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E MAIS Erick Felinto: A descoberta dos objetos e a experiência de uma “virada não humana” Sandra Caponi: Neuronarrativas – A hipocrisia institucionalizada da medicalização da saúde Carlos Carcova: A tradução literária das complexidades sociais César Tureta: Sistemas organizacionais. O pensamento em rede na lógica empresarial Direito & Literatura A vida imita a arte IHU ON- LINE Revista do Instuto Humanitas Unisinos Nº 444 - Ano XIV - 02/06/2014 ISSN 1981-8769 (impresso) ISSN 1981-8793 (online) Henriete Karam: A literatura e a ampliação do horizonte humano José Calvo González: A palavra e a construção da verdade no Direito

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    AIS Erick Felinto:

    A descoberta dos objetos e a experincia de uma virada no humana

    Sandra Caponi:Neuronarrativas A hipocrisia institucionalizada da medicalizao da sade

    Carlos Carcova:A traduo literria das complexidades sociais

    Csar Tureta:Sistemas organizacionais. O pensamento em rede na lgica empresarial

    Direito & Literatura

    A vida imita a arteIHU ON-LINERevista do Instituto Humanitas Unisinos

    N 4 4 4 - A n o X I V - 0 2 / 0 6 / 2 0 1 4 I S S N 1 9 8 1 - 8 7 6 9 ( i m p r e s s o )

    I S S N 1 9 8 1 - 8 7 9 3 ( o n l i n e )

    Henriete Karam:A literatura e a ampliao do horizonte humano

    Jos Calvo Gonzlez:A palavra e a construo da verdade no Direito

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    Direito & Literatura. A vida imita a arte

    IHUInstituto Humanitas Unisinos

    Endereo: Av. Unisinos, 950, So Leopoldo/RS. CEP: 93022-000

    Telefone: 51 3591 1122 ramal 4128.

    E-mail: [email protected].

    Diretor: Prof. Dr. Incio Neutzling. Gerente Administrativo: Jacinto Schneider ([email protected]).

    H mais de seis anos o pro-grama de televiso Direito & Literatura discute, sema-nalmente, obras ficcionais tendo como horizonte a mtua re-

    lao do Direito e a Psicanlise. Da

    surge a inspirao do tema de capa

    da IHU On-Line desta semana.

    Participam do debate o profes-

    sor da Universidade de Mlaga, na

    Espanha, Jos Calvo Gonzlez; Hen-

    riete Karam, psicanalista e profes-

    sora do doutorado em Estudos Li-

    terrios da Universidade Federal do

    Rio Grande do Sul UFRGS, Carlos

    Maria Carcova, doutor em Direito e

    professor da Universidade de Buenos

    Aires UBA e Andr Karam Trindade,

    coordenador do Programa de Ps-

    -Graduao em Direito da Faculdade

    Meridional IMED.

    Somam-se a eles Alfredo Santia-

    go Culleton, professor do PPG em Fi-

    losofia da Unisinos, Alexandre Morais

    da Rosa, professor da Universidade

    Federal de Santa Catarina UFSC e

    Juiz de Direito do Tribunal de Justia

    de Santa Catarina e, por fim, Lnio

    Luiz Streck, professor e pesquisador

    do PPG em Direito da Unisinos.

    Complementam esta edio en-

    trevistas com participantes do III Se-

    minrio que prepara o XIV Simpsio

    Internacional IHU: Revolues tecno-

    cientficas, culturas, indivduos e so-

    ciedades. A modelagem da vida, do

    conhecimento e dos processos produ-

    tivos na tecnocincia contempornea,

    a ser realizado na Unisinos nos dias 21

    a 23 de outubro.

    Csar Augusto Tureta de Morais,

    professor da Universidade Federal do

    Esprito Santo UFES, aborda Estra-

    tgia como prtica social, tema de

    sua conferncia a ser proferida nesta

    segunda-feira (2), na Unisinos. J Erick

    Felinto, da Universidade Estadual do

    Rio de Janeiro UERJ, trata da A des-

    coberta dos objetos e a experincia

    de uma virada no humana, tema

    que apresenta na universidade no dia

    09-06.

    Sandra Caponi, filsofa profes-

    sora do Departamento de Sociologia

    e Cincias Polticas da UFSC, debate a

    medicalizao da vida. Fernando Lei-

    te, da Universidade de Braslia, fala

    sobre a ampliao da disseminao e

    distribuio do conhecimento cientfi-

    co a partir das redes de informao de

    acesso aberto.

    Externo programao do Se-

    minrio, o socilogo Rud Ricci, da

    Escola Superior Dom Helder Cmara,

    debate o atual momento do sindica-

    lismo nacional e o cenrio poltico e

    social aps as jornadas de junho/julho

    de 2013.

    A todas e a todos uma boa leitura

    e uma excelente semana!

    IHU On-Line a revista semanal do Instituto Humanitas Unisinos IHU ISSN 1981-8769.

    IHU On-Line pode ser acessada s segundas-feiras, no stio www.ihu.unisinos.br.

    Sua verso impressa circula s teras-feiras, a partir das 8h, na Unisinos.

    REDAO

    Diretor de redao: Incio Neutzling ([email protected]).Redao: Incio Neutzling, Andriolli Costa MTB 896/MS ([email protected]), Luciano Gallas MTB 9660 ([email protected]), Mrcia Junges MTB 9447 ([email protected]), Patrcia Fachin MTB 13.062 ([email protected]) e Ricardo Machado MTB 15.598 ([email protected]).Reviso: Carla Bigliardi

    Colaborao: Csar Sanson, Andr Langer e Darli Sampaio, do Centro de Pesquisa e Apoio aos Trabalhadores CEPAT, de Curitiba-PR.Projeto grfico: Agncia Experimental de Comunicao da Unisinos Agexcom.Editorao: Rafael Tarcsio ForneckAtualizao diria do stio: Incio Neutzling, Patrcia Fachin, Fernando Dupont, Sulen Farias e Julian Kober

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    LEIA NESTA EDIOTEMA DE CAPA | Entrevistas

