Rascunho Janeiro 2015

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rascunho

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  • EnsaioOs mistrios de Agatha Christie 24

    inqurito26 perguntas a Noemi Jaffe 17

    PoEsiaA hora zero, de Prisca Agustoni 42

    EnsaioA voz de Ferreira Gullar 6

    curitiba, janeiro de 2015 | www.rascunho.com.br

    desde abril de 2000

    o jornal de literatura do Brasil

    177

    Arte dA cApA: d AlmeidA

  • Buscar e encontrar a cadncia exata do original, plasmada agora em traduo. Ritmos certos, pa-ra aplicar o mesmo frescor da es-critura primeira. O original, de novo, como texto que apenas se alonga na traduo. Continua-o, basicamente; eterna persis-tncia das ideias. O original como o texto que no secou, mas ainda extravasa em outras lnguas.

    Ao tradutor, a tarefa de re-cupera algumas marcas do texto, aquelas que deveriam ser inextirp-veis a essncia do que lhe faz lite-rrio. No apagar essas marcas, no falsear o original. Reescrever a cria-o que ainda impregna a pgina.

    Mergulhar no abismo do passado, debelar toda a espessu-ra da noite, clarear a sombra que naturalmente vai cobrindo todo o texto. A sombra do distancia-mento, que vai lentamente rou-bando a vivacidade das palavras. Sombra que comea frgil e fugi-dia, mas que havendo tempo suficiente enterra os sentidos no breu mais indevassvel. Tare-fa normal de todo tradutor.

    Evitar o estiolamento que provoca a falta de arejo. O tex-to tambm precisa de ar novo, de quando em quando. No s o papel o exige, mas principal-

    Na traduo, a cadNcia do origiNal

    translato | eduardo Ferreira

    mente seu contedo.Recuperar, se preciso, o vi-

    o de um texto agora quebradi-o. Adicionar gua e ar.

    Adicionar, tambm, gotas de esprito ao texto. O dedo e a alma do tradutor. Aliar a tarefa de recuperao quela da inven-o. Sacudir os sinais de abando-no, s vezes to evidentes. Uma pitada de ousadia, sempre. O au-tor no a dispensou, nem a deve dispensar o tradutor.

    Apurar o ouvido, sempre, para captar aquele tnue suspiro de indignao que expele o texto ao ser traduzido. Blasfmias v-rias, pela dor da transposio. A perda do sentido, a desdita de es-quecer a lngua-me.

    Dar sentido ao texto, dire-o ao movimento da leitura. De novo, a necessidade da cadncia. Controlar a pulsao, posicion--la na tenso precisa. Se preciso, amain-la, at achar o tom cor-reto do discurso. por essas e outras que a traduo constitui tarefa to intricadamente com-plexa. Fugidia, inapreensvel e praticamente inensinvel.

    Apreender aquilo que pul-sa na superfcie do texto. Captu-rar o halo esquivo que circunda palavras e lhes d algo mais que sentido. No reescrever como quem engrola uma reza repeti-

    tiva, mas encontrar esse pulso e trabalh-lo, traduzi-lo.

    Manducar o texto, dele ex-trair o sumo e o sumo. Aoitar o silncio de todo texto com o chi-cote da obstinao pesquisa e pesquisa.

    A traduo parece rom-per um equilbrio to duramen-te conquistado no original. Da a necessidade de um esforo de restaurao. Posicionar o tex-to em novo patamar de estabi-lidade, mesmo que transitria. Arrim-lo para que, ao final, se ponha de p sozinho. Sustent--lo nessa dura transio de tra-duo a novo original.

    No definir nem parafrase-ar o sentido, mas senti-lo brotar do contexto e exprimi-lo como tal na traduo. Como ocorre na leitura, quando se apreende o significado da palavra desconhe-cida sem recorrer ao dicionrio. Como num passe de mgica que se s se alcana depois de esforo intenso, extenuante.

    Explorar mesmo aquilo que no se alcana do sentido do original. Experimentar. Sondar os fundos vos do olvido, desca-mar, uma por uma, as densas ca-madas de sentido.

    Ver o que est atrs das pa-lavras. o que eu como leitor e tradutor quero atingir.

    2 | | janeiro de 2015

    O s dias roubados (2013), primeiro romance do cea-rense Carlos Va-zconcelos, obteve em 2011 o Prmio de Incentivo s Artes da Secretaria da Cultura do Estado do Cear. O romance traz um tema pouco frequente em nossa fico o da conde-nao injusta. E pe em cena as falcatruas que envolvem Justia e Poder Poltico. o prprio per-sonagem-narrador quem anun-cia o seu infortnio, como que fustigando o leitor, incomodan-do-o, chamando-o para se posi-cionar: Voc no sabe o que

    aNotaes soBre romaNces (17)

    rodap | rinaldo de Fernandes

    ser condenado sem culpa, voc no avalia o que passar quinze anos emaranhado nas prprias teias, confinado nas prprias in-quietaes. E incomoda-o ain-da mais ao rememorar: Cruzei o porto da penitenciria aos vinte e cinco, quando a estrada da vida se estendia minha frente desa-fiando meus passos. Fui roubado gravemente, o grito ainda ecoa, me acompanha feito um zumbi-do eterno. O protagonista tem um relacionamento com gui-da, filha de um deputado sr-dido. guida, quando sabe que trada, se suicida, atirando-se por uma janela. Comea aqui a

    via crucis do protagonista: Vol-tei para casa e tentei um dilogo ameno com guida, que nada sa-bia de racionalidade. Seu corao era ainda mais escravo da paixo do que o meu. Chorou de forma contida, como quem no acredi-tara mesmo na reverso do des-tino, como se j estivesse pronta para o pior desfecho, e no me deu chance. Pulou. Aquele sal-to foi definitivo em nossas vidas. Encontraram-me prostrado, gol-peado, tantos dedos me aponta-ram, tantos olhos me cravaram a lana. Fui algemado e conduzido ao tribunal. De l para o inferno do crcere foi um passo.

    Rascunho uma publicao mensal da Editora Letras & Livros Ltda.

    Al. Carlos de Carvalho, 655.Cj. 1205. CEP: 80430-180

    Curitiba - PR

    [email protected]

    EditorRogrio Pereira

    Editor-assistenteSamarone Dias

    EstagirioJoo Lucas Dusi

    ColunistasAffonso Romano de SantAnna

    Alberto MussaEduardo Ferreira

    Fernando MonteiroJoo Cezar de Castro Rocha

    Jos CastelloLuiz Bras

    Raimundo CarreroRinaldo de Fernandes

    Rogrio Pereira

    Projeto grfico e programao visualRogrio Pereira / Alexandre de Mari

    Colaboradores desta edioAndr Argolo

    Andr Caramuru AubertAntonio Carlos Secchin

    Breno KmmelCarolina Vigna

    Clayton de SouzaGustavo Czekster

    Haron GamalHenrique Marques SamynLuiz Guilherme Barbosa

    Luiz Paulo FaccioliLuiz Ruffato

    Marco Polo GuimaresMarcos Alvito

    Maurcio Melo JniorPatricia PeterlePaula CajatyPeron Rios

    Pierre ReverdyPrisca AgustoniRodrigo Casarin

    Vilma CostaVivian Schlesinger

    iLustraDorEsD Almeida

    Fabiano ViannaFbio Abreu

    Felipe RodriguesHallina Beltro

    OsvalterRamon MunizRobson Vilalba

    Theo Szczepanski

    o jornal de literatura do Brasil

    fundado em 8 de abril de 2000

    Realizao

    Lei 8.313/91 (Lei rouanet)Programa Nacional de Apoio Cultura (Pronac)

    EditoraLetras & Livros

    Patrocnio

    Apoio

  • vidraa | joo lucas dusi

    12Garcia-Roza

    Um lugar perigoso

    15Adriana Lisboa

    Parte da paisagem

    46Pierre Reverdy

    Poemas traduzidos

    34David Foster Wallace

    Graa infinita

    Ziraldo no Flipoos

    Ziraldo ser o patrono do Festival Literrio de Poos de Caldas (Flipoos) deste ano, que deve acontecer entre 25 de abril e 3 de maio, baseado no tema A literatura como resgate da velha infncia. Para a diretora do festival, Gisele Ferreira, a escolha do autor se deu por sua habilidade ao se comunicar com os adultos que cresceram lendo suas histrias, e tambm pela ateno especial que os pequenos leitores recebero nesta edio do evento.

    Ruffato na MantiqueiRaCom curadoria de Luiz Ruffato, o oitavo Festival da Mantiqueira ser realizado de 10 a 12 de abril, em So Francisco Xavier, distrito de So Jos dos Campos (SP). Norteado pelo tema Todos os cantos, o evento deste ano vem com o objetivo de balancear as tendncias da literatura brasileira contempornea, passeando por seus diversos gneros, reunindo autores de vrias regies do pas. Para saber mais, acesse festivaldamantiqueira.com.br.

    Revista HoblicuaA Hoblicua chegou ao mercado literrio com o conceito de ser uma revista para leitores de todos os gneros , com periodicidade semestral. Tanto autores conhecidos quanto desconhecidos podem passar pelas pginas da revista. Esta primeira edio conta, entre outros assuntos, com uma entrevista com Luiz Antonio de Assis Brasil e um ensaio sobre Euclides da Cunha. possvel enviar textos para [email protected]. E j fica o alerta dos editores: Publicamos somente o que gostamos, unicamente. Simples assim.

    eM edio juvenilO livro autobiogrfico Eu sou Malala, da paquistanesa vencedora do Nobel da Paz Malala Yousafzai, ganha em fevereiro uma edio juvenil pela Seguinte (selo jovem da Companhia das Letras), com ilustraes de Patricia McCormick.

    contos coMpletos de WilliaM tRevoREm 2015, o selo Biblioteca Azul, da Globo Livros, lana os Contos completos do multipremiado escritor irlands William Trevor. Em 2014, o selo j publicou os romances A histria de Lucy Gault e A jornada de Felcia no site do Rascunho (rascunho.com.br), voc pode ler a resenha sobre essas duas obras.

    elisabetH Roudinesco na ZaHaRA historiadora da psicanlise Elisabeth Roudinesco faturou 30 mil euros ao vencer o prmio francs Prix de Decmbre 2014 pela biografia Freud dans son temps et dans le ntre. O livro ser publicado este ano no Brasil pela Zahar.

