Upload
raphael-scholl
View
180
Download
1
Embed Size (px)
Citation preview
TRABALHO APRESENTADO NO V CIPA - CONGRESSO INTERNACIONAL DE
PESQUISA (AUTO)BIOGRÁFICA.
PORTO ALEGRE/RS, 16 à 19 de outubro de 2012.
Como citar este documento: SCHOLL, Raphael Castanheira. Um autorretrato biográfico:
imagens da formação artística de Hilda Mattos. In: V CIPA - Congresso Internacional de pesquisa
(auto)biográfica, 2012, Porto Alegre. Anais do V CIPA - Congresso Internacional de pesquisa
(auto)biográfica. São Leopoldo: Casa Leiria, 2012. p. 1-19. ISSN 2178-0676
UM AUTORRETRATO BIOGRÁFICO: IMAGENS DA FORMAÇÃO ARTÍSTICA
DE HILDA MATTOS
VI. Linguagens, narrativas autobiográficas e interculturalidade (Artes, literatura, imagens)
Raphael Scholl, Mestre em Educação (PUC-RS), Doutorando em Educação (PUC-RS).
RESUMO:O presente estudo tem por objetivo apresentar, a partir de uma entrevista semi-
estruturada, fragmentos da trajetória artística da desenhista e pintora gaúcha Hilda Mattos.
Utilizou-se o conceito de portrait biográfico para compor, a partir das memórias da artista,
um quadro (auto)biográfico acerca de sua formação escolar e artística, bem como de sua
posterior trajetória profissional dentro do cenário das artes plásticas no Rio Grande do Sul.
Palavras-chave: História da educação, formação artística, narrativa (auto)biográfica.
1. PRIMEIROS TRAÇOS
“...Eu não dei por esta mudança,
tão simples, tão certa, tão fácil:
Em que espelho ficou perdida a minha face?"
(Cecilia Meireles, Retrato. In: Viagem,1939).
Ao esboçar as primeiras linhas deste trabalho, como um pintor em seu métier, busquei
por um tema, um motivo central para compor este “quadro”, que há muito vinha desejando
preencher de cores e de matizes, dando forma ao que, simplesmente, antes me parecia uma
ideia pálida e de contornos muito tênues. Utilizo esta linguagem figurativa, tomada de
empréstimo dos artistas, desenhistas e pintores em suas funções, por acreditar possível o ato
de escrever, embasado em teoria e método, de forma estética e sensível, escolhendo as
tonalidades mais certas e cuidando os traços com que o texto se desenha, sobretudo quando
este se propõe tratar de uma temática relacionadas a imagem, memória, narrativa e, em
especial, da trajetória de formação de uma artista plástica.
Conquanto, não objetivei, neste texto, uma reconstituição biográfica de Hilda Mattos,
mas um recorte de um tema em especial – sua formação e trajetória artística, me aproximando,
desta maneira, da perspectiva de uma história de vida focada. Ainda, neste primeiro
momento, devo esclarecer que este estudo, tal qual um esboço onde o desenhista aperfeiçoa os
seus traços, não pretende mais que trazer fragmentos da história de vida de uma artista, que,
em sua própria trajetória de formação, fez parte de um quadro maior, como quando tratamos
da fundação da Escola de Belas Artes de Pelotas, no ano de 1949, por conseguinte, da
constituição da primeira turma de alunos do estabelecimento.
Esta instituição nasceu dos esforços contínuos de uma eminente figura da sociedade
pelotense do século XX, a professora Marina de Moraes Pires1. “Dona” Marina, como era
conhecida, sonhou e idealizou uma instituição que fornecesse uma formação artística sólida,
através de cursos de desenho, pintura e escultura, dentro de uma perspectiva de educação
artística de caráter acadêmico, aos moldes da Escola Nacional de Belas Artes, no âmbito da
cidade de Pelotas, em meados da década de 1940. A instituição foi fundada em março de
1949, inicialmente com a denominação de Curso Preparatório para a Escola de Belas Artes,
após anos de luta incessante de “Dona” Marina, que, juntamente com amigos e membros da
sociedade pelotense, foram incansáveis na criação da escola, ainda que, com a escola
estabelecida e reconhecida oficialmente, as batalhas tenham continuado durante duas décadas,
principalmente para a aquisição de um prédio que sediasse a instituição e na manutenção de
verbas para a escola (MAGALHÃES, 2008).
Nascida na cidade de Pelotas, em 21 de abril de 1928, Hilda Barbosa de Mattos
iniciou seus estudos de desenho e pintura ainda na adolescência, quando era aluna da Escola
Complementar de Pelotas, posteriormernte Instituto de Educação Assis Brasil. Em 1947, foi
1 Marina de Moraes Pires nasceu em 28 de setembro de 1896, na cidade de Pelotas, RS. Estudou desenho e
pintura com Frederico Trebbi (1837-1928), artista italiano radicado em Pelotas, onde exerceu por mais de
cinquenta anos as funções de pintor e professor de várias gerações de alunos, entre estes, destacando-se o pintor
pelotense Leopoldo Gotuzzo (BOHNS, 2005, p. 58). Diplomada em Desenho e tendo reconhecido o seu registro
oficial que lhe habilitava para ser professora do segundo ciclo, foi contratada pela Secretaria de Educação do Rio
Grande do Sul, em 1940, como professora de desenho na Escola Complementar de Pelotas, posteriormente
Instituto de Educação Assis Brasil. Quando da fundação da Escola de Belas Artes de Pelotas, Marina de Moraes
Pires ocupou, além das funções docentes, o cargo de diretora da instituição entre março de 1949 e julho de 1973.
Faleceu em Pelotas, no dia 4 de janeiro de 1983.
aluna particular do pintor carioca José Moraes (1921-2003), este formado pela Escola
Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro, que, por ocasião de um prêmio conquistado no
50º Salão Nacional de Belas Artes, viajou ao sul do país em missão de estudos, residindo
temporariamente nas cidades de Pelotas e Bagé, onde lecionou. No ano de 1949, ingressou na
então recém criada Escola de Belas Artes de Pelotas, fazendo parte da primeira turma de
alunos formados pela instituição. Através das memórias da artista plástica Hilda Mattos,
buscou-se não somente delinear um portrait biográfico, mas, também, elucidar alguns pontos
acerca da formação acadêmica propiciada pela Escola de Belas Artes de Pelotas - importante
instituição de ensino no campo das artes plásticas desde sua fundação - e das experiências de
formação vivenciadas no ambiente artístico do Rio Grande do Sul nas décadas de 1940 e
1950.