    5 Direito & Literatura. A vida imita a arte

    6 Andr Karam Trindade Mais literatura e menos manual A compreenso do Direito por meio da fico

    10 Jos Calvo Gonzlez A palavra no Direito Construo da verdade e da realidade

    13 Henriete Karam A literatura e a ampliao do horizonte humano

    18 Carlos Maria Carcova A literatura como tradutora das complexidades sociais atravessadas pelo Direito

    22 Alfredo Santiago Culleton A humanidade condensada na literatura

    25 Alexandre Morais da Rosa Kafka e a crtica burocratizao do Direito

    28 Lnio Streck Direito e literatura em cinco obras

    30 Ba da IHU On-Line

    DESTAQUES DA SEMANA33 Destaques On-Line

    35 Entrevista da Semana Sandra Caponi Neuronarrativas A hipocrisia institucionalizada da medicalizao da sade mental

    40 Entrevista da Semana Fernando Leite Para existir, a cincia tem que dar acesso informao

    44 Entrevista da Semana Rud Ricci A arrogncia e inoperncia dos governos, partidos e sindicatos

    IHU EM REVISTA50 Agenda de Eventos

    51 Entrevista de Evento Erick Felinto A descoberta dos objetos e a experincia de uma virada no humana

    55 Entrevista de Evento Csar Tureta de Morais Sistemas organizacionais O pensamento em rede na lgica empresarial

    58 Publicao em Destaque

    59 Retrovisor

    twitter.com/ihu

    http://bit.ly/ihuon

    www.ihu.unisinos.br

  • SO LEOPOLDO, 00 DE XXX DE 0000 | EDIO 000

    Destaquesda Semana

    IHU emRevista

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    5EDIO 444 | SO LEOPOLDO, 02 DE JUNHO DE 2014

    Direito & Literatura. A vida imita a arte

    Ao apresentar o tema de capa desta semana, a Revista IHU On-Line recupera a trajetria do programa televisivo Direito & Literatura, que j conta com centenas de programas gravados e com a participao de aproximadamente 300 convidados, a maior parte deles professores uni-versitrios do Brasil e do exterior. De acordo com Andr Karam, coordena-dor do Kathrsis Centro de Estudos em Direito e Literatura da IMED e produtor Executivo do Programa Di-reito & Literatura, j foram gravados mais de 230 programas, debatendo distintas obras da literatura traan-do um paralelo com o Direito. Isto chama ateno especialmente se

    levarmos em conta que se trata de um programa que se prope a dis-cutir literatura num pas conhecido por suas telenovelas, avalia Andr. As cinco primeiras temporadas do programa foram gravadas na Funda-o Cultural Piratini TVE/RS. Desde 2012, as gravaes passaram a ocor-rer na TV UNISINOS e este ano o ce-nrio foi remodelado, trazendo uma esttica mais moderna e bonita.

    ExibioO programa exibido semanal-

    mente pela TV Unisinos, na tera-fei-ra, s 18h, e no sbado, s 11h. Na TV Justia, em rede nacional, Direito & Literatura transmitido toda quar-ta-feira, s 20h, sexta, s 21h30min,

    e sbado, s 9h. Ainda h a opo de acompanhar a programao no rdio, pela Unisinos FM 103.3, nas segundas-feiras, s 20h.

    Os telespectadores e os ouvin-tes podem ficar informados sobre a programao pela pgina do Face-book (www.facebook.com/direitoe-literatura). No endereo eletrnico constam as principais informaes sobre o programa, alm de dicas de livros, leituras e eventos com esta temtica. Embora o programa no tenha um canal no YouTube e no Vi-meo, grande parte dos programas j esto disponveis gratuitamente nesses portais.

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    SO LEOPOLDO, 02 DE JUNHO DE 2014 | EDIO 444

    Mais literatura e menos manual A compreenso do Direito por meio da ficoProfessor Andr Karam Trindade aposta na leitura de obras literrias para ampliar a compreenso sobre o Direito

    Por Ricardo Machado

    Repensar o Direito por meio da litera-tura e avanar nas discusses jurdicas a proposta dos estudos jusliterrios, como explica Andr Karam Trindade, em en-trevista por e-mail IHU On-Line, falando so-bre o programa Direito e Literatura. Pensar o direito a partir da literatura a proposta do programa e isto significa repensar o direito. Neste contexto, o programa busca nas narra-tivas literrias uma espcie de ponto de parti-da para que possamos recolocar as questes jurdicas, polticas e sociais que nos assolam, esclarece.

    Nesse sentido, ele destaca que h casos em que os textos de fico ajudam mais a compreender o Direito que os prprios ma-nuais. Na verdade, a premissa na qual sem-pre insisto pode ser formulada do seguinte modo: algumas narrativas literrias so mais importantes para o estudo do direito do que a grande maioria dos manuais jurdicos. Este o ponto. A literatura nos faz refletir acerca dos problemas que ela nos traz, avalia.

    Para o professor, a literatura faz emergir aspectos humanos das implicaes jurdicas. Em suma, a literatura pode humanizar o di-

    reito. E isto fundamental para a interpreta-o dos fenmenos jurdicos e, de um modo geral, para a formao do jurista, explica. A Literatura tem uma funo esttica, enquanto o Direito, uma funo normativa. Por isso, ela tem o poder de ampliar e confrontar horizon-tes, possibilitando um novo olhar aos fen-menos jurdicos, complementa.

    Andr Karam Trindade possui Gradua-o em Direito pela Universidade Luterana do Brasil Ulbra, mestrado em Direito P-blico pela Unisinos e Doutorado em Teoria e Filosofia do Direito pela Universit Degli Studi Roma Tre, Itlia. Coordena o Programa de Ps-Graduao em Direito da Faculdade Meridional IMED. autor e organizador de Direito & Literatura: da realidade da fico fico da realidade (So Paulo: Editora Atlas, 2013); Direito & Literatura: discurso, imagi-nrio e normatividade (Porto Alegre: Editora Nuria Fabris, 2010); Direito & Literatura: en-saios crticos (Porto Alegre: Livraria do Advo-gado, 2008); e Direito & Literatura: reflexes tericas (Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008).

    Confira a entrevista.

    IHU On-Line Do que tra-ta o projeto Direito e Literatura? Como ele surgiu e como vem sendo desenvolvido?