    RubeM fonseca coMpletoCom a reedio dos ttulos A confraria dos espadas, O buraco na parede e O romance morreu, a editora Nova Fronteira finalizou o trabalho de reedio da obra completa de Rubem Fonseca. Desde que chegou editora, Fonseca publicou trs inditos: Jos, Axilas e outras histrias indecorosas e Amlgama, vencedor do Jabuti 2014 na categoria Contos e Crnicas.

    paRa MulHeResCom o objetivo de estimular a produo de literria de jovens autoras, entre 18 e 35 anos, a Unibrasil promove o Concurso de Contos Dirce Doroti Merlin Clive. A inscrio gratuita e poder ser feita de 26 de janeiro a 20 de fevereiro. A lista das dez classificadas ser divulgada at 6 de maro, com premiao em dinheiro para as trs primeiras. Regulamento completo no site unibrasil.com.br.

    pRMio apca

    A Associao Paulista de Crticos de Artes (APCA) divulgou os vencedores da 59 edio do prmio. Mais de 50 crticos se reuniram no Sindicato dos Jornalistas do Estado de So Paulo e elegeram as melhores produes do ano. O recm-lanado O irmo alemo, de Chico Buarque, faturou na categoria Romance; Caetano Galindo voltou a faturar, desta vez pela traduo do calhamao Graa Infinita, de David Foster Wallace; o Grande Prmio da Crtica foi para Joo Adolfo Hansen e Marcello Moreira pelos cinco volumes Gregrio de Matos; com Mesmo sem dinheiro comprei um esqueite novo, Paulo Scott venceu na categoria Poesia; Contos e Crnicas foi para Srgio SantAnna, por O homem-mulher; e Paulo Tatit ganhou na categoria Infantojuvenil com A incrvel histria do Dr. Augusto Ruschi.

    novo RascunHoO novo Rascunho est demais. Visualmente lindo. Parabns!Edson Cruz So Paulo SP

    Ficou lindo demais e bom de ler o Rascunho em novo formato. Maravilha gutenberguiana.Xico S So Paulo SP

    O novo formato do Rascunho est muito melhor, mais acessvel e pratico leitura!Clio Borba Curitiba PR

    Parabns pelo novo formato. Ficou inovador! Gostei. E o contedo... Sempre marcante.rodolfo Morbiolo Sorocaba SP

    Folgo em saber que a polpuda quantia dispendida para assinar o Rascunho est sendo bem aproveitada. O novo formato est uma beleza! Parabns.Sergio Napp Porto Alegre RS

    A leitura do jornal ficou muito mais prazerosa com o novo formato. Aumentando a mobilidade, aumenta o alcance. Agora, consigo abrir e ler no metr e nibus sem grandes malabarismos. Sei que no nada demais, mas gostaria de deixar registrado. Est aprovadssimo.Yan Braz Rio de Janeiro RJ

    O Rascunho mudou para melhor! Com a inovao, est marcando mais um grande feito. a vitria da perseverana, determinao, credibilidade dos leitores e da garra do pessoal que faz literatura com inteligncia. Lus Santos Curitiba PR

    Parabns pelo novo Rascunho. Tanto eu quanto os demais leitores estamos certos de que Deus acertou em ajudar voc e os outros rascunheiros na mudana para melhor. Helena Ferreira Rio de Janeiro RJ

    Gostei demais do formato adotado pelo Rascunho na edio 175. Ficou excelente! Sempre gostei muito do jornal, mas tamanho (o comprimento, para ser exato) at a edio 174 tornava mais difcil a leitura. Agora, est timo.Valdinar Monteiro de Souza Marab PA

    joRnalisMo cultuRalQuero parabenizar o Rascunho #174 [outubro de 2014], pelas excelentes matrias sobre (todas englobando) o jornalismo cultural brasileiro [refere-se ao Especial Dossi Rumos Jornalismo Cultural, que discorreu sobre o jornalismo cultural contemporneo].Cunha de Leiradella Pvoa de Lanhoso (Portugal)

    [email protected]

    janeiro de 2015 | | 3

    divulgAo

    mAri

    nA pi

    lAto

    divulgAo

  • 4 | | janeiro de 2015

    H quem acredite (e defenda essa te-se com veemncia) que s se conhece um lugar quando se est nele, quando se viaja at ele. E mesmo comum empre-gar o verbo conhecer nesses ca-sos: conheci Pequim, conheci Istambul. Discordo tragica-mente dessa opinio: uma expe-rincia turstica de trs ou quatro dias no pode, para mim, mere-cer o nome de conhecimento.

    Por isso, considero um desperdcio gastar dinheiro com passagens e hotis quando h li-vros muito mais baratos, quando h romances que nos fazem co-nhecer agora no sentido mais rigoroso do termo um lugar.

    01.11.1987Visita casa de Drum-

    mond para conversar com Pedro o neto a respeito do livro iconogrfico sobre CDA, com texto e organizao meus, a ser editado em So Paulo. Emoo j de andar naquelas proximida-des onde morava o poeta... De-pois, a portaria e o elevador. O elevador subindo e eu pensando: por dezenas de anos Drummond subiu aqui com que pensa-mentos? Quais necessidades? So-lido? Eu na caixa dele, com ele. A porta do andar: o espelho dourado onde ele se mirava ao chegar. Batia para abrir a porta?

    L, encontro o neto Pe-dro e a viva Dolores, que vem apoiada numa bengala mas for-te e bem falante. E Octvio Al-varenga. Eu sem querer invadir, passar dos limites. No profanar.

    Ali, o sof. Nos sentamos a tagarelar. Dolores contando que viveu com o poeta durante 62 anos cinco de namoro; que ela era de Mar de Espanha e viveu na Rua Direita, em Juiz de Fora. Ex-pliquei-lhe o sentido do nome Mar de Espanha: l, a rua central pavi-

    os tamBores de so lus

    drummoNd, adlia, guilHerme

    Penso, por exemplo, em Os tambores de So Lus, de Josu Montello. Talvez no ha-ja, talvez no seja possvel escre-ver outro texto que descreva So Lus, que explique So Lus, que funde So Lus como esse ro-mance. Nem toda a vasta obra romanesca do prprio Josu, que tem a mesma cidade como cena bsica, alcana tal faanha. E es-tou falando de um corpo de 26 romances, publicados entre 1941 e 2001. Quando estive l, no vi nada que j no tivesse lido.

    A ao principal se passa em 1915, e dura apenas algumas horas, enquanto o velho Damio caminha pelas ruas da cidade. madrugada, mas ele vai testemu-nhar o nascimento do seu trine-

    mentada de mrmore de Espanha.Dolores se levanta com ajuda

    da bengala, mostrando orgulhosa o quadro O negro, de Portinari, que, diz, precisa ser restaurado. Passeia entre os mveis e por tapetes anti-gos (sem ostentao), diria que de classe mdia decadente.

    Pedro conta do tombo do poeta quando foi homenageado na Biblioteca Nacional. Teria ti-do um pequeno desmaio? Sen-tiu-se humilhado? Depois, outro tombo, na noite de 31 de dezem-bro, ali perto da rua Gomes Car-neiro, Arpoador e o susto de toda a famlia que com ele estava.

    Em seguida me levaram ao seu escritrio. Ficamos os quatro ali, conversando: abrem livros, arquivos, pastas, o fichrio, etc. Eu estive ali h vinte anos. Fa-zia minha tese, Drummond me recebeu, emprestou-me todas as crticas literrias sobre ele. Eu es-tava morando na rua Montene-gro (hoje Vinicius de Moraes) por um semestre, e Drummond me emprestou todo o seu arqui-vo para estudo e consulta. Eu pensava em terminar a tese ra-pidamente, mas acabei indo tra-

    to. Nesse percurso, entra num botequim para comprar fsfo-ros e constata ter havido ali um duplo homicdio: o dono do es-tabelecimento est cado atrs do balco com uma pancada na cabea; e um homem desconhe-cido, vestido com roupas estran-geiras, est de bruos sobre uma poa de sangue, com uma facada nas costas. Com medo de se en-volver no crime, Damio segue seu caminho, ouvindo ao lon-ge o som dos tambores da Casa das Minas mais tradicional e importante templo de culto aos Voduns jejes (equivalentes aos Orixs nags) existente no Brasil.

    E so esses tambores ances-trais (pois Damio tinha nascido escravo) que o transportam ao

    balhar com o Fernando Gabeira na pesquisa do Jornal do Brasil, e s terminei o estudo nos Estados Unidos, um ano depois. Na oca-sio, Drummond me ofereceu um suco qualquer. S o incomo-dei outra vez, para devolver, da a meses, o material.

    Pedro diz que as cartas de Maria Julieta, sua me, para Drummond e Dolores formam pilhas e pilhas. Diz de coisas in-ditas (os poemas erticos).

    O poeta tinha poucos li-vros. O quarto-escritrio pe-queno. Ele dava/jogava fora quase tudo que recebia.

    Vi alguns santos de Alfredo Duval. Devo voltar noutra ocasio por causa do livro em andamento.

    02.12.2010Ontem, na Faculdade Pi-

    tgoras, em Divinpolis (MG), ocorreu algo raro e lindo. Ad-lia Prado, com quem, ainda na estrada, tinha falado por celular de manh, apareceu na minha conferncia. Chegou atrasada porque estava recebendo uma medalha da prefeitura de Divi-npolis, e a se sentou l atrs.

    passado e fazem a narrativa retroceder a cerca de 1830. O leitor passa a acompanhar a vida de Da-mio, que a prpria sntese da histria de So Lu-s, desde o seu nascimento numa fazenda; a fuga com o pai (que funda um quilombo); a destruio do quilombo e o retorno fazenda; seu ingresso no seminrio; sua alforria; seu casamento; e sua luta abolicionista at o fatdico encontro com o des-conhecido morto no botequim, que ir proporcio-nar o grande impacto final.

    Alm da profunda exegese que Montello rea-liza em relao cidade, Os tambores de So Lus talvez seja o grande romance brasileiro sobre a es-cravido. Damio uma personagem nica: nasce escravo, se revolta, sofre horrores inconcebveis (pa-ra ns, contemporneos) quando volta fazenda; torna-se o maior latinista do Maranho, mas ainda assim impedido de tomar ordens, por conta da sua origem; e passa por vrios percalos, perde empre-gos e amigos, porque no se cala diante dos abusos e das ilegalidades que vitimam escravos e seus descen-dentes. No tenho dvida de que Damio um dos maiores e mais humanos heris da fico brasileira.

    O romance nos d ainda uma galeria ines-timvel de exuberantes e complexas personagens negras (coisa rara na literatura do Brasil), alm de traar um dos quadros mais perfeitos da mentalida-de escravocrata, consonante com sua abjeo. Te-mo que o leitor reconhea ainda seus vestgios, nos dias que correm.

    A obra-prima de Josu Montello foi publicada em 1975, pela Jos Olmpio, tendo algumas reim-presses. Depois, foi a vez da Nova Fronteira, sendo a ltima, de 2005, integrante da coleo comemora-tiva dos quarenta anos da editora. So edies fceis de achar, em bom estado, por at R$ 20.

    Interrompi minha fala, saudei sua entrada, todos a aplaudiram. Ela continuou l no fundo.

    A palestra ia de vento em popa quando Adlia no resistiu e resolveu fazer intervenes. A foi lindo, porque virou um con-certo a duas vozes, e o pblico, que j estava ligadssimo, entrou em jbilo total.

    Depois, samos com Mar-celo Andrade, Dbora Coghi e o motorista Jos Geraldo para um restaurante portugus que a po-eta indicou. Estava vazio e nos botaram l em cima, sozinhos. Adlia recomendou um baca-lhau ao Z do Pipo. A noite foi descontrada e a poeta estava co-municativa, falante.

    Coisas interessantes a anotar:Adlia disse, de novo, que

    acredita na ressurreio da carne. Perguntei-lhe como, com que corpo? Velho? Antigo? Ela acha que com esse mesmo, mas bo-nito. Acredita mesmo.

    No dia seguinte passa-mos por sua casa. Z nos espe-rava na varanda. Entramos: tudo informal, mineiro, caseiro. Na parede, fotos de famlia; uma preciosa: do casamento de Ad-lia (vinte e poucos anos, bonita) com Z (um partido; era fun-cionrio do Banco do Brasil), eles saindo da igreja, uma poro de gente em torno, com aquelas roupas dos anos 50/60. E os dois andando na frente, felizes. Tipo boda campestre nos trpicos.

    Conversamos sobre as-suntos vrios: famlia, filhos. Ela contou que est estudando fsica quntica com Z, com um pro-fessor particular. Na sada, seu marido me diz que o professor

    manual de garimpo | alberto Mussa

    quase dirio | aFFonso roMano de santanna que paga para dar aula ou se-ja, vai l porque gosta e que h outras pessoas que participam.

    04.02.1996Visita a Guilherme Figuei-

    redo, que me mostrou seu acervo e prometeu do-lo Bibliote-ca Nacional. Vejo seus arquivos: caixas que est usando para ter-minar sua autobiografia. Fala--me da morte com naturalidade: Quando botar o ponto final no livro, posso morrer.

    Alba, sua mulher, estava na sala ao lado lendo jornal e ven-do TV, com roupa domstica. Fazia um calor danado. Contou--me coisas que j esqueci. Pena. Sinto-me um agente funerrio escrevendo crnicas.

    06.12.2014Encontrei hoje, no shop-

    ping Rio Sul, o filho de Guilherme Figueiredo, Marcelo, que se apre-sentou a mim e a Marina quando comprvamos umas camisas.

    Que prazer!, lhe disse. Estou me lembrando de quando fui casa de seu pai negociar a ida dos arquivos dele para a Funda-o Biblioteca Nacional. Mas isso no foi possvel, porque meu su-cessor era inimigo de seu pai.