2. O ENQUADRAMENTO DO MÉTODO
Para este estudo utilizamos o método do portrait (LAWRENCE-
LIGHTFOOT;HOFFMANN DAVIS,1997; CASTRO, 2010), inserindo-se na perspectiva do
gênero de retrato biográfico, que, para além da visão tradicional estabelecida e do viés
totalizante das grandes biografias de caráter heróico, se tem no portrait uma espécie de
exercício subjetivo de ver a vida do retratado como obra de arte. Dito de outro modo, busca-
se apreender através do discurso sobre si as marcas de formação, as práticas e os sentidos que
são atribuídos pelo sujeito a si e aos outros no decorrer de sua trajetória (FOUCAULT, 1995).
Para Castro (2010), a construção do portrait visa atingir um “todo estético”, a partir
das informações e das interpretações obtidas através da voz narrativa, seja possível uma
expressão textual “expressa em metáforas, símbolos, atingindo uma totalidade mais ampla
que a compreensão racional da realidade estudada, mas também suas cores e nuances” (p.
159).
Tomou-se a ideia de retrato biográfico, a partir da existência de um próprio
autorretrato da artista, realizado durante sua formação como aluna da Escola de Belas Artes
de Pelotas, sob a supervisão do pintor e muralista italiano Aldo Locatelli2. Locatelli, desde o
2 Aldo Daniele Locatelli nasceu em Villa d'Almè, Itália, em 18 de agosto de 1915. Diplomado em Pintura, em
1935, pela Accademia Carrara, recebeu bolsa de estudos, em 1937, para frequentar a Escola de Belas Artes de
ano de 1948, trabalhava nas pinturas da Catedral São Francisco de Paula, e, à convite da
professora Marina de Moraes Pires, primeira diretora da instituição, foi um dos fundadores da
escola e professor de pintura, no ano de 1949.
Esboçou-se, neste estudo, a possibilidade da imagem pictórica servir como um
paradigma estético para a criação do texto biográfico, bem como trazer ao texto, o próprio
autorretrato e de fazer deste, um objeto de memória para a narrativa da artista. A partir do
relato de Hilda Mattos, tomou-se conhecimento acerca de uma prática de formação do curso
da Escola de Belas Artes de Pelotas: o exercício de autorretrato, proposto por Aldo Locatelli
em suas classes de Pintura na Escola de Belas Artes de Pelotas, onde, a partir da própria
imagem refletida em um espelho, o aluno deveria pintar o seu retrato. Para Michel Beaujour
(1980), contrariamente ao relato (auto)biográfico clássico, a ideia do autorretrato prescinde de
uma unidade totalitária, do discurso linear e determinado cronologicamente por fatos
encadeados ordenadamente. Para o autor, o autorretrato torna-se um objet trouvé - “objeto
escrito” – onde, através da imagem retratada, o sujeito contempla a si próprio e reconhece-se
como em um espelho (BEAUJOUR, 1980, p. 10).
Roma. Executou diversas primeiro professor de pintura da recém fundada instituição, orientando a primeira
turma de alunos que ingressou na escola. Em 1950, iniciou os trabalhos de pintura na Igreja de São Pelegrino,
em Caxial do Sul, onde executou a Via-Sacra, considerada sua obra prima, e, em 1951, criou os afrescos com a
temática da lenda do Negrinho do Pastoreio e da Formação do Rio Grande do Sul, no Palácio Piratini, sede do
Governo do Estado, em Porto Alegre. Integrou o corpo docente do Intituto de Artes da URGS, onde lecionou na
cátedra de pintura. Aldo Locatelli faleceu em Porto Alegre, no dia 3 de setembro de 1962 (ROSA; PRESSER,
1997; BRAMBATTI, 2008). 2 Leopoldo Gotuzzo, nascido em Pelotas, em 8 de abril de 1887. Durante a juventude, em sua cidade natal, foi
aluno do pintor italiano Frederico Trebbi. Leopoldo Gotuzzo é considerado um pintor de grande destaque no
cenário nacional na primeira metade do séc. XX. Gotuzzo teve uma produção numerosa durante seu quase um
século de vida, dividindo sua pintura em temas de retratos, nus, paisagens e naturezas-mortas. Após viver na
Europa, radicou-se no Rio de Janeiro, obtendo diversas premiações em salões nacionais e, mesmo à distância,
teve imensa contribuição para a pintura na cidade de Pelotas. Foi patrono da Escola de Belas Artes de Pelotas e
doou um número significante de obras de sua autoria para a instituição, lançando a ideia da criação de um museu
de arte na cidade. Faleceu no Rio de Janeiro, em 1983. O Museu de Arte Leopoldo Gotuzzo (MALG) foi
inaugurado posteriormente a sua morte, no ano de 1986 (SILVA; LORETO, 1996).pinturas decorativas e
afrescos de temas sacros para igrejas na Itália. Convocado para servir ao exército italiano na Segunda Guerra, em
1941, viajou para Nápoles e para a África. No ano de 1948, recebeu o convite do Bispado de Pelotas, através de
D. Antonio Zattera, para pintar os murais da Catedral São Francisco de Paula. Por ocasião de sua chegada,
“Dona” Marina de Moraes Pires convidou Locatelli para integrar o corpo docente da futura Escola de Belas
Artes, quando, prontamente, o artista italiano aceitou e foi o primeiro professor de pintura da recém fundada
instituição, orientando a primeira turma de alunos que ingressou na escola. Em 1950, iniciou os trabalhos de
pintura na Igreja de São Pelegrino, em Caxial do Sul, onde executou a Via-Sacra, considerada sua obra prima, e,
em 1951, criou os afrescos com a temática da lenda do Negrinho do Pastoreio e da Formação do Rio Grande do
Sul, no Palácio Piratini, sede do Governo do Estado, em Porto Alegre. Integrou o corpo docente do Intituto de
Artes da URGS, onde lecionou na cátedra de pintura. Aldo Locatelli faleceu em Porto Alegre, no dia 3 de
setembro de 1962 (ROSA; PRESSER, 1997; BRAMBATTI, 2008).