    Andr Karam Trindade A ideia surgiu no final de 2005, no Instituto

    de Hermenutica Jurdica IHJ, quan-do eu e meus colegas de aula, Roberta

    Magalhes Gubert1 e Alfredo Copetti

    Neto2, poca, todos mestrandos do

    1 Roberta Magalhes: graduada em Cin-cias Jurdicas e Sociais (PUCRS). Mestre em Direito Pblico (UNISINOS). Membro fundador e Pesquisadora do Instituto de Hermenutica Jurdica (IHJ). (Nota da IHU On-Line)2 Alfredo Copetti Neto: possui mestrado

    Programa de Ps-Graduao em Direi-

    to da Unisinos PPGDireito, tivemos

    uma aproximao maior com os estu-

    em Direito Pblico (Filosofia do Direito) pela Universidade do Vale do Rio dos Si-nos e doutorado em Teoria do Direito e da Democracia pela Universit degli Studi Roma. (Nota da IHU On-Line)

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    7EDIO 444 | SO LEOPOLDO, 02 DE JUNHO DE 2014

    dos e pesquisas jusliterrias realiza-das nos Estados Unidos e na Europa. Assim, em 2006, provocados pelos professores Dino del Pino3 e por Lenio Luiz Streck4, elaboramos um projeto de pesquisa intitulado Direito & Lite-ratura: do fato fico, que resultou, de um lado, na produo de livros e artigos cientficos e, de outro, na re-alizao de um seminrio promovido ao longo de trs anos, em parceria com a Livraria Cultura, em Porto Ale-gre. O sucesso da iniciativa nos levou adaptao do seu formato para a televiso. Assim, desde 2008, o pro-grama passou a ser transmitido tanto pela TVE/RS quanto pela TV JUSTIA, contando com o apoio do Programa de Ps-Graduao em Direito da Uni-sinos PPGDireito. Hoje, estamos na sexta temporada, com mais de duzen-tos programas gravados. Trata-se de uma experincia fantstica. Muitas vezes, ainda nos surpreendemos com o alcance da televiso e da internet, as pessoas que elas atingem e os efei-tos que produzem.

    IHU On-Line O que significa pensar o Direito a partir da literatura?

    Andr Karam Trindade Pen-sar o direito a partir da literatura a proposta do programa e isto significa repensar o direito. Neste contexto, o programa busca nas narrativas liter-rias uma espcie de ponto de partida para que possamos recolocar as ques-tes jurdicas, polticas e sociais que nos assolam. Por exemplo: O merca-dor de Veneza (So Paulo: Editora

    3 Dino del Pino: professor e ensasta, bacharel em Filosofia e licenciado em Letras Clssicas (Portugus, Latim e Grego). Concluiu mestrado e doutorado em Teoria Literria, na UFRGS e na PUCRS, respectivamente. (Nota da IHU On-Line)4 Lenio Luiz Streck: advogado brasilei-ro, docente na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), autor de mais de cem artigos tcnicos e 37 livros, dentre os quais citamos Hermenutica Jurdica e(m) Crise Uma explorao hermenu-tica da construo do Direito (Porto Ale-gre: Livraria do Advogado, 2007) e Verda-de e Consenso. Constituio, Hermenu-tica e Teorias Discursivas. Da possibilida-de necessidade de respostas corretas em Direito (Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007). (Nota da IHU On-Line)

    Saraiva de Bolso, 2011), de Shakes-peare5, nos permite compreender o problema dos limites da interpretao e da argumentao jurdica; Ensaio sobre a lucidez (Lisboa: Editorial Cami-nho, 2004), de Saramago6, nos incita a uma reflexo sobre o fracasso da de-mocracia representativa; ou, ainda, O leitor (Rio de Janeiro: Editora Record, 2009), de Bernhard Schlink7, obra so-bre a qual j escrevi, que remete virada ocorrida na teoria do direito aps Auschwitz. Normalmente, con-tamos com um convidado do Direito e outro das Letras. No entanto, em muitas ocasies, contamos com a pre-

    5 William Shakespeare (1564-1616): dra-maturgo ingls. Considerado por muitos como o mais importante dos escritores de lngua inglesa de todos os tempos. Como dramaturgo, escreveu no s algumas das mais marcantes tragdias da cultura oci-dental, mas tambm algumas comdias, 154 sonetos e vrios poemas de maior di-menso. (Nota da IHU On-Line)6 Jos Saramago (1922-2010): escritor portugus, Nobel de Literatura em 1998. Conhecido por utilizar-se de frases e pe-rodos longos, escreveu, entre outros, Os Poemas Possveis (1966), Provavelmente Alegria (1970); Deste Mundo e do Outro (1971); Teatro: A Noite (1979); Que Farei com Este Livro? (1980); Contos: Objecto Quase (1978); Romance: Levantando do cho (1980), A jangada de pedra (1986); A caverna (2001), O homem duplicado (2002); Ensaio sobre a lucidez (2004). (Nota da IHU On-Line)7 Bernhard Schlink (1944): jurista e escritor alemo, professor de Direito e Filosofia da Universidade Humboldt. conhecido principalmente por sua obra Der Vorleser (O Leitor) publicado em 39 idiomas. (Nota da IHU On-Line)

    sena de convidados de outras reas: Histria, Filosofia, Sociologia, Psican-lise, etc. A ideia oferecer mltiplas leituras dos fenmenos jurdicos.

    Mais literatura e menos manualNa verdade, a premissa na qual

    sempre insisto pode ser formulada do seguinte modo: algumas narrativas literrias so mais importantes para o estudo do direito do que a grande maioria dos manuais jurdicos. Este o ponto. A literatura nos faz refle-tir acerca dos problemas que ela nos traz. Ela pode promover o descondi-cionamento do olhar dos juristas, que em pleno sculo XXI permanecem re-fns daquilo que o saudoso Luis Alber-to Warat8 denominou senso comum terico.

    IHU On-Line Considerando o espao de sala de aula, de que manei-ra as discusses literrias ajudam na formao da interpretao jurdica?