    Diz-me agora Marce-lo que finalmente (quase vinte anos depois) o arquivo vai para a UNIRIO, universidade que Gui-lherme dirigiu. Marcelo viveu em Paris e conta que o pai se arrepen-deu muito de no ter aceitado a funo de diplomata na Unesco.

    Algum poderia reencenar as peas de Guilherme. Ele teve uma vida intelectual intensa. Era um grande contador de histrias.

  • janeiro de 2015 | | 5

    /itaucultural avenida paulista 149 so paulo fone 11 2168 1777 [email protected]

    Realizao

    DEIXE-SE INSPIRAR NO ITA CULTURAL

    fotos: ita

    cultu

    ral/d

    ivulgao

    AQUI A ARTE TOCA, CANTA, DANA, REPRESENTA,

    QUESTIONA, PROVOCA E TRANSFORMA

  • 6 | | janeiro de 2015

    Essa voz somos ns

    Em discurso de recepo a Ferreira Gullar

    na ABL, Antonio Carlos Secchin revisita a obra do autor de

    Poema sujo

    antonio carlos secchin

    | rio de janeiro rj

    outono de 1945. Na cidade de So Lus, um adoles-cente, nascido na Rua dos Prazeres, matriculado na Escola Tcnica, obtm nota 9,5 numa redao so-bre o Dia do Trabalho, desenvol-vendo a ideia de que exatamente nessa data ningum trabalha. Pa-ra a nota mxima, faltou apenas meio ponto, retirado pela mestra devido a dois erros de portugus. No obstante, a partir daquele momento, estimulado pelo entu-siasmo que a professora manifes-tou pelo texto, Jos de Ribamar Ferreira comeou a trilhar o ca-minho que o transformaria, poucos anos depois, em Ferreira Gullar. Se Jos nasceu em 10 de setembro de 1930, Gullar surgiu 17 anos mais tarde, com um so-neto ser coincidncia? in-titulado O trabalho, do qual cito o verso Deixo um rastro de luz por onde passo.

    Toda vossa trajetria con-sistiu em perseguir e projetar esse rastro de luz por onde quer que passastes. A luz da esperana con-tra a sombria face de um mundo hostil. A luz da alegria contra o sofrimento. A luz da lucidez con-tra a treva do obscurantismo. No por acaso, destes o ttulo Uma luz do cho (2006) ao livro em que refletis sobre vossa pr-pria poesia, assim entendida:

    Disso quis eu fazer a minha poesia, dessa matria humilde e hu-milhada, dessa vida obscura e in-justiada, porque o canto no pode ser uma traio vida, e s justo cantar se o nosso canto arrasta consi-go as pessoas e as coisas que no tm voz. (....) quis fazer [do canto] a ex-presso desse drama, o ponto de ig-nio onde, se possvel, alguma luz esplender: uma luz da terra, uma luz do cho nossa. (....) Noutras palavras: uma poesia que revelasse a universalidade latente no nosso dia, no nosso dia a dia, na nossa vida de marginais da histria.

    Ao lado do poeta que sois, convivem o dramaturgo, o fic-cionista, o bigrafo, o cronista, o tradutor, o terico e crtico de arte, o ensasta, o artista plstico, o memorialista. Vossa vasta obra representa o cabal desmentido contra o que, h muito tempo,

    Ferreira Gullar por Fbio Abreu

  • janeiro de 2015 | | 7

    algum declarou sobre a ndole dos maranhenses: No h ter-ra no mundo que mais incline ao cio, ou preguia. O autor dessa frase foi o Padre Antnio Vieira, no ano de 1654.

    H muitos Gullares num s Jos. Pelas limitaes de tem-po inerentes a esta cerimnia, circunscrevo-me a percorrer vossa produo potica, que se iniciou, sob forma de livro, em 1949, com Um pouco acima do cho, e que, por enquanto, estende-se at Em alguma parte alguma, de 2010.

    Recusa a padresDo primeiro livro ao se-

    guinte A luta corporal, de 1954 verificou-se um ex-traordinrio salto qualitativo, a ponto de considerardes, com justia, que somente na segun-da obra surge, de fato, o poeta. Quando, em 2008, organizei com vossa assistncia a Poesia completa, teatro e prosa de Fer-reira Gullar, optamos por alo-car Um pouco acima do cho em Apndice, considerando tal obra a manifestao de um escritor ainda incipiente. Alis, outros importantes autores bra-sileiros da primeira metade do sculo 20 expressaram idntica reserva frente a suas produes iniciais. Mrio de Andrade ex-cluiu H uma gota de sangue em cada poema (1917) das Po-esias completas, para inseri-lo no volume Obra imatura. Ce-clia Meireles chegou ao ponto de suprimir em sua bibliografia qualquer referncia ao inaugu-ral Espectros (1919). Portanto, parece conveniente, para poupar futuras e severas autoavaliaes, que um poeta trate logo de estre-ar pelo segundo livro.

    A luta corporal ocupa uma posio destacada na poesia brasi-leira do sculo passado, tanto no que comporta de adeus heran-a de nossa tradio lrica, quanto no que sinaliza como perspectiva da literatura a vir. No nos esque-amos de que, poca, vigorava o iderio da Gerao de 45, pro-pugnando o retorno s formas fi-xas e reclassicizao do discurso literrio contra tudo aquilo que se acusava de ser os excessos modernistas. Poesia formal-mente bem elaborada, de temas universais, avessa ao humor e apoiada num lxico de extrao nobre, impermevel, portanto, fala cotidiana e refratria a um leque de referncias mais prxi-mas do homem comum.

    Os Sete poemas portugue-ses, na primeira parte de A luta corporal, constituem ao mesmo tempo a celebrao e o epitfio do poema limpo em sua pu-reza lexical, excludo das sees subsequentes do volume, como afirmao de recusa aos padres poticos j cristalizados. Sinto-maticamente, todos os sete po-emas portugueses se constroem com formas fixas tercetos, quadras, quintilhas. Vossa insa-tisfao com o exerccio de uma

    poesia com parmetros prvios aflora no verso eu colho a au-sncia que me queima as mos. A se verbaliza a conscincia de que o artista se alimenta daqui-lo que no h, do invisvel que se oculta num real sempre pouco e pequeno para nossa fome ines-tancvel de compreend-lo. Um real em perptua fuga, inacess-vel, a deixar apenas as feridas de uma ausncia, que cintila no es-plendor de seu vazio. No mesmo poema, dizeis amada-poesia: Mas sempre que me acerco vai--se embora.// Assim persigo-a, lcido e demente. Os poetas so, a rigor, Ulisses s avessas: aventureiros que perseguem se-reias inalcanveis e ensurdeci-das. Intuem que elas jamais se deixaro conquistar, mas sabem tambm que, apesar disso, com-pete-lhes cantar at a absolu-ta exausto do derradeiro fio da voz, conforme se l no magnfico Galo galo: Eis que bate as asas, vai/ morrer, encurva o vertigino-so pescoo/ donde o canto rubro escoa.// V-se: o canto intil.

    Os demais segmentos de A luta corporal testemunham vosso embate contra tudo que representasse estabilidade po-tica, num crescendo que culmi-na, em Rozeiral, com a prpria desintegrao da linguagem, tentativa extremada de fazer o discurso nascer simultneo ao po-ema, com o risco, a implcito, de se criar um idioma artificial, na fronteira da incomunicabilidade. Cito: MU gargntu/ FU bur-ge/ MU guelu, Mu. Portanto, o poema que inventa a linguagem tambm decreta no mesmo passo a sua morte, pela intransitividade de uma fala que puro fulgor do significante num processo de imi-nente autocombusto.

    Essa vertente experimen-tal, no entanto, associada, em muitos poemas da obra, a um criativo aproveitamento do espa-o grfico, propicia que em A lu-ta corporal se percebam tcnicas e procedimentos que, pouco de-pois, viriam a ser incorporados e desenvolvidos pelo Concre-tismo. Vossa aproximao com esse movimento de vanguarda, do qual vos separastes ao julg--lo excessivamente tributrio da mecanizao/desumanizao da escrita, legou a nossas letras, em 1958, um volume de textos concretos/neoconcretos, dentre os quais o antolgico mar azul, em que, maneira de uma onda, o verso inicial se repete pois uma onda nasce da outra pa-ra logo se reelaborar, pois uma onda diferente da outra. Do mar azul, atravessamos o mar-co azul, o barco azul, o arco azul, at chegarmos claridade do ar azul.

    O eplogo do livro deixava em aberto um problema: como ir alm da desintegrao da lin-guagem? Impossvel prosseguir nessa via, que, radicalizada, con-duziria ao impasse total de um discurso na beira da no lingua-gem ou do silncio absoluto.

    Poesia socialDialeticamente, desinte-

    grastes a desintegrao, rein-tegrando o signo esfera da comunicabilidade. Surge da o O vil metal, coletnea de pe-as escritas entre 1954 e 1960. Alguns vestgios da dico de A luta corporal, a exemplo da atomizao lingustica, ainda transparecem em Fogos da flora e Definies, mas, no conjunto, despontam novas formas e te-mas, que encontraro guarida em toda vossa obra futura. As-sim a preferncia ostensiva pelo verso e estrofao livres (contra-balanada, aqui e acol, pela pre-sena de quadras em redondilha ou decasslabos); assim a extrema sensorializao ttil, visual e olfativa da realidade; a pul-sao lrico-amorosa; e o tempe-ro do humor, conforme se l no texto de despedida a um aparta-mento partilhado com dois ami-gos, no Poema de adeus ao falado 56: Meu anjo da guarda no/ levo; livro-me enfim/ desse que como um co/ me protege de mim.// Deixo-o para a casa/ var-rer e defender,/ e sumir sob a asa/ o que quer se perder). Invent-rio de perdas, no s a do anjo da guarda, mas a do demnio do Modernismo, Oswald de Andra-de, poca um nome de pouco valor no mercado de aes lite-rrio, mas que mereceu de vos-sa parte o comovente Oswald morto. Curiosamente, o livro se encerra por outro necrolgio: Rquiem para Gullar.

    De algum modo, fostes fiel a esse ttulo, matando nas produes subsequentes o poe-ta refinado em prol dos sonhos da construo de uma socieda-de mais justa. Refiro-me, cla-ro, ao perodo dos romances de cordel (1962-1967), onde o imperativo da imediata e maior comunicabilidade cobrava o pre-o da menor elaborao esttica. No exerccio da poesia social, voluntariamente sacrificastes o substantivo em prol do adjeti-vo. Tempo de crena nas utopias coletivistas que iriam redimir a populao sofrida do pas, tem-pos que se encerraram no anti-clmax de uma ditadura que vos escolheu como uma de suas v-timas preferenciais. O viajante Ulisses-Gullar teve ento de tor-nar clandestino o seu canto. Em breve o forariam a se evadir no das sereias, mas das sirenes e ho-lofotes que o perseguiam e ten-tavam acu-lo Dentro da noite veloz, ttulo publicado em 1975.

    Toda trajetria de Ferreira Gullar consistiu em perseguir e projetar esse rastro de luz por onde quer que passastes. A luz da esperana contra a sombria face de um mundo hostil. A luz da alegria contra o sofrimento. A luz da lucidez

    contra a treva do obscurantismo.

  • 8 | | janeiro de 2015

    Livro com muitos poemas que escrevestes no ex-lio, abriga igualmente algumas obras-primas de vossa vertente lrica.