Na narrativa de Hilda Mattos, que teve por tema central sua formação artística,
emergem dados biográficos e aspectos da personalidade de professores(as) e artistas que
influenciaram sua trajetória. Na evocação de suas memórias, Hilda traz em seu discurso
breves esboços, traçados a partir de suas lembranças, da personalidade de seus mestres, entre
eles Aldo Locatelli e Leopoldo Gotuzzo3. Gotuzzo foi um importante desenhista e pintor
pelotense, considerado pela crítica o único artista plástico gaúcho que encontrou destaque na
efervescência artística da Belle Époque carioca e reconhecimento internacional de sua longa e
produtiva carreira (ROSA; PRESSER, 1997, p. 244).
Acerca de Aldo Locatelli, encontra-se uma considerável produção bibliográfica na
qual diversos autores analisam sua produção artística e a relevância do artista e de suas obras
no Rio Grande do Sul e no Brasil. Sobre Leopoldo Gotuzzo, citado em verbete no Dicionário
de Artes Plásticas no Rio Grande do Sul (ROSA; PRESSER, 1997) e em capítulo do livro
História da Arte em Pelotas - A pintura de 1870 a 1980 (SILVA; LORETO, 1996),
encontram-se algumas considerações acerca de sua obra e trajetória, porém, diante da
importância deste artista gaúcho, de sua reconhecida projeção internacional e longa trajetória,
ainda não aprofundaram-se os estudos e pesquisas sobre a figura de Leopoldo Gotuzzo. Hilda
Mattos, na narrativa de suas lembranças, evoca o fato de que, encontrando-se Gotuzzo em
visita a cidade de Pelotas, esteve na Escola de Belas Artes, onde esteve apreciando as classes
e os trabalhos dos alunos da instituição e percebendo o talento notório da jovem Hilda,
ofereceu-lhe a oportunidade de ministrar aulas particulares durante sua estada na cidade.
Através de sua narrativa, Hilda Mattos reconstrói sua trajetória e nos oferece a possibilidade
de tomarmos conhecimento de dados elucidadores da formação artística no ambiente
acadêmico e de aspectos da personalidade de importantes nomes da história da arte no RS.
3. O RETRATO (AUTO)BIOGRÁFICO
3 Leopoldo Gotuzzo, nascido em Pelotas, em 8 de abril de 1887. Durante a juventude, em sua cidade natal, foi
aluno do pintor italiano Frederico Trebbi. Leopoldo Gotuzzo é considerado um pintor de grande destaque no
cenário nacional na primeira metade do séc. XX. Gotuzzo teve uma produção numerosa durante seu quase um
século de vida, dividindo sua pintura em temas de retratos, nus, paisagens e naturezas-mortas. Após viver na
Europa, radicou-se no Rio de Janeiro, obtendo diversas premiações em salões nacionais e, mesmo à distância,
teve imensa contribuição para a pintura na cidade de Pelotas. Foi patrono da Escola de Belas Artes de Pelotas e
doou um número significante de obras de sua autoria para a instituição, lançando a ideia da criação de um museu
de arte na cidade. Faleceu no Rio de Janeiro, em 1983. O Museu de Arte Leopoldo Gotuzzo (MALG) foi
inaugurado posteriormente a sua morte, no ano de 1986 (SILVA; LORETO, 1996).
Na fala do indivíduo que recorda, nas suas impressões pessoais quando relata, no
momento efêmero das memórias evocadas e no instante do esquecimento, busquei apreender
o “possível do acontecido”, ambicionando esboçar, ainda que com traços difusos e cores
pálidas, uma história, que, sem a pretensão de essência ou de verdade absoluta, me permitiram
a aproximação de vestígios sobre práticas, de modos de ser e maneiras de fazer, bem como de
valores e representações que se constituíram e legitimaram no decorrer do tempo, pois “nessa
construção narrativa da identidade se tece em boa medida a experiência cotidiana”
(ARFUCH, 2010, p. 80). Na fala de Hilda Mattos, encontrei a possibilidade de “olhar”,
através de sua narrativa, para o passado da Escola de Belas Artes de Pelotas, cenário do início
de sua formação artística.
Compreendendo as escolas, os sistemas educacionais e os espaços acadêmicos como
valiosas fontes para a análise e a reflexão sobre as evidências históricas relativas às culturas
em que se inserem, ao mesmo tempo, surgem novos paradigmas no campo da educação e,
estes, inevitavelmente, possuem uma íntima ligação com o percurso historiográfico das
culturas e sociedades que propiciaram a sua criação e o seu desenvolvimento. Conforme Gatti
(2002), a riqueza e a pluralidade epistemológica da análise destes espaços de “produção de si”
revelam-se como poderoso método de compreensão da história da educação brasileira e, por
conseguinte, de um recorte de elementos sociais e culturais de um dado período histórico.
Para além do campo da história da educação, surge a possibilidade de agregar subsídios de
cunho teórico e metodológico sobre este tema, aportando em contribuições para os estudos
acerca da história do ensino da arte e da própria história da arte no Rio Grande do Sul.
A análise do relato oral é uma importante fonte para a compreensão dos papéis
exercidos pela escola e pelo processo de formação, bastante utilizada e valorizada no campo
da Educação. Através da construções narrativa, de caráter autobiográfico, busquei nos
excertos da história de vida de Hilda Mattos, indícios que falassem de suas experiências como
ex-alunas da Escola de Belas Artes de Pelotas, bem como de suas impressões acerca dos
cenários de suas vivências e dos atores que participaram de sua trajetória de formação.
Ao colocar-me diante de Hilda Mattos, como “ouvinte” da narrativa destes recortes
específicos de sua trajetória, busquei, antes, através da elaboração de um breve roteiro para a
entrevista, encadear alguns fatos que pudessem sistematizar a investigação histórica a qual me
proponho e que decorre das lembranças da entrevistada. Para Revel (1998, p. 38), o relato
autobiográfico “pode ser relido como um conjunto de tentativas, de escolhas, de tomadas de
posição diante da incerteza”, tal qual um campo de possibilidades, entre as quais o narrador
teve de escolher o caminho para compor seu relato.
