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capa Ano 41 | nº 120 | Set./Dez. 2018 MISSÃO NO MUNDO Uma maratona missionária e pastoral 4 “Cerca de los que están lejos”. El P. Berthier y la Misión - 5 MISSÃO NO BRASIL Relato de uma visita missionária... Desafios e encantos! - 6 Vocacionados a ser família - 8 ARTIGOS O Pai-Nosso: composição e teologia - 10 Bendita(s) presença(s) solidária(s) na dor - 12 Missão católica e ecumenismo - 13 RAÍZES DE UMA ESPIRITUALIDADE INSPIRADA NA SAGRADA FAMÍLIA Belém: Deus em saída! - 14 A profecia de Simeão - 15 Deus: frágil e humano! - 16 Virtudes da Sagrada Família presentes em nós - 17 A "chave secreta" da Sagrada Família - 18 O Natal e a Sagrada Família - 20 TESTEMUNHOS São Paulo VI: breve biografia do Papa que tinha particular sensibilidade para com a América Latina - 22 Pe Pedro Léo: missionário das gentes - 25 AMISAFA/SAV Educação: mais que um desafio missionário! - 27 Raízes de uma espiritualidade inspirada na Sagrada Família

Raízes de uma espiritualidade inspirada na Sagrada Família · A "chave secreta" da Sagrada Família - 18 O Natal e a Sagrada Família - 20 TESTEMUNHOS São Paulo VI: breve biogra˜a

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Page 1: Raízes de uma espiritualidade inspirada na Sagrada Família · A "chave secreta" da Sagrada Família - 18 O Natal e a Sagrada Família - 20 TESTEMUNHOS São Paulo VI: breve biogra˜a

capa

Ano 41 | nº 120 | Set./Dez. 2018

MISSÃO NO MUNDOUma maratona missionária e pastoral 4“Cerca de los que están lejos”. El P. Berthier y la Misión - 5

MISSÃO NO BRASILRelato de uma visita missionária... Desa�os e encantos! - 6Vocacionados a ser família - 8

ARTIGOSO Pai-Nosso: composição e teologia - 10Bendita(s) presença(s) solidária(s) na dor - 12Missão católica e ecumenismo - 13

RAÍZES DE UMA ESPIRITUALIDADE INSPIRADA NA SAGRADA FAMÍLIABelém: Deus em saída! - 14A profecia de Simeão - 15Deus: frágil e humano! - 16Virtudes da Sagrada Família presentes em nós - 17A "chave secreta" da Sagrada Família - 18O Natal e a Sagrada Família - 20

TESTEMUNHOSSão Paulo VI: breve biogra�a do Papa que tinha particular sensibilidade para com a América Latina - 22Pe Pedro Léo: missionário das gentes - 25

AMISAFA/SAVEducação: mais que um desa�o missionário! - 27

O Pe. Berthier, Fundador dos Missionários da Sagrada Família, escreveu: “A Sagrada Família é o modelo perfeito de espírito de respeito, de obediência, de caridade, de dedicação, de humildade, de vida de traba-lho, de pobreza e de pureza que deve reger essa obra. Aqueles que a graça atrair a essa obra se empenha-rão em assimilar este espírito.

Os Missionários da Sagrada Família formam um Instituto de votos simples que tem como �m a santi�cação dos seus membros, que é a única coisa necessária da qual fala Nosso Senhor no Evangelho. Esse Instituto tem também por �nalidade especial formar missionários e aumentar seu número através da formação de vocações apostólicas, sobretudo tardias. Essa é a razão de sua existência e também o meio mais e�caz de trabalhar pela glória de Deus e a salvação da humanidade.

As pessoas se convertem à fé e à vida cristã pelo Evangelho. Precisa-se de missionários, mas formá-los é mais e�caz que trabalhar nas missões, pois enquanto um missionário faz um certo bem numa terra estran-geira, quem forma missionários faz um bem multiplicado tantas vezes quantos são os bons trabalhadores da vinha do Senhor por ele formados.”

Que tal juntar-se aos Missionários da Sagrada Família?!

Por que não? Faça contato conosco!

AMISAFA/SAV - Ação Missionária e Vocacional da Sagrada FamíliaRua da Floresta, 1043 | Caixa Postal 3056 | CEP: 99.051-260

[email protected] | [email protected] | Fone: (54) 3313-2107

Raízes de uma espiritualidade inspirada na Sagrada Família

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EDITORIAL

Conselho Provincial:

Pe. Itacir Brassiani, msfSuperior Provincial

Pe. Lotário José Niederle, msfVice-Provincial

Pe. Elmar Luiz Sauer, msfSegundo Assistente

Ir. Lauri de Cesare, msfTerceiro Assistente

Revisão de texto: Pe. Lotário Niederle, msf

Editoração: Editora do IFIBE

Instituto Superior de Filosofia Berthier

Projeto gráfico:Diego Ecker

Capa e diagramação: Diego Ecker

Impressão: Gráfica Berthier

Tiragem deste número: 2.000 exemplares

Distribuição gratuita.

Contato e Pedidos:Província dos Missionários da

Sagrada Família (Brasil Meridional)Rua da Floresta, 1043 - Bairro Petrópolis

Cx. Postal 3056 - CEP: 99051-260Passo Fundo - RS - Brasil

Fone: (54) 3313-2107 E-mail: [email protected]

www.misafala.org

BertherianoRevista da Província Brasil Meridional dos Missionários da Sagrada Família

Pe. Itacir Brassiani, msfCoordenação Provincial

Passo Fundo, RS

O Catecismo da Igreja Católica, no parágrafo 533, transcreve parte da medita-ção que São Paulo VI, fez por ocasião da sua visita à cidade de Nazaré, no dia 5 de janeiro de 1964. Nela, o então Papa Paulo VI apresenta o núcleo da espiritualida-de cristã que emerge da Sagrada Família de Nazaré.

“Nazaré é a escola em que se começa a compreender a vida de Jesus, é a es-cola em que se inicia o conhecimento do Evangelho.

Em primeiro lugar, uma lição de silêncio. Oh se renascesse em nós o amor do silêncio, esse indispensável hábito do espírito! Silêncio de Nazaré, ensina-nos o recolhimento, para escutarmos as boas inspirações e as palavras dos verdadeiros mestres. Ensina-nos a necessidade e o valor de uma conveniente formação, do estudo, da meditação, da vida pessoal e interior, da oração que só Deus vê.

Em segundo lugar, uma lição de vida familiar. Que Nazaré nos ensine o que é a família, a sua comunhão de amor, a sua austera e simples beleza, o seu carác-ter sagrado e inviolável. Aprendamos de Nazaré como é preciosa e insubstituível a educação familiar e como é fundamental e incomparável a sua função no plano social.

Em terceiro lugar, uma lição de trabalho. Nazaré, a casa do Filho do carpin-teiro! O trabalho não pode ser um fim em si mesmo, pois a sua liberdade e dig-nidade se fundamentam não só em motivos econômicos, mas também naquelas realidades que o orientam para um fim mais nobre.

Em Nazaré, os trabalhadores de todo o mundo encontram seu grande Mo-delo, o seu Irmão divino, o Profeta de todas as causas justas que lhes dizem respeito, Cristo Nosso Senhor.”

Aproveitemos o ciclo litúrgico do Natal de Jesus para tocar as raízes mais pro-fundas da espiritualidade inspirada na Sagrada Família: busca e reconhecimento do Mistério de Deus encarnado na vida humana; vivência do Evangelho em to-das as dimensões da vida cotidiana; vivência da fraternidade e da familiaridade para além dos laços de sangue; contínuo e interminável amadurecimento huma-no e espiritual; presença e atuação profética nas fronteiras e nas justas causas da humanidade.

Este número da Revista Bertheriano oferece uma série de artigos que, cada um a seu modo e complementarmente, podem ajudar-nos a visualizar este iti-nerário espiritual. Sem menosprezar nenhum texto, destacamos alguns, que se relacionam mais de perto com o eixo temático da Revista.

O Pe. Marcelo, o Pe. Volimar e o noviço Leandro nos convidam a mergulhar diretamente no mistério do Natal. O casal Nilton e Lucélia chama a atenção para a dimensão vocacional e missionária da vida familiar, e o Fr. Ricardo reflete sobre o desafio missionário da educação. O Pe. Fernando López e o Pe. Aniceto nos convidam a contemplar o rosto de Deus nas sendas da missão. O Bertilo nos guia numa bela reflexão sobre o Pai-Nosso, e o Pe. Euclides nos convida a aprender com o sofrimento.

Os Missionários da Sagrada Família desejam a todos os leitores e leitoras um Natal iluminado e iluminador, que nos confirme e conforte na vocação de condu-zir todos os homens e mulheres a fazerem parte da única família do Pai. E que o ano 2019, marcado pelo mês missionário extraordinário e pelo Sínodo dos Bispos para a Amazônia, ambos convocados pelo Papa Francisco, possa contar com nos-sa generosidade missionária.

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Uma maratona missionária e pastoral 4Pe. Itacir Brassiani, msf

“Cerca de los que están lejos”: el P. Berthier y la Misión 5Pe. Fernando López Fernández, msf

RAÍZES DE UMA ESPIRITUALIDADE INSPIRADA NA SAGRADA FAMÍLIA

TESTEMUNHOS

AMISAFA/SAV

ARTIGOS

MISSÃO NO BRASIL

MISSÃO NO MUNDO

SUMÁRIO

Relato de uma viagem missionária... Desafios e encantos! 6Pe. Aniceto Francisco dos Santos, msf

Vocacionados a ser família 8Nilton & Lucélia

O Pai-Nosso: composição e teologia 10Bertilo Brod

Bendita(s) presença(s) solidária(s) na dor 12Pe. Euclides Benedetti, msf

Missão católica e ecumenismo 13Pe. Vergílio J. Moro, msf

A profecia de Simeão 15Pe. Francisco Ary Carnaúba, msf

Deus: frágil e humano! 16Pe. Volimar Aimi, msf

Virtudes da Sagrada Família presentes em nós 17Emília Royer Ruppenthal e Fr. Ricardo Klock, msf

A "chave secreta" da Sagrada Família 18Gleison Costa França

O Natal e a Sagrada Família 20Leandro Lunkes

São Paulo VI: breve biografia do Papa que tinha particular sensibilidade para com a América Latina 22

Pe. Ivanir Antonio RamponPe Pedro Léo: missionário das gentes! 25

Pe. Lotário Niederle, msf

Educação: mais que um desafio missionário! 27Fr. Ricardo Klock, msf

Belém: Deus em saída! 14Pe. Marcelo Júnior Klein, msf

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MISSÃO NO MUNDO

Uma maratona missionária e pastoral

O Pe. Vanderlei Souza da Silva msf permaneceu menos de dois anos na missão em Moçambique. Mas sua breve passagem por Mecubúri (diocese de Nampula, em Moçam-bique) deixou, como anteriormente em outros lugares, sua marca registrada: a dedicação ao atletismo, especialmente à maratona. Além de participar de maratonas nacionais e internacionais, por onde passou ele implantou pistas de atletismo, organizou e treinou crianças e adolescentes inte-ressados no atletismo e programou corridas.

O Pe. Pedro Léo Eckert msf, cuja característica mais mar-cante não é o atletismo, chegou em Mecubúri no início de 2011. Desde então, como os coirmãos que estiveram lá antes dele ou chegaram depois, faz mais do que pode em favor de um povo sofrido e crente que, por longos anos, não pode contar com a presença e o serviço pastoral de ne-nhum padre. De fato, a missão assumida pelos Missionários da Sagrada Família na região de Nampula abrange duas pa-roquias e uma área pastoral, num total de aproximadamen-te 300 comunidades.

Mas é o Pe. Pedro Léo o protagonista de uma espécie de “maratona sacramental” ocorrida, ainda em 10 de setem-bro de 2011, na Zona Pastoral de Milhana: a realização de 588 batizados, vários casamentos e centenas de primeiras eucaristias numa única celebração! Não julguemos isso de forma apressada, como se fosse sinal de superficialidade es-piritual ou pouco zelo pela liturgia. Imaginemos a situação de um povo longe de tudo e esquecido por todos, que há mais de uma década contou com uma escassa e quase nula presença de padres...