    Andr Karam Trindade O estu-do do Direito e da Literatura insere-se no campo das disciplinas propedu-ticas, mais especificamente da teoria do direito, da filosofia do direito, da histria do direito, da antropologia jurdica e, sobretudo, da hermenu-tica jurdica. No entanto, a vertente conhecida como direito na literatu-ra, que se concentra no modo como a literatura retrata os fenmenos ju-rdicos, nos mostra que o universo literrio atravessa todas as reas do conhecimento. E isto est muito claro na Aula (So Paulo: Cultrix, 2004), de Roland Barthes9. Assim, no neces-

    8 Luis Alberto Warat (data desconheci-da 2010) Jurista argentino radicado no Brasil durante a ditadura militar do pas vizinho. Doutor em Direito pela Univer-sidade de Buenos Aires e ps-doutor em Filosofia do Direito pela Universidade de Braslia, Warat publicou mais de 40 livros e lecionou por mais de 40 anos, principal-mente no Brasil, em universidades no Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paran, Rio de Janeiro, Distrito Federal, Paraba, Gois e Bahia, como professor titular e visitante. (Nota da IHU On-Line)9 Roland Barthes (1915-1980): crtico literrio, socilogo e filsofo francs. Entre suas obras se destacam: Elementos de semiologia (1965), Sistema da moda (1967), O Imprio dos signos (1970). (Nota do IHU On-Line)

    Algumas narrativas

    literrias so mais importantes para o estudo do direito do que a grande maioria

    dos manuais jurdicos

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    srio muito esforo para se deparar com dezenas de narrativas literrias que servem para refletir acerca de problemas de direito penal, civil, pro-cessual, constitucional, etc.

    Os exemplos mais conhecidos envolvem Antgona (Rio de Janeiro: Difel, 2001), de Sfocles10; O mercador de Veneza, de Shakespeare; Crime e castigo (So Paulo: Editora 34, 2001), de Dostoivski11; O processo (So Pau-lo: Editora Saraiva de Bolso, 2011), de Kafka12; 1984 (So Paulo: Companhia das Letras, 2009), de Orwell13; e, mais contemporaneamente, O leitor, de

    10 Sfocles: dramaturgo grego. Viveu em Atenas, cerca de 400 anos antes da Era Crist. Considerado um dos mais im-portantes escritores gregos da tragdia. dipo Rei, Antgona e Electra so as suas peas mais conhecidas. (Nota da IHU On-Line)11 Fidor Mikhailovich Dostoivski (1821-1881): um dos maiores escritores russos e tido como um dos fundadores do existencialismo. De sua vasta obra, destacamos Crime e castigo, O Idiota, Os Demnios e Os Irmos Karamzov. A esse autor, a IHU On-Line edio 195, de 11-9-2006, dedicou a matria de capa, intitulada Dostoivski. Pelos subterrne-os do ser humano, disponvel em http://bit.ly/ihuon195. Confira, tambm, as se-guintes entrevistas sobre o autor russo: Dostoivski e Tolstoi: exacerbao e es-tranhamento, com Aurora Bernardini, na edio 384, de 12-12-2011, disponvel em http://bit.ly/ihuon384; Polifonia atual: 130 anos de Os Irmos Karamazov, de Dos-toivski, na edio 288, de 06-04-2009, disponvel em http://bit.ly/ihuon288; Dostoivski chorou com Hegel, entrevis-ta com Lzl Fldnyi, edio n 226, de 02-07-2007, disponvel em http://bit.ly/ihuon226. (Nota da IHU On-Line)12 Franz Kafka (1883-1924): escritor tcheco, de lngua alem. De suas obras, destacamos: A metamorfose (1916), que narra o caso de um homem que acorda transformado num gigantesco inseto, e O processo (1925), cujo enredo conta a histria de um certo Josef K., julgado e condenado por um crime que ele mesmo ignora. (Nota da IHU On-Line)13 George Orwell [Eric Arthur Blair] (1903-1950): escritor e jornalista ingls. Sua obra marcada por uma inteligncia perspicaz e bem-humorada, uma cons-cincia profunda das injustias sociais, uma intensa oposio ao totalitarismo e uma paixo pela clareza da escrita. Apontado como simpatizante da proposta anarquista, o escritor faz uma defesa da autogesto ou autonomismo. A sua cren-a no socialismo democrtico foi abalada pelo socialismo real que ele denunciou em Animal Farm. Considerado talvez o melhor cronista da cultura inglesa do sculo XX, Orwell se dedicou a escrever fico, artigos jornalsticos polmicos, crtica literria e poesia. (Nota da IHU On-Line)

    Schlink. O mesmo se aplica literatura brasileira, onde temos diversas obras de Monteiro Lobato14 e Machado de Assis15, para citar apenas estes, que nos ajudam a compreender melhor o Direito. Em suma, a literatura pode humanizar o direito. E isto funda-mental para a interpretao dos fen-menos jurdicos e, de um modo geral, para a formao do jurista.

    IHU On-Line A literatura pode ser um meio de aproximar dos dile-mas do Direito a sociedade?

    Andr Karam Trindade Certa-mente. Isto porque a Literatura tem uma funo esttica, enquanto o Direito, uma funo normativa. Por isso, ela tem o poder de ampliar e confrontar horizontes, possibilitando um novo olhar aos fenmenos jurdi-cos. Neste contexto, o Direito ganha ao assimilar as capacidades crtica e criadora que marcam a literatura, propiciando a ruptura com o sentido comum terico, a partir da renovao do pensamento jurdico. Isto ocorre porque, como j dizia Barthes, a Lite-ratura possui um carter subversivo, mediante a manipulao da prpria linguagem, e desse modo se conver-

    14 Monteiro Lobato [Jos Bento Mon-teiro Lobato] (1882-1948): escritor bra-sileiro popularmente conhecido pelo tom educativo, bem como divertido de sua obra de livros infantis, o que seria, aproximadamente, metade de sua produ-o literria. A outra metade, composta de romances e contos para adultos, foi menos popular, mas um divisor de guas na literatura brasileira. Confira a edio 284 da IHU On-Line, de 01-12-2008, in-titulada Monteiro Lobato: interlocutor do mundo, disponvel em http://bit.ly/ihuon284. (Nota da IHU On-Line)15 Machado de Assis [Joaquim Maria Machado de Assis] (1839-1908): escritor brasileiro, considerado o pai do realismo no Brasil, escreveu obras importantes como Memrias pstumas de Brs Cubas, Dom Casmurro, Quincas Borba e vrios livros de contos, como O Alienista, que discute a loucura. Tambm escreveu po-esia e foi um ativo crtico literrio, alm de ser um dos criadores da crnica no pas. Foi o fundador da Academia Brasi-leira de Letras. Sobre o escritor, foram produzidas duas edies, a 262, de 16-06-2008, Machado de Assis: um conhecedor da alma humana, disponvel em http://bit.ly/ihuon262, e a 275, intitulada Ma-chado de Assis e Guimares Rosa: intr-pretes do Brasil, de 29-09-2008, dispon-vel em http://bit.ly/ihuon275. (Nota da IHU On-Line)

    te num modo privilegiado de reflexo filosfica, psicolgica, social, jurdica, etc.