Deste modo, iniciamos a entrevista através da evocação das memórias de infância e
das memórias escolares, buscando trazer à tona o “possível” começo de sua trajetória . Acerca
de sua vida escolar, a entrevistada, ao tratar de suas memórias sobre a vida escolar, nos
revelou sua passagem por várias instituições escolares, relatando:
O primário eu fiz assim, primeiro na Escola Brasileira4, era uma escola
particular, da Dona Cecília... Me lembro, era a coisa mais querida, assim
velhinha, de óculos aqui (mostrando a ponta do nariz) e vinha perguntando:
“Cadê meus óculos? Cadê os meus óculos?...” (rindo muito) E ela com os
“oclinhos” aqui [no nariz]... Tinha o Seu Rubens, a Dona Dalva, eram [da
família] Motta... Depois da Escola Brasileira, da Dona Cecília Motta, ali foi
pouco tempo... Os meus irmãos, todos os outros, estudaram parte do
primário também, na Escola Brasileira... Elas eram de Canguçu também,
mas a escola era em Pelotas não é? Tinha o Seu Rubens, a Dona Dalva...
Mas foi só o primeiro ano ali... Depois fui para o [Colégio] Santa
Margarida! (HILDA)
No excerto acima encontrei esta interessante informação acerca da Escola Brasileira,
estabelecimento de ensino particular, como outros muitos, de pequeno e médio porte,
existentes em Pelotas, na primeira metade do século XX. Ao buscar maiores dados que
pudesse agregar ao tema, verifiquei este breve texto que transcrevi na nota relacionada ao
estabelecimento. No Colégio Santa Margarida, a entrevistada relatou ter cursado apenas o
segundo ano do ensino primário e, posteriormente, ter sido transferida para outra instituição:
Depois, no terceiro, fui pra Escola Complementar, que agora é o [Instituto de
Educação] Assis Brasil não é? Era só Escola Complementar naquela época,
aí terminei o [curso] Complementar, que era de três anos, fiz o [exame de]
admissão [ao ginásio] e terminei... E SÓ! (rindo) Depois fui só para a
[Escola de] Belas Artes... (HILDA)
Ao indagar de Hilda sobre a sua “veia artística” e se a o talento para as artes plásticas
havia manifestado-se na infância, a entrevistada nos relatou acerca do seu ambiente familiar,
4 Encontramos uma referência a esta instituição de ensino particular em Pelotas/RS, denominada Escola
Brasileira-Allemã, fundada, em 1911, pelo Sr. Eduardo Wilhelmy e dirigida por sua filha, a Sra. Cecília
Wilhelmy Motta. Durante o período da Primeira Guerra, a instituição passou a chamar-se somente Escola
Brasileira. A Sra. Cecília Wilhelmy Motta dirigiu a instituição até o ano de 1939, quando a Escola Brasileira foi
transferida para o Sr. Ernani Guimarães (FONSECA, 2007, p.67)
que atribui como o cenário para sua futura escolha e da influência de seu irmão, também
desenhista:
Olha... Eu não sei! Eu comecei a desenhar, o Mário, meu irmão, começou a
desenhar... Eu comecei a fazer desenhos também, achei bom! Foi assim...
O Mário, às vezes, passava as noites desenhando, o quarto dele tinha a porta
em direção do meu quarto, então eu via, pela fresta, que o Mário ainda
estava estudando desenho, desenhando... (HILDA)
Hilda também relatou que sua irmã, Laura, falecida muito jovem, era extremamente
talentosa, tanto para o desenho e a pintura, como também para a música, tendo estudado canto
no Conservatório de Música de Pelotas. Acerca deste tema, lembrou-se da figura da mãe, que
havia estudado música e tocava diversos instrumentos, mas somente por diletantismo: “A
minha mãe tocava bandolim, tocava violão... E tinha violino também! Mas, o violino, muito
pouco ela tocou pra gente... Ela, teve, em Canguçu, um professor de violino...”. É interessante
observar este trecho da narrativa, no qual a entrevistada refere-se ao próprio ambiente
familiar, inferindo-se, deste modo, que os irmãos e os pais constituem-se como agentes de
uma educação estética e artística que influenciaram Hilda, bem como, a casa como espaço de
educação das sensibilidades.
A partir da proposição de Lawrence-Lightfoot (apud CASTRO, 2010) compreende-se
o contexto como o conjunto de condições (físicas, temporais, históricas, culturais, estéticas)
que permitem a emergência dos acontecimentos. O contexto, portanto, torna-se “a moldura, o
ponto de referência” das ações, ao mesmo tempo, que será o cenário em que o indivíduo se
constitui.
Acerca do ambiente escolar, perguntei a entrevistada, se ela havia encontrado
estímulo, da parte dos seus professores na escola, durante o ginásio (Curso Complementar),
em relação a sua aptidão para o desenho, ao que se recordou, dizendo: “Tinha, mas, era
assim... Quando havia uma festa, da “Semana da Pátria”... ou festa disso e daquilo, quando
precisavam de desenhos, tinha um grupo, que elas [as professoras] convidavam e eu sempre
ia...”. Deste modo, percebe-se a influência do espaço escolar na formação estética de Hilda,
quando era escolhida para tomar parte do grupo selecionado de alunas, que representavam a
instituição em exposições de desenhos, geralmente alusivas às festas cívicas e escolares.
Sabendo que “Dona” Marina de Moraes Pires havia projetado a Escola de Belas Artes
a partir de um grupo de alunas da disciplina de Desenho que ministrava na Escola
Complementar (posteriormente, na década de 1940, esta passou a denominar-se Instituto de
Educação Assis Brasil) perguntei a entrevistada se havia sido aluna de “Dona” Marina no
Complementar e, se, deste modo, havia tomado conhecimento da criação da Escola de Belas
Artes de Pelotas, ao que respondeu:
Fui aluna da Dona Marina... Pois ela telefonou lá pra casa! Mas, eu acho,
que ela não falou em mim, falou na Laura [irmã] e no Mário [irmão]... Que a
Laura também desenhava muito bem!... Quando eu vi que ia sair a Escola,
eu fui logo! Ali, a Dona Marina ainda estava tentando abrir a Escola... Então
me convidava para fazer parte das comissões, íamos aqui e ali pedir, não é?
Para abrir!... Mas, ainda não estava aberta [a Escola de Belas Artes]
(HILDA)
Esta informação, acerca dos esforços de “Dona” Marina para a abertura da Escola de
Belas Artes e da organização de comissões, composta por professores, membros da sociedade
pelotense e alunas, para apresentar o projeto de fundação da instituição aos políticos locais,
confirma-se através dos escritos da professora, em seus diários pessoais5.