Eis o registro feito pelo próprio Pe. Pedro: “Iniciamos a missa às 10h da manhã, e o “amém” final foi dado às 8h da noite. Iniciamos com a luz do sol rachando nos cajueiros, e terminamos com a lua cheia por testemunho. Foi uma ex-periência muito diferente e, para mim, muito rica de signi-ficados, sinal da vitalidade da fé.” Feliz o missionário que, incansável na tarefa de saciar a sede do povo – todas as se-des! – não perde a capacidade de reconhecer e se admirar com a fé que ele manifesta de modo tão simples. Mas é a perseverança na fé, mesmo que rudimentar, e a valorização dos sacramentos que gritam insistentemente sua pertença à Igreja!

É claro que, especialmente depois do Concilio Vaticano II, a missão não consiste unicamente e nem principalmente na celebração dos sacramentos. No caminho aberto pela missão de Jesus, a missão dos seus discípulos consiste hoje fundamentalmente em ajudar as pessoas a reencontrar a dignidade que perderam ou foi-lhes negada, a descobrir sua pertença a uma humanidade única e indivisa, à família do Pai, da qual um dos sacramentos é a Igreja. Como negar ou dificultar a um povo secularmente excluído os sinais da misericórdia de Deus e da pertença ao seu povo amado?

Nossos admiráveis missionários em Moçambique desen-volvem suas diversas atividades pastorais orientados pelo objetivo de ajudar no amadurecimento e fortalecimento da Igreja local. E isso significa, entre outras coisas, criar espaços e oferecer meios para que os leigos e leigas levem adiante e com qualidade seu ministério pastoral. É a eles que a Igreja deve a manutenção da vida eclesial e da fé em Jesus Cristo, especialmente nos duros anos da luta pela independência e da fratricida guerra civil que se seguiu à independência.

No momento em que nos é dado celebrar os 11 anos (08.12.2007) dessa presença missionaria, louvamos a Deus pelos diversos coirmãos que nela marcaram presença (Pe. Neiri Segala, Pe. Firmino Santana, Pe. Valdecir Rossa, Ir. Edil-son Frey, Pe. Elmar Sauer e Pe. Vanderlei Souza da Silva) e daqueles que a levam adiante hoje (Pe. Pedro Léo Eckert, Pe. Celso Both, Fr. Ricardo Klock e Pe. Firmino Santana - que retorna após quase 7 anos em outra missão). Mas é preciso, ainda, sublinhar a importância da Edina Lima e do Raphael Alves, leigos que vivem e reavivam com alegria o dom missionário que receberam e, seu testemunho, inter-pelam àqueles que nos consagramos a Deus numa congre-gação missionaria.

Pe. Itacir Brassiani, msfCoordenador Provincial

Passo Fundo, RS

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Pe. Fernando López Fernández, msfCordinador Pastoral Capilla Sagrada Família

Madrid, España

“Cerca de los que están lejos”: el P. Berthier y la Misión

“La mies es abundante, pero los obreros son pocos. Rogad por tanto al dueño de la mies que envíe obreros a su mies”

(Mt 9,37-38)

Estas palabras de Jesús, así como la llamada del Papa León XIII a revitalizar la labor misionera, calaron profunda-mente en el corazón de Juan Berthier, y fueron la inspiración para fundar nuestra Congregación. La dimensión misionera quiere que esté muy presente en todos los que se unan al carisma fundacional. ¿Cómo desarrollar este carisma misio-nero? Él quiere que sus misioneros sean personas…

• atentas a los “signos de los tiempos”. Él supo tener una mirada profunda a la realidad de su tiempo y a qué le estaba invitando, y así lo pide a nos, sus seguidores.

• que tengan una profunda espiritualidad. El misio-nero necesita un contacto íntimo con Dios, una honda experiencia de sentirse animado por Él. Una “unión con Dios” que les lleve a tener profundidad de vida.

• con una buena formación que permita dar respuesta desde la fe a los desafíos que plantea la realidad.

• que vivan el espíritu de pobreza y desprendimiento para ponerse al nivel de la gente sencilla, cercanos a los más necesitados, compartiendo sus angustias y triste-zas, sus alegrías y sus gozos.

• con sentido de familia, teniendo como modelo la Fa-milia de Nazaret y su unión en el amor, la acogida y la escucha, creando comunidades con espíritu de familia donde se estrechen lazos y se fortalezca la convivencia.

• en actitud de disponibilidad y “en salida”, abiertos para acudir donde la presencia sea más necesaria, dis-puestos a encarnarse en cualquier periferia, donde la Iglesia aún no tiene vitalidad propia o la ha perdido.

• con espíritu de trabajo y laboriosidad. Realizando las tareas cotidianas con actitud de entrega y genero-sidad. Y dando un profundo sentido al trabajo manual como medio de realización personal y contribución al bien de los demás.

• formando comunidades internacionales. Desde el principio, el P. Berthier quiso crear comunidades en las que estuvieran presentes misioneros de varios países. En un mundo multicultural como es el nuestro este rasgo es de gran actualidad. Y un gran desafío para ser autentico testimonio de comunión en la diver-sidad, de enriquecimiento mutuo y de apertura a la universalidad.

• al servicio de la construcción del Reino. Porque éste debe ser el horizonte de todo trabajo pastoral, de ma-nera que “donde un servicio está cumplido y su conti-nuidad asegurada, asumimos nuevas tareas”

A ello habría que añadir la importancia de la colabora-ción de los laicos. Esta realidad estaba aún por desarrollar en tiempos del P. Berthier, pero hoy sea hace imprescindi-ble, ineludible y sumamente necesaria.

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MISSÃO NO BRASIL

Relato de uma viagem missionária... Desafios e encantos!

Recentemente vivi a aventura da visita pastoral às Co-munidades Ribeirinhas de Carauari (Prelazia de Tefé/AM), todas às margens do Rio Juruá. As visitas às comunidades se estenderam do dia 7 agosto a 13 de setembro, tanto rio abaixo como rio acima, com um breve intervalo. De certa forma, foram ‘visitas às cegas’ pois, dispunha de poucas in-formações; o que explica ter me sentido um pouco perdido e desorientado, na preparação da viagem. A missão (paró-quia) de Carauari conta com 56 comunidades ribeirinhas, a maior com 640 habitantes e a menor apenas 4. Havia pre-visto visita a 32 dessas comunidades, mas acabei aportan-do em 41. Entendo que a visita é bem mais que chegar e celebrar a missa. Houve comunidades em que apenas rezei

o terço com o povo, noutras, celebrei batizados e noutras, ainda, fiz tudo isso misturado, e mais.

Para muitos o conceito de comunidade não está associa-do necessariamente à comunidade de fé, mas a comunida-des organizadas na luta por seus direitos. Muitos falavam da ausência da Igreja naquilo que, no passado, fora a gran-de motivadora, como: as associações e as organizações que defendem os ribeirinhos e os indígenas, e que lutam por seus direitos. O povo diz que, quando a Igreja se faz pre-sente, as lutas adquirem maior credibilidade e os resultados são melhores. Assim desejo partilhar algumas percepções nascidas no decorrer destes dias.

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A primeira percepção, mais geral da visita, é o sincretis-mo religioso e a forte presença de Igrejas Evangélicas. Ou-via da ausência dos padres em comunidades com grande número de evangélicos: “Parece que os padres valorizam mais os evangélicos que os católicos, pois não aparecem na comunidade porque aqui tem muitos evangélicos”, dizia uma senhora. Noutra comunidade alguém disse que “o pas-tor não gosta que o padre passe, porque pode desvirtuar suas ovelhas!”. No entanto, a acolhida é muito boa, inclu-sive pelos evangélicos, como foi o caso das comunidades Bacaba, Nova Esperança e outras; ali meus guias foram pes-soas evangélicas. Em geral, os moradores não recordam os nomes dos missionários que passaram, mas dizem suas ca-racterísticas pessoais, demonstrando gratidão e admiração pelo trabalho desenvolvido ao longo dos anos.

Uma segunda percepção marcante é que este não é um povo fechado em suas tradições religiosas particulares. As pessoas participam dos eventos, encontros ou celebrações, sejam católicos ou evangélicos. Se for forró, participam

mais ainda! Para esse povo, o que importa é ter um evento diferente na comunidade. Como os eventos que alteram a rotina das comunidades são poucos, quando algo acontece todos participam.

Outra percepção é que o único sacramento que esse povo pede é o batismo, pois tem medo que os filhos se-jam devorados por alguma fera da selva ou do rio. Eles não podem contar senão com a proteção de Deus, tal é o aban-dono em que vivem. A devoção aos santos, principalmente a São Francisco e São Raimundo, é muito forte e está acima da eucaristia. Os ribeirinhos são solidários entre si e percor-rem longas distâncias para participar dos arraiais, dos pa-droeiros.

A quarta percepção é sobre as festas dos padroeiros ou arraiais. Nelas as famílias se conhecem e se encontram, sur-ge a oportunidade de namoro e casamento com gente de fora, pois, em geral, os casamentos ocorrem entre pessoas da comunidade e, frequentemente, entre parentes. Os altos custos de locomoção dificultam o encontro com outros jo-vens. Apesar de algumas críticas sobre estas festas, vendo a realidade de perto, as considero úteis e até necessárias, mas precisamos reforçar a devoção que já é própria do povo, principalmente em relação ao rosário, pois são pouquíssi-mas as pessoas que sabem rezá-lo e conduzi-lo.

Mas posso dizer das pessoas felizes com a visita do pa-dre e outras que “não estavam nem aí”, apenas queriam seu filho batizado, ou esperavam remédio para sua dor de den-tes; pessoas que não paravam de perguntar e conversar, e outras que sequer respondiam um bom dia. Encontrei co-munidades animadas, vivas e participativas, e comunidades que precisam de animação e motivação urgente. Comuni-dades sem templo ou espaço para se reunir; outras que têm uma igreja, mas não são cuidada ou estão com claros sinais que ninguém entrou nelas nos últimos meses.

Encontrei heroicos professores com 5 turmas em uma única sala de aula; pessoas alfabetizadas que não sabem ler; crianças que não frequentam a escola por não terem registro e crianças, de 14 anos, na escola, com um filho nos braços. Encontrei pessoas que achavam que eu não era padre por não ser branco ou “vermelhão”, conforme suas definições; pessoas que me fizeram rir, refletir, pensar e até chorar, interiormente, com suas histórias de vida.

Porém, todas essas pessoas despertaram em mim a convicção de que, não obstante as distâncias, dificuldades e custos a visita do missionário é necessária. Mesmo que seja simplesmente como sinal de valorização, como elas são e onde estão com seu ritmo próprio e diferente. Mostrou quanto é preciso conhecer e entrar nesse ritmo para ajuda--los a perceberem o tanto de divino há neles.

Pe. Aniceto Francisco dos Santos, msfMissionário RibeirinhoItamarati/Carauari, AM

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MISSÃO NO BRASIL

Vocacionados a ser famíliaA realidade da família vem sendo bastante discuti-

da nos dias atuais, quanto às suas características, pa-drões, formas e estruturas. Sabemos, pela fé, que Deus sonhou a família e se fez família. Na vida em família, temos a experiência riquíssima de humanidade: convi-vência e tolerância, aprendizados e desafios. Estes nos trazem realização e alegria enquanto pessoas e mani-festam a presença divina em cada um de nós.

A família é o lugar onde podemos ser nós mes-mos, com nossas limitações, com transparências, sem bloqueios ou máscaras. É o território onde podemos manifestar nosso ser em sua essência total. A família, para ser família, precisa ser sonhada, idealizada e ser

a expressão de nossa prece a Deus. Ela não nasce do acaso, mas é a exteriorização de um sonho, e o sonho, quando se sonha junto, vira planejamento. Já o plane-jamento faz com que se torne ação aquilo que está no nosso coração. Assim, a família se expande e desabro-cha em algo singelo, mas muito verdadeiro: aquilo que nós naturalmente acabamos por chamar de lar.

No capítulo terceiro da Carta aos Colossenses, São Paulo nos faz uma bonita exortação ao amor. Ele diz que o amor é a nossa capacidade de suportarmos-nos uns ao outros, ou seja, servirmos de apoio recíproco, a fim de sermos instrumentos de crescimento um do outro. No dia a dia, a família percebe sua missão na

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Nilton & LucéliaMinistros da Palavra e Eucaristia da Paróquia

Santo Antônio Pinhalzinho, SC

educação, na orientação, nos ensinamentos e na vivên-cia dos valores evangélicos errando e acertando. O im-portante é fortalecer a capacidade do perdão mútuo e cumprir, através do cuidado dos filhos, a missão de continuar o projeto de Deus.

