência de manifestações contrárias a realização desse evento. Um exemplo disso foi a tentativa no ano de 2005 por parte do prefeito – apoiado por grupos evangélicos – de impedir a realização da parada no centro da cidade na véspera dessa, alegando que a avenida não poderia ser ocupada por movimentos sociais, coisa que havia sido feita há alguns dias por uma festa promovida pela própria comunidade evangélica.

Murilo, um de meus informantes afirma a existência de uma forte hipocrisia da sociedade no que tange a questão da homossexualidade apontando a existência do que chamou de “pacto de mediocridade” no qual as pessoas fingem não saber a respeito da homossexualidade das pessoas, nas palavras dele:

Eu acho, eu acho que há uma aparente aceitação em Cuiabá, acho que isso é muito prejudicial, é uma hipocrisia muito grande dizer que as pessoas daqui respeitam mais os homossexuais do que em outros lugares. A homossexualidade em Cuiabá é velada, para muitas pessoas homossexuais, que são homossexuais passam anos de relacionamento, se relacionando, mesmo casadas com outra, outras pessoas e escondem, entre aspas, né, porque as pessoas sabem, mas fingem que não sabem. É um pacto de mediocridade, eu finjo que estou te enganando e você finge que está sendo enganado e é assim que as famílias se portam, as famílias homossexuais se portam. Eu acho que isso é uma coisa muito prejudicial, pois a partir do momento que nós não nos mostrarmos de certa forma, né, para que as pessoas vejam que sim nós existimos, que sim nós estamos aqui, que sim nós não somos só homossexuais, que nós somos estudantes, somos profissionais, somos tanta coisa, somos seres humanos. Eu acho que é isso que tem que transparecer, que homossexual é só homossexual e não é mais nada, que é só gay e não é mais nada, não (sic).

Comparada a cidades maiores, Cuiabá apresenta poucas possibilidades de locais para encontro entre homossexuais, segundo informantes os locais das interações homoeróticas, ou como eles próprios chamavam, os locais de “pegação” estão dispersos na cidade com destaque para o Parque Okamura, no período das 17 às 19 horas, já que o referido parque fecha seus portões às 18 horas; a sauna que funciona todos os dias da semana das 16 às 22 horas, mas que realmente “esquenta” de quinta-feira a domingo de acordo com informantes; o bar Presidente que fica na área central e aumenta a freqüência depois das 22 horas; a região do porto, localizada no centro-sul da cidade conhecido como sendo de

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freqüência das travestis; a avenida Barão de Melgaço próximo a Ong Livre mente, na região central, ponto dos garotos de programa e; a boate Zum Zum que funciona de quinta-feira a sábado.

Esses locais têm freqüência de públicos com idades e classes sociais variadas sendo que essas interações assumem o caráter de clandestinidade por se misturarem ao fluxo da vida e se concentrarem majoritariamente em locais abertos, exceção da boate e da sauna, que oferecem um grau limitado de segurança para os indivíduos que podem não querer ser identificados publicamente como gays, ou que preferem se encontrar em espaços que são reconhecidamente gays e heterossexual ao mesmo tempo.

Há também uma particularidade entre as interações homoeróticas ocorridas em Cuiabá como afirmou um informante, “todo mundo de Cuiabá trepa em Várzea Grande, fica mais discreto”. A discrição é uma grande preocupação em todas as interações entre homossexuais a ponto de muitos desses não irem a locais declarados de freqüência de homossexuais, pois vivem suas homossexualidades de maneira clandestina.

É claro que esses locais não são os únicos em que acontece a existência de interação homoerótica, informantes afirmaram que essa interação acontece em todos os lugares inclusive em boates e bares de freqüência heterossexual a diferença é que nesses locais a interação é feita de maneira absolutamente “silenciosa” e discreta, sem a exposição pública de uma identidade homossexual.

No desenvolvimento da entrevista a maioria de meus informantes afirmou não freqüentar o “meio gay” e, os que o fazem afirmaram a existência de uma baixa freqüência a boates e uma maior possibilidade de presença em bares, já que a boate é considerada como “local de pegação” e por estarem vivendo uma situação de conjugalidade não acham condizente com a situação, em outros termos parecem querer evitar que lhes seja colada a imagem negativa e estereotipada do “homossexual promíscuo”, nas palavras de Marcelo isso fica bem claro,

[...] a infidelidade ela é muito constante e presente num relacionamento, principalmente pra gente que vive em um meio aonde tem pessoas que não tem, que não tem princípios, os princípios delas muitas vezes não são os seus, né, um ambiente aonde você, não é adequado para um casal, né, então existem algumas coisas que acabam atrapalhando né, que não trariam nada de positivo pra relação.

Apontaram também a existência de uma aparente aceitação da homossexualidade pela sociedade de Cuiabá que se contrapõem à prática cotidiana com diversos exemplos de atitudes discriminatórias e preconceituosas, bem como violência dirigida a homossexuais de uma maneira geral.

Além disso, assinalaram a todo o momento uma diferenciação na vivência da homossexualidade entre Cuiabá e outras cidades grandes, especialmente São Paulo e Rio de Janeiro, que são vistos como locais de vivência plena da liberdade de ser homossexual com possibilidade de parceiros andarem de mãos dadas e se beijarem sem serem constrangidos ou ameaçados em qualquer lugar e momento e, de maneira oposta, Cuiabá é vista com uma cidade com uma população que ameaça a honra do indivíduo, com comentários e, a vida, com agressões e violência. Segundo Bozon (2004), historicamente o homem (e também a mulher) sempre procurou fora de sua própria sociedade uma sexualidade mais livre, em que a relação entre parceiros(as) fossem mais fáceis. De acordo com esse autor essa busca se apóia na ignorância dos sistemas de relações, imposições e dependências estabelecidas que caracterizam essas outras sociedades e no caráter mítico da noção de liberdade sexual.

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5. Conjugalidade gay em Cuiabá: Parceria Civil Registrada e regulamentação da união.

Como dito anteriormente, essa pesquisa tem por objetivo identificar e analisar os significados e representações que os parceiros homossexuais masculinos têm de suas relações estáveis, bem como o conhecimento sobre a regulamentação civil dessa união. Assim, partindo das informações obtidas pelas entrevistas e de uma análise do perfil desses casais, buscarei nesse artigo desenvolver algumas reflexões sobre o conhecimento do Projeto de Parceria Civil Registrada, assim como também das representações sobre regulamentação civil dessa união, levando em conta os estudos já desenvolvidos sobre a conjugalidade.

É preciso lembrar que as discussões sobre conjugalidade nos estudos contemporâneos buscam dar conta das estruturas pertinentes a uma vida a dois se situando como um recorte da problemática conjugal frente à da família (Heilborn, 1992). Assim, esse estudo partirá, das análises já desenvolvidas sobre as mudanças que vem ocorrendo gradualmente na instituição familiar que tradicionalmente se encontrava centrada na idéia de um casal heterossexual e os filhos resultantes dessa união e hoje se encontra com um formato muito mais plural, com destaque para a expansão de famílias monoparentais e chefiadas por mulheres.

De acordo com Figueira (1987), Vaitzman (1994) e Berquó (1998), essas mudanças seriam resultantes de uma tendência à passagem de um modelo de família hierárquica para outro de família mais igualitária, tendência inicialmente mais visível nas camadas médias urbanas e, com o tempo, passando a permear também as camadas populares. Essa transposição de modelos está pautada em um processo de aprofundamento e extensão do individualismo que estimula a instabilidade e a volatilidade nas relações íntimas no casamento e na família. Velho (1981) e Heilborn (1992) também apontam essa expansão do igualitarismo em detrimento da tradicionalidade no domínio da família assim como, a dificuldade de definição do que se entende por camadas médias, nas palavras de Heilborn:

O problema da definição das camadas médias é clássico: são definidas pela exclusão, por aquilo que não são. E é também histórico: [...] Peter Gay realiza uma boa digressão sobre o incômodo e a ambigüidade que a expressão sempre comportou, e dedica um bom número de páginas para tentar resolver, ou ao menos circunscrever, os problemas no uso das expressões burguesia ou classes médias, termo preferencialmente no plural entre os ingleses. Típicos in between, tais segmentos sociais eram todos aqueles que se situavam entre a aristocracia e o proletariado (2004, p.71).

Esse estudo se pauta na trilha já traçada por Heilborn (1992) privilegiando o universo simbólico que sustenta os denominados novos arranjos conjugais e, desse modo o recorte social denominado por essa autora de “perfil moderno das camadas médias” que possui três princípios: a psicologicidade, a igualdade e a mudança. Esses novos arranjos conjugais estruturam-se basicamente a partir do princípio da igualdade - rejeitando qualquer diferença de status entre os gêneros -, no companheirismo e no apoio psicológico.

Desse modo, levei em consideração esses e outros estudos para o desenvolvimento da pesquisa aqui empreendida, partindo da seleção de indivíduos e seus companheiros provenientes desse universo de classe média. O quadro abaixo dará uma idéia real do perfil dos participantes da pesquisa até o momento:

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NOME

(fictícios)

IDADE ESCOLARIDADE PROFISSÃO IDADE DO

COMPANHEIRO

ESCOLARIDADE

DO

COMPANHEIRO

PROFISSÃO DO

COMPANHEIRO

TEMPO DE

RELAÇÃO

Rodrigo 31 Pós-graduação Professor 37 3º grau cursando Técnico em

enfermagem

7 anos

Paulo 29 3º grau incompleto Professor e

guia turístico

23 2º grau incompleto Vendedor 2 anos

André 33 3º grau cursando Técnico

enfermagem

29 2º grau completo Funcionário

administrativo

1 ano e meio

Marcos 42 3º grau completo Professor 28 3º grau completo Enfermeiro 6 anos

Marcelo 35 3º grau incompleto Promotor de

eventos

30 Pós-graduação Administrador 10 anos e

meio

Murilo 20 3º grau cursando Bancário 28 Pós-graduação Professor 2 anos e meio

De uma maneira geral, podemos perceber a existência de uma relativa homogamia etária entre os entrevistados e seus companheiros, exceção verificada entre Marcos e seu companheiro com uma diferença etária de 14 anos, verifica-se também uma relativa homogamia escolar entre os casais. Como se percebe na tabela ocorre uma grande variação nas profissões/trabalhos nos quais os entrevistados se mantêm com uma pequena concentração desses na carreira do magistério. Além disso, o tempo de relação foi outro critério que variou bastante com a existência de relacionamentos estabelecidos no período de um ano e meio até a existência de relações mantidas há 10 anos e meio.

No transcorrer das entrevistas além de questões que diziam respeito a fidelidade, coabitação, discriminação e preconceitos sofridos foram feitas perguntas com o tema da regulamentação da união entre pessoas do mesmo sexo. Todos os informantes sem exceção apontam a necessidade de regulamentação dessa união, alguns afirmam que essa regulamentação é necessária no caso da morte de um dos parceiros para garantir a transmissão de bens, outros acrescentam que além da questão da morte essa regulamentação se faria necessária também para extensão de direitos para o casal homossexual que são garantidos para o casal heterossexual, na fala de Marcelo isso fica bem claro:

Pesquisador: Você acha que a conjugalidade homossexual deve ser regulamentada? Marcelo: Acredito que sim, acredito que sim, hoje isso na minha cabeça ela está mais (pausa) tá mais certa, porque eu conheço casos de pessoas que viveram juntas e quando o outro vai embora, construiu coisas e a família fica com tudo não assim visando apenas a questão material que isso é uma coisa que eu e meu companheiro estamos amadurecendo, porque assim, é uma, é desumano, acho que não seria desumano, mas é assim, não é merecedor você viver com a pessoa nove, 10, 15, 5 anos e você construir um lar, você colocou as coisas aqui de acordo com o gosto de vocês, vocês compraram juntos, a gente compra junto tudo, desde a roupa, onde vai colocar qualquer coisa da decoração e de repente quando um falece, morre, a família vem e levam tudo. Então onde é que está a sua história o que você construiu, né, porque eu acredito que como na família heterossexual você constrói uma história dentro do lar com os filhos, com tudo que você tem que torna-se assim esse é o sofá que seu pai sentava, aquela era a cadeira que seu pai sentava e via ou assistia televisão. Então, assim, eu acho que tem isso, não de apego material, mas de sentimento né, que a gente coloca nas coisas, em tudo que a gente faz, né. Então eu acredito que há necessidade de uma regulamentação, não assim como de repente, ah, eu sou casado, não, eu não vejo por isso, mais assim, por questões assim de direitos que o companheiro de repente teria, iria passar a

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ter na empresa, ela beneficia não só o funcionário, mas o companheiro dele, com plano de saúde, com outras coisas, com outros benefícios que, que iriam ajudar e ele iria se sentir valorizado também, né. Porque só o homem ele pode colocar os filhos dele e a mulher dele, e o companheiro não pode né.

Essa comparação entre direitos de casais heterossexuais e de casais homossexuais aparece na fala de todos os informantes, todos apontam a necessidade de equiparação entre esses dois tipos de conjugalidade. E, mais, quando questionados sobre a necessidade de uma legislação específica para casais homossexuais, todos afirmam que a possibilidade de estabelecimento dessa especificidade se basearia em uma discriminação, pois homossexuais e heterossexuais são igualmente cidadãos e não deveriam ser diferenciados, Murilo afirma isso constantemente em sua entrevista e essa fala é bem representativa dessa questão.

Pesquisador: Você acha que deve ter uma legislação específica ou deve-se enquadrar tudo na mesma legislação de heteros e homossexuais? Murilo: Olha, eu vejo possibilidades, eu gostaria que a legislação fosse uma porque eu não acredito que nós sejamos diferentes, que tenhamos que ser tutelados pelo Estado como se fossemos incapazes, disso eu discordo, mas em contrapartida eu acho que uma regulamentação, ela poderia, como é que chama (pausa) ser muito mais um controle desses relacionamentos, mas eu acho que a lei deveria ser ampla para todos, que possibilitasse as pessoas se relacionar, estabelecer suas relações e tivesse os direitos que tem os heterossexuais, eu acho que é isso que a norma tem que possibilitar, mas uma legislação específica, não sei, não consigo vislumbrar, não no momento.

Na sociedade atual a expressão cidadania ganha espaço com multiplicidades de sentidos e intenções. A mídia a acrescenta diariamente em seus noticiários e os diversos grupos em sua luta por reconhecimento. Tal como formulada por Marshall (1967), cidadania se refere a um status que é “[...] concedido àqueles que são membros integrais de uma comunidade (p. 76)”. Mas temos de levar em conta que o próprio autor alerta sobre a inexistência de qualquer princípio que defina qual devam ser esses direitos universais. Para solucionar esse problema, Marshall constrói um histórico - com o fim de perceber quais são esses direitos de cidadania na Inglaterra - e constata a existência de três momentos de construção dessa universalização: os direitos civis, os direitos políticos e os direitos sociais4. Essa concepção cidadania passa a ser entendida como o conjunto de direitos estabelecidos pelo Estado aos seus membros integrais e seu exercício é identificado com o uso desses direitos legalizados. Assim, para esse autor, cidadania está inextricavelmente ligada ao reconhecimento, por parte do Estado, de um conjunto de direitos através de legislação.

No Brasil, diferentemente do que aconteceu na Inglaterra, o estabelecimento de direitos civis, políticos e sociais não se deu de forma sucessiva, mas sim de modo intercalado. Assim, no período colonial já existia o direito ao voto que após a libertação dos escravos foi restringido, enquanto os direitos civis antes da abolição da escravatura não existiam e foram posteriormente universalizados. Já os direitos sociais só foram reconhecidos pelo Estado no século XX, antes disso a educação e a saúde ficavam a cargo de entidades privadas quase que exclusivamente (Carvalho, 1995). Temos de lembrar também que até o início da “abertura política” todos esses direitos foram colocados em suspensão pela ditadura militar.

Uma outra questão que apareceu muito na fala de meus entrevistados é o desejo de estabelecimento de um contrato para assegurar os bens conquistados. Quando questionados se já haviam conversado com o companheiro a respeito da regulamentação de

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sua união, todos entrevistados afirmaram que já haviam conversado e que sentiam necessidade de algo que desse uma garantia ao companheiro.

Pesquisador: Você já pensou em fazer algum contrato para regulamentar a relação de vocês? Paulo: Sim, inclusive você tocou em um ponto que semana retrasada estávamos conversando eu e ele de fazer uma espécie de um contrato e procurar um advogado para ver como seria estarmos, e fazermos qualquer coisa para que o outro, como que eles herdem tudo de dentro da casa, da pessoa, como que seria, ficaria para a pessoa, ou qualquer coisa parecida. Pensamos em fazer iss,o sinceramente houve casos de amigos em que aconteceu de estarem juntos a um bom tempo e de uma hora para outra aconteceu algo com uma das duas pessoas e a família vem e toma tudo e isso eu não quero que acontece comigo, eu não quero que acontece com ele entendeu de ele ficar desamparado e, tampouco ele comigo, já pensamos nisso né, e queremos fazer, e mais pra frente vamos conseguir.

Além disso, o que chamou a atenção nas entrevistas é que todos os entrevistados apesar de terem ouvido falar do projeto de Parceria Civil Registrada, apresentado pela então deputada Marta Suplicy na Câmara dos Deputados, não sabiam do conteúdo do projeto, nem dos direitos que esse buscava garantir, citavam apenas que a referida proponente do projeto era a favor da união de casais gays, a fala de Marcelo aponta isso com muita clareza,

Pesquisador: Você já ouviu falar do projeto da Marta Suplicy, o projeto de Parceria Civil Registrada? Marcelo: Já ouvi falar, mas eu não conheço, assim, não li, não conheço nada do assunto, eu só sei que ela levou pra Câmara, pro Congresso, né, e ta tentando, né, ela saiu outros pegaram pra dar continuidade e a coisa realmente não vai pra frente, mas eu não conheço a fundo. Pesquisador: Você nunca ouviu falar nada a respeito? Marcelo: Não assim muito específico não, só por alto. Pesquisador: E o que foi que você ouviu por alto? Marcelo: É exatamente isso que você falou né, que ela, que ela é a favor da união de casais homossexuais, de pessoas do mesmo sexo, né, e que ela defende, que a legislação aprove uma lei de casais homossexuais, para que todos possam casar, e o que eu sei vai até aí, não sei mais nenhuma informação.