    Talvez em decorrncia das perseguies que sofrestes, difundiu-se o lugar-comum de que Ferreira Gullar poeta poltico, quando, a rigor, s o fostes inteira e programaticamente na expe-rincia do cordel. O contingente lrico-reflexivo de vossa obra suplanta sob qualquer critrio, in-clusive quantitativo, o quinho especificamente poltico. Mesmo naquele perodo sob o jugo da injustia, vosso canto encontrou frestas para a celebrao amorosa, fazendo s vezes conflurem no mesmo e esperanado texto a experincia so-cial e a experincia sensual:

    Como dois e dois so quatrosei que a vida vale a penaembora o po seja caroe a liberdade pequena

    Como teus olhos so clarose a tua pele, morenacomo azul o oceanoe a lagoa serena

    como um tempo de alegriapor trs do terror me acena

    e a noite carrega o diacom seu colo de aucena

    sei que dois e dois so quatrosei que a vida vale a pena

    mesmo que o po seja caroe a liberdade pequena

    H outras peas de intensa celebrao sen-sorial, a exemplo do originalssimo Vero, em que a voluptuosa atmosfera dos trpicos vos propicia a leitura do estio comparado a um bicho que no aceita a extino, e que, mesmo em seus estertores, ainda vibra como uma conclamao vida:

    A carne de fevereirotem o sabor suicidade coisa que est vivendovivendo mas j perdida.

    Mas como tudo que viveno desiste de viver,fevereiro no desiste:vai morrer, no quer morrer.

    O vento que empurra a tardearrasta a fera ferida,rasga-lhe o corpo de nuvensdessangra-a sobre a Avenida

    E nesse esquartejamentoa que outros chamam vero,fevereiro ainda em agoniaresiste mordendo o cho.

    Sim, fevereiro resistecomo uma fera ferida. essa esperana doidaque o prprio nome da vida

    O veio memorialstico, aqui presente em A casa e Fotografia area, passa a ocupar toda a cena no livro seguinte, o Poema sujo, editado em 1976, e de pronto reconhecido como obra mpar na poe-sia brasileira do sculo 20. Num fluxo ininterrupto ao longo de dezenas de pginas, em vez de retra-tar a nostlgica e pitoresca So Lus da infncia, resguardadas ambas, cidade e infncia, na redoma protetora e distanciada de um l, esse livro-poe-ma expressa a ecloso avassaladora de um espao e de um tempo longnquos, mas que se tornam pr-ximos e contemporneos de vosso gesto de escrita: um ontem vivenciado como se estivesse renascen-do com transbordante intensidade no prprio mo-mento da enunciao do texto. Da a flutuao dos

    tempos verbais, num contnuo trnsito entre pre-sente e pretrito. No apenas as temporalidades se justapem (Muitos/ muitos dias h num dia s); tambm os espaos se interpenetram (O homem est na cidade/ como uma coisa est em outra/ e a cidade est no homem/ que est em outra cidade).

    O gosto da frutaA densa e escura carga de sofrimento encap-

    sulada Dentro da noite veloz aparentemente cede passo esperana de luz contida Na vertigem do dia, livro de 1980, sobretudo se acreditarmos rpi-do demais no ttulo do poema de abertura do vo-lume: A alegria na verdade, um de vossos mais duros e dodos textos:

    O sofrimento no temnenhum valor.No acende um haloem volta da tua cabea, noilumina trecho algumde tua carne escura

    A dorte iguala a ratos e baratasque tambm de dentro dos esgotosespiam o sole no seu corpo nojentode entre fezesquerem estar contentes

    Na vertigem do dia estampa, ainda, o cele-brado Traduzir-se. Aps desenvolver uma srie de antinomias entre um eu ntimo, excntrico, e um eu pblico, socivel, o poema se encerra com a su-gesto de que a arte residiria no em um ou outro polo, mas na coabitao, tensa embora, dessas me-tades aparentemente inconciliveis: Traduzir uma parte/ na outra parte/ que uma questo/ de vida ou morte / ser arte?. Sim, inclusive porque ar-te um signo j contido no bojo da palavra par-te. Quando se desconstri a parte, eliminando-se o p inicial, ela deixa emergir, de dentro de seu cor-po fragmentado, a inteireza da palavra arte.

    Barulhos, de 1987, dialoga acusticamente com Muitas vozes, de 1999. No primeiro, avulta o repertrio de perdas Oduvaldo Viana Filho, Cla-rice Lispector, Armando Costa, Mrio Pedrosa e intensifica-se vossa vertente metalingustica, como em Nasce o poema, relato da gnese de um texto, cujo estmulo, deflagrado em 1955, s materiali-zou-se em 1987, num testemunho de que dados imponderveis interferem no ato criador. Tambm metalingustico O cheiro da tangerina, no questio-namento da relao, nunca resolvida, entre os obje-tos e as palavras que supostamente os representam. Na mesma direo se insere, no livro de 1999, o po-ema No coisa: O que o poeta quer dizer/ no dis-curso no cabe/ e se o diz pra saber/ o que ainda no sabe.// A linguagem dispe/ de conceitos, de nomes/ mas o gosto da fruta/ s o sabes se a comes.

    No prefcio a Em alguma parte alguma, de 2010, pude observar:

    Poesia meditativa, sim, mas cuja alta reflexo no elide, antes convoca, a ostensividade da matria, em todas as suas dimenses. Versos banhados em luz (em especial, a das manhs maranhenses), versos atra-vessados pelos rudos de risos e gorjeios, abastecidos no sabor de peras e bananas, aconchegados na epiderme feminina, embriagados pelo odor dos jasmins em nossa poesia, Gullar quem mais se destaca numa li-nhagem que erotiza o corpo do mundo. (...) Subjaz nessa poesia uma nota renitente de que o homem condenado sua arbitrria individualidade e s lhe resta inventar por exemplo, na arte outras orde-naes ou desordenaes do real, em que a morte seja vencida, os encontros sejam possveis, e as coisas enfim, ganhem algum sentido.

    Gostaria, por fim, de enderear essas conside-raes para um terreno mais pessoal, destacando os laos de amizade que nos unem. Importa destacar, em vossa biografia, os vigorosos princpios ticos que a norteiam, e a correlata manifestao de tais valo-

    o autorFERREiRA GuLLAR

    Jos Ribamar Ferreira, mais conhecido como Ferreira Gullar, nasceu em So Lus do Maranho (MA), em 1930. Nos anos 1950, mudou-se para o Rio de Janeiro (RJ). Publicou diversos livros de poemas, como o clssico Poema sujo (1976), e ensaios sobre arte e cultura, entre eles Experincia neoconcreta. Resmungos (2006) foi premiado com o Jabuti de Melhor Livro de Contos e Crnicas.

    prateleira

    Ferreira Gullar

    Poema sujoJos Olympio112 pgs.

    BaruLhosJos Olympio108 pgs.

    Dentro Da noite velozJos Olympio120 pgs.

    a luta corPoralJos Olympio156 pgs.

    muitas vozesJos Olympio128 pgs.

    na vertiGem Do DiaJos Olympio96 pgs.

    Bananas PoDresCasa da Palavra64 pgs.

    res no decurso de vossa produo literria, a ponto de eu haver de-nominado Gullar: obravida um estudo que lhe dediquei, com os dois substantivos comuns reu-nidos nesse neologismo. No vou deter-me nos percalos que enfrentastes, tampouco no de-sassombro e na altivez de vossa re-sistncia frente ao arbtrio. Prefiro concentrar-me nos anos mais re-centes, marcados por episdios fe-lizes, como o recebimento da mais alta lurea desta instituio, o Pr-mio Machado de Assis, em 2005; a obteno do ttulo de Doutor Honoris Causa, conferido pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, em 2010; no mesmo ano, vossa vitria no Prmio Cames; no dia 9 de outubro de 2014, vos-sa eleio para a Casa de Gonal-ves Dias, chamemo-la assim, em homenagem ao patrono da cadei-ra 15 e vosso conterrneo.

  • janeiro de 2015 | | 9

    Agora, simbolicamente, 69 anos depois, a Academia Brasileira de Letras vos restitui aquele meio ponto que a pro-fessora subtraiu na redao de 1945: aqui, sem dvida, fostes acolhido com a nota mxima. Neste 5 de dezembro de 2014, respaldado por votao con-sagradora, assumis a cadeira 37, honrando a representao de um estado nordestino que j contribura com o expres-sivo montante de dez escrito-res para o quadro de membros efetivos da Casa. Como fostes jogador de futebol na equipe juvenil do Sampaio Correia, podemos afirmar que, com a entrada na Academia do d-cimo primeiro maranhense, a escalao do time estadual fi-nalmente se completa.

    Sinto-me particularmen-te sensibilizado pelo fato de su-cederdes Ivan Junqueira, de quem fui amigo muito prxi-mo antes mesmo de nossos dez anos de convvio acadmico, e a quem homenageastes num belo discurso. Vrios elos co-nectam nossas trs vidas. Ivan e eu dirigamos a Revista Poesia Sempre quando, em 1998, nos concedestes aquela que talvez seja a mais extensa e relevan-te entrevista sobre vossa obra, espraiando-se por 42 pginas. Ivan foi editor da Revista Pira-cema, quando estivestes frente da Funarte. No ano 2000, vosso antecessor assumiu a cadeira 37, na vaga de Joo Cabral de Me-lo Neto, outro escritor de mi-nha particular considerao. Por fim, expresso a alegria de nesta noite receber o poeta que suce-de ao poeta que me recebeu em 2004. O destino atou com per-feio as pontas desse tringulo delicadamente tramado na con-fluncia do afeto e da poesia.

    Em Y-juca-pirama, de Gonalves Dias, declara um personagem: Em tudo o rito se cumpra. Nos primrdios da ABL, todos os discursos de recepo, ditos de resposta, utilizavam a segunda pessoa do plural, o vs; tal tradio es-t longe de se extinguir, pois, j no sculo 21, das quinze mais recentes saudaes, oito se va-leram dessa forma de tratamen-to. Neste instante, porm, peo licena para transformar Vossa Merc em voc e para come-ter uma pequena transgresso ortogrfica: mantenho o vs, mas retiro o acento agudo e troco o s pelo z.

    Quero louvar a voz de um poeta maior que ingressa na Academia Brasileira de Le-tras. Com a tcita concordncia de tantos confrades que lhe su-fragaram o nome, despeo-me com a citao de um verso em que voc proclama a vocao agregadora da palavra potica, convidando a que todos nela se reconheam. Assim, comparti-lhando a alegria de sua chegada a esta Casa, ouso dizer que hoje Essa voz somos ns.

    a luta corporal ocupa uma posio destacada na poesia brasileira do sculo passado, tanto no que comporta de adeus herana de nossa tradio lrica,

    quanto no que sinaliza como perspectiva da literatura a vir.

  • 10 | | janeiro de 2015

    A falncia do glamour

    Protagonista do novo romance de Edney Silvestre o prprio retrato do fim de uma poca

    Maurcio Melo jnior | braslia dF

    o novo romance de Edney Silves-tre, Boa noite a todos, no , de sorte, um roman-ce, mas a juno de trs gneros num nico volume: uma nove-la, um monodrama, um ensaio. No que o autor se entregue ao experimentalismo de unir de ma-neira hbrida todos os gneros. Aqui, o processo outro. Edney escreveu de fato uma novela que, j neste processo, descobriu ter certo potencial para o teatro, da nasceu o monlogo. Finalmente, se dedicou a redigir um breve en-saio onde mapeia o curso de sua criao. O resultado um livro em que, alm dos temas caros ao enredo, tambm se discute as v-rias possibilidades de narrar uma histria. Isso pode at parecer pouco, mas num instante em que cada vez mais o escritor desmi-tificado e abandona sua famige-rada torre de vidro, a opo de Edney muito bem-vinda.

    Todo o enredo parte da dis-posio de Maggie, a protagonis-ta, de se jogar do andar mais alto de um hotel de luxo construdo exatamente no lugar da antiga ca-sa de seu av, e onde ela nasceu. , a rigor, o fechamento de um cr-culo, que vai da opulncia faln-cia. Para tanto, gasta seus ltimos centavos: Chegou ao hotel em um txi. Trazia duas malas. Em uma levava os trs livros favoritos. Na outra, a roupa para o salto. tudo o que lhe resta, alm de uma memria esparsa e falha sobre to-das as etapas de sua vida glamoro-sa. Ao rapaz que levou sua pouca bagagem at o quarto d o ltimo dinheiro de que dispunha.