Sozinho ninguém é santo, ninguém é bom! O iso-lamento só leva a pessoa à tristeza e ao afastamento de Deus. E bonito é quando, nesta busca da nossa vocação, encontramos nossa felicidade em fazer a fe-licidade do outro. Eis um coração em festa! Seja como pai ou como mãe, religioso ou religiosa, sacerdote ou leigo, o essencial é se fixar no projeto divino do amor e comprometer-se em fazer a vida de alguém feliz. Por este caminho, que é uma escolha de vida, acabamos sempre acertando.

Precisamos sentir e transmitir afeto, somos sociáveis, e, a família nos dá a primeira oportunidade de sermos pessoas de importância e significado. Através dela encontramos o refúgio e o abrigo sempre que preci-samos. Os animais possuem tocas e ninhos, mas nós humanos só podemos sentir essa proteção e seguran-ça através de nosso lar. Nada se compara ao abraço, ao sorriso e ao carinho que podemos encontrar em casa. Esquecemos o cansaço e o stress da vida agitada e conturbada lá de fora. Dentro de um lar, temos a possi-bilidade de administrar nossas limitações e fraquezas. Se durante o dia chegamos a machucar-nos ou a ma-chucar alguém, encontramos em nosso lar a escola do perdão e da reconciliação.

Como casal testemunhamos sempre que o funda-mental para uma boa vida conjugal é manter a nossa oração pessoal. A espiritualidade em todas as fases da vida é essencial. Se cultivarmos essa postura desde a juventude, enquanto casal, alcançamos uma intimida-de com Deus, iluminada e providente.

Quando éramos mais jovenzinhos, orávamos mui-to e pedíamos a Deus que nos ajudasse a encontrar alguém que fosse a “pessoa certa”; que essa pessoa tivesse valores e propósitos que pudessem somar ao nosso crescimento. Lucélia sempre me conta que orou muito, pedindo a intercessão de Nossa Senhora Apare-cida, para que Deus colocasse em seu caminho alguém que, em suas palavras, “valesse a pena”. Pedia alguém que tivesse princípios, alguém com quem pudesse construir algo não somente material. Por outro lado, eu também orava muito. Pedia a Deus que colocasse em minha história uma pessoa que combinasse comigo, que não fosse fútil, que fosse verdadeira e que cami-nhasse ao meu lado, como na própria Palavra de Deus fala: uma mulher virtuosa!

Deus é fiel e providente. Seu coração está sempre disposto a oferecer o melhor para cada um de seus filhos. Com certeza foi Ele mesmo que cruzou a his-tória de Lucélia e a minha. E, através de muita oração e procura, viemos a perceber então que fomos feitos

um para o outro. Com certeza, também Nossa Senhora Aparecida, aquela mãe singela e carinhosa: nosso per-manente auxílio. Lucélia e eu temos na Senhora, a Mãe Aparecida a nossa santa casamenteira. Se, para alguns, foi Santo Antônio que os juntou, para nós, Nossa Se-nhora Aparecida é que uniu o nosso amor, e por isso nós a chamamos de nossa Madrinha de casamento.

O texto do Evangelho de Mateus 7,21-25, norteou nossa caminhada enquanto casal, e também me ins-pirou uma composição musical em homenagem ao nosso mútuo amor. Temos tantas dificuldades quanto os outros casais. Assim como as enchentes e vendavais que ora ou outra chegam, mas nenhuma dificuldade é maior que a rocha firme, que é Jesus Cristo. N’Ele te-mos total confiança.

Terminamos essa reflexão incentivando os jovens casais a buscarem, em suas vidas, a realização do pro-jeto de Deus e a focarem sua felicidade em fazer a feli-cidade um do outro.

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ARTIGOS

O Pai-Nosso: composição e teologia

Para melhor compreender este texto, sugiro que o leitor retome meu artigo anterior “Mt 3-25: Estrutura e Teologia” (cf. último Bertheriano), em especial nos parágrafos em que elucido a gênese da formação do evangelho canônico de Mateus e a noção de Reino dos Céus, central na men-sagem deste evangelho sinótico. A complexa “questão si-nótica” está também presente na composição e teologia do Pai-Nosso, uma vez que esta oração aparece em dois evangelhos com formulações assaz diferentes: uma mais extensa, em Mt 6,9-13, no corpo do “Sermão da Montanha”, e outra mais breve, em Lc 11,2-4, em Sitz im Leben luca-no. As extensões de Mateus são acréscimos do evangelista, da tradição mateana ou palavras saídas da boca de Jesus? Por que Lucas abreviou a oração, além de alterá-la em sua formulação? O “Protoevangelho Q”, um dos mais antigos escritos cristãos, anterior à edição dos textos evangélicos que entraram no cânon do Novo Testamento e ao qual fiz referência no meu artigo anterior, tem alguma importância na composição e teologia do Pai-Nosso? Quais são as prin-cipais diferenças existentes nos Pais-Nossos de Mateus e de Lucas? Por que o texto de Mateus foi assumido na Liturgia católica? Estas e muitas outras questões podem ser feitas não só por especialistas em hermenêutica e Teologia bí-

blica, mas também por todos os que fazem desta “oração dominical” uso cotidiano e prece ecumênica do devocio-nário popular. Dadas as limitações de espaço e de tempo para uma elaboração exaustiva de respostas a todas estas questões no presente ensaio para esta edição de O Berthe-riano, restrinjo-me ao que considero mais útil e importante neste, para mim, apaixonante tema de Teologia bíblica. Vou aglutinar meu resumo conclusivo (omitindo argumentos acadêmicos e referências bibliográficas!) em torno de três aspectos: importância do “Protoevangelho Q”; principais diferenças na estrutura e na mensagem do Pai-Nosso em Mt e Lc; e, uso litúrgico do Pai-Nosso.

Qual é a importância do “Protoevangelho Q” na composi-ção do Pai-Nosso? Nos últimos decênios, muitos exegetas se debruçaram sobre o assim chamado “Documento Q” (inicial da palavra alemã “Quelle”= fonte), analisando descoberta, estrutura e conteúdo, gênero literário, contexto histórico e sua relação com o Jesus histórico, principalmente com seus ditos. Sabemos que o cânon neotestamentário passou por três etapas: a pregação oral dos apóstolos e discípulos, centrada no querigma da morte e ressurreição de Jesus; a preocupação de manter escrita esta pregação oral, em es-pecial a partir do momento em que iam falecendo as teste-munhas que conviveram ou conheceram o mestre e a etapa da fixação definitiva da mensagem oral e escrita em várias coleções e tradições no texto canônico tal como o temos ainda hoje. É nesta segunda etapa que aparece também o nosso “Documento Q”, de autoria desconhecida, utilizado por Mateus e Lucas e centrado basicamente sobre os ditos de Jesus, dentre os quais também o Pai-Nosso. Outras cole-ções também foram escritas, como o evangelho aramaico de Mt, um primeiro esboço do evangelho de Mc, bem como outros escritos a serviço das comunidades judaico-cristãs primitivas, sejam da Galileia ou de Jerusalém e as prove-nientes do paganismo, principalmente a partir da pregação de Paulo. Como se apresenta, então, o teor do Pai-Nosso in-serido no “Protoevangelho Q”? A exegese moderna propõe o seguinte texto: “Pai, santificado seja o teu nome, venha o teu Reino. O pão nosso de cada dia dá-nos hoje e perdoa--nos as nossas dívidas como também nós perdoamos aos nossos devedores e não nos exponhas à tentação”. Temos uma invocação, duas “Petições em Tu” e três “Petições em Nós”. Esta formulação coincide quase na íntegra com a do evangelho de Lc. Adiante aludo às modificações introduzi-das por Lucas. Segundo a exegese moderna, esta teria sido, portanto, a formulação mais provável saída da boca de Je-sus, ao ensinar o Pai-Nosso, a pedido de um dos discípulos, “Quando orardes, dizei...” (Lc 11,2a).

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Bertilo BrodTeólogo e Professor emérito

Erechim, RS

Quais são as principais diferenças entre Mt e Lc e destes com o “Protoevangelho Q”? Em Lc, temos omissões e modi-ficações. As principais omissões referem-se aos acréscimos “nosso” e “que estás nos céus” presentes no invocativo do texto de Mt e à omissão da terceira “Petição em Tu”: “Seja fei-ta a tua vontade na terra como no céu”, bem como a quarta “Petição em Nós”: “Mas livra-nos do mal”. As modificações se referem ao “hoje” da primeira “Petição em Nós”, altera-do para “a cada dia”; ao substantivo “dívidas” da segunda “Petição em Nós”, mudado por “pecados” e a indicação do perdão para “todos” os que são devedores, no hemistíquio desta mesma petição. Estas omissões e modificações no Pai-Nosso de Lc não são somente estilísticas, mas marca-damente teológicas. Lucas é o teólogo da história da salva-ção, sabedor da necessidade de a Igreja se preparar para o longo tempo de vida no mundo presente, na expectativa da parusia escatológica. É sua visão do Reino de Deus “já” presente na vida e obra de Jesus, mas “ainda não” realizado plenamente, visão coincidente com a dialética do “já e ain-da não” do Reino de Deus de Lc e do Reino dos céus de Mt. As expansões que foram introduzidas no Pai-Nosso por Ma-teus, ou já por sua tradição litúrgica, decorrem claramente do seu estilo redacional, reescrevendo e adaptando suas fontes (Documento Q e outras) ao seu projeto querigmático destinado à comunidade judaico-cristã. A terceira “Petição em Tu” (“seja feita a tua vontade assim na terra como no céu”) e a quarta “Petição em Nós” (“mas livra-nos do mal”), inseridas por Mateus em seu Pai-Nosso, certamente eram desconhecidas por Lucas, não havendo motivo para omiti--las se existissem na prece por ele herdada. Concatenando as três formulações (Documento Q, evangelho de Mateus e o de Lucas), percebe-se que todas têm uma perspectiva es-catológica e teocêntrica. Escatologia futura enfatizada nas duas “Petições em Tu” e escatologia já concretizada nas “Pe-tições em Nós”. O teocentrismo marca já o invocativo inicial “Pai/Abbá” = “meu próprio querido pai”), no paralelismo íntimo entre a primeira e a segunda “Petição em Tu” (santi-ficação de Deus ou de seu nome e vinda do seu Reino) e nas “Petições em Nós” (a petição do pão cotidiano, do perdão das dívidas e da libertação da tentação/teste final). Estas “Petições em Nós” expressam uma esperança escatológica que abrange a existência concreta e corporal na terra e não apenas salvação das almas desencarnadas no céu. O caráter teológico deste teocentrismo merece algumas considera-ções. A justaposição de Deus-Pai, no invocativo da prece, e de Deus-Rei nas “Petições em Tu” pode provocar certa sur-presa retórica e teológica, isto é, concilia o imenso poderio de Deus sobre a história humana, como rei da criação, e a intimidade de um Pai amoroso. Jesus ensina os discípulos a se dirigir a Deus, Pai e Rei, transcendente e todo-poderoso e íntimo imanente. O mesmo “impacto” teológico se evi-dencia na condição de os discípulos perdoarem aos outros (as “dívidas” = ofensas/pecados) como condição para que Deus conceda o perdão definitivo na parusia final. Pode-se condicionar Deus? Ademais, a difícil petição “não nos indu-zas ou exponhas à tentação” tem sentido causativo ou ape-

nas permissivo? A Santa Sé está propondo que as Confe-rências episcopais avaliem esta questão, dentro do espírito da sinodalidade! Mesmo sendo um acréscimo de Mateus ou da sua tradição, a petição “livra-nos do mal”, enseja dupla compreensão: que sejamos livres do Mal (conceito abstrato, neutro) ou do Maligno (mal personalizado, no masculino, identificado com Satanás, inimigo jurado do projeto de Je-sus). Aliás, nas parábolas, Jesus empregou amiúde aparen-tes oposições, duplos significados, símbolos contraditórios, para que os discípulos chegassem a uma verdade mais ele-vada. Esta pedagogia de Jesus, assim me parece, contém ínsita um genuíno humor-desafio: descobrir o sentido mais profundo do seu querigma.