    A literatura pode ser considera-da, assim, uma alternativa que permi-te a reconstruo dos lugares do sen-tido. No direito, isto assume a maior relevncia, tendo em vista os limites (im)postos pela dogmtica jurdica, aqui entendida como o conjunto de esteretipos, pr-conceitos, crenas, fices, representaes que (de)for-mam a interpretao e aplicao do direito. A literatura pode, assim, de-volver ao direito uma dimenso cultu-ral que foi esquecida ao longo do tem-po e restituir ao jurista o papel de ator da transformao social, ao invs de simples tcnicos e burocratas, ou pior, de meros operadores do direito.

    IHU On-Line Como os estudos jusliterrios se desenvolveram no Brasil? Como o tema tratado em mbito mundial? Algum pas se des-taca? Qual?

    Andr Karam Trindade No Bra-sil, o estudo do Direito e Literatura ainda bastante recente, sobretu-do se comparado tradio que se consolidou nos Estados Unidos e na Europa ao longo do sculo passado. Neste contexto, obviamente, existe uma resistncia por parte dos setores mais conservadores da comunidade jurdica, inclusive de dentro das uni-versidades. Na verdade, ainda sofre-mos os influxos de um ensino jurdico marcado pelo formalismo oitocentis-ta. E todos sabem das dificuldades de romper com este modelo, diariamen-te retroalimentado, por exemplo, pela indstria dos concursos, que simplifi-ca e plastifica o Direito.

    BalanoDe todo modo, se fizermos um

    balano dos ltimos anos, j pos-svel observar algum avano, como o surgimento de grupos de estudos, a criao de centros de pesquisa, a promoo de eventos, a instituciona-lizao de disciplinas e o oferecimen-to de alguns cursos de curta durao. Por exemplo, desde o incio do nosso projeto, j publicamos quatro obras

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    sobre o tema, que contam com a par-ticipao de inmeros pesquisadores, tanto nacionais quanto estrangeiros: Direito & Literatura: da realidade da fico fico da realidade (Ed. Atlas, 2013); Direito & Literatura: discurso, imaginrio e normatividade (Ed. Nu-ria Fabris, 2010); Direito & Literatura: ensaios crticos (Ed. Livraria do Advo-gado, 2008); Direito & Literatura: re-flexes tericas (Ed. Livraria do Advo-gado, 2008).

    Isto no significa, todavia, que eu seja o responsvel pela difuso do Di-reito e Literatura no Brasil. H outros professores que tambm trabalham com esta perspectiva, como o caso da Vera Karam de Chueiri16, da Univer-sidade Federal do Paran UFPR, do Cristiano Paixo, da Universidade de Braslia UnB, do Arnaldo Godoy17, do Centro Universitrio de Braslia UniCEUB e do Lus Carlos Cancellier de Olivo18, da Universidade Federal de Santa Catarina UFSC, entre outros.

    16 Vera Karam de Chueiri: doutora e mes-tre em Filosofia pela New School for Social Research, dos EUA, com mestrado ainda em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina. (Nota da IHU On-Line)17 Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy: livre docente em Teoria Geral do Estado pela Faculdade de Direito da USP, com ps-doutorado em Literatura pela UNB, assim como doutorado e mestrado em Fi-losofia pela PUC-SP. (Nota da IHU On-Line)18 Lus Carlos Cancellier de Olivo: possui graduao em Direito (1998), mestrado em Direito (2001) e doutorado em Direito (2003), todos pela Universidade Federal de Santa Catarina UFSC. especialista em Gesto Universitria (UFSC, 2000) e

    Atualmente, estou coordenando o Kathrsis Centro de Estudos em Di-reito e Literatura da Faculdade Meri-dional IMED, onde estamos desen-volvendo um importante projeto de pesquisa sobre a representao do juiz nas narrativas literrias.

    IHU On-Line? Deseja acrescen-tar algo?

    Direito Tributrio (CESUSC, 2002). (Nota da IHU On-Line)

    Andr Karam Trindade Gos-taria de destacar uma questo que venho sustentando: se o direito apa-rece, historicamente, como um meca-nismo de controle do poder exercido pelo Estado, a literatura uma vez que se trata de uma expresso artstica, muitas vezes de carter subversivo, libertrio e de vanguarda tambm pode constituir uma importante for-ma de denncia e de resistncia con-tra violaes aos direitos humanos ou aos ideais democrticos.

    Tanto isto verdade que os regimes totalitrios, sem qualquer exceo, proibiram a publicao e a veiculao de determinadas obras literrias, perseguindo escritores e, por vezes, queimando livros em praa pblica. Isto demonstra o po-der que a literatura assume para o direito enquanto forma de expres-so do humano, a tal ponto que o poeta alemo Heinrich Heine19, em 1821, j alertava para o fato de que ali onde se queimam livros, cedo ou tarde acabam por se queimar pessoas.

    19 Heinrich Heine [Christian Johann Heinrich Heine] (1797-1856): poeta romntico alemo, conhecido como o ltimo dos romnticos. Boa parte de sua poesia lrica, especialmente a sua obra de juventude, foi musicada por v-rios compositores notveis como Robert Schumann, Franz Schubert, Felix Men-delssohn, Brahms, Hugo Wolf, Richard Wagner e, j no sculo XX, por Hans Werner Henze e Lord Berners. (Nota da IHU On-Line)

    Se o direito aparece,

    historicamente, como um

    mecanismo de controle do poder

    exercido pelo Estado, a literatura

    pode constituir uma importante

    forma de denncia e de resistncia

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    A palavra no Direito Construo da verdade e da realidadeO pesquisador espanhol Jos Calvo Gonzlez pensa o fazer jurdico no em oposio Literatura, mas um Direito com Literatura

    Por Ricardo Machado | Traduo: Moiss Sbardelotto

    As palavras constroem fatos, realidades, verossimilhanas. O Direito e a Literatura edificam seus prprios mundos por meio das palavras, que se acomodam umas s outras e formam seus construtos de realidade social. Antes de serem conceitos aparentemente dis-tantes, so modos de interao. Ao panorama de intersees mencionado, propus recente-mente uma ampliao no que chamo de Direito com Literatura. Isso porque eu entendo que Direito e Literatura se relacionam igualmente pela sua ndole instituinte do social; ambos tm a capacidade de instituir imaginrios sociais, participam da mesma potica. Desse ponto de vista, o Direito aproveita categorias literrias como oralidade e escritura, leitura, reescritura, releitura, intertextualidade, esttica da autori-dade, pondera Jos Calvo Gonzlez, em entre-vista por e-mail IHU On-Line.