Ao ser interrogada se havia estudado desenho e pintura, em classes particulares,
anteriormente a sua entrada na Escola de Belas Artes, a entrevistada relatou que não tinha tido
aulas de desenho ou pintura, além das cadeiras que compunham o currículo da Escola
Complementar. Em um momento posterior ao da gravação da entrevista, fui informado por
Renato de Mattos Motta, filho de Hilda, que ela havia tido aulas particulares, durante um
curto período, anterior ao ingresso na Escola de Belas Artes de Pelotas, com o pintor José
Moraes6. Ainda, relacionado ao tema da pergunta, acerca de suas atividades anteriores ao
ingresso na Escola de Belas Artes, Hilda recordou-se de suas ocupações:
5 Os diários de “Dona” Marina de Moraes Pires, em número de 35, escritos entre 1946 e 1976, foram publicados
por sua neta, Janice Pires de Corrêa Franco, em 2008. Estes escritos autobiográficos registram sua luta para a
fundação, manutenção e reconhecimento da Escola de Belas Artes de Pelotas. Além dos registros que
relacionam-se especialmente à instituição, os diários de “Dona” Marina constituem-se em um conjunto valioso
de documentos acerca do cotidiano em Pelotas, em seus aspectos sociais,´plíticos e culturais e da vida pública e
privada na segunda metade do século XX. 6 José José Machado de Moraes nasceu no Rio de Janeiro, em 1921. Foi pintor, escultor, gravador e ilustrador.
Formado em Pintura, em 1941, pela Escola Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro, foi aluno de Quirino
Campofiorito e assistente de Candido Portinari. Entre os anos de 1946 e 1947, residiu em Pelotas e Bagé/RS,
por ocasião de haver recebido um prêmio de viagem pelo Brasil, onde deu aulas particulares de desenho e
Eu costurava! Eu costurava muito! Cheguei a costurar pra fora... As amigas
das minhas irmãs viam e diziam: “Ai que bonito o teu vestido!”... Elas
respondiam: “Foi a Hilda que fez!” e aí: “Será que ela faz um pra mim?” e
eu fazia! Aí já ganhava um dinheirinho! (HILDA)
Quando tratamos deste tema, ao fato de ter se dedicado ao corte e costura e ter
exercido, ainda que durante pouco tempo, a atividade profissional de modista, indaguei como
havia aprendido, se tinha frequentado aulas particulares de costura, a entrevistada lembrou
que era uma atividade comum das mulheres de sua família, dizendo:
A minha mãe costurava? Toda a vida não é?... A minha avó também! E eu
aprendi assim, mas não lembro se eu cheguei a ir a alguma aula de costura?
(lembrando) Ah... Eu tinha uma colega, do Complementar, a Erna... A mãe
dela tinha uma escola de costura, era na [rua] Andrade Neves! Tinha aquelas
mesas compridas, as janelas ficavam abertas, então todo mundo via, ali, a
gente costurando, cortando... Eu fui lá, mas foi pouca coisa, só fui aprender a
cortar, a tirar as medidas, isso sim, eu aprendi... (HILDA)
Em relação a esta atividade, transcrita no excerto acima, observa-se que, após a saída
da escola, ao completarem o curso ginasial, era um caminho natural para as moças da década
de 1940 e 50, o aperfeiçoamento em cursos particulares de Corte e Costura, como um
complemento estético da educação feminina na época. Verifica-se, ainda, a atribuição de
importância que estes saberes e práticas - corte e costura, bordado e os trabalhos manuais, em
geral - possuíam em um determinado contexto social e cultural, constituindo-se em um
autêntico ato de legitimação das habilidades femininas diante da sociedade.
Acerca de seu ingresso na Escola de Belas Artes, ainda sob a forma de Curso
Preparatório, a entrevistada recordou o fato de haver encontrado muitas pessoas conhecidas
do seu círculo de relações, colegas do Curso Complementar que eram alunas de “Dona”
Marina e também integravam esta primeira turma de ingressante na instituição. Sobre a
lembrança do primeiro professor na Escola de Belas Artes, quando indagada, respondeu que
recordava-se da figura de Aldo Locatelli. Locatelli, conforme dito anteriormente,
desempenhou um papel de extrema importância na consolidação deste estabelecimento, pois,
segundo Hilda, a presença do artista italiano em Pelotas, promoveu a abertura da escola.
Sobre o corpo docente da Escola de Belas Artes, a entrevistada recordou alguns nomes de
professoras que faziam parte do grupo, entre elas: “Dona” Marina de Moraes Pires, diretora
da instituição, “Dona” Osmânia Vinhas de Campos e “Dona” Noêmia Dias, ambas também pintura e foi uma grande influência para o desenvolvimento de jovens artistas que foram seus alunos. Faleceu em
São Paulo, em 2003.
professoras de Desenho no Instituto de Educação Assis Brasil, que, à convite de “Dona”
Marina, integraram esta primeira formação do corpo docente da Escola de Belas Artes.
Sobre a figura de Aldo Locatelli, indaguei da entrevistada acerca de suas impressões
do professor e como eram as aulas e as orientações recebidas por ele, ao que respondeu:
Ele era muito bom professor! Ensinava tudo!... Se tu estavas mal sentada,
dizia: “Não! Tem que ser assim...”, como escolher o tema [da pintura], o
lugar que vai sentar pra pintar... E, se tinha algum erro, ele estava
mostrando... Às vezes ele retocava um trabalho... de algumas! (rindo)
Locatelli, em sua passagem por Pelotas, além da magnífica obra pictórica dos murais
da Catedral de São Francisco de Paula, deixou uma expressiva produção de pinturas de
cavalete, pertencentes a várias instituições, como as alegorias “Labor Hospitalitas” e “Ars
Sapientia” no Club Comercial além de outras obras em acervos particulares, entre retratos,
naturezas-mortas, flores e temas diversos. Para além do legado de sua obra artística, Aldo
Locatelli deixou uma forte imagem impressa na memória das pessoas que conviveram com o
pintor e professor, principalmente em seus alunos, que recordam, conforme muitos relatos que
ouvi pessoalmente, como uma pessoa de caráter muito afável, de bom temperamento,
extremamente atencioso e sempre um grande estimulador de seus discípulos.