Assim, um projeto que busca assegurar direitos a casais homossexuais, a despeito da visibilidade alcançada na mídia através da veiculação de notícias e na sociedade através das “Paradas Gay” torna-se um projeto que alcança pouca repercussão, pelo menos entre meus entrevistados.

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6. Considerações finais

As análises contidas nesse artigo se referem a recortes particulares das entrevistas privilegiando os significados e representações sociais da Parceria Civil Registrada entre homossexuais masculinos que vivem uma situação de conjugalidade, bem como busca desenvolver uma análise da regulamentação da união civil entre homossexuais em uma cidade do interior do país. Esse recorte não esgotou de maneira alguma a riqueza e complexidade do material levantado por meio de entrevistas e observações, mesmo porque será acrescentado mais dados a essa pesquisa decorrente de uma nova ida a campo e a realização de novas entrevistas no mês de novembro desse mesmo ano.

A pretensão dessa pesquisa é buscar problematizar ainda mais o debate acerca da conjugalidade homossexual trazendo à discussão representações e significados da união entre pessoas do mesmo sexo em uma cidade média do interior do país. Lembro que esse é ainda um trabalho não concluído e que essa apresentação na verdade trata-se de uma primeira tentativa de articulação entre análise de dados, observação e referencial teórico metodológico apontando algumas perspectivas de análise e não se referindo a conclusões ou resultados finais alcançados.

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8. Notas explicativas

1 Falo aqui em cenário político fazendo contraposição ao cenário jurídico, visto que as discussões sobre conjugalidade na esfera jurídica são anteriores a esse período. Como exemplo dessa anterioridade, cito o caso muito publicizado da disputa em torno dos bens do pintor Jorginho Guinle que faleceu em decorrência da AIDS e que teve desfecho através de julgamento em 22 de agosto de 1989. 2 Segundo Almeida Neto (1999), chegou-se a falar na existência de uma “bancada gay” - sem isso implicar na homossexualidade de seus integrantes - formada pelos Deputados Fernando Gabeira (PV/RJ), Marta Suplicy (PT/SP), Telma de Souza (PT/SP) e José Fortunari (PT/RS). 3 Entrevista concedida ao site UOL, www.uol.com.br/diversao/gls/suplicy.htm. 4 Segundo Marshall (1967) os direitos civis dizem respeito à propriedade de seu corpo e a possibilidade de recorrer à justiça; os direitos políticos se referem à possibilidade de organização e participação nas instituições da vida política do Estado; e, por fim, os direitos sociais que dizem respeito à garantia de uma série de benesses, tais como saúde, educação e legislação trabalhista.

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AUTOR/A: Nélida Luna, Luciana Miguel, María ElinaVitello INSTITUIÇÃO: UBA. E-MAIL: [email protected] TÍTULO: Sexualidad, Sociedad y economía en el Noroeste Argentino RESUMO: Este trabajo forma parte de una investigación sobre los modelos de existencia y reproducción de población indígena en agricultores de regadío de la quebrada de Humahuaca. Lo que nos proponemos es mostrar como el modo de producción de una sociedad conforma y determina la construcción social de la sexualidad, y las modalidades en las que se expresan las prácticas sexuales dentro de un grupo, cuya especificidad es pertenecer a una identidad étnica con largo asentamiento en esa región. Los cambios estructurales operados en las comunidades indígenas visitadas han significado una nueva división sexual del trabajo, que origina determinadas relaciones de género cuyo resultado se manifiesta en el incremento del poder del masculino. Procuraremos explicar cuales son los indicadores que nos permiten entender el rol actual de las mujeres, su identidad de genero y su subjetividad en distintos momentos de su ciclo vital. La metodología propuesta triangula datos secundarios provenientes de la etnohistoria combinando dicha información con entrevistas semiestructuradas, realizadas a las mujeres en su contexto familiar y comunal.

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VI Reunião de Antropologia do Mercosul

Grupo de Trabalho: Família, Gênero e Sexualidades: perspectivas contemporâneas em debate. Coordenadoras: Flávia de Mattos Motta - UFSC ([email protected]) e Anna Paula Vencato - UFRJ ([email protected]) Homens desempregados, mulheres provedoras: qual a novidade? Pedro Nascimento – [email protected] Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre; Bolsista IFP – Fundação Ford.

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Homens desempregados, mulheres provedoras: qual a novidade? Pedro Nascimento

Pra começar: itinerários de pesquisa e uma autocrítica Este artigo é baseado em pesquisas realizadas entre 1997 e 2000 em uma

comunidade de baixa renda no município de Camaragibe, Região Metropolitana de Recife, Pernambuco, nordeste brasileiro. Num primeiro momento destas investigações estava interessado em observar a diversidade das experiências associadas à construção das imagens de “homem” nesta comunidade. A partir de distintas dimensões – a relação com as mulheres, a busca por trabalho, a homossociabilidade masculina, particularmente nos bares, busquei perceber as estratégias que eram utilizadas para associar as dificuldades da vida diária à idealização de um certo modelo de masculinidade (Nascimento, 1999).

Num segundo momento, meu objetivo foi se orientando para perceber, particularmente, as conexões entre gênero e desemprego masculino ou, mais precisamente, as implicações do fato de os homens não serem provedores de seus lares e dependerem financeiramente de mulheres (Nascimento). Não estudei a condição de homens que, desempregados, estavam à procura de trabalho, tendo sua história laboral caracterizada por períodos regulares de desemprego. Meu interesse era caracterizar a condição de homens que apresentaram essa trajetória mas que, naquele momento, aparentemente “acomodados”, não mais buscavam superar esses períodos de desemprego: estavam adaptados à nova situação em que se identificavam e eram identificados como “homens que não trabalhavam”, sustentados por outrem. E a pergunta central para esta investigação era: a inversão do padrão de homem provedor e mulher dona de casa subverte (ou em que medida altera) as relações tradicionais marcadas pela dominação masculina?

No presente artigo, articulando reflexões presentes nestes dois momentos, apresentarei particularmente algumas questões sobre a persistência das imagens fixas de homem provedor e mulher dona de casa como domínios estanques contrapondo-os a um conjunto de situações presenciadas em minha experiência etnográfica onde estes domínios estão cotidianamente sendo negociados e suas fronteiras questionadas por diferentes razões. Não estarei aqui interessado em pensar se está acontecendo algum tipo de transformação estrutural maior ou se estamos diante de uma configuração muito particular dadas as características dos sujeitos investigados. Estarei mais interessado em oferecer exemplos que permitam pensar situações específicas onde determinados sujeitos encontram sentidos diferenciados para contextos onde as questões enunciadas aqui são vivenciadas.

Antes de avançar nestas questões, talvez seja importante explicitar alguns pressupostos problemáticos presentes no título desta comunicação. “Homens desempregados, mulheres provedoras”. Falar em homens desempregados aciona uma compreensão de sujeitos que de alguma forma estiveram inseridos no mercado de trabalho formal, bem como sua vinculação com o assalariamento e uma associação de trabalho em emprego. Seria possível para a população com a qual trabalhei falar simplesmente em desemprego ou estaríamos diante de uma forma diferenciada de experiência do trabalho? Por outro lado, falar em mulheres provedoras poderia acionar a idéia de que estaríamos simplesmente diante de uma alteração dos atores de uma função exercida sempre da mesma forma, ou então da confusão entre “chefe da família” e “provedor” (Oliveira, 2005). Falar de mulheres provedoras traz o pressuposto de que os homens foram sempre esses sujeitos e estariam agora perdendo esta função... Sempre o foram? Importa refletir o que são os padrões idealizados a esse respeito e, junto a isso, o que são as buscas de

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atualização de um modelo marcadas sempre pela ambigüidade e o conflito cotidianamente.

É impossível desconsiderar o quadro atual do mundo do trabalho e da economia que apontam para uma tendência irreversível do desemprego, particularmente do desemprego masculino e sua precarização sobretudo nos anos 90. Da mesma forma, não se pode negar as mudanças no perfil da inserção feminina no mercado de trabalho no século passado e as mudanças daí decorrentes. Contudo, como fugir de uma avaliação linear que colocaria a presença de diversos sujeitos como sendo responsáveis pelo sustento da casa como não sendo uma novidade inaugurada pelo quadro do desemprego contemporâneo? Como não pensar a presença da mulher neste cenário como sendo também não apenas uma decorrência, mas também como não significando simplesmente a ocupação de uma atribuição masculina?

O que têm os moradores de Camaragibe a ver com os números do IBGE? Além destas ressalvas, ainda será importante considerar que a grande maioria das

pessoas com as quais convivi apresentam uma trajetória laboral marcada pela informalidade, pela não qualificação, pela marginalidade. Não são estes principalmente que alimentam as estatísticas oficiais sobre ocupação e desemprego. Qual seria então o sentido de falar em desemprego para esta população ou procurar conexões entre suas trajetórias e os determinantes estruturais do mundo do trabalho? Estaríamos perpetuando uma compreensão que toma como sinônimos trabalho e emprego? Ao lidarmos com os dados disponíveis sobre ocupação e desemprego no Brasil, teremos em vista estas perguntas para fugirmos à tentação de incorrermos em simplificações e generalizações.

Os estudos sobre mercado de trabalho e gênero constataram durante os anos 90, tendência de crescimento da taxa de participação feminina concomitante à queda daquela referente aos homens (Santos & Moretto, 2001; Montali, 2003). A taxa de desemprego elevou-se significativamente nos anos 90, tanto a feminina como a masculina. Mas, considerando-se o saldo da década, pode-se concluir que o impacto foi mais desfavorável para os homens do que para as mulheres. Esse movimento pode ser observado pela análise dos dados da PME, para seis regiões metropolitanas (São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Recife, Porto Alegre e Salvador), assim como pela análise dos dados da Pesquisa de Emprego e Desemprego (PED) para a Região Metropolitana do Recife. A quantidade de mulheres desempregadas elevou-se em aproximadamente 300 mil, entre 1991 e 1999. Como o crescimento da PEA feminina foi de 1,2 milhão, temos que, mesmo num contexto de crise, cerca de 900 mil mulheres encontraram ocupação. Entre os homens, enquanto a PEA cresceu apenas 680 mil, a elevação do número de ocupados ficou próxima a 415 mil e o estoque de desempregados aumentou em 264 mil. Ou seja, 25% das mulheres que ingressaram na PEA ficaram desempregadas, enquanto que entre os homens esta proporção foi de 39% (Santos & Moretto, 2001).

De acordo com O IBGE, a taxa de desemprego aumentou de 7,4% em julho de 2005 para 7,65% no mês seguinte entre os homens, recuando de 11,9% para 11,5% entre as mulheres. Em números absolutos, havia 926 mil homens desempregados em agosto, representando 4,3%. Para as mulheres, a tendência inverteu-se, resultado de uma queda de 3% no número de desempregadas, que saíram de 1,173 milhão para 1,139 milhão. Na comparação com agosto de 2004 percebe-se que o total de desempregadas encolheu 18,5%, com a incorporação de 288 mil trabalhadoras ao universo das pessoas com algum tipo de ocupação. No caso dos homens, o número de desempregados caiu 15,4%, refletindo a contratação de 182 mil além dos 10,990 milhões de pessoas ocupadas do sexo masculino registradas em agosto de 2004.

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Segundo Montali (2003), é necessário entender a inserção diferenciada dos componentes da família no mercado de trabalho como sendo definidos articuladamente pela “dinâmica da economia e das relações familiares e de gênero, assumindo especificidades nos diferentes tipos de família, afetados pela composição predominante da etapa do ciclo de vida familiar” (Montali, 2003: 129-130). É neste sentido que estes dados estão sendo apresentados aqui. Não para afirmar que o que pude perceber naquela comunidade específica é apenas um reflexo de uma tendência global inexorável, mas para insistir na idéia de que um quadro nitidamente configurado entre funções masculinas e femininas no âmbito do sustento financeiro dos lares, além de se ser passível de questionamentos ao longo da história encontra indicadores na conjuntura econômica atual.

Desemprego e trabalho feminino em Camaragibe Com relação às questões que nos interessarão mais diretamente aqui – o trabalho em suas várias compreensões ou sua ausência e as imagens associadas à idéia de provedor – antes de pensarmos experiências daqueles homens identificados por períodos longos sem trabalho e sem participar diretamente do provimento do lar, vejamos como estas situações variam, bem como diversos sentidos estão em jogo na definição destas atribuições.

Firmino, assim como a grande maioria dos homens que conheci, sempre precisou que a esposa trabalhasse, sempre achou que seria melhor que ela não o fizesse, e sempre procurou ocultar esta relação. Ele tem 38 anos e há dez anos é casado com Luzia. Deste casamento têm dois filhos. Luzia tem outros três filhos de seu primeiro casamento, que vivem com sua mãe. Ele trabalha numa banca de jogo de bicho num bairro vizinho àquele onde moram. Várias vezes, falou-se sobre o tempo em que Luzia também trabalhava como balconista numa padaria. Dizia-me que só considerava a possibilidade de a esposa trabalhar fora pela necessidade financeira, mas preferia que ela ficasse em casa para cuidar das crianças. Durante todo o tempo em que convivi com eles, Luzia sempre trabalhou de algum modo, seja vendendo os mais variados produtos "de porta em porta", ou em sua "banca de acarajé".

Quando os conheci, Luzia havia "botado a banca de acarajé na avenida", que é a área "mais movimentada" do bairro. Assim, todas as tardes, ela fechava a casa, deixava sua filha na casa de sua mãe e ia para a avenida com seu filho mais novo ou sozinha. Conduzia todo o material necessário num carro de mão: mesa, cadeira, fogareiro, carvão, a panela com o acarajé para ser frito, etc. Às vezes, Masinho, um de seus filhos do primeiro casamento, conduzia o carro, mas na maioria das vezes, era ela própria. Com grande habilidade, ela, em pouco tempo, colocava o "negócio pra funcionar". Acendia o fogo, organizava todo o material em cima da mesa e punha o acarajé para fritar. Essa atividade que iniciava por volta das 16 horas, estendia-se até por volta das 19 ou 20 horas, dependendo "do movimento". Em geral, por volta das 18 horas Firmino chegava. Ele que diretamente não contribuía para o "negócio" e que até desencorajava Luzia em vários momentos, em outros, apresentava-se como seu proprietário. Chegava e perguntava se tinha alguma coisa faltando, o que precisava comprar. Era Luzia quem muitas vezes dava o dinheiro para ele ir comprar estas coisas que faltavam. Umas vezes, ocupava-se do fogo para que não se apagasse, em outras, até servia algum cliente, mas algumas atividades, como por o acarajé para fritar, ele nunca fazia. Quando chegava a hora de ir para casa, era ele quem se encarregava de juntar o material e organizá-lo no carro de mão, bem como conduzi-lo até sua casa.

Sua relação com o trabalho de Luzia sempre foi bastante ambígua. Fique claro que, embora ele sempre estivesse reivindicando participação, este trabalho era pensado como

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uma atividade dela, o que era mais um elemento para ele desqualificá-lo em outras vezes. Em alguns momentos, como os citados, participava e até incentivava Luzia, fazendo planos de expandi-lo (como de fato fizeram posteriormente, alugando um quiosque, o que não deu certo). No período junino saía todos os dias bem cedo para comprar milho para Luzia cozinhar e fazer pamonha e canjica para vender. Em alguns momentos, parecia querer demonstrar que o negócio também era seu, seja na sua "assistência" a Luzia, seja em demonstrar que ele era quem comprava a matéria-prima. Porém, certa vez, como acabou virando um hábito meu, passei na avenida, na banca de Luzia. Firmino estava lá e percebi-o visivelmente embriagado. Ao voltar à noite, Luzia estava só e começou a contar-me de seu desapontamento com Firmino, pois ele, bêbado, atrapalhou as vendas e ainda a detratou frente alguns clientes. Disse-me que ele falou quando ela não quis ir embora para casa com ele: "Você quer ficar só aí por causa dos machos". Ela lamentava, dizendo que todas as vezes que começava a ganhar algum dinheiro, ele deixava de trabalhar e esperava pelo dela. Esta era a razão porque ela dizia que ia deixar de trabalhar, como o fez em alguns momentos, para ver se ele "se tocava". Neste mesmo dia, na hora de voltar para casa, Firmino voltou, aparentemente recuperado da embriaguez. Luzia foi na frente com uma colega e ele ficou comigo.

Nessa caminhada de volta para casa, onde ele foi parando em cada um dos bares do caminho, eu fiz questão de conduzir o carro de mão com o material, pois percebi que ele não estava em condições de fazê-lo. Comentou que "um homem não pode deixar a mulher saber que ele gosta dela. Ela tem que achar que ele não gosta, pra ficar gostando mais". Dizia-me, meio que justificando sua atitude àquela tarde. Em relação ao trabalho, contrariando todo discurso de Luzia de que ele não estava contribuindo financeiramente, bem como o seu de que ela estava ganhando mais dinheiro que ele, afirmava que ele é quem dava dinheiro a ela.

Esta situação vivenciada por Luzia e Firmino apresenta muitas características percebidas em outras relações. Em todas elas existe sempre a tensão acionada pelo reconhecimento de que o trabalho desenvolvido pelo homem não é suficiente para o “sustento” da casa, a ambigüidade do reconhecimento da necessidade do trabalho feminino e a busca de recompor ou se reacomodar frente à cisão simbólica entre aquilo que era esperado de cada um, de acordo com o modelo vigente.

Para além das singularidades deste caso, vi o mesmo Firmino e outros homens, às vezes, pedindo dinheiro "emprestado" às mulheres, inclusive para comprar bebida. Além desta "divisão", nem sempre igualitária, do orçamento doméstico, devido ao grande número de desempregados, muitos lares são sustentados pelas esposas, mães ou outro parente. Conheci muitos homens procurando emprego, outros fazendo biscates: limpando jardins e quintais de residências, recolhendo lixo, limpando fossa, sendo ajudante de pedreiro, comprando e transportando botijões de água ou de gás em troca de algum dinheiro...