    De acordo com Jos Calvo, ao se fazer in-terpretaes preciso superar uma viso her-menutica de traduo das normas jurdicas. A compreenso do Direito, assim como da Literatura, no se produz seno atravs de n-veis de leitura, que variam desde o ingnuo ao exemplar. Neste mesmo sequer como ideia regulativa , a compreenso integral se pro-duz quando se dinamizaram todos os elemen-tos culturais de uma tradio intertextual em que a comunidade jurdica foi estabelecendo

    autoridades. O estado de funcionamento pro-cessual da comunidade jurdico-interpretativa semelhante a um sistema de autoridades pertinentes e aceitas ao longo de uma tradio de dialogismo intertextual, explica. Para o pro-fessor, a tradio discursiva estabeleceu certo parmetro epistemolgico com relao ao con-ceito de verdade, tensionada pelas narrativas. Essas narrativas (as jurdicas) no so nem ver-dadeiras, nem falsas. Se so alguma coisa, so verossmeis, ou no. O estatuto da verdade durante o processo, e do que declarado como verdade no seu trmino, no de uma ver-dade forte e segura, mas sim de uma verdade provada sempre dentro do provvel, pois no possvel provar o improvvel. Isto , a verdade no Direito sempre e apenas verdade frgil e provvel; ou seja, sempre e apenas verossimi-lhana, argumenta.

    Jos Calvo Gonzlez doutor em Direito, pesquisador e professor Catedrtico da Uni-versidade de Mlaga, na Espanha. Alm disso, magistrado suplente do Tribunal Superior de Andaluca. autor de diversos artigos, en-tre eles, Verdad de la verdad judicial e La con-troversia fctica. Contribucin al estudio de la quaestio facti desde un enfoque narrativista del Derecho, disponveis no site pessoal do profes-sor, em http://bit.ly/1gE3DHm.

    Confira a entrevista.

    IHU On-Line Tendo em conta a questo da interpretao, como Lite-ratura e Direito se encontram? Como interagem e que importncia a Lite-ratura tem nas questes do Direito?

    Jos Calvo Gonzlez Direito e Literatura interagem de vrios modos.

    Tradicionalmente, assinalaram-se trs: Direito na Literatura, Direito da Literatura e Direito como Lite-ratura. Deles, o segundo Direito da Literatura tornou-se independen-te, formando, em alguns sistemas jurdicos, uma disciplina autnoma

    relacionada com tudo o que se refe-re edio de obras literrias (e no literrias tambm) e aos meios de proteo jurdica do direito dos auto-res. Quanto ao Direito na Literatura, esse encontro indaga a presena do jurdico em diversos gneros literrios

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    (poesia, romance, teatro) e possui, a meu modo de ver, uma utilidade fundamentalmente instrumental. A do Direito como Literatura seria de natureza estrutural. Desenvolveu-se por meio da explicao do Direito em termos narrativos. o que se conhece como narrative jurisprudence, ou nar-rativismo jurdico. O sistema jurdico est integrado por narraes, relatos e histrias. Existem autores que admi-tem essa tese, mas que fazem um uso muito elementar dela, e outros que aprofundam mais e assumem postu-lados tericos da teoria narratolgica para pr de manifesto as estruturas narrativas presentes no Direito e em cada um dos seus momentos produ-tivos, interpretativos e aplicativos, de modo que apresentam a teoria narra-tivista com vocao Teoria do Direi-to. Acredito que esse o meu caso, ou ao menos a minha vontade.

    Direito com literaturaPor outro lado, ao panorama de

    intersees mencionado, propus re-centemente uma ampliao no que chamo de Direito com Literatura. Isso porque eu entendo que Direito e Literatura se relacionam igualmente pela sua ndole instituinte do social; ambos tm a capacidade de instituir imaginrios sociais, participam da mesma potica. Desse ponto de vista, o Direito aproveita categorias liter-rias como oralidade e escritura, leitu-ra, reescritura, releitura, intertextua-lidade, esttica da autoridade, etc. um campo em que se recolhiam desde os desvios lingusticos do Direito at a explicao dos processos de positiva-o jurdica, e que tambm levaria em conta a realidade dos novos desafios levantados Cincia do Direito pela crise do paradigma da modernidade, tais como a complexidade e o rizoma1.

    IHU On-Line Em que medi-da a interpretao jurdica funciona como o principal fator do fazer ju-

    1 Rizoma: modelo epistemolgico da teoria filosfica de Deleuze e Guattari. Em biologia a concepo de que alguns brotos de planta podem ramificar-se em qualquer ponto, engrossar e tornar-se bulbos. Na filosofia indica um sistema epistemolgico onde no h razes, ou proposies mais fundamentais que as outras. (Nota da IHU On-Line)

    rdico? Do que se trata a teoria da interpretao?

    Jos Calvo Gonzlez Tradicio-nalmente, distinguiram-se os trs momentos aos que aludi antes: pro-duo, interpretao e aplicao. uma diferenciao muito pedaggica, mas pouco realista. No momento da gnese produtiva do Direito, o legisla-dor um intrprete social, e o juiz, no momento de aplicar o Direito, realiza uma interpretao acerca de fatos e normas. A interpretao , portanto, o denominador comum na prtica de ambos os operadores jurdicos e tam-bm, de modo evidente, tratando--se de operadores tericos. Tambm tem sido tradicional considerar que a tarefa do intrprete jurdico consis-tia na hermenutica das normas. O intrprete como hermeneuta, como aquele que diz o que as normas di-zem. Hoje, no entanto, o moderno horizonte da teoria da interpretao jurdica abrange igualmente a inter-pretao terica e operativa dos fatos. Nesse ponto, a Teoria narrativista do Direito fez contribuies de interesse mediante a construo do conceito de coerncia narrativa. fundamental no s se perguntar sobre a coern-cia normativa e indagar os seus pro-blemas e consequncias, mas tam-bm fazer isso, e faz-lo com carter prvio, sobretudo o que diz respeito inteligibilidade do substrato ftico, construo narrativa e seu regime de verdade como outorgamento do sen-tido em torno da fixao da ocorrn-cia histrica de um evento. Essa nova perspectiva abriu uma concepo mais global ou holstica da substncia e dos fenmenos da interpretao no campo do Direito.