Após estas digressões, abordo o terceiro item: o Pai-Nos-so na liturgia. Já vimos o longo percurso desta linda prece: saiu dos lábios de Jesus, foi decorada pelos discípulos, foi objeto de pregação oral, escrita em diferentes documentos, como no “Protoevangelho Q”, traduzida do Aramaico/He-braico para o Grego e utilizada na liturgia das comunidades primitivas. Segundo o testemunho da Didaqué, um escrito dos fins do século 1 dC e que contém o ensinamento dos Apóstolos, o Pai-Nosso, muito semelhante à formulação do evangelho de Mateus, apresenta, no final do mesmo, a do-xologia “Pois dele é o reino, o poder e a glória”, ausente, porém, praticamente em todos os códices unciais e deriva-dos cujos manuscritos originais estão conservados e à dis-posição dos exegetas. Martinho Lutero, ao traduzir a Bíblia do Antigo e do Novo Testamento para o Alemão, acrescen-tou esta doxologia ao Pai-Nosso, razão por que ela é rezada normalmente pelos luteranos. A liturgia católica, influencia-da pela Didaqué, manteve-a também, mas separou-a, da oração do Pai-Nosso e reservou espaço após o embolismo constituído pelas preces proferidas pelo celebrante “Livrai--nos de todos os males” e “oração da paz”. A comunidade reza, então, a doxologia, acrescentando-lhe o “Amém”. Nada impede, portanto, que em nosso devocionário, indivi-dual ou comunitário, façamos uso desta doxologia que, em sua essência, brota diretamente das petições do Pai-Nosso, a prece por excelência ensinada por Jesus.

À guisa de conclusão, tomo a liberdade de recomendar ao amigo leitor a (re)leitura da catequese que o Catecismo da Igreja Católica elaborou sobre o Pai-Nosso, no corpo da Quarta Parte deste bem fundamentado tratado (pp. 706-734). Além de uma detalhada análise das sete petições e outros sugestivos aspectos, ressalto a novidade da transli-teração de termos e frases do Aramaico/Hebraico e Grego presentes na prece do Pai-Nosso. Enriquecem a crítica tex-tual e os elementos de filologia que expus no presente arti-go. Que tudo isso nos ajude a rezar e viver no espirito desta oração que Jesus nos ensinou.

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Pe. Euclides Benedetti, msfPároco da Paróquia Sto. Antônio - Vila Pippi

Santo Ângelo, RS

Bendita(s) presença(s) solidária(s) na dor

Nunca pensei que, um quarto tão pequeno do Lar de Na-zaré (Casa dos MSF - padres e irmãos - idosos e convalescen-tes), pudesse guardar tantos segredos. Todos os segredos de alguém que passou mais de quatro meses de noites mal dormidas, de dor, às vezes intensa, de angústia e insônia, que quase me levaram à depressão. Foram noites de inter-rogações e queixas sufocadas no travesseiro. É dura a noite de dor suportada secretamente, principalmente, quando se repete por tanto tempo. Ela se torna escura e longa, quase sem fim! As visitas e manifestações de solidariedade, rece-bidas durante o dia, apagavam-se com a noite que chegava e que tomava conta do quarto e da minha mente.

O Cristo crucificado sobre a cabeceira da cama, do meu quarto, foi um companheiro inseparável de todas as noites. Ele era meu consolo, pois estava comigo quando anoitecia e continuava comigo quando amanhecia. Ele é testemunha de quantas vezes ergui minhas mãos, querendo tocá-lo, im-plorando a cura. Ele é testemunha de todas as preces que fiz, pedindo que me envolvesse com sua misericórdia, que purificasse meu espírito com seu amor, que me desse o seu perdão e a cura física que implorava. Ele é testemunha da transformação que aconteceu em mim e da compreensão

que passei a ter da vida, da doença e com as pessoas que sofrem. Entendi que Ele não poderia fazer mais do que já fez e estar aí, junto a mim, solidário ao extremo com a mi-nha dor. Como não disse ao ladrão arrependido que desces-se da cruz, também não diria a mim fica, imediatamente, curado e retorna amanhã cedo para a tua missão.

Entender como Cristo age e manifesta sua solidariedade na hora da solidão, do sofrimento humano é, talvez, um dos maiores segredos e desafios da vida e da fé. “Não creio que a fé transporta montanhas, mas creio que nos dá a força de transpor as montanhas”, respondeu Roberto Carlos a uma jornalista que lhe perguntava sobre esta passagem bíblica, após a morte de sua esposa Maria Rita.

Durante a enfermidade, aprendi que é preciso saber es-perar, mesmo quando a hora tarda e nada há de inopor-tuno na sua chegada imediata. Aprendi que não é bom marcar com facilidade esta hora, pois, cada vez que ela não chega, ela mina o alicerce de nossa esperança, ficamos can-sados, principalmente, na secreta esfera pessoal. Aprendi a perceber a vida e o mundo de maneira diferente. A grande dúvida, que paira no momento, é: será que, de fato, sairei modificado, diferente, diante da dura experiência da enfer-midade? Será que continuarei melhor depois que tudo tiver passado?

Bendito Lar de Nazaré! Onde mais poderia ter ficado e recebido todos os cuidados que recebi? Nunca me convenci tanto da sua necessidade. Recordei tanto as dúvidas e inter-rogações que tivera, quando foi construído e que se dissi-param, quando de fato mais o precisei, como a neblina, ao surgir o sol da manhã.

Benditas estas pessoas, mulheres e homens que intera-gem no Lar de Nazaré. Onde aprenderam a amar tanto, a te-rem tanta paciência e dedicação? Não creio que façam tudo isso por interesse próprio, simplesmente. Cada vez, que lá vou, saio mais edificado com seu exemplo e testemunho. Com certeza, são um grande questionamento para nós reli-giosos, especialistas nas reflexões teológicas, nas interpre-tações bíblicas e nas teorias sobre o amor. Sigo querendo que nunca mais o mistério do amor infinito de Deus, o dom infinito da vida, se transforme em algo efêmero e de pouca importância, procurando trazer para cada momento aquilo que se revelou como essencial.

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Missão católica e ecumenismo

Embora o espaço seja um tanto limitado para um tema tão profundo e extenso, ousamos dar uma abertura ao fas-cinante e atual debate sobre o ‘pluralismo religioso’. Certa-mente, não vamos dizer tudo e nem o mais certo. Mas va-mos entrar no processo e na dinâmica, também escutando o outro. O diálogo ecumênico, ou seja, a relação entre as Igrejas originárias do cristianismo é uma prática existencial e histórica. Não é uma realidade apenas de hoje.

A Missão é única. Porém, ela tem múltiplas ‘missões’. Eis quando entram em questão os princípios da unidade e da pluralidade, que mereceriam um tratado particular e, cer-tamente, extenso. Eis quando entra em questão o tema da identidade de cada uma dessas ‘missões’ que, mesmo não concordando em alguns pontos, respeitam-se e dialogam em vista de um bem maior e único.

Penso que, ao longo da história eclesiástica, erradamen-te, chamamos de ‘cismáticas’ algumas missões. A palavra ‘anátema’ nunca deveria ter aparecido no vocabulário cató-lico. Porque, tanto na hora do cisma quanto na tentativa de conciliar os ânimos e as diferenças, necessariamente dialo-gamos. O diálogo é parte integrante nessa pluralidade mis-sionária. A essa necessária prática dialogal, posteriormente, as ciências da religião passam a nominar de ecumenismo.

Se é verdade que a intolerância religiosa está presente nessas missões, também é verdade que se experimenta um respeito notável pela identidade de cada uma. O pluralismo religioso tem sua riqueza no âmbito da fé. Porém, o proseli-tismo é uma ameaça das mais perigosas para a própria mis-são. A prática da conquista em vez do diálogo foi causadora de muitas guerras ao longo da história.

Na minha pequena experiência ecumênica, ouso afirmar que o diálogo entre as diferentes ‘congregações’ dá-se com

mais facilidade no meio popular do que entre os estudio-sos da fé. Sinto que o diálogo doutrinal anda mais devagar do que a prática de cultos e prédicas junto aos pobres, nas grandes periferias. Porém, tanto um como o outro reves-tem-se de um teor acentuadamente fundamentalista.

A organização dessas "missões" aponta para a busca do poder. Nas assembleias, a magia e a demagogia estão mais presentes do que a participação democrática. Nossa rápi-da análise não pode deixar de dizer que a postura dessas missões é demasiadamente verticalista, quando prega que a prosperidade depende da "bênção de Deus", unicamente. Existe um descompasso entre o "espiritualismo" incontido nas assembleias orantes e o bem material que buscam.

O avanço, se assim podemos falar, contudo, é que essa temática religiosa pluralista está, sempre mais, nos currícu-los universitários. De fato, as pesquisas multiplicam-se no mundo acadêmico. Já em termos mais precisamente cató-licos, o Vaticano II deu um salto qualitativo, publicando o Decreto Unitatis Redintegratio, no qual abre espaço para um diálogo ecumênico mais consistente com os diferentes.

Prevê-se todavia, com certa segurança, que esse itine-rário seja irreversível, tanto no nível da fé como na prática científica. E, assim podemos afirmar que, embora o pluralis-mo reinante se acentue cada vez mais, a unidade ecumêni-ca não será tão facilmente desfeita.

“Ut omnes unum sit”.

Pe. Vergílio J. Moro, msfPároco da Paróquia São José Operário

Rio de janeiro, RJ

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RAÍZES DE UMA ESPIRITUALIDADE INSPIRADA NA SAGRADA FAMÍLIA

Belém: Deus em saída!

O Natal é uma oportunidade de nos aproximarmos ainda mais de Jesus, Maria e José. Maria, a mulher cheia de graça que teve a coragem de se confiar totalmente à Palavra de Deus; José, o homem fiel e justo que preferiu acreditar no Senhor em vez de ouvir as vozes da dúvida e do orgulho humano; Jesus, o “Emanuel” – “Deus conosco” que em Be-lém veio trazer a todos a salvação, convidando cada um de nós, a seu exemplo colocarmo-nos numa atitude de “saída”, prontidão e serviço.

Belém era a cidade onde havia nascido Davi, o “rei justo”. Também significa “Casa do pão”. Jesus, nascido ali, numa manjedoura simples, mas rodeado de amor, nos revela a

opção de Deus que se encarna em nossas periferias, que “sai” e vem visitar seu povo, trazendo esperança, paz e li-bertação. Fica do lado dos pecadores, pobres, famintos, excluídos e refugiados, tornando-se para todos: a “Alegria do Evangelho”.

Este “êxodo” de Jesus é um caminho de “mão dupla”. Deus vem ao nosso encontro e, cada um de nós, é vocacio-nado a ir até Belém para visitá-Lo, oferecer nossas orações, louvores e presentes como fizeram os pastores, os anjos e os reis magos. Belém torna-se, assim, um convite à partilha daquilo que temos e somos!

Não resta dúvida que, antes de “sair” precisamos “che-gar” a Jesus, acolhê-Lo em nossa manjedoura interior. É preciso abrir as portas de nosso coração, de nossas famí-lias e comunidades para continuarmos acolhendo aqueles que não encontram ainda hoje abrigo em nosso mundo (Mt 25). É nossa missão fazer da Igreja uma “hospedaria”, isto é, à luz da espiritualidade do “Bom Samaritano”, um lugar de acolhida, misericórdia, cuidado e amor. Um lugar não só de anúncio, mas de vivência do Evangelho. Esses são os elementos essenciais que devem iluminar e caracterizar a missão de uma “Igreja em Saída”.

Foi na beleza e na fragilidade de uma Criança, no coração de uma família pobre e confiante que Deus se manifestou, construiu sua tenda. A Luz veio dissipar as trevas. As pro-messas feitas pelos profetas se concretizaram, e a salvação encheu de paz e esperança aquela Noite Feliz, resultado de uma “Igreja em Saída, cuja fonte é o próprio Deus.