Outros já não fazem biscates, nem procuram emprego, conforme diziam repetidamente: "Emprego tá muito difícil". Procurando dar o tom de ocasionalidade, diziam: "Nesses dias que eu tô sem trabalhar", e faziam isso de modo constrangido e até buscavam estratégias para fazer ver que ainda tinha alguma participação no provimento do lar. Num imaginativo recurso, Biu me falava: "Ela bota pra dentro e eu também. Minha mãe me dá. Minha mãe “abanca” eu e meu irmão". A consangüinidade operando (Fonseca, 1987), aqui e também no caso de Luzia, que conta com a sua mãe, ou com as redes femininas consangüíneas para realizar as suas atividades. Outros homens ainda, como é o caso de Brito, desempregado, procuram definir um perfil igualitário de divisão de responsabilidades: "Mas é assim, quando eu não tenho ela tem, quando ela não tem, eu tenho...". Importa notar que este "quando eu não tenho", na

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maioria das vezes se estende por anos. Alguns deles brincaram certa vez, dizendo, logo após afirmarem que estavam desempregados, que eram da "CIT: Companhia Inimiga do Trabalho". A busca de biscates não é uma prática constante para a maioria deles, nem houve um redimensionamento das atividades domésticas. Brito afirmou que sua esposa sai de casa para trabalhar às cinco horas da manhã e deixa a sua comida já pronta, enquanto ele fica os dias entre os bares e casa de Dão, seu melhor amigo, "vendo filme de boneco". Em outro momento, radicaliza esta situação, usando um recurso diferente quando a força não funciona. Certa vez, sua esposa reclamou num dos bares porque seu proprietário tinha vendido fiado a seu marido sem sua autorização. Depois que ela se foi, Tião disse malandramente: "Tá botando bocão porque? Não é pra me sustentar que ela trabalha?".

Muitos destes homens apresentavam-se como fazendo entre 3 e 12 anos que não desenvolviam atividades consideradas relevantes para o sustento financeiro de seus lares. No entanto, é possível identificar na trajetória de todos os sujeitos a referência ao trabalho como dimensão importante da vida, mesmo que para alguns sempre tenha havido períodos sem trabalho e para outros seja tentadora a possibilidade de ter alguém que os “banque”, que os mantenha por um certo tempo.

Constatei, com bastante variação, casos de homens que, ao longo do tempo, vão se adaptando a um certo jeito de viver, seja pelo fato de perceber que é possível aproveitar-se do resultado do trabalho alheio, seja por razões de saúde, em geral decorrentes de debilitação pela bebida, seja pela impossibilidade de encontrar um trabalho que faça diferença no orçamento doméstico, ou por articulações desses fatores, com diferenciadas ênfases de acordo com a pessoa e o momento. Quando digo que não trabalham, refiro-me ao sentido de não-participação no conjunto das despesas da casa, não sendo os provedores do lar. Fazendo biscates dos mais diversos tipos (construindo laje, prestando pequenos serviços a vizinhos ou, mais corriqueiramente, transportando água para casa), esses homens muitas vezes desenvolvem pequenas atividades e recebem algum dinheiro por isso. Seu destino em geral é a própria bebida ou outras pequenas compras pessoais como cigarro, lanches etc, fazendo um contraponto que é também uma inversão de um discurso largamente difundido de que o dinheiro que a mulher ganha é para suas “coisinhas”, sempre pensada como complementar e inferior (Agradeço a Alinne Bonetti por essa e muitas outras perspicazes observações a esse texto).

Seria possível apresentá-los em um continuum que vai desde os que fazem pequenas atividades diariamente, salvo momentos em que bebem demais e não têm condições físicas, até os casos dos que “não fazem nada”, mas isso precisaria ser compreendido numa dinâmica que permite variações, não sendo possível associar definitivamente a nenhum deles nem predefinir que tarefas seriam mais próprias de alguns.

O reconhecimento do desemprego: assumindo-se não provedores Com o passar do tempo e uma maior abertura das pessoas em campo, estes homens

já não buscavam ocultar o fato de que não trabalhavam e que não dependia deles a manutenção financeira da casa. Passava-se então a uma nova situação, onde novos recursos eram utilizados, não apenas admitindo sua condição, mas em busca de legitimação.

Em nenhum momento a condição de dependente de outrem é simplesmente apresentada. Ela sempre vem acompanhada de uma tentativa de justificação e demonstra um esforço engenhoso para dizerem que não têm condições de voltar a desempenhar esse papel ou, ainda, que não o desejam. Esse esforço envolve doença, conjuntura nacional, preguiça, esperteza etc. Brito (casado, 40 anos), pelo fato de viver ainda com a esposa e

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não desenvolver qualquer atividade remunerada torna seu discurso ainda mais significativo quando fala que, desde que casou, não trabalhou com regularidade e não contribui mais para a provisão do lar:

– De lá pra cá eu não... trabalhei muito tempo mais não. Trabalhei assim... pingado aí (...) E até hoje nunca me preocupei mais, não fiz mais nada na vida. Só nessa... já tou ficando velho mesmo, não tem mais com que me aperrear com nada... e emprego tá difícil mesmo. Se o cara for procurar, gasta o dinheiro que tem e não come, e não acha emprego. Que vou fazer? Fico o dia inteiro em casa, no dia que aparecer eu vou... O que vai variar é o tom com que cada um apresenta essa experiência. Uns mais à

vontade, como é o caso de Brito, querendo a todo instante passar um tom de naturalidade, outros mais constrangidos. “Coitados” ou “espertos”, assumem-se dependentes. E essas afirmações não são feitas apenas para mim. Todos esses homens se percebem e são percebidos como pessoas que não estão trabalhando. Diferentemente daqueles que não trabalham por um período, mas estão sempre à procura de algum trabalho, esses são os que não apenas não trabalham, como se sabe que não irão fazê-lo.

Um conjunto importante de estudos na antropologia sobre famílias pobres das periferias urbanas brasileiras (Neves, 1985; Woortmann, 1987; Scott, 1990, Fonseca, 2000), tem problematizado os modelos aqui discutidos. Embora focalizando as mulheres e sua condição de chefes de família, forneceram elementos para se pensar a condição masculina e suas relações, destacando sempre que "somente uma pequena proporção dos homens é capaz de atualizar a norma ideal, e poucos grupos domésticos conformam-se à norma tradicional que define a divisão de trabalho entre marido e mulher” (Woortmann, 1987: 66).

Neves (1985) destaca o fato de que os arranjos matrifocais são uma variação que permite o controle de situações críticas onde, enquanto é possível, a mulher vai procurar mudar a situação “cooptando o companheiro a assumir os papéis principais ou a assegurar os recursos básicos à reprodução da família, cabendo-lhe, então, a complementação de recursos” (Neves, 1985: 202). Os casos por mim estudados certamente configuram arranjos bastante distintos dos enunciados por Neves, além de não ser a discussão sobre arranjos matrifocais que está em jogo aqui, nem querermos restringir a importância das relações entre demais consangüíneos (Fonseca, 1987). Neles, não se trata de uma variação para controle de situações críticas, mas de casos onde as mulheres, muitas vezes – penso ser possível afirmar - desistiram, cansaram-se de tentar reverter a situação e já não esperam que seus homens voltem a trabalhar para que elas apenas complementem os recursos. Há um reconhecimento explícito de que não podem mais contar com eles: “o jeito é eu trabalhar. Se eu não trabalhar, o negócio cai mesmo, não vai mesmo. Meu marido, tou com ele assim, mas ele não trabalha, se eu não trabalhar, é de passar fome” (Zélia, 51 anos, esposa de Dino, 39 anos).

Se isso acontece na relação entre maridos e esposas, o mesmo se percebe entre mães e filhos, como é o caso de Dona Neide. Ela tem sete filhos; dois deles, assumidamente, já não trabalham e são os “papudinhos” (termo usado para designar os dependentes de bebida alcoólica) da casa; o filho mais novo nunca teve emprego nem contribuiu significativamente para o orçamento familiar. Uma irmã é empregada doméstica e mora em uma casa vizinha com seu marido e dois filhos, e os demais se revezam entre períodos em que moram em outra casa com suas esposas ou companheiras e períodos em que recorrem à casa da mãe, quando estão desempregados, ou ainda momentos em que brigam com suas mulheres ou mesmo se separam. Dona Neide, aos 62 anos, toma conta de todas as atividades da casa e se refere a seus filhos, que têm entre 22 e 40 anos, como “os

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meninos”; explica que é ela quem mantém a casa com o dinheiro que recebe da pensão do falecido esposo:

– É porque é uma mixaria de nada né, aí eu faço mais é... eu ainda compro as coisas para dentro de casa, porque se eu não comprar as coisas pra dentro de casa a gente vai viver como, só dentro de casa com... o chão da casa só, né? Por que eles não compram, quem tem que comprar sou eu mesma. Embora nenhuma delas considere essa uma condição “normal”, mesmo que tolerada

com maior ou menor resignação, é clara a distinção de que o que se leva em conta na relação com os homens não é apenas o fato de não trabalharem, mas a maneira como se comportam nessa situação. Desde o discurso revoltado de uma mulher casada há mais de dez anos com o homem que não mais trabalha e bebe, passando pela compaixão ou o sentimento de obrigação ou de solidariedade, é clara a percepção de que se está diante de uma situação com contornos bem marcados. Frente a esses diversificados posicionamentos, emerge a busca por uma compreensão que justifique a experiência atual. Entre eles, o mais presente na fala de homens e mulheres é o reconhecimento da dificuldade de qualquer homem conseguir emprego em virtude dos contextos conjunturalmente formados. Mesmo figurando junto à noção de que muitas vezes há desinteresse e preguiça dos homens, a consideração de que existem elementos externos à vontade dos sujeitos é reconhecida por todos. O que varia é a ênfase dada a cada caso, o que depende do tipo de relação mantido pela pessoa envolvida e dos contextos em que cada experiência é avaliada. A mesma mãe que, em alguns momentos, reclama porque o filho não trabalha e questiona sua constante embriaguez, pode em outro momento compadecer-se de sua condição:

– Na maioria, hoje não é ele só. É em todo canto que passa é essa calamidade que não tem emprego (...) que a gente vê em repórter, vê notícia, tudo, vê pai de família desempregado às vez não é nem por causa de cachaça, às vez tem profissão, vai procurar emprego, não encontra. A situação tá difícil mesmo porque emprego hoje em dia... Se pra quem tem profissão já é difícil, e pra quem não tem? Pra quem tá novo assim de 20 anos, 22 até 25, que tem profissão, ainda é mais fácil. E o de 30 anos, que não querem empregar mais? E outra, os meus meninos não têm profissão. (Dona Aline, 52 anos) Do mesmo modo que Brito comentava em outro momento que “emprego tá difícil

mesmo”, insistindo em que não valeria a pena sair para procurar trabalho, pois, ao invés de consegui-lo, acabaria por gastar dinheiro com transporte e alimentação, os outros homens falam de sua condição corroborando a compreensão de Dona Aline. Um de seus filhos, Joca (32 anos) reafirma, com enorme sintonia de argumento, as razões de não estar trabalhando:

– Porque, pra começar, emprego tá difícil, né? Emprego tá difícil. Porque você vê, hoje em dia pro cara arrumar um trabalho, às vezes, a pessoa, quando a gente vê no rádio, na televisão, tem que ter o primeiro grau, o segundo grau, não sei o que mais, precisa de curso não sei de quê, eu não tenho esses estudos. Eu só faço, mesmo, se acontecer de eu tiver a sorte de entrar numa firma, só... o que é que eu vou fazer? É só preencher a ficha, preencher que eu sei preencher, e pronto. Mas, para arrumar serviço melhor, que nem trabalhar em loja, essas coisas, não dá pra mim. Porque eu não sei, não vou negar. Considerando que, dos sujeitos investigados, apenas dois deles concluíram o

primeiro ciclo do ensino fundamental (antigo primário) e só Neto concluiu o segundo (antigo ginásio), a falta de qualificação para o mercado contribui decisivamente para manter esses homens afastados do mundo do trabalho ou, ao menos, lhes dá mais elementos para justificar sua condição de dependentes de outras pessoas.

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Além desses elementos conjunturais, um dos principais argumentos para o não-trabalho é a própria bebida. Mesmo mantendo-se válidas as opiniões a respeito da bebida como irresponsabilidade ou esperteza de homens que preferem a vida dos bares ao trabalho, ela é reconhecida em diversas situações como um empecilho ao trabalho. Principalmente quando surgem as comparações com o passado (possível diferenciador da condição atual), essa é uma das implicações. A importância da bebida na configuração e legitimação desse quadro dá-se não só no sentido de que alguns homens deixaram de trabalhar, tornaram-se vagabundos e “entregaram-se à bebida”, mas também do reconhecimento de que a bebida interfere em sua capacidade de trabalho por debilitá-los fisicamente. Zélia, a esposa de Dino, deixa entrever isso quando compara a situação atual de seu marido com esse tempo passado e reconhece sua incapacidade para assumir algum trabalho:

– Ele trabalhava, fazia biquinho, sabe? Bebia cana, mas não bebia tanto, sabe? Agora é que ele bebe direto sem parar. Ele pegava qualquer biscate. Ele não pega por causa da bebida. Porque quem vai dar serviço a uma pessoa que só bebe? Não dá, porque vê que a pessoa não tem resistência pra continuar aquele serviço, começar e continuar. A resistência dele é muito fraca. Ele pega uma coisinha assim, qualquer coisa que ele pega, sua tanto, chega eu penso que ele vai ter um troço... Beto, falando sobre seu irmão, explica por que o mesmo não trabalha: “Porque ele

bebe, (...) também uma coisa dessas também não se pode trabalhar mais né, tem que sustentar ele agora até o fim”. Em outros casos, essa justificativa via doença vem aliada a uma admissão explícita de que não querem voltar a trabalhar, mesmo usando argumentos semelhantes. Brito fala com extrema naturalidade articulando todos esses argumentos apresentados até agora:

– Ave Maria! Vou fazer força? Não, vou procurar trabalho mais não. Se ele quiser me procure, aí eu vou. Agora, eu ir procurar? Não me interessa mais. Trabalha tanto pra nunca ter nada na vida. Agora que tá ruim mesmo. O cara ter que dormir na fila do trabalho, que nem tá acontecendo aí nos serviços que tem aí, né? O cara tem que passar o dia, a noite lá, pegar uma ficha ainda pra ir lá e, se aproveitar, vê se trabalha ainda. Quem tem condições vai, quem não tem... vai passar o dia todinho com fome, a noite com frio. Tou pra isso não. Não agüento mais não, o que eu tinha de fazer já fiz já, há muito tempo. É, rapaz. Eu, pra mim não tou nem ligando agora. Eu vou dizer, que pra mim tenho o prato de comer pr’eu comer e pronto, tanto faz. Trabalho, eu nunca corri de trabalho não, mas procurar, vou nada. Doente, sem poder trabalhar. Trabalhar eu posso, só coisa pouca, mas pra trabalhar no pesado mesmo... não agüento... aí tou por aqui... só nessa... Se o fato de “ter o prato de comer” já desencoraja esses homens de procurar trabalho,

será explícito para todos que, para além dessas justificativas, o principal elemento para que um homem se instale na condição de não-trabalhador será o fato de ter alguém que o sustente, como aparece na fala de Dona Aline:

– No caso, depende da pessoa mesmo, né? Porque a pessoa dentro de casa não arruma nada não, a pessoa tem que batalhar, tem que sair, procurar, falar com alguém, pra ver se arruma alguma coisa. A pessoa dentro de casa arruma o quê? Nada. A maioria dessas pessoas que vivem assim é por que têm alguém pra ajudar, porque... se não tivesse, acho que não vivia assim e a pessoa não vai andar sem uma roupa, sem uma sandália (...) não vai viver sem alimento. Se vive, é por que tem alguém pra dar, né? Vai se preocupar, vai? Muito embora prevaleça a percepção de que “alguém” os sustenta, na maioria das

vezes esse alguém é a mãe. A mãe é a primeira e mais importante referência de cuidado.

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Tanto Neto como Brito localizam na morte de suas mães a passagem para períodos de maiores dificuldades. Mesmo que uma mulher ocupe o lugar da mãe, essa substituição nunca é vivida como satisfatória.

Essa referência corrente à mãe irá aparecer não apenas pelo que significa em termos de provimento financeiro. Mesmo que esse provimento se dê via irmãs ou esposas, as mães são pensadas como “naturalmente” mais propensas a serem as cuidadoras. As dificuldades de convivência apontadas, em momentos distintos, pelos homens marcam a diferença definida pela presença de uma ou outra. A mãe é apontada tanto pelos próprios homens quanto pelas mulheres como capaz de dar atenção ao filho nas mais diversas situações:

– E, eu sempre eu digo ao daqui de casa [o marido]: ‘Reze pra você só adoecer enquanto sua mãe tiver viva, viu? Porque sua mãe cuida de você. No dia que sua mãe bater as botas (se eu não bater as botas primeiro) e você chegar ao ponto dele [referindo-se a Brito que, nessa época, estava doente], de mim você tá cortado. Eu boto você pra dormir no chão, porque na minha cama não dorme, e levar pro hospital não levo não. Você morre aí no chão. Quando morrer, eu vou lá no cemitério e enterro’. Cuido não. Ele tá doente porque quer. Enquanto a mãe dele estiver viva, a mãe dele faz. Essa fala de Zeneide não apenas refere à predestinação da mãe como cuidadora, mas

retoma a questão dos constantes alertas e das ameaças feitas aos homens em razão da bebida. A própria esposa de Brito já o havia alertado antes para que não viesse a adoecer novamente por causa da bebida, o que, entretanto não a impediu de cuidar dele quando veio a adoecer. Além disso, mesmo Zeneide, quando seu esposo chega bêbado em casa e acorda com os efeitos devastadores da ressaca, assiste-o com alimentação e outros cuidados, apesar de todas as reclamações.

Tão significativo quanto o fato de que não foi possível localizar nenhum homem sendo cuidado por outro homem – além do fato de que, quando sozinhos, vivem em piores condições do que qualquer outro – é o de que, quando não há a figura da mãe, a possibilidade de sobrevivência de um homem passa pela presença feminina. Isto aponta não só para a centralidade das mulheres na vida desses homens, como que lhes dando um norte (Villa, 1997), como também deixa claro que os arranjos construídos para sua sobrevivência não são fixos. Quando me refiro ao apoio que recebem e ao cuidado devotado pelas mulheres, estou falando de negociações constantes, sempre tensas e passíveis de rupturas, mesmo que não definitivas, permitindo que um homem que hoje mora só possa vir no futuro a ser novamente acolhido por sua irmã; ou, então, que um homem acolhido por uma delas seja obrigado a encontrar outras possibilidades no futuro. Contudo, mesmo frágil, é essa possibilidade de contar com alguém que lhes permite manipular todos os argumentos aqui delineados. Se assim não fosse, não seria compreensível a situação de Severino no tempo em que morou sozinho, ou a situação de Bento, colega de bebida dos homens aqui referidos. Ele tem vários filhos e, mesmo sendo em muitos aspectos semelhante aos seus amigos no que se refere à bebida e qualificação profissional, nunca se deu “ao luxo” de não trabalhar.