    Maggie se preocupa com o que ser feito desses restos. Quer seu corpo cremado, mas aquela parca e pobre herana talvez no interesse nem mesmo sua ni-ca parente viva, a sobrinha An-tonia, com quem no mantm qualquer relao. Tudo enfim se perdeu. E ela teve uma vida rica e instigante. O pai vinha de uma famlia de posses e sobrevivia co-mo servidor do Instituto Brasilei-ro do Caf em Londres. Isso dava a Maggie, que se acha parecida

    (In)VerossmilA grande diferena de Boa

    noite a todos est na estrutura narrativa. Na novela ainda surge um narrador onisciente que rea-parece sempre que se faz neces-srio inserir a protagonista num determinado contexto.

    Maggie d trs passos, pa-ra, olha em volta. A sute Marcel Proust o arremedo de um peque-no salo parisiense do incio do scu-lo 20, buscando um requinte mais imaginado do que real, atulhado de mveis demasiadamente dourados, poltronas e cadeiras forradas com tecidos inadequadamente mornos, uma grande cama coberta por uma colcha excessivamente cintilante.

    Como se v, este narrador comunga das mesmas sauda-des de Maggie, saudades de to-do um universo do passado que se desfez nas novas leis ditadas pelos novos ricos segundo a personagem, chefes de jogo do bicho, pastores evanglicos de igrejas recm-inventadas, delega-dos enriquecidos com propinas e chantagem, misses vivas de ve-lhos ricos, escroques internacio-nais, polticos corruptos.

    Mas Maggie, narradora de toda a pea e da maior parte da novela, uma depoente in-fiel. Alm de suas idiossincrasias, frustraes, mgoas e rancores, est revestida por imensas falhas de memria. Ou seja, ela mesma no d certeza de nada.

    Ainda vi o corpo de minha me sendo levado na maca. O ros-to dela, to plido. Mais plido ainda do que sempre era. Acho que vi. Mas no me levaram para o ve-lrio nem vi o enterro. No consi-go lembrar o nome de minha me. Nunca se falava nela. Nunca se to-cava no nome dela.

    O recurso usado por Ed-ney Silvestre, de certa forma, es-tabelece determinado senso de perdo para Maggie. Como no perdoar uma pessoa em plena fa-lncia pessoal? E esta falhou em tudo. No conviveu com a me, no teve o carinho do pai, desfez trs casamentos, traiu a meia-ir-m, foi esquecida pela sobrinha. S lhe resta o suicdio. Seu mun-do irreal e tambm ftil, alm de insustentvel.

    Com uma linguagem qua-se rasteira, extremamente oral, a personagem se oferece como o fim de uma poca. E por tudo isso nasce como uma persona-lidade complexa, capaz mesmo de encantar o pblico de teatro. Como ser literrio, falta-lhe uma poro mais generosa de profun-didade psicolgica. Ela passa por tudo e por todos sem qualquer remorso ou culpa. A deciso pe-lo suicdio se d como uma esp-cie de tributo ao mundo que se diluiu de maneira definitiva.

    No entanto, a opo por retratar Maggie como algum to superficial talvez tenha sido uma deciso acertada do autor. Ele confessa no ensaio que co-nheceu bem este ambiente:

    trecho

    Boa noite a toDos

    Pense numa msica, Maggie. Qualquer msica. Voc gostava tanto de msica. Como era aquela cano alem que voc ouviu numa noite de gala, no Metropolitan de Nova York, aquela cano de Richard Strauss que a encantou tanto, na voz da majestosa mezzosoprano negra? Oua, Maggie.

    o autorEdnEy SiLvEStRE

    jornalista e escritor. Reprter especial da Rede Globo, foi correspondente da emissora em Nova York e atualmente apresenta o programa GloboNews Literatura. Autor de dias de cachorro louco, outros tempos e Contestadores, estreou na fico com Se eu fechar os olhos agora vencedor dos prmios Jabuti de Melhor Romance e So Paulo de Literatura, e lanado em outros sete pases. Publicou ainda A felicidade fcil e Vidas provisrias.

    Boa noite a toDosEdney SilvestreRecord204 pgs.

    Quando a personagem sur-giu, h cinco anos, seu fim j estava traado. Tal como se passa na pea e na novela. Tal como se deu na vida real. Porque Maggie, como tantos personagens de textos meus, ins-pirada em gente que existiu e com quem convivi. O que alterei, e alte-rei muito, foram traos ntimos, ca-pazes de tornar Maggie mais uma criatura de fico do que um arre-medo de algum que existiu.

    Assim, fica a lio: a um fic-cionista nem sempre dada a pos-sibilidade de reverter aquilo que Umberto Eco classificou como irrealidade do cotidiano. A vida de Maggie verossmil, sim, mas bem que poderia t-la afetado de maneira mais contundente.

    com Jacqueline Kennedy Onas-sis, um passaporte diplomtico e a possibilidade de transitar entre Londres, Nova York, Paris e o Rio de Janeiro, de onde leva objetos tropicais e exticos para vender naquilo que chama de my beau-tiful muamba. Fez trs casamen-tos, mas saiu do ltimo, com um certo PR, sem nada. Ele a trocou pela filha de um construtor, uma tolinha vinte anos mais jovem, paulistana como ele, vulgar e exi-bicionista como ele, sem um pin-go do meu refinamento e do meu trnsito internacional.

    Em outras palavras, Mag-gie uma tpica mulher do res-qucio de glamour que ainda sobrevivia na rota internacio-nal das dcadas de 1960 e 1970. Todo aquele universo parecia um reflexo meio bao da pom-pa projetada por clssicos de Hollywood como Bonequinha de luxo, de Blake Edwards, e Quan-do o corao floresce, de David Le-an, onde Veneza, Paris e Nova York so cidades mais sonhadas que vividas. Os cenrios de Ed-ney Silvestre, embora mais reais, trilham as mesmas ruas.

    divulgAo

  • janeiro de 2015 | | 11

    Nem to bonecas

    Eliana Cardoso expe o ntimo de mulheres que protagonizam seus prprios destinos

    haron GaMal | rio de janeiro rj

    o ser humano um ser cultural, vive criando transcen-dncias, sentidos e significados que vo alm do carter utilitrio de cada objeto os prprios ob-jetos em si tm seu fundamento metafsico. E a literatura a me-dida desse mundo da cultura, da transcendncia. Mesmo que no se queira mergulhar fundo, a ati-vidade de escrita acaba por revelar conceitos que esto muito alm daquilo que pensamos quando escrevemos. Apenas por isso, j se pode perceber a necessidade da imaginao. O consequente ato de contar histrias no est disso-ciado deste universo.

    Outro fato interessante que acabam sendo nomeadas co-mo arte e, no nosso caso, como literatura, as obras que tocam o carter trgico da existncia hu-mana. Os personagens tempe-ramentais, soturnos, que pouco sorriem, normalmente so os que permanecem. Corroboram os livros de Dante, Shakespeare e Dostoivski, entre outros. O prprio personagem que visita as trs esferas na Divina comdia, Hamlet ou mesmo Otelo, Ivan ou Dimitri Karamzov so pun-gentes e trgicos.

    E como situar a literatura da sutileza nessa marcha contur-bada de personagens que habi-tam a literatura universal? Pois na sutileza tambm possvel encontrar o nvel trgico da exis-tncia. Sua representao, por-tanto, no se tornar menor. o que acontece no romance Bone-cas russas, de Eliana Cardoso.

    DesnudamentoA narrativa, que aborda a

    vida de vrias mulheres, come-a com duas primas, Leda e Lo-la, num dilogo em que, como revela o ttulo do captulo, Leda aparece nua. Mas ambas j no so jovens. Leda pergunta a Lo-la: Quero saber o que voc v, ao que a prima prontamente res-ponde: Uma velha pelada.

    Este incio imprime nar-rativa certa desmistificao a res-peito do corpo feminino e, ao

    mesmo tempo, insere a sutileza como componente catalizador do que se poderia nomear de trgico. Adotando tal artifcio, a autora no apenas se contra-pe ao conceito contemporneo de beleza e a como as mulheres so vistas na sociedade, mas aca-ba conduzindo o leitor a um pa-tamar acima, fazendo-o flertar com o trgico, pois o envelhe-cimento e o perecimento esto vista. No mbito da histria, esse desnudamento podemos entender assim a alegoria ar-rasta consigo importantes conse-quncias. As mulheres no sero somente microcosmos da huma-nidade, mas se mostraro nuas tambm em relao aos seus sen-timentos e angstias.

    Apesar de o romance come-ar com uma quase brincadeira, pouco a pouco ele vai se reve-lando de uma intensa seriedade. O retorno infncia de Leda e a descrio do mundo dos adultos sob a perspectiva de uma criana alimentam buscas a tempo e ati-tudes perdidos. Estes, logicamen-te, no podem ser recuperados.

    Sua me, Francisca, foi uma artista plstica, uma ceramista, e Leda vivia em meio s obras de arte produzidas por ela. Mas a mulher no lhe dava ateno, acabou trocando marido e filha pelo amante e partindo para o ex-terior. Morando na Frana, on-de permaneceu at o fim da vida, Francisca veria a filha apenas uma nica vez. Leda a visitou quan-do j adulta, no mesmo ano em que Francisca vem a falecer. um momento pungente da narrativa.

    uma das histrias, os anjos aglo-meram-se sobre a cabea de um alfinete e se pem a formar uma incrvel escada; o desafio maior que mantenham a formao, uns sobre os outros. Aqui, por incr-vel que parea, a autora procura desenvolver uma sedutora tese sobre o tempo e o espao:

    O espao no s pode ser multiplicado como tambm dividi-do infinitamente, sem que se chegue ao nada. Bastava lembrar que era possvel dividir o tempo sem se che-gar ao tempo zero e dividir o movi-mento sem se chegar ao repouso.

    No final, 308.428 anjos posicionam-se sobre a cabea de um alfinete.

    A alegoria pode ser inter-pretada de vrias maneiras, so-bretudo num momento delicado para a instituio religiosa conhe-cida como Igreja Catlica Apos-tlica Romana. Mas o padre mantm a fantasia de Leda, con-versa com os seres invisveis e tra-duz o dilogo para ela. Ao fim, a ainda menina chega concluso de que ele acabaria expulso da igreja por promover heresias.

    ExcessosA metalinguagem tem sido

    trazida tona em muitas obras de arte, sobretudo quando se trata de literatura. Grande parte dos autores da atualidade tende a abandonar o recurso da metalin-guagem por acreditar que seu uso tornou-se desgastado nos ltimos anos, pois inmeras obras perde-ram o sentido porque passaram a ter como foco elas mesmas. Por outro lado, um exemplo de perti-nncia a novela Max Ferber, de W. G. Sebald, em Os emigran-tes. Nesse livro, no entanto, a presena do pintor alemo com sua arte fuliginosa o retrato da tragdia que se abateu sobre sua famlia e sobre grande parte da Europa em meados do sculo 20.

    Por outro lado, h autores em que este artifcio passa desper-cebido, privilegiando os aconteci-mentos e conflitos com o intuito de manter o leitor preso ao enre-do. Mas neste romance, tal como a exposio do corpo feminino apresentado no incio da narrati-va, a metalinguagem est a marte-lar sua presena, exibindo-se cada vez de modo mais intenso. Isso ocorre quando a histria centra-da na imagem de Leda, que est a escrever um dirio, ou, de mo-do mais amplo, quando a autora usa a narrativa para falar sobre ar-te. H tambm muitas menes a escritores e artistas plsticos.

    Tal atitude gera duas con-sequncias. A primeira que a narrativa pode ser permeada pela beleza das obras descritas, criando uma atmosfera de requinte. A se-gunda consequncia temerria, porque pode denotar certa insufi-cincia narrativa compensada com referncias a tais obras. No livro de Eliana Cardoso, elas so excessivas e frequentemente desviam o foco do que est acontecendo. Portan-to, cabe ao leitor julgar a pertinn-cia ou no da estratgia.