Por isso, o Natal nos convida a “sair” e “ir” até Belém, a colocar toda a nossa vida junto a Jesus, Maria e José, nossas alegrias e tristezas, nossos medos e esperanças, deixando que o nosso “ser” e “agir” missionários se revistam da ter-nura e misericórdia divinas. Ali encontramos e aprendemos a dinâmica do “êxodo” e do “dom”, do sair de nós mesmos, do caminhar e, assim, sermos igreja peregrina e missionária, capaz de comunicar a todos, com coragem e generosidade, a salvação de Deus oferecida a toda humanidade. Ninguém é excluído/a desse amor!

Celebremos então o Santo Natal de Jesus neste clima missionário de esperança e confiança. Afinal, “Deus está co-nosco”! Em cada Natal e em cada Belém, o divino se apro-xima e toca os corações humanos, transfigurando todas as periferias, afastando o medo, o pessimismo e as increduli-dades, convidando todos a serem anunciadores do Evange-lho da Alegria e da Misericórdia. Que os ensinamentos de Belém nos ajudem a ser essa “Igreja em saída”.

Pe. Marcelo Júnior Klein, msfAMISAFA/SAV e Vigário Paroquial

Pinhalzinho, SC

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Pe. Francisco Ary Carnaúba, msfMissionário na Prelazia de Tefé

Carauarí, AM

A profecia de SimeãoQuando rezamos o terço, no quarto mistério gozoso ou

da alegria, contemplamos o episódio da apresentação de Jesus no templo e a purificação da mãe, para cumprir a lei. O evangelista São Lucas no capítulo 2, 21ss descreve muito bem este acontecimento. Porém cada vez que chego a este mistério que é gozo ou da alegria, me deparo com uma si-tuação no mínimo intrigante: Simeão reconhece em Jesus a luz para as nações e a glória do povo de Israel. Mas ao mes-mo tempo diz a Maria: “Eis que este menino está destinado a ser uma causa de queda e de reerguimento para muitos homens em Israel, e a ser sinal que provocará contradições, a fim de serem revelados os pensamentos de muitos cora-ções. E uma espada transpassará a tua alma” (Lc 2,34ss).

Fico imaginando a alegria e gozo de Maria e José com a alegria de Simeão e de Ana, mas, ao mesmo tempo, o alerta vermelho que se acendeu no coração da mãe e do pai. Re-corremos então ao evangelho de São Mateus, que, em todo Capítulo 2, descreve a procura dos magos por Jesus em Jerusalém, chamando-o de “rei dos judeus”. Herodes, se-gundo a história, já havia cometido assassinatos por medo de perder o poder e, por isso, chama os estudiosos das Es-crituras para saber onde nasceria o “rei dos judeus” que os magos procuravam. É claro que ele não tinha intenção de adorar o novo “rei”, mas de tirá-lo de seu caminho.

Depois da adoração dos magos, ainda segundo Mateus, José é avisado em sonho para fugir para o Egito para salvar a vida de sua família. Maria, em sua sabedoria, logo entendeu que a profecia de Simeão começava a se realizar. Mateus narra de forma dramática a situação da matança dos ino-centes, inclusive citando uma antiga profecia de Jeremias: “Em Ramá se ouviu uma voz, choros e grandes lamentos: é Raquel a chorar seus filhos; não quer consolação, por-que eles já não existem”, Jeremias 31,15 (Mt 2,17ss).

O irônico desta fuga é que o Egito, fora o lugar da escravi-dão, agora é lugar de salvação para Jesus. Ele já se faz sinal de contradição. E a espada de dor começa a ser fincada no coração de Maria e, acredito, também no coração do amo-roso pai José. Mas este é apenas o começo do sinal de con-tradição e da revelação da maldade do coração humano. A vida toda de Jesus terá essa marca. Ele não teve sossego. O evangelho Marcos diz já no capítulo 3,6: "Saindo os fariseus dali, deliberaram logo com os herodianos, como o haviam de prender."

Incompreendido pela família, perseguido por herodia-nos, escribas, fariseus, saduceus, Jesus parece de fato desti-nado ser sinal de contradição. E Maria, discípula de seu filho Jesus, percebe sempre mais que a espada de dor transpassa seu coração, até cravar-se definitivamente na prisão, julga-mento e crucificação de seu jovem filho. No entanto os Atos dos Apóstolos dizem que Jesus passou pelo mundo fazen-

do o bem (cf. At 10,38). Difícil assimilar tudo isso!Porém, quando olhamos a história da humanidade e

suas muitas contradições, onde ricos ficam cada vez mais ricos à custa de pobres cada vez mais pobres, começamos a entender que parece que o Reino de Deus, não acontecerá plenamente em nosso mundo, infelizmente. Queira Deus que os bons não se cansem de fazer o bem e de ser hones-tos, e adotem os comportamentos dos maus e explorado-res. Eis uma grande tentação! E ninguém está livre dela. Por isso vale a pena lembrar aquilo que diz Pedro: “Sede sóbrios e vigiai. Vosso adversário, o demônio, anda ao redor de vós como o leão que ruge, buscando a quem devorar. Resisti--lhe fortes na fé” (1Pd 5,8ss).

Assim, quando rezamos o terço contemplando quarto mistério do gozo e da alegria, devemos ter bem presente que nossa vida humana é feita de contradições: graça e pe-cado, justiça e injustiça, alegria e pesar, e assim por diante. Porém, a única atitude que não podemos ter é cansar de fa-zer o bem e deixar de procurar a graça da conversão todos os dias. Só assim continuaremos nossa tarefa de anunciar o Reino de Deus e o nome de Jesus onde quer que este-jamos, mesmo percebendo que é necessário ter muita fé, esperança e amor para sermos discípulos missionários de Jesus nesta nossa sociedade tão cheia de contradições. Je-sus, que passou pelo mundo fazendo o bem, porque Deus com Ele estava, nos ajude em nossa tarefa nos dias de hoje. Em Jesus, Maria e José.

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Pe. Volimar Aimi, msfFormador do Aspirantado e Vigário Paroquial

Goiânia, GO

Deus: frágil e humano!

“Hoje na cidade de Davi, nasceu para vocês um Salvador,

que é o Messias, o Senhor” (Lc 2,11)

A família de Deus é o mundo, pois seu Filho se encar-nou em nossa realidade, assumindo nossa miséria humana e experimentando o drama de todas as famílias, conduzin-do-nos à vida em plenitude. Com o nascimento de Jesus, celebramos não somente a predileção de Deus pelos em-pobrecidos, perseguidos, oprimidos e marginalizados, mas sobretudo a certeza de que estamos sendo guiados por Ele no caminho que conduz à vida e à liberdade para todos.

É importante destacar a maneira pela qual Deus entra na história do ser humano. Foi uma donzela simples, de cora-ção puro, marginalizada pela sociedade da época, de uma cidadezinha sem importância, que o Senhor escolheu para trazer a este mundo o Salvador. Ele não nasce em berço de ouro e muito menos em Jerusalém, o centro religioso, como muitos esperavam.

Por ocasião do recadastramento decretado pelo impera-dor romano Augusto, José e Maria peregrinam de Nazaré, na Galileia, a Belém, pequena cidade da Judéia onde nasceu Davi, pois Belém, era a cidade Natal de José. Nessa cidade, cujo nome significa ‘casa do pão’, Maria dá à luz a Jesus so-zinha, em viagem, fora de casa, sem encontrar lugar, na so-lidão e no abandono, e coloca o menino numa manjedoura. É dessa forma que o Messias pobre, marginalizado ainda no ventre materno, nasce como líder e Salvador na cidade do rei Davi, aquele que unificou o povo.

Todavia, o nascimento de Jesus, não passa despercebi-do. Para o evangelista Lucas, os primeiros destinatários da grande notícia são os marginalizados, gente considerada de conduta duvidosa. Sim, o “anjo do Senhor” (um modo de fa-lar da manifestação de Deus), aparece aos pastores que, na época, eram mal vistos porque, sendo pobres, não tinham recursos para cumprir todas as exigências da Lei. A eles é anunciada a "alegre notícia" e, através deles, a todo o povo: “Hoje na cidade de Davi, nasceu para vocês um Salvador,

que é o Messias, o Senhor” (Lc 2,11). Assim, Jesus é apre-sentado como o Messias, o próprio “Deus que Salva”. Ele é o Salvador, porque traz a libertação definitiva; é o Messias que, através do Espírito de Deus, traz o reino da justiça que leva à paz; e é o Senhor, porque vence os males do mundo e produz uma sociedade e histórias novas, conforme o pro-jeto de Deus.

Lucas (2,12-18) nos informa como os pobres irão reco-nhecerão o seu Salvador. Ele é pobre e se comunica a seu povo como pobre: “Vocês encontrarão um recém-nascido envolto em faixas e deitado na manjedoura”. Deus utiliza a linguagem dos empobrecidos (faixas e manjedoura), dos migrantes e rejeitados da sociedade. O sinal indica a pobre-za e a solidão, mostrando bem que os pobres irão encon-trá-lo dentro da própria situação em que eles vivem. Deus quer salvar a todos, mas começa pela periferia.

Os pastores vão até o local descrito pelo Anjo do Senhor e a sua pressa em constatar o grande feito de Deus pelos pequeninos revela o quanto a situação dos pobres é ur-gente. O povo do Messias pobre são os marginalizados. Ao receberem a Boa Notícia são encarregados de transmiti-la. Eles confirmam o anúncio, contam a experiência, e todos aqueles que acreditam se maravilham.

Portanto, o impensável acontece: Deus se faz gente como nós para revelar o amor fiel que tem para conosco. Somos convidados a nos alegrar, pois, no Filho, Deus assu-me radicalmente o humano. Ele se encarna no meio dos migrantes, pobres e marginalizados e com eles inicia uma nova sociedade. A partir disso podemos nos perguntar: Onde e em quais situações descobrimos Deus se encarnan-do? Ao celebrarmos o Natal do Senhor, qual é a Boa Notícia a ser proclamada àqueles que são vítimas de um sistema que produz a miséria, a opressão e a marginalização?

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Virtudes da Sagrada Família presentes em nós

“Os exemplos da Sagrada Família são o tesouro que deixo a vocês como herança, mas são um

tesouro escondido. É necessário escavar no interior de Jesus, Maria e José, através da

meditação, para descobrir todas as riquezas que ela esconde.”

(Pe Berthier)

Buscamos tantos tesouros durante a nossa vida, e qua-se não percebemos o tesouro que Deus colocou em nossa existência. Um tesouro que não pode ser visto de qualquer maneira: é necessário escavar, como disse Pe. Berthier; é preciso olhar com o coração, como disse Saint-Exupéry. Este tesouro se encontra em cada pessoa que encontramos nos caminhos da nossa vida. Não o encontramos apenas em terras longínquas, pois ele pode estar mais próximo do que nós, às vezes, imaginamos. Na verdade, cada pessoa possui um tesouro escondido.

Há um pouco de cada membro da Sagrada Família de Nazaré dentro de nós. Carregamos algo das virtudes de Je-sus, de Maria e de José dentro do nosso coração. Por isso é preciso escavar, ir à busca, correr atrás! O tesouro de al-gumas pessoas está mais na superfície; outras precisam escavar um pouco mais; e há outro grupo que precisa es-cavar muito, mas muito mesmo! Este último grupo, em seu exterior e nas suas atitudes, são pessoas rudes, fechadas e antissociais, porém é preciso acreditar que no fundo dos seus corações há virtudes da Sagrada Família escondidas, enterradas.

Precisamos procurar e des-cobrir estas virtudes em todas as pessoas que partilham a vida e a missão conosco. Mes-mo não entendendo muito bem o seu idioma, a sua cultura, acabamos encontrando nelas as virtudes presentes na Fa-mília de Nazaré. Escavar, ‘olhar’ com o coração, é a atitude necessária para encontrar e desvelar as virtudes. Buscando com afinco, podemos encontrar a caridade e o amor de Je-sus, a entrega e a atenção de Maria, o zelo e a dedicação de José, em cada pessoa com quem nos relacionamos. Não há cor de pele ou etnia, opção política ou situação econômica, orientação religiosa ou sexual que possa apagar as virtudes da Sagrada Família dentro dos corações.

Que nós possamos identificar as virtudes da Sagrada Família de Nazaré e com elas aprender. Que nos deixe-mos encantar por seu espírito e aprendamos a valorizar as pessoas como a Sagrada Família o fez. Sigamos em frente exortados/as pelas palavras contundentes que nosso fun-

dador, Pe. Berthier, nos deixou: “Estejamos à altura da nossa vocação! Que a Sagrada Família nos configure a ela! É necessário que tenhamos seus pensamentos, seus sentimentos, seu coração; que apreciemos o ser humano e valorizemos as coisas como ela fazia.”.