Trabalho e honra: quando é melhor não trabalhar Mesmo sendo essa explicação válida para o caso de Bento, ela será insuficiente para

pensar a situação de muitos homens que não trabalham há muitos anos. O argumento da pressão da necessidade não é suficiente, ou ao menos é necessário dizer que os homens encontram outros argumentos para não trabalharem.

Bem mais do que uma simples justificativa para o fato de não trabalharem, há uma marcante compreensão dos homens acerca de que trabalhar é muito mais do que apenas

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desenvolver alguma atividade. Além de ter um trabalho, este precisa ser capaz de fazer com que eles vislumbrem a possibilidade de virem a estar em uma situação melhor do que a atual e aparece como uma importante justificativa para recusar certos serviços que aparecem. Existe uma diferença marcante entre ricos e pobres mas, ao mesmo tempo, redefine-se cotidianamente a relação, onde a idéia de que a esperteza do pobre e uma dignidade que não pode sucumbir frente ao dinheiro repõe a igualdade, marcada pelo sentido de honra, pelo direito ao “orgulho de si mesmo” (Pitt-Rivers, 1971, p.13).

Os argumentos apresentados pelos homens podem ser pensados na direção do que Fonseca (2000) sugere sobre a mesma noção de honra. Segundo a autora, a honra figuraria “como elemento simbólico chave que, ao mesmo tempo, regula o comportamento e define a identidade dos membros do grupo” e permite dar ênfase aos aspectos não-materiais da organização social. Para ela, a noção de honra permite empreender uma reelaboração simbólica que tende a maximizar o amor próprio, utilizando-se um “filtro imaginário que permite ver e narrar sua vida de acordo com uma imagem de si socialmente aceitável” (Fonseca, 2000: 21). Não por acaso, por mais difíceis que fossem as circunstâncias em que estavam vivendo esses homens, eles sempre apresentavam diversas estratégias para se apresentarem como próximos das características percebidas como masculinas no nível ideal. Estas configurariam um recurso que chamei de auto-elogio (Nascimento, 1999).

A utilização desses argumentos precisa ser levada em conta para não cairmos na explicação fácil da pressão da necessidade. Só assim será possível somar-se a esse conjunto de fatores o fato já mencionado, de que, quando há a expectativa de que uma outra pessoa irá trabalhar para sustentá-lo, o homem “se acomoda”. Podemos então entender a diferença entre estes acomodados e aqueles, sejam os sozinhos ou os que têm grande família para sustentar, que já não podem contar com apoio algum. O trecho que se segue – que é de uma conversa entre o pesquisador (P) e Brito – revela as razões de manter sua condição, o que faz com tranqüilidade:

– Aqui eu vivo só, tranqüilo. Se tivesse menino, nem que eu quisesse não tava. Tem que correr atrás de alguma coisa, batalhar pra arrumar o leite pro menino, o pão mais tarde, qualquer coisa. Ter menino é fogo, viu? Passar por certa humilhação que eu vejo o povo passar por aí… P : Que tipo de humilhação? – É. Porque o cara que tem quatro, cinco filhos não pode (…) Aí o cara tem que ser explorado mesmo de toda maneira, porque tem filho pra dar de comer, tem leite pra comprar e o cara tem que batalhar. E tem gente que se apóia nesse tipo de coisa (…) aí quer maltratar a pessoa. É por isso que eles não me chamam pra trabalhar, porque sabem que eu não vou mesmo. Vou nada. Tu é doido? Aí o cara assim, trabalhar, ficar doente, sem precisão. Vou não, prefiro ficar em casa, sem fazer nada. Vou me aperrear pra quê? Trabalhar de me matar pra ninguém. Com essa fala Brito certamente se referia a Bento, que mora em frente a sua casa.

Foi a esposa de Bento quem me disse certa vez com sorriso irônico que Brito “dormia demais”; e certamente o barulho que os muitos filhos do vizinho fazem à sua porta permitem-no respirar aliviado quando lembra que não os tem.

O príncipe que não veio: conjugalidade e desemprego masculino As diversas questões referidas até aqui procuram problematizar as várias

possibilidades de formações em relação à provisão do lar e as justificativas dadas para se posicionar frente às mesmas. Ao mesmo tempo, busca-se mostrar que o fato de os homens não trabalharem não é percebido de forma tranqüila. Apesar disso, as mulheres em algumas situações apresentam certa resignação na fala, quando se referem aos homens com quem vivem, sejam maridos, filhos ou irmãos. Da mesma forma como as ameaças de abandono

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em caso de doença não se confirmam, os constantes conflitos, bem como as queixas em razão da bebida e da falta de trabalho não resultam facilmente em rupturas e mudanças.

Mesmo quando as mulheres fazem comparações entre o tempo em que esses homens não bebiam e o presente, o que se percebe é mais um lamento por não se poder ver cumpridas as expectativas alimentadas do que uma crítica irrestrita à postura masculina. Muito embora existam discursos emancipatórios e críticas vorazes, estas não são feitas como uma cobrança insistente do tipo “agora ou nunca”. Muito embora acredite que não seja possível responder à pergunta “Por que essas mulheres não abandonam esses homens?”, apenas com base na racionalidade, considero importante destacar duas questões que devem ser levadas em conta se quisermos entender ao menos algumas de suas nuances(ver também Fonseca, 1987 para a mesma questão).

A primeira é que não operam com a noção de que qualquer discrepância do homem em relação ao esperado implicaria necessariamente o fim do relacionamento. Ao contrário, o que se percebe é um longo período de negociações e adaptações. Os sonhos são refeitos a cada dia de acordo com a experiência que se apresenta, sugerindo uma maleabilidade ou plasticidade que confere a essas relações capacidade de manutenção maior do que a habitual.

A segunda questão refere-se à necessidade de entender os vários arranjos constituídos em suas características específicas. Ou seja, não se trata de pensar homens e mulheres como categorias absolutas, mas perceber que o tipo de vínculo mantido em cada par define os contornos assumidos na trajetória de aparentes subversões dos padrões de gênero: se o par é formado por um esposo e uma esposa, uma mãe e um filho, ou um irmão e uma irmã, as diferenças são marcantes. Além disso, há em geral mais de duas pessoas envolvidas na questão.

Para pensar sobre esse aspecto, o exemplo de Zeneide e Renato é bastante elucidativo. Eles moram numa casa nos fundos da casa da mãe de Renato. Este não trabalha; Zeneide recebe pensão do primeiro marido e, às vezes, vende produtos de beleza a domicílio. Contudo, sempre deixaram evidente que as despesas da casa são pagas pela mãe de Renato, o que funciona a favor deste: se, por um lado, é criticado pela esposa por beber e não trabalhar, por outro apóia-se no fato de que não é da esposa que depende para sobreviver. O grande trunfo de sua esposa na equação de forças é a posse da casa que, segundo ela, vem sendo construída há anos com seu dinheiro. Vejamos como ela explicita essa relação, referindo-se a sua sogra:

– Ela me ajuda ainda. Ela me dá assim, mais do que uma cesta básica; ela me dá cinqüenta reais e o bujão [de gás] todo mês (…) E assim, quando é remédio pra mim ela é quem compra, remédio caro. Quando é, assim, remédio de dez, doze reais, eu compro, pra mim e pra minha menina, mas quando é remédio de vinte, quarenta e acima, ela é quem compra. Que ela vê que eu não tenho condições de comprar, aí, ela é quem compra. Assim, não parece sobrar dúvida de que a manutenção da casa é assegurada pela

mãe de Renato. Em outros casos, podemos pensar que não só se provêm alimento e teto. Podemos pensar que em nossa sociedade a imagem de alguém sozinho ou abandonado não é o que se pode chamar de um projeto acalentado. Reforçando essa idéia, o discurso de Brito afirmando não se incomodar com as críticas e xingamentos que recebe sugere a possibilidade de pensarmos sua condição como uma situação legitimada, em virtude de suas vantagens intrínsecas:

– Umas pessoas por aí, ouvi dizer, umas não, um bocado. Ficam falando, sabe? ‘É, porque Marta se lasca de trabalhar, pra dar de comer a Brito, não sei o quê’ (…) Aí eu tou, eu sei das coisas, mas eu fico calado, que eu não vou me preocupar com isso. Eu tou comendo e dormindo, e não tou devendo a ninguém, vou tá me

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aperreando?! Tem certas pessoas que falam demais... e ela [sua esposa] nunca se preocupou com isso não. É significativo o fato de Brito não apenas dizer que sua esposa “nunca se preocupou

com isso não”, bem como o de reforçar na seqüência que a mesma já sabia de sua condição de desemprego e de não procurar trabalho desde que se conheceram. Isso é suficiente para ele não se apresentar destituído, como alguém que não tivesse nada a dar em troca na relação. A casa é citada como contrapartida. Outros homens – e mulheres, como o caso de Zeneide citado há pouco – usam o argumento de não abrir mão da casa como razão para não se separarem. Outro elemento igualmente importante nessa configuração é a fuga da solidão.

Por sua vez, as mulheres referem sua condição de independência financeira em relação aos maridos como algo positivo, alegando não sentir falta da ajuda do marido, muito embora digam que, se seus homens trabalhassem, elas não trabalhariam tanto: “Queria que ele trabalhasse e sempre continuasse botando a feira dentro de casa. Aí eu fazia assim: trabalhava um dia, outro não... [poderia] ficar mais em casa. Mas ele não me ajuda, o que é que eu vou fazer?”.

A mesma Luzia, a vendedora de acarajé cujo exemplo utilizei inicialmente, reclamava que, todas as vezes que começava a ganhar algum dinheiro, seu marido passava a faltar ao trabalho com o objetivo de ser demitido. Ela dizia que só trabalhava quando “as coisas apertavam”. Luzia via muitas mulheres nos pontos de ônibus, às vezes com filho no braço, esperando seus maridos chegarem do trabalho. Por vezes a vi reclamar de sua situação dizendo, “isso não é vida de ninguém”. Outras vezes suspirava dizendo que “a coisa mais linda do mundo é uma mulher em casa com as coisas feitas, esperando o marido chegar”.

A queixa principal de muitas mulheres é à impossibilidade de experimentar a situação tradicional, romanticamente idealizada, de mulher dona de casa, mãe e esposa. A falta sentida é não apenas a de um homem provedor, mas de elementos subjetivos como o respeito e a companhia. Perguntei certa vez para Zélia se ela percebia diferença entre o tempo em que seu marido fazia biscates e o tempo em que não mais trabalhava e ela apresentou essa diferença entre a falta material e a falta afetiva:

Pra mim, não senti diferença nenhuma, porque os biscates dele pra mim não servia. Só servia pra ele mesmo... Não sinto falta não, de jeito nenhum. Não sinto falta de nada dele não. Eu mesmo (...) trabalho, faço minhas compras. Sentir falta assim, a gente sente falta assim, sabe, de não ter assim a força de um homem, aí isso aí a gente sente falta. Porque um homem dentro de casa é pra ajudar a gente. É pra ter uma conversa, conversar com a gente. Ele chega, não faz. Pra mim, ele nunca fez, sabe, assim desde o começo ele nunca fez isso não. É um homem assim sem, sem ter assim um, um... um homem sem força, sabe. Assim, ter um diálogo pra gente conversar e tudo, ele não tem não. Nunca teve. Aí, isso aí, eu sinto falta. Sinto falta. Importante notar que essa falta é remetida a um tempo anterior, de maior ausência

do marido. Mesmo sentindo essa falta desde que o conheceu, a relação foi mantida. Isso indica que não houve uma ruptura radical no quadro original do casamento. Ao longo dos anos de convivência, ela talvez tenha continuado a esperar que isso se efetivasse. Parece não esperar mais que o provimento econômico se efetive. Mas será possível pensar que algo mais possa ainda ser conseguido? Daí a idéia de não se separar... Ou ainda, não haverá, para além das queixas, certa noção de que, de algum modo, essa dimensão simbólica se atualiza pela presença do homem, mesmo se insatisfatória?

Este conjunto de expectativas aparece quando a mesma mulher fala acerca das tarefas que manda o marido fazer. Não se trata de mandá-lo procurar emprego ou mudar

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totalmente de vida. Sua cobrança é pela execução de pequenas tarefas compreendidas como masculinas: “Eu reclamo porque eu digo, ‘vai buscar uma coisa ali e tal’, ele não vai. Difícil ele encher essas jarras; ontem eu mandei ele ir buscar o bujão de gás, e ele não foi”.

Essa noção se associa às falas onde aparece a idéia de que a mulher não quer mais conviver com o marido, mas ao mesmo tempo não o põe para fora de casa por variadas razões. Zeneide avalia a manutenção do casamento usando exemplos de outras mulheres. “Quem é que quer ter um homem que não quer trabalhar, só viver de beleza dentro de casa, feito marica? Sem querer ter obrigação com nada na vida? Eu acho que muda, muda muito. Não tem quem goste, quem queira”. Quando perguntada por que acha que as mulheres aceitam a situação, ela retoma o discurso, agora incluindo-se no grupo das mulheres que esperam o dia em que seus parceiros irão embora. Usa o discurso de que quer se separar, atribuindo sempre ao homem o poder de efetivar a ruptura, mas ao mesmo tempo deixa entrever as vantagens da situação:

Muitas aceitam, sei lá. Eu mesmo, eu aceito. (...) Eu mesmo moro porque, vou fazer o quê? Deixar minha casa eu não vou. Já sofri muito pra ter. (...) E muitas mora assim, né? Muitas porque têm medo de botar pra fora. Outras porque, sei lá? Porque tem pena, sei lá? E outras porque eles não saem, são safados, se acostuma, não sai de dentro de casa. (...) Porque, eu mesma, se fosse homem, não queria depender de mulher, de mãe, de irmão. (...) Mas nem todo homem é assim, honra as calças que veste, se acostuma, se acomoda. E aqui em Camaragibe, olhe, foi o lugar onde eu mais vi homem gigolô. Mesmo não contando com a contrapartida masculina do provimento, as mulheres

dizem manter suas atividades de dona de casa. A inversão desses papéis não altera as demais relações de forma significativa. Tanto Zélia como Dona Aline, por exemplo, apontam para a idéia de que estão vivendo situações que não gostariam de viver, quando se referem a trabalhar fora de casa. Como já mencionado, há queixas ecoando sempre.

– Eu deixo pronto. Deixo a comida pronta, aí ele come mais a filha (risos). A vida é dar comida a ele aí, mas eu reclamo e tudo, mas eu digo assim (...): 'Comida, a gente dá um prato de comer até um animal, né?'. Eu reclamo porque eu digo assim, ‘Vai buscar uma coisa ali e tal’, ele não vai. Difícil ele encher essas jarras. Ontem eu mandei ele ir buscar o bujão de gás, não foi. Foi ali, foi até ali numa barraca que tem, não foi, deixou. Disse que na outra não tinha, eu disse na outra tem, fui buscar. Interessante observar aqui que sua reivindicação não é a de que ele rompa

totalmente com a situação presente, mesmo que depois apresente seus sonhos. O que ela reivindica é que ele faça certas coisas, “não se entregue” totalmente. Se, por um lado, as mulheres consideram que não abandonarão por completo os homens, a essa noção corresponde a percepção masculina de ser legítimo o cuidado que as mulheres lhes devotam. Brito relata alegremente por que é sua esposa quem tem de fazer todas as atividades domésticas quando chega em casa à noite, segundo ele, sem reclamação:

– Não, não reclama não, porque é a obrigação dela. E eu vou tá perdendo tempo pra fazer comer?! Tem dia que eu acordo, não posso nem morrer, [risos] é, e ela sabe... Ó, eu vou dizer, não sou machista não, mas né não, é porque ela tem que ter a obrigação dela. Diante dessa declaração, decidi provocá-lo para verificar se ele manteria o mesmo tom

de sua fala. Perguntei qual seria, então, sua obrigação, enquanto homem e esposo, já que todas as atividades mencionadas até então seriam obrigação da esposa. Por um breve lapso de tempo, ele pareceu constrangido em dizer que a obrigação dele seria trabalhar para sustentar a casa, mas, reafirmando sua impossibilidade por razões que estariam para

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além de sua vontade, rapidamente voltou ao tema das funções domésticas para dizer que, mesmo assim, a obrigação não seria sua:

– Não. É obrigação dela, era obrigação, se eu morasse só (...) porque não tinha quem fizesse. Lavava roupa, já botei água pra ela lavar roupa. Eu vou pegar e vou lavar minha roupa, por quê? Eu com mulher em casa... Não, não é assim não. Agora, se eu tivesse só, morasse só, não tivesse ninguém pra fazer, aí era obrigação minha mesmo, porque senão, se eu não fizesse, quem ia fazer? Eu ia, eu ia passar fome era, morrer de sede? Esse engenhoso discurso para justificar a submissão feminina deve certamente ser

também entendido como um daqueles discursos de auto-afirmação, já mencionados. É fácil imaginar que ele queria eliminar qualquer possibilidade de eu vir a fazer dele o mesmo juízo que fazem seus vizinhos – preguiçoso e explorador. Mas sua argumentação busca dizer não apenas que há alguém que provê sua manutenção e satisfaz suas necessidades materiais, a despeito de ele não trabalhar: o mais importante em sua fala é o tom de naturalidade que ele imprime, visando afirmar que as coisas não estão assim tão modificadas quanto parecem. A despeito da grande distância dos desígnios tradicionais de gênero, busca demonstrar que o que ocorre não chega a reconfigurar totalmente as relações estabelecidas. Pode ser uma tentativa desesperada de dizer que alguma coisa ainda sobrevive da forma como ele imagina que deveria ser – nem que essa sobrevivência dure o tempo de uma entrevista. Tento evitar uma oscilação entre duas possíveis interpretações mais imediatas para esse quadro. Uma primeira leitura, focalizando os homens como doentes ou desempregados e impossibilitados de conseguir qualquer trabalho, poderia levar à visão deles como vítimas de uma estrutura injusta de desemprego. Outra leitura, focalizando os argumentos de Brito, ou as declarações de mulheres que acham que têm de manter suas atividades, pode apresentá-los como exploradores e as mulheres como vítimas. Experimento aqui uma terceira interpretação que precisa considerar o universo simbólico onde se situam as relações de gênero e o lugar do valor trabalho e do valor provimento para a constituição das convenções de gênero que, como os dados aqui trazidos sugerem, estão sendo negociadas sob diversos aspectos cotidianamente.