    IHU On-Line Considerando a ideia de que a leitura de um texto , em outro nvel, a leitura de um sis-tema de textos, como o sistema de textos da Literatura e o sistema de textos do Direito esto relacionados?

    Jos Calvo Gonzlez Penso que a resposta se encontra em um dos perfis daquilo que eu apresentei com a ideia de uma Cultura literria do Di-reito. Literatura e Direito precisam de uma sintaxe cultural. A compreenso do Direito, assim como a da Literatu-ra, no se produz seno atravs de nveis de leitura, que variam desde o

    ingnuo ao exemplar. Neste mesmo sequer como ideia regulativa , a com-preenso integral se produz quando se dinamizaram todos os elementos culturais de uma tradio intertextual em que a comunidade jurdica foi es-tabelecendo autoridades. O estado de funcionamento processual da comu-nidade jurdico-interpretativa seme-lhante a um sistema de autoridades pertinentes e aceitas ao longo de uma tradio de dialogismo intertextual.

    IHU On-Line Na Literatura, mais importante que corresponder realidade, os textos precisam ser ve-rossmeis dentro da narrativa propos-ta. Em ltima medida, o que se julga no Direito so as peas do processo jurdico, portanto, os textos. Como a questo da verossimilhana se torna um eixo importante para pensar es-tes dois campos?

    Jos Calvo Gonzlez O meu in-teresse pela verossimilhana no cam-po do Direito se situa na prova de fa-tos difceis e explora a admissibilidade probabilstica do que eu denominei de verdades difceis. Mas a ltima parte da pergunta levanta outro as-sunto. Naturalmente, na realidade normativa textual, isto , no texto das proposies normativas, no h presena de verdade; o predicado das normas no nem verdadeiro nem falso. E, nesse sentido, com efeito, a verossimilhana se converte em um eixo importante para repensar coinci-dncias entre o Direito e a Literatura. Na minha opinio, no existe literatu-ra realista oposta literatura no realista como inverossmil. Toda lite-ratura tem de ser verossmil, ou no ser. A verossimilhana alcanada mediante uma construo em que intervm fatores de sequencialidade temporal e espacial, alm de outros, que levam a uma desembocadura no verossmil. So todos esses fatores que fazem com que tenhamos acesso a uma compreenso do que foi que verossimilmente aconteceu. Essa mecnica chamada de ficcionalida-de. um erro acreditar que fico significa apenas engano. Significa principalmente artifcio (ars fictio); o construto hermenutico que ordena tempo e espao em um continuum capaz de levar promessa de sentido. O mesmo acontece no Direito proces-

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    sual, tanto em etapas de diligncias de averiguao de fato supostamente delitivo quanto em atuaes da auto-ridade judicial instrutora, e tambm no estgio processual reservado apresentao de provas, que sempre um juzo de probabilidade, isto , acerca do que se pode provar. O ar-gumento (relato) probatrio sobre a realidade de um fato no concer-ne tanto verdade mais ainda, no precisa ser verdade necessariamente quanto verossimilhana do que foi contado como verdade.

    IHU On-Line Nesse sentido, se julgam os casos ocorridos os fatos ou as narrativas a verossimilhana? Como a interpretao se torna um procedimento-chave neste contexto?

    Jos Calvo Gonzlez Os fatos esto perdidos. Para julg-los, situ-amo-nos ex post facto. O nico modo de recuper-los atravs das narra-es que os evocam. Essas narrativas no so nem verdadeiras, nem falsas. Se so alguma coisa, so veross-meis, ou no. O estatuto da verdade durante o processo, e do que decla-rado como verdade no seu trmino, no de uma verdade forte e segu-ra, mas sim de uma verdade provada sempre dentro do provvel, pois no possvel provar o improvvel. Isto , a verdade no Direito sempre e ape-nas verdade frgil e provvel; ou seja, sempre e apenas verossimilhana.

    IHU On-Line Diante de tal con-texto podemos afirmar, ento, que tanto na Literatura quanto no Direito a palavra substanciada pela prpria palavra?

    Jos Calvo Gonzlez Em ma-tria de interpretao de fatos, que sobre o que estamos conversando, sem sombra de dvida. Os fatos s tm realidade como parte de um discurso, que, para mim, tambm um discurso de tipo narrativo. Os fa-tos so as palavras com que se conta acerca deles. Ns, juristas, transfor-mamos o que cremos, ou nos convm acreditar, que foram os fatos em pa-lavras e, da para a frente, s debate-mos sobre palavras.

    IHU On-Line Quando questes jurdicas esto expostas em uma obra literria como Dom Quixote, por

    exemplo podemos pensar que ela a face cmica do fazer jurdico, enquanto o Direito formal a parte sria? Como se diferenciam as liber-dades de expresso cmica e sria? Que significaes produzem?

    Jos Calvo Gonzlez Srio ou trgico versus cmico ou festivo como uma dicotomia excessivamente rgida. Lembra muito as mscaras do teatro; Melpmene, a Tragdia, des-feita em uma expresso de profunda dor e pranto comovido, frente Talia, a Comdia, hilariante e superficial. No obstante, como dizia Ortega y Gasset2, sem vtima, no h comdia. Do ponto de vista da investigao sobre temas de Direito e Literatura, muito mais difcil trabalhar obras cmicas do que trgicas. Alm disso, o Direito formal s vezes to mortalmente srio que no convm descartar a oportunidade de rir dele. Por isso, juristas to s-rios como Ihering3 no o evitaram. Em algumas ocasies, tambm, que no faltam, o Direito informal, ca-rente de garantias, mais trgico do que poderia ser imaginvel primeira vista. Assinalo tudo isso porque me parece que, em temas de liberdade de expresso, preciso utilizar um fino bisturi para dissecar condutas que se aproveitam da comicidade para lesio-nar o direito de outros. Os exerccios de ponderao entre bens constitu-cionalmente tutelados liberdade de expresso e direito privacidade, ou honra pessoal e familiar, ou prpria imagem so muito delicados, e no existe uma regra interpretativa fixa e imvel. No tarefa fcil discernir a pretenso teleolgica das condutas, e a onde encontraremos a chave para determinar se o exerccio da liberdade de expresso cmica produz ou no leso constitucionalmente relevante de algum direito fundamental e em

    2 Jos Ortega y Gasset (1883-1955): fil-sofo espanhol, que atuou tambm como ativista poltico e jornalista. Sobre o au-tor, confira a entrevista concedida por Jos Maurcio de Carvalho, Pampa. Um espao humano de promessas e realiza-es, concedida IHU On-Line n 190, de 07-08-2006, disponvel em http://bit.ly/ihuon190. (Nota da IHU On-Line)3 Rudolf von Ihering (1818-1892): foi um jurista alemo. Ocupa, ao lado de Frie-drich Karl von Savigny, lugar mpar na his-tria do direito alemo, tendo sua obra influenciado grandemente a cultura jur-dica em todo o mundo ocidental. (Nota da IHU On-Line)

    que medida; isto , quando sob a rou-pagem da comicidade se realiza um exerccio com toda a gravidade, isto , seriedade e conscincia destinado a infligir dano ou prejuzo.