Fr. Ricardo Klock, msfMissionário e Formador do Aspirantado

Mecuburi, Moçambique

Emília Royer RuppenthalLicenciada em História, Assessora de Cultura

São Carlos, SC

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A "chave secreta" da Sagrada FamíliaTer em nós os mesmos sentimentos de Jesus

Sabe a expressão: “Estava ali o tempo todo e eu não per-cebi?!”, indicando surpresa e espanto diante de uma des-coberta; propondo que deveríamos ter notado com mais atenção algo sobre determinado assunto, e/ou objeto, o que ainda não ocorreu? Isso acontece com qualquer um de nós! É mais comum do que pensamos. É normal, e não absurdo, o não compreender de imediato. Isso ocorreu vá-rias vezes também entre o Senhor e seus discípulos (Lucas 18,34; Marcos 9,32).

O Pe. Berthier escreveu que “é necessário escavar no in-terior de Jesus, Maria e José através da meditação, para des-cobrir todas as riquezas que a Sagrada Família esconde”. Ele estava certo... Na oração e meditação sempre descobrimos algo novo, algo que antes não percebíamos. Ou percebía-mos o gesto de cada personagem, os olhares, as falas, mas não compreendíamos de imediato o que este ou aquele evangelista, desejava comunicar. É necessário um trabalho diário, um esforço constante para tomar distância daquilo

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que nos afasta de Deus, como as distrações e ansiedades, para que haja no silêncio da meditação, a oportunidade de escutar o que o Senhor tem a nos dizer, por meio de leitu-ras, pessoas, imagens, fatos e acontecimentos que vivencia-mos. Afinal, Deus nos fala na cotidianidade, no mais comum que possamos imaginar.

Muitas vezes Pe. João Berthier dizia: “Assimilemos o Espi-rito da Sagrada Família!”. Ele não se cansava de recomendar isso. Desta maneira, pensava nosso fundador, saberíamos como perceber a graça que Deus acontecendo em “nossa Casa”. Essa casa pode ser o lugar onde estamos, a vida do nosso planeta e a nossa vida interior.

Este pensamento do Fundador me inspirou à meditação, juntamente com outra de suas falas: “A Sagrada Família é um tesouro escondido!” Tesouros e escondidos, são dupla-mente difíceis de encontrar! É procura, escavação, esforço, trabalho... Um número muito grande de coisas e tarefas a se realizar, mas com algo muito peculiar: nos instiga à curiosi-dade e nos motiva à persistência.

Persistência... Pois bem, foi no dia em que a persistência parecia enfraquecer em mim que busquei na oração e na meditação os motivos e as razões para continuar mantendo a tranquilidade, a esperança e os laços de unidade. Neste momento, a imagem do Pai Criador tomou conta do cená-rio da Sagrada Família de Nazaré, nas ações de Jesus, Maria e José.

Contemplava eu um quadro. E me veio o pensamento: É no seio desta família “...que cresceu o sacerdote eterno, nosso senhor Jesus Cristo, o enviado do Pai” o Enviado do Pai... Normalmente acontece de nossa mente dirigir a aten-ção para o Menino Jesus e seus pais Maria e José, mas des-ta vez não. Meu o olhar, no entanto, se dirigiu ao Pai. Pai e Criador de todas as coisas, que nos enviou o Filho. Nele, percebemos todo amor e esplendor do Pai misericordioso, que por nos amar tanto, enviou seu Filho amado.

A vida simples de Nazaré, nas ações do dia a dia da car-pintaria, com Maria e José que, nos revela um Deus Meni-no, envolto em fraldas, um Criador terno, trinitário, singelo e em família. No jeito paternal de José encontramos tam-bém os traços de Deus: homem protetor e provedor, que através de sua força do trabalho, sustenta sua família. Ma-ria, ternura e singeleza da imensa generosidade de Deus cuidador, zeloso, fiel e Mãe. E o menino? Aquele pequeno menino, pequena criança que era o próprio Verbo, agora é um corpo frágil e humano, plenamente humano, mas que traz consigo a imagem do Pai, aquele Pai que ainda não co-nhecíamos, mas que em seu próprio ser nos mostra aquilo

Gleison Costa França Postulante MSF, licenciado em Filosofia

Passo Fundo, RS

que não sabemos dizer: "Abbá-Pai". O menino Jesus, a Mãe amorosa e o carpinteiro-pai benevolente chegam a Belém, nos levam à Nazaré e, de Nazaré brilham como luz para a humanidade!

Numa manjedoura, num povo eleito, e, séculos mais tar-de, numa montanha, nosso pai Pe. Berthier também con-templou tudo isso e nos deixou uma herança. Ele foi e é um homem autêntico, um pai que somente pelas luzes do San-to Espírito poderia nos oferecer tamanha riqueza.

Contemplar e meditar o abaixamento de Deus em Cristo Jesus, no seio da virgem; realmente nos motiva a continuar escavando nossos corações nesta busca espiritual pelo te-souro escondido. Confidente dos segredos Divinos, Pe. Ber-thier nos deixa uma riqueza sem tamanho e que não pode ficar somente para nós. É uma fonte que jorra e transborda sem parar. Quem encontrou esse tesouro, encontrou-se com Deus, grandeza e silêncio, vida e ressurreição. Desde a família peregrina, na estrebaria, na sinagoga e na carpin-taria, ao cumprir os planos de Deus, Jesus foi chamado sim-plesmente de carpinteiro, o filho do carpinteiro.

Deixemo-nos inebriar pelo espírito da Sagrada Família de Nazaré a fim de que possamos, também nós, receber as bênçãos do céu. Deixemo-nos tocar pelo esforço e trabalho humilde das virtudes ali contidas. E mais: vistamos os aven-tais do servidor, como o filho do Pai do céu o fez: na família, em Belém, na carpintaria, em Nazaré e na mesa da última Ceia. Assumir a situação vivenciada por Jesus em Belém, em Nazaré, na Samaria ou em Jerusalém, o mais próximo de nós: é ser serviço! Isto é feito de sentimentos e atitudes, no servir e viver, em profundidade, a compaixão e a miseri-córdia de Deus.

Que o Natal seja uma oportunidade de avaliar o quanto crescemos e amadurecemos durante este ano. E, mais do que trocar presentes, troquemos afeto, abraços, serviço e sorrisos. Quando amadurecemos, a lista de desejos para o Natal fica mais curta, e, o que desejamos de verdade, não há ouro nem prata no mundo que possa pagar! Tenhamos os mesmos sentimentos de Cristo Jesus, que se faz presente na Sagrada Família e em cada um de nós. Aproximemo-nos d'Ele de coração aberto!

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Leandro LunkesNoviço MSF. Licencianciado em Filosofia

Santiago, Chile

O Natal e a Sagrada FamíliaO Natal se aproxima! Uma festa linda que comemora a

misericórdia de Deus enviando seu Filho ao mundo para nos redimir e salvar. Foi nessa Santa Família, com Maria e José, que Jesus nasceu, em meio aos pobres e simples. E, para melhor entender o mistério da encarnação vou contar--lhes uma pequena estória:

Um trabalhador queria comprar um terreno para construir sua própria casa. Mas, tinha dúvidas sobre onde construir, sobre o tamanho melhor do terreno. Depois de consultar várias empresas e também sua família, enfim decidiu e co-meçou a construção. Terminada a casa, veio um forte vento e derrubou-a. Mais que depressa, foi aberta uma sindicân-cia para averiguar porquê que a casa tinha caído, já que fora pensada para resistir às intempéries da região. Todos os trabalhadores: arquiteto, engenheiro, pedreiros, serven-tes se dispuseram a ajudar. Entregaram as plantas e deram todas as informações que tinham. Também se propuseram a construir uma nova casa, sem custos, caso o erro fosse deles. Mas, um dos trabalhadores não quis se envolver pois teria feito sua parte e nada tinha a dizer.

A investigação chegou a uma constatação: uma das pare-des não estava bem conectada com o restante da casa. A junção dessa parede com as demais não fora boa. Desco-briram que o trabalhador que a erguera fora o mesmo que dissera ter feito bem seu o trabalho. Ele não estava errado; o fato é que se preocupara em realizar o trabalho descon-siderando a necessidade de interação com os outros. E por esse erro a casa caiu. O dono da casa conversou com o tra-balhador, que insistiu que o problema não era dele. e que em nada iria ajudar. O proprietário pagou, então, o justo ao empregado e o demitiu. Os outros ajudaram a reconstruir a casa, dessa vez, mais forte e com mais atenção para não cometerem novos erros.

Quando a casa ficou pronta, outro vento, mais forte, veio! Porém, a casa não caiu, permaneceu firme e cumpriu a sua finalidade, de acolher e proteger. Depois da casa pronta e de a família ter se mudado para ela, o trabalhador que negara o seu erro voltou e pediu perdão. O dono da casa, comovido, o perdoou e cada um seguiu seu caminho!

Maria de Nazaré viu-se em situação similar ao dono da casa. Quando soube que seria mãe ficou com medo, porque não sabia como iria isso acontecer. A princípio não enten-dia o mistério que lhe era apresentado. Mas, depois que o anjo lhe explicou ser Jesus o Salvador, ela disse “sim” sem hesitar. Foi corajosa e audaz ao tomar uma decisão sozinha sem consultar ninguém, como exigia a lei. Ao dizer sim ao anjo, Maria foi contra uma sociedade machista que não ad-mitia mulheres tomarem decisões sem terem a assertiva de seus maridos; foi protagonista e confiante em Deus! O que importava para Maria, nesse momento, era a concretização da promessa do Messiais, o Salvador do seu povo. Não ficou lisonjeada por ser a mãe do Filho de Deus, mas se fez instru-mento d’Ele para ajudar o seu povo. Comprometia-se, de maneira peculiar, com a nova aliança, tão esperada.

O carpinteiro José, em seu primeiro momento, é parecido com o trabalhador que disse não ter nada a ver com o inci-dente. Antes do sonho e da revelação de Deus, José não deu credito a Maria, tampouco podia aceitar que sua gravidez fosse obra e graça do Espírito Santo. Ele pensava de um jeito pouco espiritual, não tinha fé em milagres ou na interven-ção divina. Mas, depois do sonho, acreditou e aceitou Jesus como filho e Maria como esposa. Dedicou sua vida à pater-nidade e ao sustento da família. Como o trabalhador que se arrependeu, reviu sua postura e foi fiel à nova missão.

A centralidade da Sagrada Família, no entanto, está em Jesus! A Sagrada Família surgiu para ser o embrião da sal-vação divina; para possibilitar a encarnação, o nascimento e o crescimento do Salvador da humanidade. Sem Jesus, o missionário do Pai, não há Sagrada Família. Maria e José são, também, missionários à medida que cumprem a mis-são de possibilitar o nascimento do Messias e ajudam Jesus a crescer em sabedoria, estatura e graça.

Nesse sentido a Sagrada Família não é só o sacrário do Cordeiro de Deus, mas também a primeira família missioná-ria, eleita pelo, Pai para realizar a missão de salvar. É exem-plo de missão, porque escutou e obedeceu a vontade do Pai, foi sensível ao seu apelo e à necessidade de salvação do seu povo. Teve medo e receio, mas, no final, ao vislumbrar o mistério do amor de Deus enviando seu Filho para redimir o mundo, não hesitou em obedecer.

A Sagrada Família foi fundamental para o plano salvífico de Deus. Sem a Sagrada Família, Jesus não teria crescido, da mesma maneira, em idade, estatura e graça. Foi neste am-biente familiar que Jesus apreendeu e desenvolveu sua gran-de humanidade. Que bom seria se os pais, hoje, também soubessem acompanhar seus filhos e ajudá-los em seu cres-cimento humano e espiritual como o fizeram Maria e José!