O fato de certas mulheres manterem as uniões não implica sua concordância com a forma de sua vida hoje, como já foi dito, não só em relação ao trabalho e seu lugar na casa, mas a aspectos subjetivos de suas vidas. Sua inserção nesse contexto não lhes faz abrir mão totalmente dos sonhos que alimentaram, mesmo admitindo a noção radicalizada do ideal burguês fracassado, como faz Zélia:

Eu sonhava assim: “Meu marido vai ser um homem cheiroso’. Quando ele chegar, ele tá com aquele suor, daquele suor do homem que vem do trabalho, aí eu... tiro até o sapato dele (...) eu imaginava de tirar, sabia? Imaginava assim: ele chega, me cheira... eu tou tomada banho esperando ele. Meu sonho era esse (...). Aí quando ele chegar, do jeito que ele chegar, cheirar ele com aquele suor que ele vem do serviço. Oh, meu Deus, meu sonho era esse, mas não vai se realizar, acho que não, já tou tão... (riso), não sei, eu acho que... só se esse sonho passar pra minha filha, pra (...) ele se realizar, porque é muito bonito. Eu acho lindo, lindo, lindo.

***********

Esta fala apresentada assim no final de um artigo que pergunta no título qual a novidade? não tem a mera intenção da contundência, tampouco pretende operar com a idéia de que tudo é sempre igual ao “que já foi um dia”. Assim como iniciei dizendo que não pretendia operar com noções estanques onde idéias de provedores e donas de casa

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fossem vista como significando sempre a mesma coisa, não quero agora sugerir que os sujeitos com os quais convivi fazem exatamente o contrário do que gostariam de fazer. É necessário pensar como esses modelos se reproduzem. A despeito dos discursos e das idealizações, (ou melhor seria dizer assim como os discursos e as idealizações) os valores passam pela prática, pela experiência cotidiana. O que pudéssemos pensar como possibilidade para a filha desta mulher (que transfere para a mesma seu sonho não realizado) não seria simplesmente a repetição ou algo absolutamente novo, mas tem a ver com estes mesmos processos como estas pessoas estão conduzindo suas vidas hoje em meio a todos os elementos com que temos argumentado aqui. O que busquei neste artigo foi menos uma explicação para possíveis mudanças e permanências e mais uma reflexão sobre porque insistimos sempre nas mesmas imagens para pensar distintas realidades. Agustín Latapí (1998) pensando sobre o processo de reestruturação produtiva no México e as trajetórias masculinas neste cenário argumenta que o homem provedor único é um “mito” há muito tempo e que a capacidade dos homens de serem provedores exclusivos dos lares, apesar de ser um modelo legítimo em geral é válido apenas para uma minoria de homens, propondo que a pergunta deveria ser não a respeito de que os homens são ou não os provedores, mas “como foi possível manter-se a imagem de homem provedor por tanto tempo e de maneira tão geral se, na realidade a maior parte dos lares teve outros provedores” (Latapí, 1998: 199-200). Certamente muitos estudos problematizam para a realidade brasileira este quadro (Araújo e Scalon, 2005), mas o nosso foco principal tem a ver com a forma como estas imagens se reproduzem. A relação entre o jogo dos sentidos com que se opera no cotidiano e os condicionamentos estruturais (inclusive estes sendo acionados a todo instante através principalmente da repetida frase “emprego ta difícil”) certamente precisa ser considerada. Da mesma forma, os vários níveis em que as relações de parentesco são acionadas, nas quais a consangüinidade opera na construção das redes de apoio e solidariedade (o que não quer dizer isenta de conflitos como vimos) é outro elemento.

Nesse âmbito é que se torna possível pensar afirmações como a de uma mulher que diz, como vimos, que o dinheiro do marido “só serve pra ele mesmo”. Neste jogo constante entre modelos de feminilidade e modelos de masculinidade, provimento material e provimento simbólico é possível visualizar ao mesmo tempo um jogo de inversões das convenções tradicionais de gênero e sua marca ao mesmo tempo aparecendo na fala dos sujeitos.

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AUTOR/A: Sonia Weidner Maluf INSTITUIÇÃO: PPGAS - UFSC E-MAIL: [email protected] TÍTULO: Desejo e identificação: apontamentos para uma discussão sobre gênero e sexualidade RESUMO: O objetivo do paper é fazer uma reflexão sobre a forma como os conceitos e as temáticas de gênero e sexualidade têm sido articulados – ou desarticulados – nos estudos na área. Pretende-se explorar, de um lado, abordagens que propõe gênero e sexualidade como dois “sistemas distintos”, e de outro aquelas que alertam sobre os limites de se pensar uma teoria e um campo de análise próprio da sexualidade sem um diálogo com teorias de gênero ou com as teorias feministas. Particularmente na antropologia, se a diferença entre “identidade de gênero” e “orientação sexual” se mostrou proveitosa no sentido de romper e desnaturalizar a justaposição entre essas duas categorias, por outro lado acabou limitando uma compreensão tanto etnográfica quanto teórica de como gênero e sexualidade se articulam nas formas dominantes de constituição de sujeitos e de subjetividades (nas quais tanto diferença sexual quanto sexualidade são biologizadas). A crítica mais forte à separação entre gênero e sexualidade como dois campos distintos tem partido de algumas teóricas feministas, para quem tal separação pressuporia a distinção entre desejo e identificação, fundamental para a consolidação da matriz heterossexual da sexualidade (Butler) baseada no modelo binarista atividade/passividade. É na adesão a essa matriz, e na rejeição do desejo homossexual, que indivíduos se constituem como sujeitos masculinos e femininos. A crítica à distinção entre desejo e identificação, sobretudo pelas teóricas feministas do cinema ao analisar as diferentes posições do olhar e da imagem no cinema, pode trazer uma contribuição para esse debate.

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“Construções e Desconstruções: Identidade da Mulher Árabe Muçulmana em Brasília”

Sônia Cristina Hamid ([email protected]) Universidade de Brasília – UnB, Brasil

Este ensaio se traduz como o primeiro esforço de perceber como mulheres imigrantes árabes muçulmanas reconhecem, pensam, constroem e reconstroem sua identidade num país ocidentali. Com o intuito de alcançar uma das dimensões desta identidade, analisarei as mudanças de concepções nas práticas de casamento entre mulheres de duas gerações: imigrantes e descendentes, em Brasília. Sempre que tiver informações precisas2, mencionarei também os costumes e práticas das mães e avós das imigrantes entrevistadas, buscando, assim, uma percepção das mudanças que já ocorriam nos países de origem.

Para o alcance do objetivo proposto, analiso as falas de duas famílias de origem árabe: egípcia e palestina. Em ambas, busco apreender a visão feminina a respeito do casamento, de como se reconhecem como mulheres, da imigração e, de forma mais ampla, das diferenças percebidas na vivência entre duas culturas e como, nesse processo, constroem e reconstroem suas identidades.

Para refletir sobre as perdas, incorporações e ressignificações das idéias, valores e práticas relacionados ao casamento, adoto como fio condutor a memória. Nesse sentido, é a memória que dirá o que foi perdido e o que foi encontrado, o que é próprio daqui e o que é próprio de lá. Em outras palavras, longe de querer definir antecipadamente o que é o ocidental e o oriental e/ou o que é tradicional e moderno – definições que comprometeriam toda a validade do trabalho, pois são relativas e mutáveis -, parto das percepções das entrevistadas, considerando as diferenças percebidas ao longo desse processo de convivência com duas culturas.

Ao buscar entender as percepções de indivíduos, contudo, não tenho como intuito desenvolver uma análise psicológica do sujeito. Ao contrário, o conceito de memória adotado na análise será o proposto por Maurice Halbwachs (1990) que afirma que toda memória é um fenômeno coletivo e social, ou seja, que é um fenômeno construído coletivamente e submetido a flutuações, transformações e mudanças.

“Para nós, ao contrário, não subsistem, em alguma galeria subterrânea de nosso pensamento, imagens completamente prontas, mas na sociedade, onde estão todas as indicações necessárias para reconstruir tais partes de nosso passado, as quais nos representamos de modo incompleto ou indistinto...” (HALBWACHS, 1990, p.77)

Dentro de uma perspectiva mais durkheimiana, o que o autor busca realmente

advertir é que é impossível rememorar se não se tem como ponto de partida quadros sociais reais, ou seja, se não se parte do grupo em que se vive e se os próprios elementos lembrados não foram vividos em grupo. Nesse contexto, a memória individual seria uma interpretação/ressignificação da memória coletiva ou, de forma mais ampla, uma manifestação individual do inconsciente coletivo proposto por Durkheim.

Assim, partindo dos discursos e narrativas das imigrantes e descendentes, o que se encontra não são opiniões soltas e desestruturadas, mas manifestações de um modo de pensar e sentir coletivo e estruturado.

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“...as memórias individuais são sempre coletivas...embora individuais, seguem sempre um padrão; são, num certo sentido, iguais, não obstante as variações. Sendo a memória constituída de narrativas, temos então, nessas, uma negociação de subjetividades com um pano de fundo estruturado”.(WOORTMANN 1998, p.90).

São estruturadas porque atuam dentro de um habitus de grupo. BOURDIEU (1974) defende que há um processo de inculcação da cultura, exercido principalmente pela escola, que dota uma coletividade de um modo de pensar e agir semelhantes.

... a cultura não é só um código comum, nem mesmo um repertório comum de respostas a problemas comuns, ou um grupo de esquemas de pensamento particulares e particularizados; é sobretudo um conjunto de esquemas fundamentais, previamente assimilados, a partir dos quais se engendram uma infinidade de esquemas particulares... este habitus poderia ser definido como o sistema dos esquemas interiorizados que permitem engendrar todos os pensamentos, percepções e ações característicos de uma cultura, e somente esses”. (p.349)

Considerando essas reflexões, compreendemos melhor quando Pollak, em seu

texto Memória e Identidade Social, afirma que existem marcos e pontos relativamente invariantes e imutáveis na memória. São elementos, afirma o autor, que se repetem constantemente na fala dos indivíduos, podendo ser considerados pontos chaves que ajudam a constituir a identidade do sujeito. Em outras palavras, e nos remetendo a Bourdieu, poderíamos dizer que são estruturas estruturadas constituintes do sujeito e que orientam o próprio modo de perceber e sentir os outros elementos da cultura.

Seguindo suas análises, e tentando definir os elementos constitutivos da memória, Pollak (1992, p.201) afirma que existe na memória individual e coletiva aquilo que ele define como os acontecimentos vividos e os acontecimentos herdados (ou vividos por tabela). Estes últimos se caracterizariam como acontecimentos dos quais a pessoa nem sempre participou, mas que no processo de socialização foram tão inculcados que acabaram por se tornar parte do próprio sujeito. São todos aqueles eventos, continua o autor, que não se situam dentro do espaço-tempo de uma pessoa ou de um grupo, mas que são tomados e vividos como se fossem seus.

Se por um lado, na pesquisa desenvolvida com as mulheres árabes de Brasília, temos as imigrantes que se socializaram dentro da própria cultura árabe e que possuem, nesse sentido, uma memória de acontecimentos vividos, por outro lado, temos as descendentes de imigrantes que se socializaram entre duas culturas – árabe (família) e brasileira (sociedade) - e que, em grande medida, possuem uma memória de acontecimentos herdados que são incorporados como se tivessem sido vividos. É dentro desse contexto que Pollak irá mostrar que o sentimento de identidade está profundamente ligado a memória.

“A memória é um elemento constituinte do sentimento de identidade, tanto individual como coletiva, na medida em que ela é também um fator extremamente importante do sentimento de continuidade e de coerência de uma pessoa ou de um grupo em sua reconstrução de si”. (POLLAK,1992, p.204)

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É a memória que permite que o indivíduo construa a imagem que tem de si, tanto em relação a si mesmo como aos outros; que adquira esse sentimento de pertencimento ao grupo; que tenha um sentido de continuidade dentro do tempo e que se desenvolva dentro de um sentimento de coerência.

Entretanto, é importante ressaltar que ao mesmo tempo em que a memória sustenta e apóia a identidade de um determinado grupo, este reconstrói o passado em função dos seus interesses e de sua posição no presente. Halbwachs já afirmava que a memória é em larga medida uma reconstrução do passado, tendo em vista que é a partir dos dados presentes que as cenas vividas são interpretadas e ressignificadas. Woortmann, nesse mesmo sentido, confirma que a memória é prática, trabalho, a medida em que dá presença ao passado para dar significado ao presente. Assim, num processo dialético, é a memória que dá sentido ao presente e é este presente que ressignifica esta mesma memória passada.

Tentando pensar dentro da realidade das imigrantes, percebemos que são as memórias desse passado vivido no Oriente que mostram para essas mulheres quem elas são e quais são seus valores, contudo, é o presente agora vivido no Ocidente que diz como elas irão lembrar ou mesmo esquecer esse passado, quais os elementos que são importantes para que elas continuem com o sentimento de continuidade e coerência e, também, de aceitabilidade e admissibilidade do novo grupo que as cerca.

A importância do presente para lembrar o passado será retomada várias vezes ao longo do texto, pois se constitui como ponto chave para o entendimento das mudanças nas concepções das imigrantes. Ora, não podemos esquecer que é o presente vivido entre duas culturas que irá possibilitar uma reflexão, ao mesmo tempo que a escolha pela manutenção, substituição ou incorporação de elementos próprios de cada local.

Esse primeiro “caminhar” pelas teorias da memória, juntamente com algumas reflexões a respeito da realidade estudada, nos possibilita perceber que, apesar de estarmos falando sobre vidas pessoais, estamos, na verdade, nos aproximando de um pensar coletivo, organizado e estruturado. Longe de significar somente um passeio pela psicologia do indivíduo, a memória nos traz a dimensão do social e do sentimento de pertencimento, continuidade e coerência, revelando ao indivíduo quem ele é ou pode ser. A memória aqui estudada também não se caracteriza como um livro aberto que pode ser consultado no momento da necessidade, pois as lembranças dependerão do social (presente e passado). Ela, além disso, é seletiva, variando conforme o lugar, a pessoa com quem se fala e sua situação presente.

Feita essa primeira exposição, tratarei diretamente agora das imigrantes e descendentes estudadas. Quem são elas? Como pensam as práticas de casamento? Percebem diferenças nos costumes dos países? Em uma dimensão mais ampla, como se percebem enquanto mulheres entre essas duas realidades? Definindo o campo de trabalho

Antes de tudo, é importante esclarecer que este ensaio trata de uma modalidade da memória coletiva, chamada “memória de gênero”. Neste sentido, aqui buscarei entender o que a memória feminina pensa a respeito de concepções e práticas de casamento. ELY e McCABE (1996) já apontavam no texto “Gender Differences in Memories for Speech” as peculiaridades com que homens e mulheres lembravam a mesma informação, sendo estas reflexos da maneira como cada sexo era socializado.

Antes de iniciar a análise das falas das duas famílias entrevistadas, é preciso esclarecer a relação que estabeleço com as mesmas. O meu interesse de desenvolver estudos entre mulheres árabes-muçulmanas está profundamente ligado ao fato de ser

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descendente de árabes e, nesse sentido, de querer me aprofundar nos estudos da adaptação e socialização dessa etnia em países ocidentais. Deste modo, optei por partir da análise de entrevistas desenvolvidas com a família de minha professora de árabe e com minha própria família. Reconheço que ser nativa e pesquisadora ao mesmo tempo não é uma tarefa fácil, pois exige todo um esforço de distanciamento e de estranhamento do familiar. Quando se opta por desenvolver uma pesquisa com a própria família por meio da memória, o desafio se torna ainda maior. Ao longo da escrita e do processo de reflexão possibilitado pelas várias experiências narradas, pude pensar sobre a minha própria maneira de rememorar e mesmo de esquecer ou querer calar. Pollak (1992) em seu texto “Memória, Esquecimento e Silêncio” adverte que a memória não está somente relacionada à adesão a uma comunidade afetiva, como defendia Halbwachs, mas, em grande medida, está profundamente ligada a grupos de poder, a um processo de enquadramento da memória, gerando necessidades ou mesmo obrigando pessoas ao esquecimento e silêncio. Embora o autor esteja tratando precisamente da relação entre memória oficial e oficiosa em um âmbito mais político, podemos pensar essas questões dentro da realidade que estava tentando apresentar. Ao ter que abordar as relações estabelecidas dentro de minha família, me vejo, muitas vezes, vivendo dentro de uma memória enquadrada, onde deixar transparecer alguns fatos poderiam comprometer o próprio sentimento de coerência identitário. Assim, me pego entre a necessidade de expor e analisar fatos e de silenciá-los. Nesse sentido, percebo que enquanto nativa e pesquisadora minha saída será a mesma da de minhas entrevistadas: a memória é seletiva. Sendo assim, ainda que fosse inconsciente, selecionaria fatos entendidos como apropriados e importantes para analisar neste contexto. Revelar-se, neste sentido, é importante para que o leitor saiba de onde se parte e qual a relação do pesquisador com seus sujeitos de pesquisa. Retomo então a reflexão iniciada, reconhecendo os limites e possibilidades que minha condição proporciona.