A entrevistada recordou que Aldo Locatelli, não somente orientava os aspectos
técnicos da pintura (mistura das tintas, cores) como ele, pessoalmente arranjava as
composições de objetos que seriam utilizados como temas para os exercícios de pintura nas
aulas da Escola de Belas Artes, ao que diz: “ele [Aldo Locatelli] montava a composição...
Tinha uma [composição], que nós pintamos em aula, o tacho [de cobre] era meu, a peneira
era minha, o candelabro também, até o guardanapo, era xadrez... Acendemos a vela, aí
ficava o efeito da luz sobre o cobre...”. Este excerto confirma uma impressão, já
anteriormente percebida sobre a didática de Locatelli, que proporcionava aos alunos diversas
experiências em relação a aprendizagem da pintura, pois, além das composições produzidas
dentro da Escola de Belas Artes, Locatelli costumava levar os grupos de alunos para feiras
agrícolas, lutas de boxe e outros ambientes externos, para que pudessem aprimorar suas
noções espaciais de desenho e captassem outras percepções de cor e luz, além de
incorporarem novos temas a serem representados nas pinturas.
Sobre o exercício do autorretrato, já sabia que era uma prática proposta por Aldo
Locatelli durante o curso de Pintura na Escola de Belas Artes, pois desde minha infância
convivi com ex-alunas de Locatelli, que possuíam os autorretratos executados durante o
período que cursaram as classes do professor. Ao ser indagada acerca do tema do autorretrato,
Hilda confirmou a prática proposta por Locatelli:
Sim! Ele deu a ideia, era feito com um espelho... Ele disse que era pra trazer
um espelho e tudo que fosse mais rápido, pra ficar ali perto, a caixa das
tintas... Era uma corrida! Uma dizia pra outra: “O teu cavalete está me
atrapalhando!...” (rindo) (HILDA)
Durante este momento da entrevista, a entrevistada e eu nos aproximamos do
autorretrato, que figura num ponto central de uma das paredes da sala de seu apartamento,
para observarmos juntos a imagem e, deste modo, esperei que a imagem evocasse alguma
outra lembrança relacionada ao quadro. Abaixo, reproduzo a obra:
Autorretrato, Hilda Mattos - óleo sobre tela, Pelotas, 1951.
Ao observamos o autorretrato, a imagem de Hilda domina o primeiro plano da tela,
como se olhasse para fora do quadro, efeito causado pelo utilização do espelho, a postura
denota uma angulação do corpo algo hierática, denotando uma héxis corporal própria das
composições pictóricas, em especial do retrato produzido em ambiente acadêmico, ainda que
a pincelada da artista revele já uma plasticidade de tendência mais modernista, afastada dos
cânones clássicos.
A artista observou que, ao iniciar a execução do autorretrato, resolveu “fazer virado”,
ou seja, invertendo a sua própria imagem, ao que comunicou ao professor, dizendo: “Olha
Locatelli, eu acho que vou fazer virado, porque se não vou ficar canhota!...”. Eu observei que
além de Hilda, figuravam outras duas pessoas no autorretrato, em segundo plano e perguntei
para Hilda se eram colegas que, naquele momento, faziam o exercício de autorretrato, ao que
respondeu:
Sim! Ali nas minhas costas, era a Franca7! E a outra é a Conceição Aleixo...
Eram minhas colegas, as duas já morreram... (olhando enternecida para a
tela) Coloquei elas ali... Ah, se eu fosse colocar todo mundo! (rindo) Ia ficar
uma coisa!... (HILDA)
Neste momento da entrevista, busquei informações acerca de outras colegas de Hilda,
que formavam esta primeira turma da Escola de Belas Artes, além das duas retratadas junto da
artista em seu autorretrato, quando recordou alguns nomes, entre eles:
A Yara Castro [Manier]8, era muito boa a Yara! Tinham outras... A Inah
Costa9, a Franca, a Conceição, a Therezinha Röhrig
10... A Therezinha saiu,
7Franca Giovanna Biancheri Taddei nasceu em Ospedaletti, Itália, em 1930. Transfere-se para o Brasil, junto
com sua irmã, Mercedes (esposa de Aldo Locatelli), residindo então na cidade de Pelotas, onde frequentou a
Escola de Belas Artes, sob a orientação de Aldo Locatelli. Conforme anotação no diário pessoal de Dona Marina
de Moraes Pires, a diretora da Escola de Belas Artes faz referência a chegada da esposa de Aldo Locatelli, Sra.
Mercedes e de sua irmã Franca, em Pelotas, no mês de janeiro de 1950. Desta forma, inferimos que Franca
Taddei ingressou na Escola de Belas Artes de Pelotas e foi incorporada ao primeiro grupo de alunos que já se
encontravam em atividade desde o mês de março de 1949. Após concluir o curso, em 1953, transferiu-se para
Porto Alegre, onde estudou pintura mural e litografia no Atelier Livre da Prefeitura com Clébio Sória e Danúbio
Gonçalves. Foi aluna de Fernando Baril, com quem estudou técnicas pictóricas. Participou de inúmeras mostras
coletivas e expôs individualmente suas obras. Franca Taddei, que recebeu uma formação artística de base
acadêmica acabou por optar pela arte abstrata. Faleceu em Porto Alegre em 2005. 8Yara de Castro Manier, nascida em Pelotas, em 7 de fevereiro de 1932, foi pintora, aluna da primeira turma da
Escola de Belas Artes de Pelotas, onde formou-se, sob a orientação de Aldo Locatelli, em 1953. Tranfere-se para
o Rio de Janeiro, em 1957, onde foi aluna de Faiga Ostrower e Ivan Serpa. Dedicou-se aos temas de retratos e
naturezas-mortas sob uma estética realista. Conquistou o primeiro lugar no concurso promovido pela Sociedade
Cultural de Pelotas e teve suas obras expostas em diversas galerias e salas de exposição nacionais, como o
Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Faleceu em Nova Friburgo,RJ, em 14 de fevereiro de 2011. 9 Inah D’Ávila Costa, pintora, nasceu em Pelotas, 13 de dezembro de 1918. Formou-se no curso de Piano do
Conservatório de Música de Pelotas, porém sua timidez diante do público não lhe permitiu seguir a carreira de
concertista. Iniciou seus estudos de desenho com Adail Bento Costa e Leopoldo Gotuzzo, em sua cidade natal.