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PRÓXIMOS DAQUELES QUE ESTÃO LONGE

MISSIONÁRIOS DA SAGRADA FAMÍLIA

PROVÍNCIA BRASIL MERIDIONAL

Somos uma Congregação Religiosa Missionária, formada por missionários padres e irmãos, no mundo e para o mundo. Nosso carisma é missionário com ênfase na animação missionária, vocacional e no servi-ço às famílias. A Província do Brasil Meridional atua em várias frentes missionárias: Amazonas, Moçambi-que e Bolívia. Estamos nos meios populares e animamos a Pastoral Paroquial (RS, SC, GO, RJ, AL, PE, RN). Nossa formação inicial acontece em: Goiânia, Passo Fundo, Recife, Santiago no Chile e Belo Horizonte. Temos consciência de que as alegrias e esperanças, as tristezas e as angústias dos homens e mulheres de hoje, sobretudo dos empobrecidos e de todos aqueles que sofrem, continuam nos motivando para sermos próximos daqueles que estão longe.

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TESTEMUNHOS

São Paulo VI: breve biografia do Papa que tinha particular sensibilidade para com a América Latina

Onde é que estão aqueles que consideravam Paulo VI tímido, indeciso, super-prudente? O Papa, agora, oferece a mais oportuna,

clara e valente de todas as encíclicas, a Populorum Progressio. Paulo VI se agiganta enfrentando os poderosos, os donos do mun-do, os trusts internacionais. Porém, em nenhum momento, perde a serenidade. Desde o princípio até o final, atua como representante

de Cristo, servidor dos homens, papa de todos. Dom Helder Camara

A famíliaJoão Batista Henrique Antônio Maria Montini nasceu em

Concesio, Lombardia, Itália, no dia 26 de setembro de 1897. Era o segundo dos três filhos de uma família que valorizava e incentivava os estudos, a formação humana integral. Seu pai era advogado e ingressou na militância social em prol dos pobres, também exercendo a função de jornalista. Sua

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mãe era dona de casa, dedicada ao bem da família. O meni-no João Batista, de saúde frágil, era muito inteligente sendo elogiado pelos seus professores.

Primeira fase do ministério: RomaDepois dos estudos seminarísticos e da ordenação pres-

biteral, o Pe. Montini foi enviado para estudar na Pontifí-cia Universidade Gregoriana, em Roma (1920). Em 1922 foi transferido para a Academia de Estudos Eclesiásticos, a fim de estudar Diplomacia, continuando seus estudos de Direito Canônico. Enviado para Varsóvia como Adjunto da Nuncia-tura Apostólica da Polônia (1923), precisou voltar por causa do inverno severo que debilitou ainda mais a sua frágil saú-de. Então, começou a atuar num escritório da Secretaria de Estado do Vaticano, onde permaneceu por trinta anos. Foi nomeado professor da Academia de Estudos Eclesiásticos e Capelão da Federação de Estudantes Universitários Católi-cos Italianos, tarefa que lhe permitiu uma visão mais aberta em relação a questão social e política, em sintonia com as teorias do humanismo integral e do desenvolvimento in-tegral. Em 1937, Pe. Montini foi nomeado Substituto para Assuntos Correntes pelo Secretário de Estado. E o Cardeal Pacelli , eleito Papa em 1939, manteve Montini na mesma função. Durante a segunda guerra mundial, o sacerdote lombardo fez um amplo trabalho de assistência e cuidado aos refugiados políticos, crescendo em espírito pacifista.

Segunda fase do ministério: MilãoOrdenado Bispo, Dom Montini assumiu a missão de Ar-

cebispo de Milão em 5 de janeiro de 1955. Chegou à cida-de em um dia tempestuoso. Desceu do carro e enfrentou a chuva, pois, se as ovelhas estão na chuva, “o pastor tam-bém precisa estar na chuva”. Antes de ingressar na Catedral, beijou o solo da cidade. Nos dias seguintes, visitou favelas onde moravam migrantes, pobres e operários. Também vi-sitou fábricas, tomando a defesa da classe trabalhadora que estava sendo explorada por empresários. Por causa, disto recebeu a alcunha de “Arcebispo dos trabalhadores”.

Desde o início de seu pastoreio, Montini tomou a firme decisão de revitalizar a Arquidiocese, de ir às periferias, de não pregar apenas uma mensagem religiosa, mas o Evan-gelho integral, inclusive a dimensão social deste. Dedicou--se à educação católica, recebendo o apoio da imprensa ca-tólica. Seu impacto sobre a cidade foi muito grande, sendo admirado por muitos, mas também levantando reticências nos círculos mais conservadores.

O Papa João XXIII, por sua vez, compreendia e apoiava a ação pastoral de Montini. Assim que eleito, João XXIII di-rigiu seu primeiro escrito ao Arcebispo de Milão: uma car-ta comunicando a sua intenção de nomeá-lo cardeal. Em outras ocasiões, o Papa disse: “Aquele nosso caro filho que está em Milão... nós estamos aqui segurando-lhe o lugar”.

Além disso, o Papa enviou Montini a alguns lugares para re-presentá-lo, fazendo-o entrar em contato não apenas com “o mundo cristão”, mas também com outras experiências religiosas.

No Consistório de dezembro de 1958, o Arcebispo de Milão foi um dos 23 prelados promovidos ao cardinalato, estando o seu nome no topo da lista. João XXIII também o nomeou para duas equipes responsáveis pela preparação do Concílio Vaticano II. Em junho de 1960, a convite de Dom Helder Camara, o Cardeal Montini visitou o Brasil, especial-mente os projetos habitacionais para pobres e favelados da Cruzada de São Sebastião, no Rio de Janeiro.

Terceira fase do ministério: RomaEm 21 de junho de 1963, o Cardeal Montini foi eleito

papa e assumiu o nome de Paulo VI, em homenagem a São Paulo, Apóstolo e Missionário.

Podemos sintetizar o pontificado de Paulo VI nos seguin-tes feitos: 1) em seu discurso à Cúria Romana falou aberta-mente do governo colegiado da Igreja, uma das ideias mais queridas pelo seu amigo espiritual Dom Helder Camara; 2) decidiu continuar com o Concílio Vaticano II, celebrando o seu encerramento em 1965; 3) escreveu sete encíclicas, entre elas a Populorum Progressio, e doze exortações apos-tólicas, entre elas a Evangelli Nuntiandi e, no Ano Santo de 1975, a Gaudete in Domino, primeiro documento oficial de um papa sobre a alegria cristã, além de dezenas de outros textos e documentos; 4) fez diversas viagens fora da Itália como missionário de Cristo, sendo o primeiro sucessor de Pedro a visitar a América Latina (Medellín, 1968) e, em Ma-nila, Filipinas, sofreu um atentado (1970); 5) encontrou-se com o patriarca Ecumênico de Constantinopla Atenágoras I, depois de quatorze séculos de ruptura entre a Igreja Ca-tólica e o mundo ortodoxo; 6) encontrou-se com dirigentes de várias credos religiosos e de outras Igrejas Cristãs susci-tando o diálogo inter-religioso e o ecumenismo; 7) visitou a ONU, onde pronunciou um de seus mais célebres discursos: “Jamais a guerra...”; 8) depôs livre e alegremente a tiara pa-pal colocando fim, ao menos simbolicamente, à “era cons-tantiniana” e optando pela visão “Igreja servidora e pobre”; 9) acabou com a Santa Inquisição e criou a Congregação para a Doutrina da Fé; 10) aboliu o “index”, reformulou as regras sobre as indulgências, dispensou as forças armadas do Vaticano (deixando apenas a Guarda Suíça) e reformu-lou o Colégio de Cardeais; 11) aprovou o novo Rito Litúrgico, de acordo com a Tradição da Igreja e com as disposiçôes do Vaticano II; 12) construiu uma grande Sala de Audiência para atender o Povo de Deus, que hoje porta o seu nome; 13) sofreu incompreensões, críticas e até desobediência por membros da Igreja, especialmente de clérigos (por vários motivos: por querer aggiornare a Igreja, por causa do celi-bato sacerdotal obrigatório, por causa de sua visão de sexu-

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alidade, por ser contra o divórcio e o aborto, pelo cisma de Dom Léfèbvre); 14) iniciou a Jornada Mundial da Paz no dia 1º de janeiro de 1968; 15) beatificou 60 pessoas, canonizou 82 santos e proclamou as duas primeiras Doutoras da Igreja (Santa Tereza de Jesus e Santa Catarina de Sena); 16) envol-veu-se pessoalmente para libertar Aldo Moro do sequestro, e presidiu o seu funeral.

Particular sensibilidade para com a América LatinaUm aspecto que nem sempre é recordado, mas que é de

suma importância na biografia de Paulo VI é a sua particular sensibilidade para com a América Latina, em especial, com a Igreja e com os pobres.

Podemos dizer que vários fatores o levaram a esta par-ticular sensibilidade. Um primeiro fator vinha da persona-lidade de Montini: ele era um homem de grande sensibi-lidade humana perante a dor, a doença, o sofrimento e a pobreza, e tudo isto não era um caso isolado neste conti-nente, mas era gerado por estruturas injustas e opressoras que atingiam dois terços da população. Outro fator vinha de berço: o pai de Montini foi um advogado que ingressou na militância social em prol dos pobres e este exemplo pa-terno nunca lhe passou despercebido. Durante os tempos de estudos e nos primeiros anos de ministério presbiteral, sintonizou com as teorias do humanismo e do desenvolvi-mento integral, e isso permitiu-lhe uma visão mais aberta e avançada em relação à questão social e política. Durante a segunda guerra mundial, Montini fez um amplo trabalho de assistência e cuidado aos refugiados políticos, ocasiâo em que cresceu enormemente o seu espírito pacifista. Sua atuação na Ação Católica Italiana contribui com sua densa visão de mundo e de Igreja. Durante seu episcopado em Mi-lão, compreendeu a situação dos trabalhadores e defendeu os seus direitos.

Há outros motivos , mas, na minha compreensão, o mo-tivo principal foi a sua amizade espiritual com o brasileiro Pe. Helder Pessoa Camara. Esta amizade iniciou em 1950 e

nunca mais teve fim. Helder Camara percebia “recados de Deus” no agir e falar de Montini e vice-versa.

Esta amizade espiritual foi de suma importância para Montini conhecer a América Latina; para a criação da CNBB e do CELAM; para a organização do XXXV Congresso Eu-carístico Internacional, que aconteceu no Rio de Janeiro (1955); para garantir, em momentos chaves, o “espírito do Vaticano II” durante e após o Concílio; para a elaboração e difusão da Populorum Progressio; para garantir a missão helderiana de peregrino da Paz pelo mundo afora.

O apoio de Paulo VI a Dom Helder, quando este estava sendo perseguido, caluniado, difamado e depois silenciado pela ditadura militar, foi a prova sincera da amizade conso-lidada no decorrer de anos em prol do compromisso de aju-dar a Igreja a viver mais o Evangelho e de buscar um mun-do mais fraterno. De fato, Paulo VI apoiava Dom Helder e a linha helderiana em prol da justiça, da vida, da liberdade, da democracia. Por sua vez, Dom Helder acompanhava com amor, apoio e sugestões os belos momentos do pontifica-do de Montini. Nos momentos de incompreensão e críticas, buscava compreender e defender o Papa, descobrindo a ação do Espírito Santo, também nestas ocasiões.

Beatificação e canonizaçãoPaulo VI faleceu na Festa da Transfiguração (6 de agosto)

de 1978, deixando escrito um belo “Testamento Espiritual”, no qual pediu um funeral muito simples. No mesmo ano, amigos começaram a recolher material para a sua canoniza-ção. Em 1992, o Episcopado Italiano e o Latino-Americano (!) pediram a abertura do processo de canonização. Em março de 1993 foi declarado “Servo de Deus”, em dezem-bro de 2012 “Venerável”, e, em outubro de 2014 “Beato”. Foi canonizado pelo Papa Francisco em 14 de outubro de 2018, juntamente com Dom Oscar Romero (uma das canoniza-ções mais desejadas da “Igreja Servidora e Pobre” do mun-do inteiro). No mesmo dia, foram canonizados três santos que haviam sido beatificados por Paulo VI (Pe. Vicenzo Ro-mano, Madre Catarina Kasper e o jovem Nunzio Sulprizio).

Enfim, nas palavras do Papa Francisco, São Paulo VI “con-sumiu a vida pelo Evangelho de Cristo, cruzando novas fronteiras e fazendo-se testemunha d’Ele no anúncio e no diálogo, profeta duma Igreja extroversa que olha para os distantes e cuida dos pobres. (...) Hoje continua a exortar--nos, juntamente com o Concílio de que foi sábio timoneiro, a que vivamos a nossa vocação comum: a vocação universal à santidade...”.