Desenvolvendo a análise das famílias, o que se percebe é que o motivo que levou Ayda e Amira3 a imigrarem foi o mesmo: o casamento. Como os maridos de ambas as entrevistadas já viviam e trabalhavam no Brasil, elas também optaram, ao se casarem, pela vida em uma realidade distante e estranha daquela então vivenciada. Os motivos que levaram os maridos a imigrarem revelam, em grande medida, as diferenças históricas e sócio-culturais vivenciadas nos países de origem. Tanto Ayda como seu marido são da cidade do Cairo, pertencem a famílias de classe média e possuem nível de instrução superior. Ao imigrar para o Brasil, o marido já tinha profissão garantida, pois era contratado para trabalhar como sheik em um país ocidental. Num outro contexto, Amira e seu marido são da cidade da Cisjordânia, viviam naquilo que eles concebem como roça, onde o plantio de azeitonas e o cuidado de cabritos, além dos “bicos” conseguidos no Estado de Israel garantiam o sustento da família. Além disso, somente alcançaram nível de instrução fundamental. O que levou o marido de Amira a imigrar foi o desejo de encontrar uma situação de vida melhor com possibilidades de ascensão social e econômica. Samira Osman (1997, p.28), ao estudar a imigração árabe em São Paulo, esclarece que “a saída do país de origem não pode ser desvinculada do projeto maior envolvendo a família grande, seja pela questão da dificuldade de sobrevivência na terra natal, pelas dificuldades econômicas e escassez de terras para cultivo, seja na busca de melhores condições de vida para seus membros”. Assim, mais do que um projeto individual, a imigração para o marido de Amira significou um desejo de melhorar a vida de toda a família grande.

Toda a descrição exposta acima foi feita no sentido de mostrar que não estamos tratando de famílias que partem do mesmo país ou da mesma realidade sócio-cultural. Partindo de contextos distintos, pensam e ressignificam a realidade, tanto árabe como

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brasileira de maneira diferenciada. Contudo, é importante retomar Woortmann (1998) quando afirma que as lembranças variam, mas dentro de um pano de fundo estruturado. Fazendo um paralelo com DARTON (1986), que ao analisar a origem dos contos infantis em vários países percebe como uma mesma estrutura de história é ressignificada de acordo com os interesses e necessidades locais, poderíamos dizer que também existe um conjunto de esquemas básicos próprios da cultura e da religião que são interpretados de maneira particular conforme a realidade e vontades dos membros de cada país. Com isso, o que tento esclarecer é que não busco encontrar uma única memória a respeito dos vários contextos apresentados, mas memórias – no plural - que revelam a riqueza e diversidade vivenciada em cada realidade. Em meio a toda essa diversidade, contudo, reconheço que há alguns esquemas básicos que são comuns e que fazem com que se percebam como árabes e muçulmanos, se identificando um com o outro nesse sentido.

Assim, do lado egípcio, analiso as falas de Ayda e de sua filha Leila. Na família palestina, parto da entrevista de Amira, complementando com minhas próprias informações. Como critério de análise, exploro e reflito as percepções por gerações – primeiro as imigrantes e depois as descendentes – para, em seguida, buscar uma análise crítica de ambos os discursos.

Então, a partir de agora, deixaremos que elas falem. Daremos voz às memórias que são partes constituintes de cada uma delas e que revelam como pensam seus passados e suas identidades atuais.

As Imigrantes

- O que significa o casamento pra você? “Casamento é a felicidade da mulher, fazer filho pro marido, neto pra mãe e pai dela. Pra viver feliz na vida, pra fazer família, fazer casa dela, minha casa”.(Amira, 2005) - E quando a pessoa não casa? “Ah, nada, diferente. Não vai ter marido, não vai ter filho, não vai ter nada. Aí, ia ficar mulher solteira, trabalhando a vida inteira na casa do pai, às vezes sem valor nenhum. Não sei se seria bom ou não. O que Deus dá, tá bom”.(Amira 2005)

Na memória de Amira, o casamento é o próprio símbolo da felicidade e do

“poder”. É ele que garante a continuidade e prosperidade da família. Ao se constituir como um elemento de valor social, principalmente para a mulher, ele acaba que por criar dicotomias “hierárquicas”: de um lado, tem-se a mulher casada, valorizada, feliz, com marido e filho; de outro, tem-se a mulher solteira, triste, pouco valorizada, tendo que trabalhar toda a vida com os pais.

O valor do casamento dentro do mundo árabe torna-se mais claro quando uma situação adversa não permite sua continuidade.

“Porque nunca consegui criar uma afinidade. Falei pra você que se talvez eu tivesse a maturidade, por exemplo, que eu tenho hoje, né? Porque tinha 23 anos. Não sei assim, também não posso te afirmar porque eu tentei, tentei de muitas formas, assim, fazer dar certo. Porque a gente é criada, a formação que a menina recebe, menina assim muçulmana árabe, que casamento é pra vida toda. Não tem essa de que se não der certo separa. A palavra separação lá é muito forte, muito pesada, muito indesejada. Ninguém gosta de casar e

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separar. Ninguém deseja isso nunca. Nem pra si, nem pras filhas, nem pra ninguém. Que realmente é uma experiência muito traumática”. (Ayda, 2005) Você conhece alguém lá que se separou? “Tem uma prima minha que se separou, mas que depois voltou para o marido dela. Vive muito bem agora com ele. Agora, uma separação definitiva assim, não conheço”. (Ayda, 2005)

Depois de 23 anos de casada, Ayda se separou do marido, contudo, faz questão de

lembrar que se esforçou muito para que isso não acontecesse. Se acabou tomando esta decisão, foi porque o marido tinha problemas psicológicos graves, sofrendo de depressão e de mudança brusca de humor e personalidade. Neste contexto, reforça que no mundo árabe, casamento é para toda a vida. A necessidade de ressaltar tal característica da cultura surge em contraposição à realidade percebida no Brasil, onde ela ressalta: “não, aqui se separa muito mais fácil. Aqui se não deu certo as pessoas separam na maior naturalidade. Lá, as pessoas ainda reservam essa coisa de família, de casar pra vida toda”. Ao mencionar a separação, Ayda mostra que no mundo árabe, não é só a união do casamento que é importante para definir a posição e status da mulher. A sua manutenção se caracteriza também como um esforço desejado que revela, em alguma medida, a aptidão e habilidade feminina em preservar uma instituição de prestígio.

“Com a convivência, eu fui descobrindo que ele não era aquilo que eu achei que fosse. Eu era muito imatura também. Eu hoje, por exemplo, se eu quisesse repetir essa experiência e viesse a descobrir que aquela pessoa que eu me casei não é a mesma pessoa que eu fiz a imagem, que eu criei a imagem, eu vou tentar adequar, adaptar essa pessoa dentro da minha mente e tentar jogar essa pessoa a ser do jeito que me agrada. Que a maturidade que faz a gente pensar dessa forma. Fazer acreditar que o ser humano não é perfeito, que você pode ajudar a pessoa a ser o que ela não é. Que muitas vezes funciona. Mas eu era muito jovem, muito inexperiente, muito imatura”. “... ele não é exemplo de nada. Tenho 7 ou 8 tios da parte da mãe, tenho primas e primos, nunca vi esse exemplo, essa coisa patológica... Tanto que ele ficava daquele jeito agressivo e de repente voltava ao normal. Ele tinha problemas mesmo”.

Neste trecho, podemos mostrar o que Halbwachs havia dito da memória como reconstrução do passado. É com os olhos do presente – hoje se vendo como uma mulher madura com capacidade de adaptar o outro de acordo com sua vontade – que ela analisa a falta de sucesso no casamento. O que se percebe, em vários relatos, é que Ayda atribui o fracasso de sua vida conjugal a dois fatores: a sua falta de maturidade e aos problemas psicológicos do marido. Ao dizer que sofria de depressão e distúrbios, ela, de alguma forma, retira a culpa do marido, pois justifica dizendo que se ele era agressivo é porque tinha problemas que iam além do seu controle.Ao mesmo tempo, quando diz que era imatura, passa a atribuir-se parte da responsabilidade pelo fracasso. Nos dois casos, mais do que o presente, talvez seja com a memória do futuro que ela esteja se preocupando. Robert Katestenbaum (1975), em seu texto Memories of Tomorrow: on the Interpretation of Time in Later Life, mostra que numa tentativa de validação da memória, a pessoa pode usar o passado para revelar a competência do indivíduo no presente e no futuro. Assim, perdoando o marido porque era doente ou se atribuindo

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parte da culpa, ela pode estar querendo transparecer a imagem de uma boa mulher e esposa – memória que pretende que os outros tenham em relação a ela no futuro.

Ainda é interessante notar, neste caso, a oposição criada entre memória psicológica/individualizada e memória cultural/ideal. O marido não é visto por Ayda como uma pessoa que simboliza os valores e idéias da cultura, sendo um caso patológico que se distingue radicalmente daquilo que ela esperava ou foi ensinada a ter. A memória do ideal, embora nunca vivida, serve de parâmetro para classificar aquilo que corresponde aos valores e idéias das tradições, gerando, desta forma expectativas nos indivíduos.

É importante ressaltar que a entrevista não compreende somente os ditos, mas também aquilo que é silenciado, escondido, camuflado. Como já afirmava Pollak (1992), por trás da memória oficial enquadrada, esconde-se um conjunto de memórias subterrâneas – proibidas, clandestinas ou mesmo vergonhosas. Ao longo da entrevista, Ayda não chegava a expor exatamente que tipo de patologia e atitudes o marido possuía. Fazia questão de ressaltar que ele não era exemplo de homem árabe e, nesse sentido, mostrava sua preocupação em não denegrir a imagem da cultura. Mais uma vez é a situação presente , neste caso a sócio-política, que orienta o que deve ser dito ou silenciado. Percebe-se que falar mal da postura de um homem árabe numa cultura ocidental seria confirmar todos os estereótipos e preconceitos que se pregam nos meios de comunicação e que já se configuram como representação coletiva no ocidente. Nesse sentido, há toda um cuidado com o que se expõe. É importante perceber para quem se fala e que tipo de imagem se quer passar dentro de uma pesquisa que trata da cultura árabe.

“Como ocorreu o casamento?”. “O casamento foi um pedido do irmão, tio, mãe, foi bom”... Fiquei sabendo do pessoal lá, dos parentes, da cunhada, eles que foram me contando. Não durou nem 10 dias, o noivado para o casamento. Nesse meio tempo, saímos, eu, ele, meu irmão, numa cidade chamada Nablus. Não sei o que fomos fazer e ele até comprou presente para mim, sandália, sapatilha, parece...” (Amira 2005)

Tanto o casamento de Ayda como o de Amira ocorreu em menos de um mês. Seguindo um padrão, os interessados se dirigiram aos homens responsáveis pela família e pediram as moças em casamento. Somente depois desse primeiro contato e do consentimento dos parentes é que os noivos passaram a estabelecer relações com suas futuras esposas. Esses encontros eram formais, sempre com a presença da família, ocorrendo geralmente na casa da noiva ou em pequenos passeios, como o relatado por Amira no trecho acima.

O marido de Amira é também seu primo de terceiro grau. Em sua família, há o costume de se casar com parentes, principalmente com primos, tanto paternos como maternos, paralelos ou cruzados. Amira conta que sua avó e sua mãe se casaram com seus respectivos primos de primeiro grau e que ela somente não casou porque ocorreu um imprevisto que dificultou a união. Casar com parentes, na realidade de vida na roça, significa um sistema de troca e de ajuda mútua, tanto material como social. Ao mesmo tempo em que se ajuda tirando uma parente da condição de solteira, também se tem vantagens econômicas ao unir forças de trabalho ou ao manter e perpetuar a propriedade familiar. O casamento entre parentes, além disso, é visto como mais seguro para a mulher, pois o noivo, como membro da família, dificilmente se separaria dela ou

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tentaria tirar algum proveito da situação. Neste contexto, possuir uma memória genealógica é extremamente importante. Woortmann (2001), ao estudar uma comunidade de imigrantes alemães no sul do Brasil, já afirmava que “o conhecimento de parentesco é fundamental para a construção de estratégias matrimoniais, dado o casamento preferencial entre primos...”(p. 218).

Seguindo a tradição e considerando a realidade observada no Brasil, Amira também gostaria que seus filhos se casassem com primos ou então com alguma pessoa de origem árabe.

“Gostaria que eles casassem com árabe, porque aqui diferente. Lá as mulheres aceitariam eles quando eles saem. Se eles demoram a chegar dá briga. A mulher lá já tá acostumada, ela não vai pensar que o homem tá traindo ela, aceitam mais as coisas. Acho que eles se dariam melhor com árabe. Pra minha filha viver melhor. Aqui, às vezes, as pessoas ficam casadas há 50 anos e depois acabam separando. É difícil para uma mulher depois que tá velha, tem filhos, conseguir alguma coisa. Lá o homem não separa, dificilmente deixa a mulher. Tudo aqui no Brasil é motivo de briga”. (Amira, 2005).

Diferente da árabe, a brasileira é vista como desconfiada, geniosa e um pouco

intolerante com os atrasos e saídas do marido. A mulher árabe, nesse contexto, seria mais compreensiva, pois estaria acostumada a entender melhor todas as situações. Para sua filha, um homem árabe também seria melhor, mas os argumentos utilizados são distintos. Não é melhor porque ele é mais compreensivo ou não faz cobranças, mas porque, ao contrário do brasileiro, não se separa da mulher e lhe garante uma vida mais digna até sua velhice. O medo de que sua filha fique sozinha, de que se torne mulher solteira, é o principal elemento trazido por Amira para justificar sua preferência por um genro árabe. Combinando, de um lado, o valor dado ao casamento e o medo da separação trazidos pela tradição árabe e, de outro, a imagem construída em relação a personalidade e a falta de compromisso do brasileiro, é que a imigrante constrói seus discursos justificando a preferência por árabes nos casamentos de seus filhos.

Ayda, ao contrário de Amira, não se casou com um parente e diz que esse costume não fez parte de nenhuma geração de sua família. Seu marido a viu por meio de um amigo e, se interessando, resolveu pedi-la em casamento para seu pai. Considerando todo o ocorrido ao longo da relação, ela se arrepende por ter se casado tão rápido e por não ter conhecido suas características e personalidade anteriormente. Diz que se fosse hoje, faria como sua mãe que se relacionou durante quase dois anos com seu pai antes de optar pelo casamento. Para ela, diferente de Amira, conhecer bem o marido antes – o que não pressupõe contatos físicos – é um elemento importante para garantir uma boa escolha e a felicidade do casamento.

Em relação às suas filhas, deseja que se casem com muçulmanos, mesmo que sejam brasileiros. O elemento importante aqui não é a origem, mas a religião, que pressupõe um conjunto de idéias e condutas específico e particular. Considerando que a religião é transmitida, dentro do mundo árabe, pela linha paterna, é importante que uma menina muçulmana se case com alguém que siga o islamismo, garantindo assim a continuidade da religião para a próxima geração. Ayda também lembra que o casamento terá mais chance de ser feliz se os dois envolvidos compartilharem as mesmas crenças e valores, seguindo, assim, os mesmos princípios de vida.

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“Quem cuida da casa é a mulher. Dos filhos também. O homem só trabalha fora pra trazer dinheiro pra casa. Não sabe nada da casa, de criar os filhos. Mas se acontecer alguma coisa errada, a culpa é da mulher. É o homem quem dá a palavra final na casa porque ele é o machão. Acho que o homem tem que ter a palavra mais forte que a mulher, não pode ser dois juntos não. A mulher tem que ser menos um pouquinho que homem. Homem é homem. Ele naturalmente tem mais razão que a mulher”(Amira, 2005)

Dentro do casamento, os espaços e as funções destinados a homens e mulheres são muito bem definidos e delimitados. Se por um lado, a obrigação da mulher é cuidar dos filhos, da casa e do marido, por outro, a obrigação do homem é garantir o sustento econômico da família e tomar as decisões mais importantes. Ainda que a mulher trabalhe fora – como era o caso de Ayda -, essas definições e delimitações continuam atuando, abrindo possibilidades para que haja cobranças mútuas no que diz respeito aos deveres e obrigações. No casamento, poderíamos dizer que há duas dicotomias principais que orientam a prática e o pensamento do homem e da mulher na relação: público X privado; razão X emoção.

O espaço público é predominantemente masculino. Ainda que a mulher tenha muitas vezes acesso a ele, devido ao trabalho, não é lá que ela exerce sua verdadeira função. Seu espaço é o da casa, ligado à família e é a partir dele que ela acaba definindo sua identidade. Modell e Hinshaw (1996), ao discutirem a respeito da memória de gênero construída em torno de uma fábrica, mostraram como homens e mulheres possuíam espaços e atividades delimitadas e como a memória feminina também era construída a partir da atividade e do espaço masculino. Assim, quando a fábrica fechou – espaço masculino, ocorreu, de alguma forma, a perda de todo um “framework for memories” que era a base para a construção de ambas as identidades. Para as imigrantes, a diferenciação dos espaços e atividade é, em grande medida, um elemento importante para garantir a harmonia e coerência do lar e, ainda, para constituir suas identidades enquanto mulheres e esposas na família e sociedade.

No que diz respeito à dicotomia razão e emoção, as duas entrevistadas acreditam que o homem tem uma capacidade racional maior que a mulher, pois esta é muito emotiva e, por isso, menos capaz de lidar com situações críticas que exijam equilíbrio e serenidade. Contudo, é interessante notar que no que diz respeito à questão sexual, elas declaram que o homem possui um lado instintivo incontrolável.

“O véu significa proteção. Contra os olhos malvados, os olhares que querem te despir. Na rua você nunca sabe quem é que tá te olhando, quem é que tá te desejando, né? No trabalho, na escola, na faculdade. Homem tem uma mente um pouco animalesca, né? Então, a mulher o quanto mais protegida assim com a roupa, pra mim é melhor”.

Se para tomar as decisões importantes, o homem é concebido como o mais sensato e equilibrado, no plano das atrações físicas, só lhe resta o instinto. Ele é visto como praticamente incapaz de controlar seus olhares e atos, fazendo, assim, com que elas tenham que se cobrir para evitá-los.

A discussão a respeito do véu, do papel da mulher e da relação estabelecida entre a cultura árabe e a ocidental mereceriam, sem dúvida, um espaço de análise maior, contudo, abordaremos melhor esse tema num próximo ensaio, pois os limites deste trabalho e o tema aqui proposto não permitem que nos prolonguemos muito. Ao expor a fala que remete ao uso do véu, só queríamos analisar a contradição da visão tida em

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relação ao homem que oscila do “animalesco” ao racional e a maneira como as mulheres se constroem em relação a essas categorias.