Ingressou na Escola de Belas Artes de Pelotas no ano de 1949, fazendo parte da primeira turma de alunos da
não ficou muito tempo, não me lembro dela ter se formado... Seguiu a
música! A Benette11
também, o Notari12
... (HILDA)
Ainda, após comentarmos acerca da fotografia de formatura, Hilda relembrou outros
nomes, como a professora Heloísa Assumpção Nascimento e de colegas de curso que se
formaram nesta primeira turma, entre elas as Sras. Maria Mallmann Louzada e Terezinha
Mallmann Louzada e Marguerite Gastal de Castro.
Acerca de Aldo Locatelli, a entrevistada relatou quando recebeu um convite do
professor, para acompanhá-lo em um trabalho de pintura, realizado na cidade de Caxias do
Sul, para a Festa da Uva. Como Hilda havia se destacado, durante o curso, com pinturas de
cenas da vida no campo e temas rurais, Locatelli lhe ofereceu a oportunidade de participar de
sua equipe, na execução de murais encomendados para as festividades realizadas em Caxias
do Sul. Conforme relatou a entrevistada, o convite era no mínimo inusitado, quando pensamos
instituição, onde recebeu orientação acadêmica do pintor e muralista italiano Aldo Locatelli, formando-se em
1953. Posteriormente, frequentou cursos ministrados na Escola Nacional de Belas Artes e no Museu de Arte
Moderna, no Rio de Janeiro. Foi aluna de Ivan Serpa, Tomás Santa Rosa, Fayga Ostrower e Samson Flexor entre
outros, fazendo a artista se desligar de sua formação inicial academicista e figurativa, optando pelo
abstracionismo. Além de sua carreira como artista plástica, desempenhou funções docentes nos cursos de
Desenho e Pintura da Escola de Belas Artes de Pelotas e fundou, no ano de 1959, a Escolinha de Arte Infantil de
Pelotas. Faleceu em 2005. 10
Therezinha Röhrig, soprano pelotense, diplomada pelo Conservatório de Música de Pelotas em 1951.
Ingressou, em 1949,concomitantemente aos seus estudos de canto no Conservatório de Música, como aluna nas
classes de Desenho e Pintura da Escola de Belas Artes de Pelotas, fazendo parte deste primeiro grupo de alunos
e demonstrando notável aptidão para as artes plásticas, conforme pude observar por algumas telas produzidas por
Therezinha durante seu período como aluna da Escola de Belas Artes. Aldo Locatelli, seu professor, incentivou o
desenvolvimento de seu talento tanto para as artes plásticas como para a música, inclusive retratando Therezinha
em dois painéis da Catedral São Francisco de Paula, onde figura como um anjo instrumentista, tocando alaúde
e, em outro painel, como um anjo cantor. Therezinha Röhrig, posteriormente, abandonou o curso de Pintura na
Escola de Belas Artes, em detrimento de sua carreira como musicista, vencedora de diversos concursos nacionais
e internacionais de canto e reconhecida como cantora camerista de renome internacional. 11
Benette, nome artístico da pintora Benedicta Casaretto Motta, nasceu em Pelotas, em 1925. Iniciou seus
estudos de desenho com a professora Noêmia Dias. Ingressou na Escola de Belas Artes de Pelotas, em 1949,
integrando a primeira turma da instituição. Foi aluna de Aldo Locatelli, Leopoldo Gotuzzo e Ângelo Guido. Fez
curso de aperfeiçoamento na tradicional Escuela Zier de Buenos Aires. Benette manteve-se fiel ao embasamento
clássico de sua formação acadêmica, realizando diversas exposições de sua pintura, onde os temas recorrentes
são flores, naturezas-mortas, retratos e motivos sacros. Em 2012, recebeu uma homenagem, através de uma
exposição retrospectiva de sua carreira, no Salão Nobre da Bibliotheca Pública de Pelotas. Reside atualmente
em Porto Alegre/RS. 12
Luiz de Moraes Notari nasceu em Pelotas, em 1918. Filho do pintor Antonio Notari, recebeu do pai as
primeiras lições de desenho e pintura. Em 1934, fez uma viagem de estudos para a Itália. Em 1935, iniciou seus
estudos de desenho e pintura com o pintor e decorador pelotense Adail Bento Costa no Instituto de Belas Artes
de Pelotas, que funcionou pelo período de dois anos, junto ao Conservatório de Música. Foi aluno de Benjamin
Gastal e José Moraes. Estudou técnicas de mosaico com Cândido Portinari. Após a conclusão do curso na Escola
de Belas Artes, em 1953, recebeu a medalha de ouro em uma prêmio instituído pela escola. Com a transferência
de Aldo Locatelli para Porto Alegre, assumiu a cadeira de Pintura na Escola de Belas Artes. Em 1956, transfere-
se para Recife, onde passou a lecionar na Escola Técnica Federal de Pernambuco. Sua obra menteve-se fiel ao
gênero figurativo, onde retratava os tipos populares nordestinos, como lavadeiras, pescadores e retirantes.
Realizou exposições individuais e coletivas, além de salões onde recebeu premiações.
na cidade de Pelotas, na década de 1950 e pelo fato dela ser uma moça solteira. Porém, com a
anuência dos pais, não sem antes as recomendações de “andar sempre correta”, Hilda aceitou
o convite e esteve por mais de um mês na cidade de Caxias do Sul, hospedada na casa de
amigos da família, retornando ao término do trabalho para Pelotas.
Ao evocar as lembranças relacionadas a sua passagem pela Escola de Belas Artes de
Pelotas, Hilda lembrou da importância da formação obtida na instituição. As marcas de
formação acompanharam toda evolução de sua arte e o desenvolvimento de sua carreira.
Ainda, quando residia em Pelotas, realizou a sua primeira exposição, em 1956, onde explorou
os temas da figura humana e paisagens. A artista relatou um intervalo de quase vinte anos em
sua carreira, após o casamento, quando esteve dedicada aos filhos. Ao retomar suas
atividades, optou por centrar seu trabalho na representação da figura humana, principalmente
no tema do nu feminino, “por ser uma sequência, um contínuo de curvas e sombras”.