Pe. Ivanir Antonio RamponCoordenador Arquidiocesano de Pastoral

Professor da Itepa Faculdades, Passo Fundo, RS

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Pe Pedro Léo: missionário das gentes!

O Pe. Pedro Léo Eckert nasceu em Saudades, no estado de Santa Catarina, no dia 20 de dezembro de 1965. É o pe-núltimo filho do casal Jacob Sobrinho e Acilda Eckert, sendo oito irmãos. Foi introduzido na caminhada de fé na comuni-dade de Santa Antão, interior de Saudades; ali também ini-ciou seus estudos na escola primária Pe. João Batista Fleck, missionário da Sagrada Família (MSF), que por muitos anos fora pároco em Saudades.

Quanto ao despertar vocacional e sua pequenina respos-ta, que foi tomando consistência aos poucos, Pe Pedro Léo assim se refere: “Tudo começou ainda muito jovem, em mi-nha comunidade de origem. Encantava-me a vida simples e a proximidade que os padres tinham com o povo. Recordo, com muito carinho e inspiração, do Pe. Hermeto Lunkes--msf; foi ele quem, na época, mais me marcou e motivou!”. Isso bastou para que o franzino Pedro, aos 14 anos, tomasse coragem e entrasse no Seminário menor em Maravilha-SC, no inicio de 1980, onde concluiu o ensino básico. Dalí foi en-

caminhado para Rio Pardo-RS, onde cursou o ensino médio, e na sequência a Passo Fundo/RS, para fazer os estudos de filosofia no IFIBE.

Já em 1988, admitido ao Noviciado, rumou para Porto Alegre-RS, onde professou os primeiros Votos Religiosos, como MSF, no dia 15 de janeiro de 1989. No mesmo ano foi designado para o Seminário de Rio Pardo, como auxiliar da formação. Em meados de 1990 iniciou os estudos teológi-cos no Instituto Missioneiro de Teologia em Santo Ângelo--RS. Ali foi ordenado Diácono no dia 07 de agosto de 1993, por D. Estanislau Kreutz, e no final do mesmo ano, no dia 18 de dezembro, aconteceu sua tão sonhada ordenação Pres-biteral, pelas mãos de D. José Gomes, em Saudades.

As primícias de seu pastoreio e labor pastoral se deram no ano de 1994, na paróquia Nsa. Sra. do Rosário, em Jataí--GO, formando comunidade com então pároco Pe. Guilher-me Werlang msf (hoje bispo de Lages-SC). Nesta missão atuou com os adolescentes e jovens, nas celebrações em fa-

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zendas e bairros, e acompanhou o Encontro de Casais com Cristo. No segundo semestre do mesmo ano, acolhendo proposição do Conselho provincial, iniciou um trabalho de alternância, ou seja, atuando quinze dias em Jataí e quin-ze dias em Rio Verde-GO. Já em meados de 1995, recebeu transferência definitiva para a Paróquia Nsa. Sra. das Dores, de Rio Verde, onde marcou presença até julho de 1997. Des-ta experiência assim se reporta: “Sublinho como caracterís-tico desse período o trabalho com as pastorais e os movi-mentos sociais, ecológicos, culturais e o intenso trabalho nas periferias, com os jovens”.

Na segunda metade de 1997, foi chamado para auxiliar na formação em Goiânia. Era período auge dos grupos de jovens, tempo de intenso envolvimento e apoio à Pastoral da Juventude, onde cada comunidade eclesial tinha seu grupo de jovens, senão dois ou até três grupos. Já no início de 1998, foi convidado a integrar a recém-criada Comuni-dade Missionária de Palmas-TO. Pe. Pedro assim relata esta realidade: “Palmas estava surgindo como a nova e grande possibilidade para todos, junto com os ‘investidores’ che-gou também a grande massa de trabalhadores vindos, em sua maioria, do Maranhão. Foi um tempo intenso de lutas: de ocupações, acampamentos, conflitos, muitas reuniões e organizações; também tempo de secas, extremo calor, com falta de infraestrutura, mas muita solidariedade. Nós Missionários da Sagrada Família lá estávamos, junto a este povo, inseridos nas vilas, presentes no mundo do traba-lho, nucleando comunidades, acolhendo e juntando gente pobre e sonhadora, inculturados na vida do povo.” Como experiência de inserção no meio popular, de “igreja dos pobres”, além da organização das comunidades eclesiais e da ação pastoral, todos os MSF trabalhavam em empregos diversos para ajudar na manutenção. Nesse período, o Pe. Pedro trabalhou na educação; era professor e vice-diretor de escola.

Falando de sua experiência seguinte, aonde chegou no segundo semestre de 2001, o missionário expressa: “o tem-po vivenciado em Palmas, serviu de alicerce para aceitar o convite MSF de ir morar na periferia de Porto Alegre-RS, no bairro Mário Quintana, vila Chácara da Fumaça. Encontrei ali uma pequena ‘casa inserida’ no meio popular, num aglo-merado de ocupações que faziam parte da área pastoral de duas paróquias. Já havia uma presença marcante de irmãs religiosas de duas congregações. Foi um desafio, e tanto, ambientar-me àquela realidade, com o mínimo de recursos. Mas aos poucos, contando com a ajuda de religiosas/os e de leigos atuantes em paróquias circunvizinhas, conseguimos uma estrutura mínima para morar e viver no meio do povo, e em condições semelhantes”. Nesta realidade desafiado-ra, em alguns meses era criada a Paróquia Jesus de Nazaré, “uma rede de comunidades a serviço do Povo de Deus!”.

E assim, após curto período, em fevereiro de 2003, Pe. Pe-dro Léo, com seu coração missionário, aporta em Carauari, na Prelazia de Tefé, no estado do Amazonas. Sem maiores dificuldades, quando se tratava de inculturação, passou a

Pe. Lotário Niederle, msfVigário Provincial

Passo Fundo, RS

atuar naquela vasta extensão fluvial do Rio Juruá, nas de-mandas pastorais urbanas e ribeirinhas das paróquias de Carauari (Nsa. Sra. da Conceição) e Itamarati (São Benedito) até o final de 2006. Desta forma destaca: “foi um mergulho em uma nova realidade e cultura, a ribeirinha. A sensibilida-de e acolhida do povo das comunidades, a simplicidade e o apoio do bispo D. Sérgio Castriani, a fé e a piedade popular (crenças devocionais), as procissões e os arraiais (festivida-des), os ricos momentos celebrativos, a caminhada da Pas-toral da Juventude, mesmo na fragilidade de infraestrutura das comunidades, foram definidores dessa fase”. Em 2007, vem nova transferência, a experiência no Amazonas é inter-rompida para prestar serviço na Paróquia Imaculado Cora-ção de Maria, em Porto Alegre. Foi um trabalho breve, pois, no início de 2008 retornou para a missão no Amazonas.

Começando o ano de 2011, surge um novo e maior desa-fio: preparar o espírito e, com ele, fazer o encaminhamento e os preparativos para partir rumo ao continente africano, em Moçambique (Arquidiocese de Nampula), para a missão distrital de Mecuburi... Hoje, já se passam quase oito anos desta nova empreitada! Em sua partilha, o “missionário ad gentes”, assim se manifesta: “percebo que nós MSF nunca fizemos uma escolha tão acertada de ‘estar próximo dos que estão longe’. É inevitável dizer que salta aos olhos, e ao coração, a realidade da gritante pobreza, miséria, des-caso e abandono que vive o povo de Moçambique. Nós missionários e missionárias, religiosos e leigos, que aqui estamos atuando, temos real conhecimento das dificulda-des enfrentadas no cotidiano, as quais não são poucas, na complexidade que tem a missão. Mas, para além disso, te-mos convicção da alegria que explode em nosso peito, ao nos sentirmos plenos portadores da Boa Nova do Reino; ao sermos expressão de ‘igreja em saída’, neste chão, e sinal profético de Jesus libertador”.

Ao celebrar seu jubileu de prata presbiteral Pe. Pedro Léo partilha de sua alegria e comprometimento missioná-rio: “sinto-me feliz de tudo que pude ser nesses 25 anos de sacerdócio. Participei e experimentei todo o reacender da chama missionária MSF, tenho consciência da minha pequenez e das fraquezas que me acompanham. Sei que preciso pedir perdão pelas quedas ou rupturas que acon-teceram no caminho da fidelidade. Mas quero também re-afirmar meu sim ao chamado e unir-me a todos e a todas que colocam a sua vida à serviço. Amo o que faço e agra-deço a Deus, aos familiares, amigos e amigas, especialmen-te aos Missionários da Sagrada Família. Quero, com todos, confirmar o meu compromisso com a Igreja missionária e a proposta de missão que o Evangelho propõe. Na alegria eu canto: Ide anunciar minha paz, ide sem olhar para trás, estarei convosco e serei vossa luz na missão”!

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Educação: mais que um desafio missionário!

O processo educacional é, certamente, um dos elemen-tos mais importantes numa cultura! Posso dizer que fiquei muito surpreso com a forma como a educação é abordada nestas terras moçambicanas; desde a pedagogia utilizada até às estruturas físicas disponíveis. Uma palavra pode de-finir a educação em Moçambique, e é com pesar que eu es-crevo isso: precariedade!

Nas minhas andanças, durante estes meses que estou morando nestas terras, pude notar que a educação geral-mente não é prioridade para os governantes. Ao passar nas comunidades, aldeias e vilarejos, vi muitas escolas, na sua maioria, feitas de bambu e barro. É uma típica construção aldeana que precisa ser reformada a cada pouco, pois quan-do não é o barro que cai são os cupins que atacam o bam-bu, fazendo com que tudo tenha que ser refeito.

Há algumas escolas edificadas com uma mistura de materiais: blocos de alvenaria e blocos de barro. Outras poucas são construídas inteiramente em alvenaria. Mas a grande maioria é feita de pau-a-pique mesmo. Ao lado da sede da missão, aqui em Mecuburi, temos uma escola, que é chamada de EPC - Escola Primária e Secundária (da 1ª à 12ª classes) - construída com material misto. Vi, há algumas semanas, os próprios alunos da escola misturando o barro e reformando as paredes das suas salas de aula, o que não deixa de ser também educativo.

Entretanto, ao entrar nas salas de aula a gente pode per-ceber que, muitas vezes, o que existe é apenas um “quadro negro” (quando tem!) e a mesa do professor. Na maioria das escolas não há cadeiras ou mesinhas para os alunos. As turmas são compostas de 50 ou mais alunos, chegando a ter, em algu-mas turmas, até 85. Como ser professor-educador e alcançar um processo de ensino-aprendizagem básico nessa realidade?

Falando dos professores, o que a gente vê é muitos de-les que acabam faltando às aulas, sem motivo aparente, ou não as preparam devidamente. E quando eles não chegam à sala de aula, algo que acontece com frequência, os alunos são dispensados. Além de muitos professores não terem uma formação apropriada, tendo conseguido uma vaga do estado, quando assumem a cadeira param a formação aon-de estão. Com isso, muitos adolescentes acabam por che-gar ao ensino médio mal sabendo escrever o próprio nome e lendo umas poucas palavras...

Apesar dessas tantas dificuldades, o que mais me chama a atenção é a paixão com a qual as crianças carregam o seu livro didático. Embora, às vezes, haja apenas um livro para todas as disciplinas e nem todas as séries ofereçam livros, estas crianças carregam seus livros, na maioria das vezes muito surrados, como se fossem grandes tesouros. Muitas os carregam junto ao peito. Outras, principalmente meni-nas, carregam-nos às costas, dentro de capulanas*, como se fosse uma criança. Sublinho esse detalhe, pois, por aqui, o povo costuma carregar tudo sobre a cabeça, desde coisas grandes, como as colheitas, até coisas pequenas, como um sabonete ou um par de chinelos. Mas nunca vi uma criança carregar o livro na cabeça!

* (Capulana, de origem tsonga, é o nome que se dá a um pano, tradicionalmente, usado pelas mulheres para cingir o corpo, fazendo às vezes de saia, podendo ainda cobrir o tron-co e a cabeça, ou servindo para carregar a criança junto ao peito ou às costas).

Fr. Ricardo Klock, msfMissionário e Formador do Aspirantado

Mecuburi, Moçambique

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