Antes que façamos uma análise mais geral das concepções de casamento das imigrantes, é importante analisar os discursos das descendentes. Neste sentido, exponho os principais relatos que manifestam o ponto de vista de mulheres que se socializaram entre duas culturas. As descendentes

A cultura árabe sempre esteve presente durante sua criação? “Com certeza, desde as piadas até rezar e lidar com coisas um pouco mais sérias assim, o tempo todo. Já viajei cinco vezes ao Egito, conheci meus avós... (Leila, 2005)

Leila, desde pequena, foi criada entre árabes, aprendeu a língua, viajou para o país

de seus pais e freqüentou mesquitas e eventos próprios da cultura. Em contrapartida, o ambiente de minha casa sempre foi muito isolado dos eventos e símbolos do mundo árabe, fazendo com que nenhum dos filhos se interessassem pela religião ou em seguir os costumes do país. Dos três filhos, somente um viajou para conhecer os parentes na Palestina, sem, contudo, estabelecer vínculos de afinidade com os mesmos.

Neste sentido, é interessante lembrar de Connerton (1999) quando mostra a importância de performances rituais como meios de transmitir as imagens e o conhecimento passado. Partindo da análise de cerimônias comemorativas e práticas corporais, o autor expõe os mecanismos utilizados por uma sociedade para perpetuar-se. Se de um lado, na família de Leila, foram criados os mecanismos para a perpetuação dos valores próprios da cultura, seja através dos espaços, objetos ou pessoas, de outro, em minha família, os poucos elementos presentes ficaram restritos à família.

“É porque, na realidade, aconteceu, recentemente, de um funcionário de uma Embaixada aqui de Brasília ter me visto na mesquita, eu nem sabia quem era. Se interessou por mim, foi falar com minha mãe e queria me conhecer. Aí sai toda minha família pra jantar com ele, né? Minha mãe o convidou, aí vai o sheik também, aí vamos todos e eu querendo morrer, né! É porque é a coisa mais constrangedora do mundo você se deparar com uma pessoa que você nunca viu na vida, com intenções de casar contigo. Eu particularmente não tô nem um pouco preparada pra casar, principalmente nesses conformes, né, em que a família toda tem que conhecer antes. Não que eu não queira que minha família conheça meu futuro marido, mas não aquela coisa em que todo mundo quer ver quem é, começa a reparar nele. Pô, é mais legal que a coisa seja mais agradável, mais natural” (Leila, 2005).

Leila tem o objetivo de se relacionar e de se casar com um muçulmano dentro das

tradições. Contudo, acha desinteressante e constrangedor que haja mediadores direcionando a relação. Ao contrário do que aconteceu com sua mãe, não gostaria que a pessoa falasse anteriormente com a família e que houvesse encontros formais que expusesse o casal. Gostaria que ocorresse de forma mais natural e agradável, e havendo interesse mútuo, ela apresentaria para a família. Revela-me que acha importante também conhecer bem a pessoa antes de casar, sendo dois ou três anos o tempo ideal.

É interessante perceber que a forma de abordagem utilizada pelos pretendentes de Leila foi a mesma usada no casamento de sua mãe e que parece ser comum no mundo

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árabe. Contudo, as expectativas e sentimentos da descendente são distintos dos vividos outrora. Ela se sente constrangida, chega a dizer que acha ridículo esse tipo de situação, mas que costuma receber bem os pretendentes para não denegrir a imagem da família. Aqui, tanto elementos da cultura árabe como da cultura ocidental se mostram presentes. O tipo de relação estabelecida ao longo do namoro será dentro dos costumes e tradições árabes, sem contato físico e com a presença de parentes e amigas nos passeios e encontros. Contudo, a abordagem não deve acontecer por meio de mediadores, mas deve ser casual, prosseguida por um interesse mútuo.

Como em minha família há a tradição de casamento entre primos, sempre houve insinuações, desde a infância, de que os três filhos se casariam com os primos paternos. Coincidentemente com a elaboração deste trabalho, recebi uma proposta de casamento do meu primo, por meio de seu irmão, contando-me dos interesses do mesmo para um casamento próximo. Neste caso, é importante retomar Woortmann (2001) quando trata de memória genealógica.

“Nas alte Kolonien, fundadas entre 1824 e 1832, o parentesco é concebido por determinadas categorias, que são instrumentos da memória e, ao mesmo tempo, produtos do trabalho da memória. O parentesco é construído por uma memória seletiva: o que deve ser retido e o que deve ser esquecido, a depender do valor que representa para o que se poderia chamar de“agentes da memória”. Nesse sentido, a memória genealógica está estreitamente associada à construção da identidade”. (p.214)

Durante minha criação, nunca houve a iniciativa por parte de meus pais de que conhecêssemos a árvore genealógica da família, contudo, a vida dos primos sempre era exaltada e contada entre nós. Partindo do exposto, percebemos que a memória genealógica é tão seletiva quanto qualquer outra memória e que ela também age tendo como base os interesses e valores presentes.

Analisar o pedido de casamento de meu primo é, em grande medida, reconhecer a tentativa de perpetuação dos costumes e do patrimônio dentro da família. O casamento, nesse contexto, não é sentido como uma perda para os pais e família grande, como seria sentido se o pedido fosse o de um brasileiro. Casar com um parente significa garantir a permanência dos valores, práticas e bens no círculo familiar e, além disso, significa dizer que a menina, apesar de casada, ainda faz parte da família, “não foi perdida” para alguém de fora.

Não aceitar o pedido de casamento também traduz esse meu processo de convivência e ressignificação dos valores de ambas as culturas. Significa aceitar que valores como “necessidade de sentimentos profundos pelo outro”, convivência por um período longo, busca de outras realizações (pessoais e profissionais) são importantes para um casamento feliz e para a constituição de uma identidade plena. Contudo, afirmar de onde parte cada um desses valores – se da cultura ocidental ou árabe, seria perigoso, na medida em que poderia se caracterizar como uma maneira de fossilizar cada tradição e prática. Só tento dizer que, dentre as muitas negociações entre idéias diversas, cheguei à conclusão de que não queria seguir com a tradição de casamento de meus pais.

“Tem o papel da mulher árabe no casamento de sempre cuidar do marido, sempre provendo ele, cuidando da casa... Não vou dizer subserviente, mas assim, é obrigação dela e isso eu já não gosto tanto. Eu gosto mais da interação assim do papel dos dois. E dentro do casamento árabe não acontece muito isso. Próprio do machismo árabe, da cultura, não da religião. Nesse

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sentido, já realmente cogitei a possibilidade de me casar com um brasileiro filho de árabes, por que eu acho assim muito importante a cultura. E muçulmano sempre. A mulher não vai poder dar ordem ao marido, a palavra final seria dele, mas aí é que tá: tem que haver esse equilíbrio entre o homem e a mulher em estar pensando, em estar decidindo, do homem não ser egoísta de tomar a decisão baseando somente no ponto de vista dele. Tem que haver uma harmonia. É complicado isso, porque a mulher tem que obedecer ao marido, mas não é assim, dessa forma cega, tem todo um pressuposto pra mulher obedecer ao marido, ele também tem que acatar as opiniões dela”.(Leila)

No que diz respeito à relação entre marido e mulher no casamento, Leila

reconhece que, em regra, a mulher deve obedecer ao marido, entretanto, ressalta que deve haver uma interação de respeito e aceitação mútuos. O que ela espera é uma relação de complementaridade entre ambos e acha que isso, provavelmente, será encontrado com um marido árabe/brasileiro. Para ela, um árabe socializado dentro da cultura oriental poderia ser muito machista para os seus parâmetros, já um brasileiro convertido não traria os elementos da cultura considerados tão importantes.

Criando a categoria árabe-brasileiro, Leila parece mostrar que o que busca não é o representante da cultura daqui nem, tampouco, da cultura de lá. Nesse sentido, seu sentimento identitário e suas lembranças parecem se criar por meio da interação, substituição e negociação de elementos de ambas as culturas.

Considerações finais

Sylvia Yanagisako (1985), ao estudar as mudanças ocorridas nas relações de parentesco e nas práticas de casamento entre duas gerações de imigrantes japonesas nos Estados Unidos, afirma que eles se configuram como americanos-japoneses e que concebem suas relações de parentesco em termos de uma oposição simbólica entre japonês e americano, formulando a partir daí, uma síntese dos dois.

No caso das imigrantes e descendentes árabes, acredito que essa noção poderia somente ser utilizada em relação às descendentes. As imigrantes árabes criam a oposição simbólica, referida acima, entre a cultura árabe e a cultura brasileira, contudo, essa oposição não é feita para se criar uma síntese das duas, mas para mostrar que elas são diferentes das brasileiras e, nesse sentido, o que elas buscam é reforçar os próprios elementos da cultura de origem. Quando perguntei se percebiam mudanças em seus comportamentos, disseram que não, que seus valores continuavam exatamente como eram antes. Na sociedade brasileira, se vêem enquanto árabes, antes de tudo, e, nesse contexto, reforçam a importância do casamento e de sua manutenção; do papel da mulher como mãe, dona de casa e boa esposa e do interesse de que seus filhos dêem continuidade a tradição se casando com árabes.

No que diz respeito às descendentes, acredito que se configuram como árabes-brasileiras. Contudo, discordo quando a autora adota a palavra síntese para designar a relação estabelecida entre as duas culturas. O que há não é uma junção, mas uma negociação de valores, idéias e sentimentos que dependem da memória familiar e cultural mantida e reforçada ao longo do processo de socialização e dos interesses presentes no momento de escolha dos elementos. É interessante notar que não se reconhecem enquanto árabes, tampouco como brasileiras, estão envoltas por ambos os valores, construindo quase que uma terceira forma de pensar, sentir e se comportar.

Como havia dito no início, esse trabalho é o primeiro esforço de pensar como mulheres árabes-muçulmanas constroem sua identidade num país ocidental. Essa

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primeira abordagem, tratando de práticas de casamento, já nos mostra a complexidade e amplitude de tal relação. Ela nos mostra, ainda, que a memória é o fio condutor principal capaz de desvendar as possíveis transformações ocorridas entre as culturas. NOTAS

i Tema de minha Dissertação de Mestrado que será defendida entre 2006/2007. 2 Embora o objetivo inicial tenha sido o de analisar as concepções das práticas de casamento de quatro gerações, optou-se, neste ensaio, por abordar de forma mais precisa as gerações das imigrantes e descendentes devido a dificuldade de se conseguir informações das entrevistadas a respeito das gerações anteriores. 3 Nomes fictícios. BIBLIOGRAFIA BOURDIEU, P. - 1974. A Economia das Trocas Simbólicas. Editora Perspectiva, São

Paulo. CONNERTON, P. - 1999. Como as Sociedades Recordam. Celta Editora, Oeiras.

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“Como Viver Bem”: Políticas de Identidade e Noções da Cidadã Ideal em uma Organização Brasileira de Lésbicas

Tomi Castle, Doutoranda em Antropologia pela University of Iowa, Department of Anthropology

[email protected]

Resumo:

Recentemente, investigações antropológicas de cidadania têm se focalizado em tipos de

cidadãos que não integram quaisquer dos lados da divisão tradicional entre cidadania

liberal e cidadania republicana. Neste trabalho, investigo um curso de cidadania

oferecido por uma organização de lésbicas em Campinas, Brasil, e proponho que a luta

pela cidadania ultrapassa uma luta por direitos e/ou a luta pelo reconhecimento legal,

mas, ao contrário, se concentra na inclusão total na vida pública. Ao examinar as idéias

da cidadania lésbica que foram elaboradas no curso, sugiro que essas mulheres estão

capitulando às concepções culturais hegemônicas e, concomitantemente, re-escrevendo

essas mesmas concepções pelo fato de rejeitarem o papel do “outro” marginalizado na

sociedade brasileira.

Abstract:

Recent anthropological investigations of citizenship have tended to focus on varieties of

citizens that do not fit neatly into either side of the traditional divide between liberal and

republican citizenships. In this paper, I examine a citizenship course recently offered by

a lesbian rights organization in Campinas, Brazil. I suggest that the fight for full

citizenship goes beyond a struggle for rights and/or for legal recognition and, instead,

concentrates on full inclusion in public life. By examining the notions of lesbian

citizenship elaborated during the course, I argue that these women are both capitulating

to hegemonic cultural conceptions of propriety and, simultaneously, rewriting those

conceptions through their refusal of the role of marginalized other in Brazilian society.

Palavras-chaves: cidadania, lésbicas, movimento social, identidade, Brasil

Key Words: citizenship, lesbians, social movements, identity politics, Brazil

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Recentemente, investigações antropológicas de cidadania têm se focalizado em

tipos de cidadãos que não integram quaisquer dos lados da divisão tradicional entre

cidadania liberal e cidadania republicana. De fato, novas variedades de cidadãos em

todo o mundo estão exigindo inclusão de uma maneira que combina um focus no status

legal com um ênfase na prática e, ao mesmo tempo, rechaça entendimentos fáceis da

cidadania como algo conferido primariamente, se não exclusivamente, ius sanguinis ou

ius soli. Tais cidadãos incluem os ‘cidadãos flexíveis’ de Ong (1999) e os

‘nacionalistas à larga distância’ ou ‘cidadãos trans-border’ de Schiller (2002), enquanto

outros encaixam mais precisamente no conceito de ‘extranha’ (Bauman 1991; Phelan

2001).

Ao examinar um curso de cidadania lésbica realizado pela organização lésbica

Mo.Le.Ca. (Movimento Lésbico de Campinas) em Campinas, Brasil em 2004,

argumento que as demandas pela cidadania ultrapassam as demandas pelos direitos civis

e/ou reconhecimento legal. Embora o discurso sobre direitos tenha permeado muitas

discussões de cidadania no grupo, as demandas pela cidadania que discuto aqui tratam

da inclusão total e participativa na vida pública e não só de acesso a direitos específicos.

Pelo contrário, o focus em ganhar direitos um por um, advogado por várias organizações

GLBT nos Estados Unidos e no Brasil, se torna inútil diante de demandas pela

cidadania total. Também afirmo que atores sociais que demandam cidadania total

podem, simultaneamente, cobrarem de sí mesmos um papel, uma postura de ‘cidadãos

ideais’ negando, dessa forma, pelo menos teoricamente falando, possibilidade de

exclusão. Ao examinar as definições da ‘cidadã ideal’ desenvolvidas durante o curso de

Mo.Le.Ca., sugiro que, ao mesmo tempo, essas mulheres estão utilizando concepções

culturais de adequação e re-escrevendo essas mesmas concepções na recusa do papel de

‘outro’ marginalizado (Lister 2003:74) ou, talvez, de ‘extranha’ (Phelan 2001) na

sociedade brasileira.

Recorro aos conceitos de cidadania mais utilizados na literatura acadêmica

contemporânia, e me detenho especialmente nos modelos mais útis no caso de

Campinas. Em seguida, examino o curso de cidadania recentemente desenvolvido pelo

Mo.Le.Ca. que teve como intenção ‘capacitar’ as mulheres para poder demandar

participação como cidadãs do Brasil. Ao examinar o conteúdo do curso e as respostas

das participantes, pondero noções de cidadania que não encaixam facilmente nos

modelos correntes de cidadania. Finalmente, sugiro que ao focalizar a cidadania lésbica

como uma chave para erradicar a discriminação Estadual e como um conceito que inclui

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vários direitos e responsabilidades—tanto do Estado quanto da cidadã—as mulheres de

Mo.Le.Ca. estão empenhando uma forma de ativismo social que, ao mesmo tempo,

rejeita as idéias dominantes de quem poderia e deviria participar no fórum público e

utiliza tais noções. Embora pareça contraditório, essa estratégia inverte noções

tradicionais de cidadania, virando a extensão de cidadania um resulto lógico.

Cidadania(s)

Recentemente, Shane Phelan (2001) tem reconsiderado dois modelos distintos

de cidadania que tem dominado o discurso público e acadêmico por muito tempo: o

modelo ‘liberal’ e o modelo ‘republicano,’ dois modelos que, nas versões mais antigas,

têm sua origem na Grécia Antiga. De forma mais ampla, o modelo liberal considera o

cidadão em termos de um status legal, conferido através de caminhos legais, que leva

um conjunto de direitos e responsibilidades. A definição de cidadania do modelo

republicano, em contraste, se focaliza em ‘prática’ ou seja, um cidadão é alguém que

participa em governar e em ser governado. Além disso, participação nessa visão não é

limitada só pelo indivíduo, que escolhe se e quando atuar, mas depende da aprovação de

outros. Assim, ‘a tradição republicana tem providenciado visões fortes de participação

ligadas diretamente a exclusões fortes das pessoas vistas como inadequadas’ (Phelan

2001:13). Embora hoje esses modelos são utilizados sem modificações muito

infrequentemente, estes ainda servem de base para começar a desenvolver ‘novos’

modelos (e.g. Stewart 1995) ou para repensar questões de cidadania (e.g. Lister 2003).

Outro jeito popular de conceitualizar a cidadania, que provavelmente tem visto

tantas variações quanto a cidadania liberal e republicana, é o modelo “martial” de

cidadania. Esse modelo localiza o serviço militar, atual o potencial, como requisito do

status de cidadão e, frequentemente, trata cidadania como um prêmio para o serviço

(Elshtain 1987). O cidadão/soldado ideal tem a espectativa de se sacrificar, se for

preciso, na defesa do Estado e, em retorno, pode esperar todos os benefícios da

cidadania. Esse conceito de “direitos iguais” para “responsabilidades iguais” (Kerber

1990:90) não é o mais conhecido e tampouco o mais comum, porém ainda utilizado.

Como D´Amico (2000) explica no seu estudo de noções “martial” de cidadania

nos Estados Unidos contemporâneo, o modelo “martial,” com sua promessa de conferir

benefícios ao soldado como um prêmio, tem sido utilizado como uma maneira de

conseguir mobilidade social, especialmente nas populações mais desesperadas. Mas,

depender do modelo “martial” como uma maneira de mudar relações sociais injustas é,

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no melhor caso, complicado. Como ela explica, “exatamente como as sufragistas

acharam o voto inadequado para conseguir uma transformação nas hierarquias de

gênero, famílias de classe trabalhadora, Afro-Americanos, mulheres, e minoridades

sexuais, estão achando, também, acesso a instituição militar” (D´Amico 2000:117).

Concepções “martial” de cidadania são perigosas, então, não só pela exclusão de

homens vistos como “inadequados” pelo serviço, mais também, e mais frequentemente,

pela exclusão de mulheres e minoridades sexuais.