    FantasiaDentre as possveis leituras

    que Bonecas russas oferece, h a trajetria das mulheres, suas esco-lhas e tentativas de serem donas do prprio destino. Uma velha questo abordada: como amar sem que o casamento ou a mater-nidade as escravize? Muitas vezes, no af de optar pela realizao do desejo, elas so tomadas pela cul-pa, da qual jamais conseguiro se livrar. o caso de Francisca em relao a Leda. Outro fator que a juventude acaba, e todos pre-cisam se defrontar com os danos causados pelo passar dos anos, sobretudo quando se comea a envelhecer e necessria a convi-vncia com a juventude e o vigor presentes na nova gerao.

    Quanto forma, o roman-ce dividido em vinte captulos (todos com ttulos) e construdo por vrias vozes. Quase todos os personagens principais e so muitos tm o seu momento de narrador. H tambm captu-los compostos por cartas e men-sagens de e-mail. Essa estratgia torna a narrativa difusa, acentu-ando as caractersticas de cada personagem e ressaltando a frag-mentao, j discutida e sempre retomada na literatura desde o incio do sculo 20.

    O fantstico tambm se apresenta num dos captulos, narrado a partir da perspectiva de Leda, que sempre gostou de inventar histrias. Eis o resumo do trecho. Leda visita um excn-trico padre chamado Mateus, que teima em afirmar que con-versa com anjos e arcanjos. Em

    trecho

    Bonecas russas

    Fui visit-la em 2007 numa viagem a Paris. Ela continuava elegante e se perfumou para caminhar comigo nos jardins de Luxemburgo. Parecia mais jovem do que eu. Ainda gostava de ostras e champanha. Tinha abandonado a cermica a pedido de cher, que perdera o mon e o e prolongado. Perguntei sobre o vaso violeta e ela se mostrou surpresa.

    a autoraELiAnA CARdoSo

    Nasceu em Belo Horizonte (MG). Formou-se em economia na PUC-RJ, concluiu o mestrado na Universidade de Braslia e o doutorado em economia no Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT). Trabalhou para o Banco Mundial na China, na ndia, no Paquisto, entre outros pases da sia, e foi professora da Fundao Getlio Vargas (FGV). autora de outros nove livros e tem mais de quarenta trabalhos publicados em revistas acadmicas. Atualmente, colunista do Valor Econmico e mora em So Paulo (SP). Bonecas russas seu primeiro livro de fico.

    Bonecas russasEliana CardosoCompanhia das Letras97 pgs.

    Apesar de o romance comear com uma quase brincadeira, pouco a

    pouco ele se vai revelando de uma intensa seriedade.

  • 12 | | janeiro de 2015

    O crime perdidoEm Um lugar perigoso, de Luiz Alfredo Garcia-Roza, a

    memria e o esquecimento so personagens centrais

    luiz GuilherMe barbosa | rio de janeiro rj

    l uiz Alfredo Garcia-Ro-za faz de sua atividade como escritor de nar-rativas policiais uma pesquisa. A cada livro, o autor parece testar algum limi-te do gnero, desde a porosidade na demarcao da cena do crime, at as marcas do testemunho do homem velho que constri perso-nagens que, como quem envelhe-ce, esquecem os crimes (esquecer ser um crime? e lembrar?) ou cujos depoimentos, por desim-portantes, seriam esquecidos pelo investigador. tambm esse o ca-so de Um lugar perigoso, o d-cimo primeiro romance policial do escritor que, desde O silncio da chuva, com que estreou em 1996, vem construindo uma obra com regularidade e fora na lite-ratura contempornea.

    No novo livro, acompa-nhamos a histria de Vicente Fernandes, um professor de lite-ratura aposentado aps ser diag-nosticado com uma sndrome que afeta a sua memria e o faz suprir os esquecimentos com fa-bulaes sobre a prpria vida. Para lidar com a doena, faz ano-taes em cadernetas registrando eventos de que possa se lembrar posteriormente. A trama se ini-cia aps Vicente ler, numa dessas cadernetas, uma lista com nomes de mulheres e, ao fixar-se no no-me Fabiana, associ-lo imagem de um corpo nu de mulher, sem rosto, com os membros separa-dos do tronco, como os de um manequim de vitrine. Sem po-der decidir o que fato ou ilu-so, angustia-se:

    Mas ele havia lido tambm que na memria nada se perde, que o passado se conserva integral-mente, e que o esquecimento uma defesa contra a emergncia des-se passado armazenado cada vez que precisamos recorrer a ele. Isso queria dizer que a funo maior e mais importante da memria no lembrar, mas esquecer. Esquece-mos para no nos afogarmos num interminvel tsunami de lembran-as. No caso do nome Fabiana, ele tinha apagado a lembrana, mas no tinha apagado a lista da caderneta. Essa lista ficara como signo externo de algo que fora es-quecido ou como fragmento de algo que se perdera.

    No territrio da mem-ria, delineado nas reflexes do professor de literatura, disputa--se a sobrevivncia. Saber sobre Fabiana torna-se to decisivo para Vicente porque sabe que o esquecimento no um apa-gamento, mas uma rasura: o ra-bisco, a ilegibilidade convidam leitura do que se esconde, do que se considerou um erro. E por is-so esquecer no significa uma destruio da linguagem, mas antes, na medida em que o ra-bisco, o risco ilegvel j so uma forma de escrita, esquecer tam-bm uma maneira de falar. por isso tambm que Vicente, an-gustiado com o nome intrigan-te que lhe aparece na caderneta, mergulhando em lembranas

    Luiz Alfredo Garcia-Roza por Robson Vilalba

  • janeiro de 2015 | | 13

    o autorLuiz ALFREdo GARCiA-RozA

    Nasceu em 1936, no Rio de Janeiro (RJ). Aps trilhar carreira como professor de filosofia e psicologia na UFRJ, estreou na literatura em 1996, com O silncio da chuva, e desde ento publicou onze narrativas policiais.

    um luGar PeriGosoLuiz Alfredo Garcia-RozaCompanhia das Letras264 pgs.

    A consistncia da obra de Garcia-Roza reside nessa densidade reflexiva de fundo, que tanto bebida na tradio do romance policial quanto no recurso que possibilita a pesquisa livro a livro do narrador a psicanlise.

    das quais no pode saber a ve-racidade, conclui: A memria um lugar perigoso.

    Suspense inusitado expectativa de um ro-

    mance policial, o ttulo do livro, Um lugar perigoso, conduz a imaginao do leitor cena do crime. E, de fato, ao longo do livro, a dificuldade em estabele-cer tal cena produz um suspen-se inusitado (e ao mesmo tempo caro obra de Garcia-Roza): h crime? Pois o h em sentido la-to: se a memria o lugar peri-goso, ento a memria a cena do crime. Mas de que crime se trata ento, e qual a necessidade de investig-lo? Parece que o en-godo em que cai o leitor com o ttulo uma pista forte. Por um lado, a confiar na linguagem, a cena do crime , de fato, a me-mria. Por outro, a desconfiar da linguagem, o leitor tende a esquecer que a palavra lugar pode localizar um espao simb-lico. Se o crime a cena em que a lei no foi cumprida e a verdade no foi estabelecida, ento ter sido algo como um crime a am-biguidade desse ttulo, que sus-pende a verdade do sentido das palavras espera da leitura in-vestigativa que restitua a unici-dade semntica. Em se tratando de literatura, se a unicidade do sentido no puder ser restituda, pode-se consider-la um crime de lesa-linguagem.

    A consistncia da obra de Garcia-Roza reside nessa densi-dade reflexiva de fundo, que tanto bebida na tradio do ro-mance policial quanto no recurso que possibilita a pesquisa livro a livro do narrador a psicanlise. Ao longo do romance, o profes-sor Vicente ocupa-se em traduzir para o portugus, por encomen-da de uma editora, os contos de Poe. E o prprio narrador que, ao descrever Vicente buscando recordar-se de traos de memria que o conduzam ao nome de Fa-biana, o situa numa impossvel sesso psicanaltica em que fos-se ao mesmo tempo psicanalista, paciente e arquelogo.

    Ricardo Piglia, num de seus brilhantes ensaios chama-do Os sujeitos trgicos (literatura e psicanlise), dedica-se a elabo-rar a relao entre psicanlise e gnero policial, defendendo que o detetive (inveno de Poe), que procura interpretar ( um lei-tor) os sinais do que aconteceu, cuja existncia o indcio de que a polcia funciona mal (pois os crimes pululam), o derradei-ro intelectual, mostrando que a verdade j no est nas mos dos sujeitos puros do pensar (como o filsofo clssico ou o cientista), mas deve ser construda em situ-ao de perigo, funo que passa a encarnar. A impureza do pen-samento detetivesco, diferen-temente da tragdia, na qual o personagem investiga a verdade da prpria vida, consiste em um (o detetive) interpretar a vida do outro (o criminoso) na qual se acha estranhamente implicado. No heri trgico, o analisando;

    no detetive, o analista: segundo Piglia, a psicanlise tem algum parentesco com essas formas.

    Sem cadverA estranha implicao do

    detetive no caso se d por ini-ciativa do professor Vicente, que procura a polcia para rela-tar a insistente imagem da mu-lher desmembrada, associada ao nome de Fabiana na caderneta, associada sndrome de que portador, sugerindo-se como sus-peito de ter cometido um crime que no se sabe se ocorreu. O de-legado Espinosa, o personagem central da obra de Garcia-Roza, considera a histria curiosa mas a princpio sem interesse policial pois no h cadver. Ao que Vi-cente, intrigado, pensa:

    Ento era um cadver o que estava faltando. Sem cadver no h crime. Um corpo atirado num alto-forno dissolve-se por comple-to, transformado em fumaa. Isso elimina o crime? O fogo intenso, ao eliminar o corpo, elimina o crime e consequentemente o criminoso?

    Vicente d-se conta das implicaes ticas de a cena do crime ser o sujeito. poss-vel que o paradigma de tal cena seja o nazismo. E, no Brasil, a ditadura civil-militar e seus de-saparecidos (ou seja, sequestra-dos, torturados, assassinados). como se reconhecer o sujeito como cena do crime fosse o tur-ning point para a construo de uma tica que no se restringe aplicao da lei, de uma tica na qual o lugar de fala do sujeito , ao mesmo tempo, o lugar de fala do outro. Como se, ao fazer jus proposio de Lacan o incons-ciente o discurso do Outro, o consciente que fala com base na cidadania reconhea que esta fa-la, tracejada pelo inconsciente, tambm a fala do Outro.

    O crtico Karl Erik Schol-lhammer estudou as transfor-maes da cena do crime na literatura moderna no ensaio de abertura de seu livro Cena do crime: Violncia e realismo no Brasil contemporneo, publi-cado em 2013. Ao flagrar, to-mando como paradigma a obra de Rubem Fonseca, uma trans-formao na compreenso da funo do detetive como agen-te da racionalidade, tpica das narrativas policiais do sculo 19, Karl Erik prope o crime e sua cena como cena de des-conhecimento progressivo para o investigador, que quanto mais sabe sobre o que aconteceu me-nos sabe sobre por que, como, quando, onde aconteceu.

    Assim, a crise do detetive como agente da racionalidade do sculo XIX torna-se emblema de uma narrativa ctica que ques-tiona tanto a integridade do su-jeito da ao quanto o alcance de sua razo. Surge da uma cegueira por parte do sujeito em busca da verdade, e o crime passa a ocupar na narrativa policial o ponto focal dessa limitao de conhecimento,

    interrompendo a iluso de uma coerncia causal entre o acontecimento e suas condies. Como consequncia, a prpria temporalidade narrativa colocada em questo na cesura entre a causa e o efeito que no ser mais sutu-rada por uma explicao final.

    Para uma narrativa cujo cadver a memria pois ela que morre para o professor Vicente a ce-gueira de que fala o crtico comea por ser enunciada pelo prprio criminoso, de modo que para o detetive a cena do crime o outro. Assim o detetive encon-tra o analista, com a funo de ajudar o criminoso a construir a cena do crime, trabalhando em prol da enunciao do crime silenciado. J que, como afirma o narrador durante uma reflexo do professor Vicen-te, mais fcil enterrar um cadver real do que uma ideia de cadver, ento a funo do detetive preser-var a ideia de cadver, procurando restitu-la ao crime, localiz-la na cena confessional.