4. ÚLTIMAS LINHAS
Na pretensão inicial de esboçarmos um retrato (auto)biográfico de Hilda Mattos,
encontramos, para além de seu próprio autorretrato, uma série de esboços, traçados através de
sua narrativa, ao rememorar os contextos, imagens e vozes que fazem parte de sua trajetória
de formação. No ato de lembrar, Hilda Mattos, nos aproximou de um passado, quando narra
suas experiências na Escola de Belas Artes de Pelotas, trazendo ao presente valiosas
informações que contribuem para a construção da história da instituição e do próprio ensino
da arte na cidade de Pelotas, na segunda metade do século XX.
No jogo de palavras utilizado, onde retrato e autorretrato se constituem em paradigma
estético para a construção textual da narrativa, nos reportamos às proposições de Foucault,
onde nos aponta a possibilidade de ver a obra de arte tal qual vemos e atribuímos valor à
existência humana. Para Foucault:
"O que me surpreende é o fato de que, em nossa sociedade, a arte
tenha se transformado em algo relacionado apenas a objetos e não a
indivíduos ou à vida; que a arte seja algo especializado ou feito por
especialistas que são artistas. Entretanto, não poderia a vida de todos
se transformar numa obra de arte? Por que deveria uma lâmpada ou
uma casa ser um objeto de arte, e não a nossa vida?" (FOUCAULT,
1995, p. 261)
Este trabalho, tal qual uma obra de arte, não encontra seu término aqui, mas, antes,
incita mais a busca por outras vozes, como a de Hilda Mattos, cheias de sensibilidade, que
possam através de suas lembranças e narrativas, neste ato de retratar a si e no desenho de
suas trajetórias, contribuir para um quadro maior, que visa trazer mais luz sobre a história de
uma instituição de ensino de grande relevância para a cidade de Pelotas, como também por
luz sobre figuras de mestres, como Marina de Moraes Pires, Aldo Locatelli, Leopoldo
Gotuzzo e outros tantos que formaram gerações de alunos, que certamente carregam consigo
marcas de formação obtidas através do ensino da arte.
REFERÊNCIAS:
ARFUCH, Leonor. O espaço biográfico: dilemas da subjetividade contemporânea. Tradução
de Paloma Vidal. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2010.
BEAUJOUR, Michel. Miroirs d’Encre: rhétorique de l’autoportrait. Paris: Seuil, 1980.
BOHNS, Neiva Maria Fonseca. Continente improvável: artes visuais no Rio Grande do Sul
do final do século XIX a meados do século XX. Porto Alegre. Universidade Federal do Rio
Grande do Sul. Instituto de Artes/ Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais, Tese
(Doutorado) 383 p. 2005.
BRAMBATTI, Luiz Ernesto. Locatelli no Brasil. Caxias do Sul: Belas Artes/Instituto
Vêneto, 2008.
CARVALHO, Isabel Cristina M.. Biografia, identidade e narrativa: elementos para uma
análise hermenêutica. Horizontes Antropológicos, ano 9, n. 19, p. 283-302, julho 2003.
CASTRO, Marta Luz Sisson de. Integrando Ciência e Arte na pesquisa qualitativa: o
“portrait”. In. ABRAHÃO, Maria Helena Menna Barreto (Org). (Auto)biografia e formação
humana. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2010.
CATHARINA, Pedro Paulo Garcia. Quadros literários fin-de-siècle: um estudo de Às
Avessas, de Joris-Karl Huysmans. Rio de Janeiro: 7Letras, 2005.
DOSSE, François. O Desafio Biográfico: escrever uma vida.São Paulo: Editora da
Universidade de São Paulo, 2009.
GATTI JÚNIOR, Décio. A História das Instituições Educacionais: inovações paradigmáticas
e temáticas. In: J.C.S. ARAÚJO e D. GATTI JÚNIOR. Novos temas em História da
Educação Brasileira: instituições escolares e educação na imprensa, Campinas, Editoras
Associadas, 2002, p. 3-24.
FONSECA, Maria Angela Peter. Estratégias para a preservação do germanismo
(deutschtum): gênese e trajetória de um collegio teuto-brasileiro urbano em pelotas (1898-
1942). Universidade Federal de pelotas. Programa de Pós-Graduação em Educação
(Dissertação de Mestrado), 2007, 158 p.
FOUCAULT, Michel. Sobre a genealogia da ética. Uma revisão do trabalho. In: Rabinow,
Paul; Dreyfus, Hubert. Michel Foucault. Uma trajetória filosófica. Para além do
estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995.
FRANCO, Janice Pires Corrêa. Memórias de Marina. Pelotas: Editora Livraria Mundial,
2008.
LAWRENCE-LIGHTFOOT, Sara; HOFFMANN DAVIS Jessica. The Art and Science of
Portraiture. San Francisco: Jossey-Bass, 1997.
MAGALHÃES, Clarice Rego. A Escola de Belas Artes de Pelotas: da fundação à
federalização (1949-1972) - Uma contribuição para a história da educação em Pelotas.
Dissertação de Mestrado (Mestrado em Educação). Universidade Federal de Pelotas, UFPEL:
2008.
MICHELON, Francisca Ferreira; SCHWONKE, Raquel Santos; MAZZUCCHI, Maria
Letícia Ferreira; PEZAT Paulo Ricardo. Imagem e memória: arte e biografia na coleção
fotográfica de Marina de Moraes Pires. 18º Encontro da Associação Nacional de
Pesquisadores em Artes Plásticas/Transversalidades nas Artes Visuais. p. 2908-2918.
Salvador: 2009.
NASCIMENTO, Heloísa Assumpção. Nossa cidade era assim: crônicas publicadas na
imprensa de 1980 a 1987. Pelotas: Livraria Mundial, 1989.
REVEL, Jacques. A experiência da microanálise. Rio de Janeiro: Editora da Fundação
Getúlio Vargas, 1998.
ROCHA, Fátima Cristina Dias. São Bernardo e Sargento Getulio: vozes em contraponto. In:
NUÑEZ, Carlinda Fragale Pate (Org). Armadilhas ficcionais: modos de desarmar. Rio de
Janeiro: 7Letras, 2003.
ROSA, Renato; PRESSER, Decio. Dicionário de Artes Plásticas no Rio Grande do Sul.
Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 1997.
SILVA, Ursula Rosa da; LORETO, Mari Lúcie da Silva. História da arte em Pelotas: a
pintura de 1870 a 1980. Pelotas: EDUCAT, 1996.