A filosofa feminista Marth Nussbaum recentemente elaborou uma visão de

cidadania, sem especificar o papel de cidadão, em que atores racionais lutam para mudar

seu status de excluído. A descrição dela parece, inicialmente, ser uma versão

modificada do modelo liberal de cidadania e se focaliza em acessar privilégios e direitos

através de caminhos legais. Pelo mesmo modo, Nussbaum se concentra menos na

cidadania em sí, e mais no uso de “razão” em combater discriminação. Em argumentar

que mulheres deveriam aceitar uma versão de liberalismo de Kant nas lutas pela

igualdade, melhor demostrada na opinião dela nos trabalhos de Catherine MacKinnon e

John Rawls, sugere que “[m]ulheres têm muitos motivos para desconfiar da maioria dos

hábitos das pessoas através dos séculos...[e então] mulheres especialmente precisam da

`razão´” (1999:79). Aqui Nussbaum presume que a “razão” é o suficiente para

combater prejuízo e sexismo, nenhum dos quais é o resultado da racionalidade.

Enquanto a posição de Nussbaum é admiravelmente otimista—que argumentação

racional poderia conseguir justiça—parece pouco aplicável na vida real.

Modelos de cidadania elaborados mais recentemente para lidar com questões

não facilmente encaixadas nos modelos citados têm a tendência de lidar com questões

de cidadania escolhida, cidadania múltipla—e sobretudo cidadania através de fronteiras,

e de fato exclusão a acesso de cidadania, apesar de inclusão legal. Aihwa Ong (1999),

por exemplo, captura o caráter escolhido e transnacional de algumas formas de

cidadania contemporânea no modelo de “cidadania flexível.” Cidadãos flexíveis

trabalham apesar das fronteiras nacionais e com fronteiras nacionais, conforme servem

suas necessidades e interesses, sendo essa uma sutileza que não encaixa bem em

modelos tradicionais. As “nacionais a larga distância” de Nina Glick Schiller´s (2001)

também questionam fronteiras, e o conceito dela de “trans-border citizens” leva em

conta “a participação política e a reivindicação de direitos e privilégios num Estado por

pessoas que não são cidadãos legais do Estado” (2001:362). Embora os modelos

elaborados por Ong e Schiller constituam em uma avanço em modelos anteriores que

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eram incapazes de ajustar e entender às exigences de cidadania globalizada, nenhum dos

dois modelos é apropriado para considerar a posição de pessoas GLBT-identificadas, no

Brasil, tanto quanto em outros lugares.

Outro jeito corrente de conceitualizar a cidadania se concentra menos em

elaborar modelos de que a cidadania é ou deveria ser e mais em impedimentos à

cidadania na prática e, especificamente, na violência urbana. Holston e Appadurai, por

exemplo, focalizam sua introdução a uma coleção recente, que examina o papel de

cidades vis-à-vis cidadania, na violência. Argumentam que “pessoas usam violência

para elaborar demandas da cidade e usam a cidade para elaborar demandas violentas”

(1999:16). Na mesma linha, Teresa Caldeira, no seu excelente trabalho sobre

segregação e cidadania em São Paulo (2000), argumenta pela inseparabilidade de

violência, crime, e encontros nos espaços públicos. Aqui, embora cidades são

conceitualizadas como espaços que podem permitir mais variação de cidadania, também

são entendidas como espaços que podem responder com mais violência a demandas pela

inclusão.

Um modelo final de cidadania que é particularmente importante para teorizar a

posição em que pessoas GLBT frequentemente se encontram é a utilização de Shane

Phelan (2001) do conceito de Bauman (1991) de “a estranha.” Esse modelo se focaliza

dentro de fronteiras nacionais e em pessoas que são, tecnicamente, cidadãos legais. Ao

demonstrar que cidadania tem relação com “o reconhecimento que...se deveria ser

reconhecido” (2001:14), Phelan propõe que gays e lésbicas nos Estados Unidos são

“estranhos”—nem parte de “nós” nem parte de “outros,” nem “amigos,” nem

“inimigos.” Mais propriamente, a “estranha” é numa posição liminal, que cause mais

ansiedade (op. cit.:5). Phelan sugere que “a distância da estranha de inclusão cultural a

faz vítima continua de exclusão...[e] violência” (ibid.). Em outras palavras, a análise de

Phelan chama atenção à separação atual entre cidadania de jure e de fato nas vidas de

muitos Americanos.

É esse modelo que mais pode ser aplicado ao curso de cidadania das lésbicas

brasileiras que trato aqui. Ao tratar a questão de pessoas que, por sangue, nascimento,

ou naturalização, encaixam nos requisitos de cidadania, mas que por vários motivos não

têm acesso à essa cidadania, a analise de Phelan preenche a lacuna deixada por outros

acadêmicos. Como coloco aqui, o modelo de Phelan providencia um modo interessante

e realisticamente útil para começar a pensar sobre cidadania lésbica no Brasil.

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O Primeiro Curso de Cidadania Lésbica

O primeiro curso de cidadania lésbida de Mo.Le.Ca. durou 10 semanas, entre o

dia 13 de março 2004 até o dia 29 de maio de 2004, e as participantes se reuniram todos

dos sábados (menos feriados) por 3 horas para participarem de palestras ministradas por

pessoas com experiência acadêmica e/ou profissional sobre assuntos distintos com o

auxílio de leitura de textos previamente selecionados. A suposição extremamente

idealista atrás do curso se pautava na ânsia de que atores socias “capacitados” poderiam

derrubar sistemas opressivos com o seu conhecimento. Vale pontuar que a atmosfera

das reuniões do curso não era composta por mulheres sem poderes buscando adquirir

meios de obter um status de cidadã geralmente negado. Ao contrário, o curso se tratava

de providenciar para as mulheres a capacidade—o conhecimento—de serem atores

sociais empenhados. Que esses atores novamente capacitados intelectualmente

poderiam acessar uma inclusão total na vida pública, sendo isso o que as participantes

entendiam por “cidadania,” era a conclusão pre-determinada do curso.

E é aqui que a sugestão de Martha Nussbaum, que mulheres e, por extensão,

outros grupos marginalizados, têm mais a ganhar por confiar em “razão,” ao contrário

de tentar mudar hábitos, parece encaixar (1999). As participantes no curso de cidadania

de Mo.Le.Ca. não estavam preocupadas principalmente em mudar as idéias da

população ou em iniciar debates públicos sobre problemas de preconceito ou

homofobia, embora o grupo sim lide com esses problemas em outras atividades. No

lugar desse focus, as participantes procuravam se capacitar para trabalhar dentro do

sistema legal brasileiro, não em montar um desafio às regras do sistema, mas em

aprender jogar com tais regras tão bem que não poderiam mais ser excluídas. Em

contraste aos atores sociais de Nussbaum, as mulheres de Mo.Le.Ca. se concentraram

em ganhar acesso a cidadania, e não em gahnar direitos específicos.

O conceito de cidadania promulgado durante o curso não girava em torno de

direitos, porém o discurso de direitos esteve presente. Os direitos principais discutidos

em conjunção com cidadania no curso foram: casamento/união civil, herança, adoção,

guarda de crianças, e a inclusão de companheiras em planos de saúde. Embora esses

direitos e outros direitos não disfrutados por participantes do curso e, por extensão, por

outras lésbicas brasileiras, providenciaram uma parte da motivação do curso, estes não

constituiram o motivo principal. De fato, participantes atribuiram sua incapacidade de

acessar esses direitos inteiramente à falta de acesso a cidadania total. Como demostram

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as leituras do curso, participantes de Mo.Le.Ca. não estavam simplesmente procurando

ganhar direitos específicos; o focus era sobre o que significava ser uma “cidadã” no

Brasil, historicamente e contemporaneamente, como se poderia teorizar gênero e

sexualidade lésbica, e, o mais importante, como se poderia unir os dois—em outras

palavras, como virar uma “cidadã lésbica.”

Na procura do papel de “cidadã lésbica ideal,” participantes sempre lembravam

da sua posição liminal na sociedade brasileira. Ou seja, definiam e entendiam que eram

legalmente cidadãs brasileiras, mas diariamente impedidas de acessar esse papel—na

posição de “estranha” definida por Phelan (2001)—era o problema principal a ser

resolvido no curso. Para começar um processo de abandono dessa posição liminal de

“estranha” e acessar participação total na vida pública, as participantes leram vários

textos, procurando entendimentos contemporâneos, tanto quanto históricos, de cidadania

no Brasil.

Leituras para cada semana eram dirigidas a tópicos específicos julgados

importantes para formulações de cidadania lésbica incluindo as seguintes temáticas:

Constituções Brasileiras, Mulheres na Sociedade Brasileira, Homossexualidade e

Legislação Brasileira, Movimentos Sociais: Cidadania e Direitos, e, por último,

Cidadania da Mulher Lésbica. Embora muitos dos autores lidos no curso fossem

brasileiros, vários textos escritos por estrangeiros eram incluidos: por exemplo, por

Peter Fry e por Michel Foucault. Outros autores discutidos, mais não lidos diretamente,

incluiam as feministas Simone de Beauvoir, Luce Irigaray, Monique Wittig, e Judith

Butler, tanto quanto os antropólogos Margaret Mead e Gilbert Herdt. Muitos dos textos

continham idéias distintas, e as vezes, contraditórias, gerando mais espaço para debater

o que poderia significar ser uma “cidadã lésbica.” Nem todos os textos utilizados eram

pro-lésbicas; o primeiro artigo na apostila do curso foi uma discussão caústica

entitulado “Diga Não ao Casamento Gay.” O que as mulheres ganharam ao discutir

essas matérias não foi somente um arsenal de conceitos teóricos, nem simplesmente

familiaridade com o “inimigo.” Mas precisamente, cada artigo foi examinado para

entender a relevância das idéias para cultivar uma identidade como cidadã, mulher,

lésbica, e Brasileira. Ao final, as participantes utilizaram as idéias baseado na sua

utilidade para o projeto de criar uma cidadania viável no Brasil.

Em ponto de fato, idéias foram criticadas mais frequentemente, não no mérito

intelectual, mas no que poderiam significar para a luta por cidadania total. Por exemplo,

embora reticente a aceitar um ponto de vista biologizante vis-a-vis sexualidade,

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participantes eram igualmente duvidosas ao respeito de um ponto de vista

construtivista-social. Algumas questões foram ressaltadas nas discussões do grupo,

entre elas a idéia que, se argumentos para a construção social de sexualidade fossem

aceitos e a “naturalidade” de sexualidade lésbica fosse questionada, tais posições

poderiam debilitar a viabilidade de demandas por cidadania por fazer com que as

lésbicas pareçam ter escolhido o papel de ‘desviantes’. Da mesma forma, idéias

biologizantes eram repudiadas. Letícia colocou a questão assim: “têm muitas pessoas

que têm respostas biologizantes [para questões de sexualidade]...mas acho que são um

problema, porque poderia começar falar da seleção natural e vai acabar falando em

coisas bastante féias...como com Hitler...mas a gente sabe que não existe um tipo de

humano melhor.”

A visão de sexualidade e, específicamente de lesbianismo, promovida não só no

curso, mas também nas outras atividades de Mo.Le.Ca., é um exemplo perfeito do que

Spivak (1995) chamou “essencialismo estratégico.” Como Bucholtz e Hall explicam,

“essencialismo estratégico” se consta em “geralizações temporárias que frequentemente

são necessárias no estabelecimento de instituções sociopolíticos como campos de

pesquisa e movimentos políticos” (2004:477). Embora relutante a aceitar a idéia que

todas as lésbicas são intrinsicamente parecidas ou que todas sofrem precisamente o

mesmo tipo de discriminação, participantes no curso frequentemente contextualizaram

seu projeto de cidadania como uma batalha numa guerra internacional para igualdade e

se referiram a exemplos como a revolta de Stonewall em 1969 como uma inspiração.

Ao contrário de abordar profundamente questões de sexualidade ou identidade

sexual, participantes escolheram se concentrar em como a “cidadã” foi compreendida no

Brasil e como poderiam aprender a exercer esse papel. O resultado esperado era que as

participantes saíssem do curso não só com conhecimento detalhado das oito

constituções brasileiras e as idéias de cidadania encapsuladas em cada ou com maior

entendimento de teórias “da moda,” mas também com a crença (se já não possuiram, e

algumas com certeza não) que estavam lutando por uma coisa que era delas por

direito—que não estavam pedindo privilégios especiais. Mais importante ainda,

participantes aprenderam que cidadania, além de ser delas por direito, era acessível

somente se se preparassem completamente. O curso de cidadania buscou providenciar o

primeiro passo imprescindível nessa preparação.

Gostaria agora de sugerir que, além de intervir não somente no nível pessoal ou

só no nivel Estadual para tentar mudar sua situação, as mulheres de Mo.Le.Ca., em vez

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de internalizar e utilizar concepções de propriedade, estão re-escrevendo esses

concepções e recusando o papel de outro marginalizado—ou, de “estranha.” Tal

descrição lembra da contenção de Lister que cidadania “se opera simultaneamente como

mecanismo de inclusão e exclusão e também com idioma de ambos disciplina e

resistência” (2003:4-5). Embora seja verdade que as participantes no curso de cidadania

fizeram pouco para desestabilizar cidadania como um lugar principal de exclusão ou

inclusão no Brasil, é iqualmente verdade que, em tomar cidadania como algo

verdadeiramente delas, essas mulheres estão recusando a permanecer “estranhas” e

estão exigindo a ser tratadas com a mesma dignidade e respeito que outros brasileiros.

De fato, estão tomando o papel de cidadã, um papel tradicionalmente negado para elas,

como uma forma de enfrentamento a essas mesmas exclusões.

Conclusão

Tenho tentando esboçar os aspectos mais importantes de um curso pioneiro de

cidadania promovido recentemente por um grupo de ativistas lésbicas no interior de

estado de São Paulo. Tão projeto indica uma forma nova de ativismo social—em que

atores individuais tentam ganhar inclusão na vida pública por virar “cidadãos ideais.”

Mais adiante, as noções de cidadania promovidas durante o curso são progressivas e

conservadores—obrigando resistência tanto quanto capitulação. A “cidadã ideal”

elaborada nesse curso assumiria então o papel através do esforço concentrado em

dominar os entendimentos de cidadania operando no Brasil contemporâneo. Porém,

virar uma cidadã ideal não simplesmente inclui capitulação, mas em contrapartida

disputa idéias dominantes sobre quem pode e deveria participar no forum público. Se as

participantes de. Mo.Le.Ca. têm razão, cidadães lésbicas capacitadas poderão frustrar

qualquer tentativa de excluílas da vida pública por virarem a sempre-incluída “cidadã

ideal.”

O que é, talvez, mais interessante sobre o tipo de cidadania que está sendo

elaborado aqui é a impossibilidade de compreende-lo através dos modelos acadêmicos

mais conhecidos. As noções de cidadania promovidas aqui, e a posição das mulheres de

Mo.Le.Ca., não encaixam facilmente com a maioria de entendimentos de cidadania. De

fato, o modelo que utilizei aqui, o modelo da “estranha” de Phelan (2001), é um dos

poucos modelos que procura entender a divisão atual entre cidadania de jure e de facto.

Embora Phelan tenha desenvolvido o modelo para teorizar a posição precária de gays e

lésbicas nos Estados Unidos, este se ajusta com o curso de Mo.Le.Ca.. As participantes

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entendiam que não eram precisamente “incluídas,” claro, mas ao mesmo tempo

reconheceram que não viviam em uma posição de “inimigas” também não.

A importância desse trabalho então, não está somente relacionada a análise, mas

também, e até mais prioritariamente, ao fato de privilegiar as experiências vividas de

mulheres individuais tentando resolver questões de cidadania. Longe de serem vítimas

passivas de exclusão estadual, as mulheres tratadas aqui assumem responsibilidade para

mudar sua posição e o fazem sem desculpar o Estado. Esse projeto também vislumbra

providênciar um exemplo de essencialismo estratégico em ação. Participantes de

Mo.Le.Ca. não são crentes ingênuas em uma idéia de “irmandade” universal entre

lésbicas; mas, têm julgado, provavelmente corretamente, que tem pouco a ganhar pelo

projeto de cidadania em entrar em debates sofisticados sobre a sexualidade lésbica.

A procura por cidadania participatória e total de Mo.Le.Ca. pode não achar

sucesso. Provavalmente, vai requerer mais tempo e esforço, tanto quanto um pouco de

sorte. Mas as lições desenvolvidas durante o curso não serão esquecidas pelas

participantes tão cedo. Quando pedí que Ana explicasse o que se aprende em um curso

de cidadania, ela respondeu, importantemente, não com alguma teória específica, nem

com algum dado e tampouco com um esboço de como seria uma cidadã lésbica incluída,

mas de forma simples e profunda com “como viver bem.”

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AUTOR/A: Virna Virgínia Plastino INSTITUIÇÃO: Museu Nacional - UFRJ E-MAIL: [email protected] TÍTULO: Dança com hora marcada: geração e gênero nos bailes de dança de salão. RESUMO: Nesta comunicação pretendo discutir como as formas contemporâneas de masculinidade e feminilidade são elaboradas, por meio da dança de salão, em “gafieiras” localizadas no centro da cidade do Rio de Janeiro, as quais são freqüentadas, majoritariamente, por homens e mulheres com mais de 60 anos de idade. O interesse primordial é analisar as representações masculinas e femininas nesses espaços de relações e refletir sobre o caráter polissêmico da idéia de tradição associada ao contexto em estudo, no qual os freqüentadores expressam um certo apego à vida em um embate contra o tempo, contra o envelhecimento. Os homens freqüentadores antigos dos bailes aludem a um “tempo áureo” da gafieira onde o “romantismo” estava presente no modo como abordavam ou conduziam as “damas nos salões”. Já as mulheres concebem o “jeito tradicional” de dançar como fonte de monotonia e de repetição, principalmente quando contrastado a um “elemento” transformador: uma outra performance inserida nos salões por jovens dançarinos, negros, moradores da periferia que são contratados, nas academias localizadas em bairros nobres da cidade, para acompanhá-las nos bailes. Nesse movimento de viver, a exaltação da “idade de ouro” coexiste com reformulações no sistema classificatório nativo, onde categorias como gênero, classe, etnia e geração se transformam continuamente, mesclando-se em uma natureza diversa própria daqueles que dançam.

Page 252: RAM 2005 - Caderno De Textos - Grupo de Trabalho: “Família, Gênero e Sexualidades: perspectivas contemporâneas em debate”