    O delegado Espinosa precisa localizar-se diante do suposto criminoso de modo que torne vivel ver, em algum momento da investigao, a cena do cri-me. Trata-se de posicionar a sua escuta diante da fala do outro. A narrativa acompanha a construo des-se posicionamento. E, em dado contexto, o instru-mento de conhecimento de que dispe o delegado a metfora:

    Ento, continuo acreditando que a memria do professor Vicente como uma estrada malconservada, com grande quantidade de buracos, alguns capazes de engolir um carro, o que a torna perigosa e, em certos tre-chos, intransitvel; o professor Vicente o operrio que, solitariamente e com uma mquina de asfalto j danifi-cada pela prpria estrada, preenche os buracos refazendo sua suposta continuidade. No o vejo como um indiv-duo perigoso, o que vejo como perigosa a sua memria.

    A disponibilidade para o trnsito nessa estrada, ainda que malconservada, chama a ateno. como uma estrada pblica, essa memria, onde no se paga pedgio para transitar, onde no h engarrafamentos pois poucos se interessam por percorrer essa mem-ria. Sobretudo interessa tal estrada pois ela pode con-duzir cena do crime. No culpa do operrio se o seu recurso de manuteno da estrada j no funcio-na to bem.

    Qualquer estrada da memria pode conduzir cena do crime? Em sentido lato, sim. Como juntar os membros da mulher lembrada? Ter sido um cri-me deixar de fazer parte dela, ao nascer? Mas quem disse que se trata da me? E quem disse que no? Co-mo sobreviver a uma memria que sabe que esqueceu mas pode ter inventado? E no parece, ao final dessa leitura, que a literatura uma maneira de inventar as lembranas daquilo que foi esquecido? Que a literatu-ra confere o testemunho de quem escreve, s que pelo avesso? Um escritor aos 78 anos, que viveu como pro-fessor de teoria da psicanlise at cerca de 60 anos de idade, quando se tornou escritor policial, no estar ele experimentando, junto com o professor de litera-tura Vicente, esquecer-se do crime de lesa-linguagem que a literatura?

    A literatura policial flerta, por definio de g-nero, com a subliteratura, com a literatura que esque-ce a linguagem com que se constri. Seu parentesco com a linguagem jornalstica, com o submundo do crime e da polcia, com a semioficialidade do dete-tive, a sua estrutura narrativa mais ou menos codifi-cada, tudo isso contribui para essa proximidade do gnero com a literatura popular, o que ironizado pe-lo narrador ao focalizar Vicente em sua sndrome de esquecimento: Claro que no temia ter se transfor-mado numa grande barata, mas temia no reconhe-cer a imagem refletida no espelho. Entre Kafka (e a metamorfose em inseto de Gregor Samsa), Machado de Assis e Guimares Rosa (e os personagens de seus contos que no se reconhecem diante do espelho), a cena de Garcia-Roza desenha no sem ironia a obviedade da verossimilhana: Claro que.... Pois, ao contrrio dos personagens de Machado e Rosa, Vi-cente sabe que sofre de uma sndrome que pode faz--lo, durante uma crise, no se reconhecer diante do espelho. Esse substrato narrativo lgico o que torna a leitura de uma narrativa policial to fluida, em geral, com a sensao de que, relevando-se as ironias atra-vessadas, parece verdade.

  • 14 | | janeiro de 2015

    Solido e esquecimento

    As fantasias eletivas um breve e mltiplo romance, cuja principal fora est na poesia

    Paula cajaty | rio de janeiro rj

    N a voz de Fernando Pessoa, um roman-ce uma histria do que nunca foi, e assim toda a litera-tura tecida, sendo capaz de se transformar nessa agradvel for-ma de ignorarmos a vida.

    Na histria de Carlos Hen-rique Schroeder, dois persona-gens desconcertantes ganham vida: um recepcionista de hotel em Balnerio Cambori, desti-no comumente escolhido para as festas e badalaes prprias de uma cidade beira-mar. Ren, na busca pelo esquecimento de si prprio e de seus sucessivos fra-cassos, j quase fora assassinado e tentara o suicdio jogando-se ao mar, em uma tentativa que tam-bm terminou frustrada.

    Machista e revoltado com sua situao emocional e fami-liar, Ren hostiliza a segunda per-sonagem principal, Copi, um travesti argentino, de personali-dade intensa e profunda, que se debrua perigosamente sobre as margens desse rio que a solido. Nos primeiros contatos, Copi en-trega-lhe o seu book, mas Ren prefere recomendar aos hspedes os servios sexuais de prostitutas e nega qualquer contato com Co-pi. No entanto, ela habilmente se aproxima oferecendo-lhe algo ra-ro, que poderia brevemente se as-semelhar a amizade, com toques de delicadeza, sutileza, compa-nhia e sensibilidade.

    At o desfecho da histria de Ren e Copi, nada demais. Uma histria simples, factvel, por vezes divertida e em outras melanclica, com dilogos bem estruturados e escrita de forma bastante hbil. Ren recusa ve-ementemente as digresses filo-sficas da ento j amiga sobre as questes mais srias da vida, naquele delicioso embate entre o cego que no quer ver e o l-cido que insiste em lhe exibir e fustigar sentidos. As fantasias eletivas somente se torna um li-vro complexo e notvel quando, aps a histria de Ren e Copi, o autor junta o pequeno caderno de fotos e pensamentos dela, que se considerava artista, boa escri-

    tora e fotgrafa e dedicava seu tempo livre a investigar a solido e o esquecimento.

    Atravs da literatura, tam-bm Copi buscava escrever para esquecer de si mesma (novamen-te Pessoa) e para lembr-la da so-lido de todos at mesmo dos objetos que a cercavam. Em que medida os seres humanos so si-milares a produtos descartados, a bens descartveis e que j no apresentam seus dons de seduo? Ren segue descortinando os se-gredos de Copi junto com o lei-tor, a cada foto, a cada poema, a cada texto, a cada continuao da histria de ambos, depois de tudo.

    As vigasObsesses, essas vigas que

    estruturam a ars poetica, ingre-dientes que alimentam prosas e poesias por todo o mundo. Foto-grafia, essa arte que se assemelha poesia, capturando os detalhes de mnimos instantes de vida. So-lido, o sentimento que pode ser igualmente veneno e remdio, in-ferno e salvao. Esquecimento, a limpeza do HD natural, esse re-curso de sobrevivncia que permite ao homem recriar o passado, eleger o que e como se lembra do passa-do, e que o preserva da loucura en-quanto apaga o registro de bilhes de segundos em sua memria.

    Como a prpria Copi afir-ma no dilogo com Ren:

    A fotografia quer capturar um instante, quer aprisionar o tempo, cada clique quer imorta-lizar um segundo. Mas para qu? Para servir ao ego, claro. Para que possamos ver este instante a hora que quisermos e mostrarmos para quem quisermos. Para dizer: olha, veja como eu vi este momento. Pa-ra repetir o momento fotografado quantas vezes quiser, para compe-tir com a vida, ultrapassar a vida. E isso torna a fotografia mais hu-mana ainda, pois ela nasce de um desejo humano de se reproduzir en-quanto imagem, de permanecer. () E hoje a fotografia uma es-pcie de sentido, talvez o sexto ou stimo sentido, e no toa que todos os celulares e os notebooks e qualquer porra vm com cmeras

    para os outros o que via tambm dentro de si mesma: um item abandonado e triste, solto, des-locado, efmero.

    Faceta mltipla nesse momento que Car-

    los Henrique Schroeder exibe sua faceta mltipla, prodigiosa e tambm mais talentosa: um au-tor de romance que capaz de criar sua personagem e depois textos em prosa e poesias que ela escreve, distanciando-se do poe-ta de voz nica que sabe cantar apenas suas prprias dores e seus prprios amores.

    Nesse ponto, volto a lem-brar de Pessoa, pois Schroeder consegue ser um fingidor de mo cheia. Ele no cria um alter--ego ou ficcionaliza a si prprio para redigir seus poemas, sua atividade criadora dupla e so-bressai uma terceira personagem principal, pode-se assim dizer, a prpria solido. Schroeder no esconde a voz lrica do poema: justamente cria a personagem e depois exibe sua criao, e uma terceira que exsurge dela.

    Ainda aqui, bom que se diga, um romancista no pode-ria ter feito melhor. parte de Shakespeare e uns outros poucos na histria da literatura ficcional, na regra geral difcil que ro-mancistas de vocao arvorem-se em criar poesias dentro de seus textos. At porque poesia no fico, e aqui temos uma poesia ficcional, pois o que lemos no o produto lrico do Carlos Hen-rique Schroeder, e sim de Copi, sua personagem. Talvez por isso o estranhamento de crticos, que buscam analisar As fantasias eletivas mais como romance do que como poesia.

    O livro um monlito: a histria de Copi, vista por Ren, e seu interior, tambm visto por Ren, mas revelado intacto atra-vs das imagens e palavras em sua agenda pessoal.

    bom que se diga que o livro tambm exibe a obsesso do autor de forma extremamen-te parcial. Nem sempre a solido pode ser ruim: s vezes a solido o tempo de lucidez que nos res-

    fotogrficas, pois elas tornaram-se indispensveis: num mundo satu-rado de informao como o nosso, as fotografias so uma espcie de se-gunda memria, para l que voc corre quando quer lembrar os me-lhores momentos de uma viagem, de seu casamento, de sua famlia, do fim de semana.

    Copi procurava a solido das coisas como se quisesse jus-tificar que todos sentiam o mes-mo abandono, que todos at o mais prosaico objeto era ca-paz de sofrer o mesmo que ela. Fotografava o abandono, de mo-do que pudesse registr-lo, fix--lo, eterniz-lo. E depois escrevia sobre a solido que podia ver, so-bre o abandono que podia sentir no objeto retratado, apontando

    trecho

    as Fantasias eletivas

    No devemos mais olhar para os pssaros, para as rvores, para as pessoas, mas sim para a tela. uma troca, do real pelo virtual. Onde vai parar essa porra? E essa troca tambm ausncia. No preciso nem dizer que algum est lucrando com isso, a todo momento.

    o autorCARLoS HEnRiquE SCHRoEdERNasceu em Trombudo Central, em 1975, e radicou-se em Jaragu do Sul (SC). romancista, roteirista, crtico literrio e editor. Estreou na literatura em 1998 com a novela O publicitrio do diabo, tendo lanado desde ento: As sepulcrais, Ensaio do vazio, As certezas e as palavras, entre outros. o idealizador da Feira do Livro de Jaragu do Sul e do Festival Nacional do Conto. Ganhou diversos prmios como o Clarice Lispector, da Biblioteca Nacional (2010), Bolsas Funarte e Petrobrs.

    as Fantasias eletivasCarlos Henrique SchroederRecord112 pags.

    gata da repetio incessante dos dias. Nem sempre o esqueci-mento pode ser ruim: vital para o homem que se esquea e que ficcionalize seu prprio passado, elegendo e fantasiando sobre si prprio e sobre o que o rodeia. Tambm o abandono necess-rio. Sendo o sentimento inverso ao pertencimento, resulta que o prazer do segundo no existiria sem a misria do primeiro.

    De acordo com Fernando Pessoa, escrevemos para esque-cer, e escritores mltiplos como Carlos Henrique Schroeder de-dicam-se com empenho a esta maneira (hoje no to fcil como outrora, considerando a internet e a praga das redes) de ignorar, suplantar, substituir, e assim per-petuar a vida.

    divulgAo

  • janeiro de 2015 | | 15

    Nem tudo so floresNos poemas de Parte da paisagem,

    Adriana Lisboa evoca um eu lrico despretensioso e atento ao seu tempo

    VilMa costa | rio de janeiro rj

    Parte da paisagem, de Adriana Lisboa, rene poemas sob diversos enfoques, nos quais um eu l-rico, carregado de lembranas e projees futuras num tempo pre-sente, movimenta-se. Por vezes, surpreende-nos, e por outras, movido por uma serenidade ina-balvel. Esta parece comprome-tida em Nirvana, por exemplo: Quebraram meu Buda japo-ns/ e um rduo desejo de vingan-a... Crena e descrena, rudos e silncios, luzes e sombras, amor e desamor, paz e inquietaes nego-ciam espaos e sentidos.

    Apesar da advertncia: Esquea a palavra , ela o veculo de uma busca, use da palavra apenas/ seu grau de su-gesto de vida/ (mesmo sendo o ndice/ da sua morte). Entre a palavra e o silncio transita o ensaio de vozes que dialogam entre si, aproximando tempos e espaos, aparentemente, dis-tanciados. quando a poesia flui testando a voz de um su-jeito lrico despretensioso, mas atento ao seu tempo e a outras vozes que alimentam sonhos e sentidos precrios, mas indis-pensveis para se seguir adiante. Como sinaliza o poema Promes-sa: O prato da casa/ a sobre-vivncia, ento/ (...) continuo de p. Um joo-bobo,/ um nu-frago de pana inchada/ subsis-tindo de sol a sol.

    A lrica aqui retoma sua forte marca musical, dentre ou-tras referncias. A linguagem verbal da palavra escorregadia, na sua flagrante insuficincia, apela para outras, como a mu-sical, cinematogrfica, teatral e corporal nas quais a pausa, o silncio e o nonsense potencia-lizam a construo de sentidos. Em Para voz e piano, o que mais dizer se quando no se espe-ra que ele venha,/ (...)/ ele sur-ge porta/ no meio da festa... Um Ele que no s adentra pela porta, o objeto de um amor desmistificado das promessas romnticas, mas como fato in-

    questionvel se faz presente. No mais, tudo so cantares que estabelecem seus fios e desafios de leitura.

    Em Anjos, as imagens cinematogrficas de Wim Wenders passam por uma releitura, ou melhor, socorrem as palavras na busca de uma beleza em cmara lenta que expressem o de-sejo de nossa humanidade, invejada pelos anjos que com suas asas sobrevoavam o cu de Ber-lim, mas que se ausentam nesse nosso presente de sculo 21. Onde esto os anjos bonitos,/ os anjos de Wim Wenders?

    Aspectos afetivosA mutilao das meninas da Somlia, de-

    nunciada e dramatizada no filme Flor do deserto, encontra nas palavras a expresso de indignao frente a uma realidade cruel, inacreditavelmen-te, presente Neste mesmo mundo em que vivemos. Os ttulos, como este, conduzem a leitura para alm da moldura da folha do poema, para aqum e alm da paisagem descrita em seus detalhes concretos e fsicos, mas infinitamente amplos em seus aspectos afetivos e estticos.

    Em notas fica explicitado o dilogo com Drummond, Bandeira, Joo Cabral, Tom Jo-bim, Hilda Hilst. Da mesma forma, dedicat-rias, epgrafes e outras referncias ampliam esse leque. W. S. Merwin, Leonardo Cohen, Thom Yorke participam com epgrafes, sutilmente, da estrutura do livro, dividindo-o em trs partes. Assim, o eu lrico estabelece o dilogo com vozes de tempos e espaos diversos. Destacam--se tantos os interlocutores presentes na vida cotidiana, quanto outros que j se foram e pare-cem se cristalizar na memria ou na paisagem, como aquele Enterrado no ventre/ de uma montanha, desgarrado num meteorito/ daqui a alguns milnios...

    Toda essa polifonia e carnavalizao exigem que o sujeito retome o seu eixo em uma espcie de carnaval ao contrrio. Que seria isso? Lavar o rosto, desaprender o samba/enredo. Cuidar pa-ra que os ps/toquem, apenas, esta avenida. E, provavelmente, recriar a prpria voz, naquela fo-lia ntima da solido necessria ao ofcio potico.

    A memria passeia pela cidade, trazendo fragmentos e imagens de velhos tempos: Em Papelaria Unio, por exemplo, Era onde eu comprava os meus cadernos/ O centro da ci-dade era o nosso quintal. As fotografias e os fotogramas de lembranas de uma Cinelndia, que h muito deixou de ser a praa de cinemas, compem o poema e as reminiscncias. Os ca-dernos da infncia ligam o passado da menina ao presente da escritora, cadernos feitos para anotar ali nosso futuro em versos/ verdes, du-ma confiana irrefletida, incapazes, contudo, de prever os anncios de um outono por vir.

    O teatro de luzes e som-bras com suas mscaras e dis-farces permeia as palavras em Nada consta e Parque dos cer-vos, entre outros. As coisas vo bem, de modo geral,/ dis-faradamente bem. Perucas, bigodes postios. As msca-ras e os disfarcem servem pa-ra fazer suportar a verdade nua e crua: Essa luz medonha que se esfrega/ na sua cara, o quan-to voc no daria/por um ins-tante de penumbra?.

    A linguagem corporal estabelece sua fala nas necessi-dades mais urgentes, alia-se s imagens, aos gestos, e a todos os sentidos: olhos, pele, ouvi-dos, bocas, e suas relaes com o mundo e com a natureza. Seu corpo encolhido no pr-prio excesso,/ brotando inbil dos seus ps/ como um pinhei-ro num penhasco. Ou como as mos que afundam na terra: revirando com verbos tteis ele-mentos mortos e vivos do jar-dim. A natureza viva, plantas, bichos-coisa e bichos-homem se misturam paisagem de na-tureza morta, terra e pedra. O corpo de carne, sangue e ossos carrega o sentimento do mun-do, como se fosse bicho delica-do em busca de abrigo.

    Em Lugar, a ermida cor-po, sim, caiada/ e rstica. Mas tambm ferida aberta/ da men-te, esta nao sem chefe, sem perder a perspectiva temporal, fixa o sujeito na espacialida-de instvel de um lugar (ermo sem fundo). Dialogando com Bifurcados, de Joo Cabral de Melo Neto, surge um ques-tionamento: este lugar que habito (me habita?). Corpo e mente, tempo e espao atra-vessam suas porosas fronteiras e vazios. Como, em Passagem, vive-se esse nosso tempo con-temporneo de permanente transitoriedade. Vamos em-bora/ para um lugar onde se vi-ve de passagem... j que hoje Pasrgada inabitvel, ou se-ja, no mais possvel. Um lu-gar ou um no-lugar onde se sempre estrangeira, como a Ire-ne boa e latina, sempre de bom humor e clandestina, sob o cu das Amricas. Como a poeta gauche que precisa exercitar a inadequao, sabendo-nos/ ri-dculas como missa em latim.

    assim que a poesia pe-netra com sutileza no cotidiano e na complexidade da vida, pai-sagem na qual h muito mais para ver aqum e alm da co-lina, como diria Hilda Hilst. Memria, corpo, amor e mor-te, mais que temas, so proble-matizados, abrindo a discusso sobre a prpria linguagem do fazer potico, enquanto eixo principal em pauta. Pense na poesia/ como o dedo cavando a fresta onde/ h ainda uma pequena chance. por essa fresta que a vaga ideia de li-berdade pode tomar corpo como possibilidade de fuga de um prisioneiro, como possibi-lidade se sobrevivncia e exer-ccio da palavra.

    trecho

    Parte Da PaisaGem

    As mos afundam na terra:nao de bichos midos,cortejo cego de nomes. desfeitos,decompostos, recompostos entreposto escuro de verbostteis, onde os mortos sufocamno jbilo dos novos vivos:

    tudo so flores.

    a autoraAdRiAnA LiSboA

    Nasceu no Rio de Janeiro (RJ). graduada em msica e ps-graduada em literatura. autora de Sinfonia em branco, Azul Corvo, Hani, entre outros. Seus livros foram publicados em treze pases. Vive atualmente nos Estados Unidos.

    Parte Da PaisaGemAdriana LisboaIluminuras120 pgs.

    divulgAo

  • 16 | | janeiro de 2015

    Ao nvel do cho

    Histrias absurdas de Rafael Sperling desnudam comportamentos cotidianos

    andr arGolo | santos sP

    o cirurgio exibi-do. Montou no meio da avenida Paulista a mesa de cirurgia e mandou cercar com vidro. Iluminou tu-do adequadamente, para ver e ser visto. Mandou deitar o sujeito. O sujeito todo mundo. E quando o pblico se aproxima o pbli-co cada pessoa , tem a surpre-sa, o asco, a raiva, o medo e o que mais se pode sentir ao enxergar a si mesmo ali deitado, aberto, san-grando muito, exposto, os rgos sendo retirados um a um, jogados em cantos branquinhos, s vezes esbarrando e criando o rastro cor de vinho no vidro transparente do devassado centro cirrgico.

    Rafael Sperling se apresen-ta como escritor, ele o cirurgio maluco. Ou no maluco, o ex-tirpador da verdade, bisturis nas mos, do que mora atrs de cor-tinas, debaixo dos panos, dentro dos aposentos mais fechados, dos desejos e pensamentos mais nti-mos. Um homem burro morreu a sala pblica de cirurgia. A so-ciedade de entranhas remexidas est em cada um dos 28 textos que compem a obra (27 contos mais um texto final sem ttulo).

    Mas como se o cirurgio exibido fizesse umas mmicas en-graadas antes de cortar as veias do corao, o livro capaz de ar-rancar riso. Um riso nervoso o que tende a escapar. Porque do-do. violento. Esse contenta-mento provvel do leitor vem de esbarrar em situaes absurdas que depois desnudam compor-tamentos muito comuns, cari-caturados. A o sorriso logo se desfaz, pela identificao inevit-vel com a realidade.

    Bombas e metralhadorasTudo indica que seja uma

    obra bem distante da unanimi-dade. A violncia, que ao mes-mo tempo explcita e metafrica (bem mais metafrica, com certe-za, apesar de to explcita), vai es-pantar fgados mais sensveis. Foi escrito pela necessidade de existir, no para agradar o que suge-rem sua temtica e sua forma, co-mo motivaes principais.

    Os contos so construdos com base no exagero. Esse exa-gero s vezes trabalhado com a repetio, como no primeiro texto, Caetano Veloso se prepara para atravessar a rua, e tambm no muito significativo Jesus Cris-to espancando Hitler. Outras ve-zes o exagero do tamanho ou quantidade das coisas, como Uma xcara de ch revela: Der-ramei a gua numa xcara de ch e dentro dela pus 250.000 qui-los de ch preto, pois gosto do meu ch bem forte. Assim, vai minando o equilbrio do leitor, para que desabe no texto como num golpe de jud e enxergue as coisas ao nvel do cho, onde so jogadas pelo autor as questes da humanidade.

    O conto da xcara de ch trata dos casamentos. Caetano Veloso acompanhado por uma espcie de reprter de celebri-dades, que narra tudo o que ele faz, repete perguntas tolas, ironi-za a sociedade do espetculo. Um homem briga violentamente nu-ma fila de po a impacincia com o outro, o descaso. H estu-pros de mulheres e homens, ba-nalizao do sexo, inclusive com personagens crianas. E muita es-catologia. Come-se merda e joga--se coc nas cabeas das pessoas como se trocam cartes de visitas. Sempre com profunda ironia.

    O tom dos contos lembra meninos conversando sobre vi-deogames: Hahaha! Arranquei a cabea daquele homem! Olha, olha, atropelei a velhinha atraves-sando a rua!. Ou os pensamen-tos rudes que invadem cabeas atrs de volantes no trnsito ca-da vez mais hostil das cidades, na escuta das interminveis ligaes para reclamar de servios, a cada sapo engolido nos ambientes cor-porativos de trabalho.

    Os personagens fazem o que vaza desses pensamentos ter-rveis, vingativos: do socos que explodem o crebro dos oponen-tes, ou jogam bombas, usam me-tralhadoras, bastes de ferro, tudo do pior; armas surgem do nada, como em desenhos animados.

    Provocao literaturaPode-se falar das piores

    coisas com lirismo. Mas no h lirismo nesses contos. E no con-tm palavras alm do uso mui-to comum. Alis, os textos so descomplicados, mimetizan-do construes infantis de pen-samento, o que se contrape violncia das cenas, criando ex-tremos verdadeiramente inc-modos justamente a que mora o grande valor desse livro. Ei