    IHU On-Line Em termos de in-terpretao, o que significa a palavra lei e as palavras da lei? Onde reside o esprito das leis e das palavras?

    Jos Calvo Gonzlez Parece que voc deixou para o fim perguntas cuja resposta exigiria muitssimo mais espao do que foi gasto para respon-der qualquer uma das anteriores e de todas elas em conjunto. A Lei expres-sa um compromisso social baseado no consenso de obedincia e no cumpri-mento voluntrio do dever jurdico. E esse compromisso se produz e se sa-tisfaz um nmero de vezes estatistica-mente muito, muito superior ao da sua vulnerabilidade. O aparato coativo do Direito, o respaldo da fora coercitiva, da sano, s age excepcionalmente. Inclusive no Direito penal, que, na rea-lidade, Direito constitucional do Esta-do, o princpio o da interveno m-nima. A sano penal uma soluo, certamente no a melhor, mas ape-nas a ltima soluo. No ius puniendi, por exemplo, as palavras da lei so fundamentais; o princpio da lega-lidade e da taxatividade. As palavras da lei no so menos importantes no restante das outras ordens jurdicas, como na privada. A compra e venda no direito moderno uma instituio jurdica de natureza consensual, o acordo entre as partes que faz surgir a compra e venda. Esse acordo, as pa-lavras em que se entrou em consenso, tm valor de Lei, so palavra de lei. Quando os nossos ancios utilizavam essa locuo, eles faziam uma dupla homenagem Palavra e Lei, pala-vra dada (pacta sum servanda) e ao valor de lei, como o contraste que se inscreve nos metais preciosos. No me parece vo lembrar que essa tradi-o, esse modo de agir o que inspira a confiana, a f, no triunfo do Direito. Esse , a meu ver, o verdadeiro esprito das leis. Se carecemos desse esprito, vale mais a pena dedicar a vida a outro mister. A vida jurdica, o trabalho de um jurista, deve ser inspirado por esse Esprito. Submeter esse Esprito dis-torcer o Direito.

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    A literatura e a ampliao do horizonte humanoPara Henriete Karam, as obras literrias tm papel fundamental na construo de uma formao humanstica e crtica

    Por Ricardo Machado

    Ainda que, no campo cientfico, Litera-tura, Direito e Psicanlise constituam reas de conhecimento especficas, tornam-se atividades de mesma natureza quando vistas sob a tica da interpretao. No que se refere ao fazer prtico, Literatu-ra, Direito e Psicanlise tm em comum a atividade interpretativa, respectivamente, do texto literrio, de normas e princpios legais e da fala do paciente, explica Hen-riete Karam, em entrevista por e-mail IHU On-Line.

    A Psicanlise, apesar de suas razes posi-tivistas, colaborou tanto para a crise da razo e para a, consequente, superao do paradig-ma da conscincia a partir da formulao freudiana do inconsciente quanto para a instaurao do paradigma da linguagem, com a compreenso lacaniana de que o incons-ciente estruturado como linguagem. J o Di-reito, devido sua rigidez formal e cristalizado dogmatismo, continua, via de regra, blindado compreenso de que o ser linguagem, o que significa dizer que pela linguagem que atribumos sentidos s coisas, argumenta a entrevistada, ao expor as relaes entre as disciplinas.

    Nesse sentido, Henriete sustenta que as obras literrias permitem que faamos vin-culaes s diferentes concepes humanas e de mundo dentro de contextos especficos, seja no sentido de confirmar determinados modos de ser ou de problematiz-los. Assim, a leitura de textos literrios tem como efeito a ampliao do nosso horizonte de compre-enso e, nos conduzindo a refletir sobre os fenmenos psquicos, antropolgicos, sociais e jurdicos, nos humaniza e colabora para a construo de uma formao mais crtica, complementa.

    Henriete Karam psicanalista e formada em Letras pela Faculdade Porto Alegrense de Educao, Cincias e Letras Fapa. Realizou mestrado em Teoria da Literatura pela Ponti-fcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul PUCRS e doutorado em Estudos Liter-rios, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul UFRGS. Atualmente professora-co-laboradora do Programa de Ps-Graduao em Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul UFRGS e professora dos Cur-sos de Letras e de Direito da Universidade de Caxias do Sul UCS-CARVI.

    Confira a entrevista.

    IHU On-Line Como convergem as questes da Literatura, do Direito e da Psicanlise? O que permite es-tabelecer as relaes entre esses trs entes?

    Henriete Karam Para estabele-cer as possveis relaes, o primeiro aspecto que devemos levar em con-ta ao que se referem estes termos quando so empregados por ns. No mbito cientfico e investigativo, Literatura, Direito e Psicanlise cons-tituem campos distintos do conheci-

    mento humano e, portanto, dedicam--se a diferentes objetos e envolvem teorias, pressupostos e princpios diversos. J no que se refere ao fazer prtico, Literatura, Direito e Psicanli-se tm em comum a atividade inter-pretativa, respectivamente, do texto literrio, de normas e princpios legais e da fala do paciente.

    Neste contexto, a relevncia da Literatura reside no fato de que os textos literrios so uma repre-sentao artstico-verbal do homem

    e do mundo. Assim, a Literatura se distingue do Direito e da Psicanlise por sua natureza artstica, a qual pos-sibilita que o discurso literrio seja de um romance, de um poema ou de uma tragdia , ao explorar ele-mentos figurativos e ficcionais, tema-tize questes referentes realidade humana e nos confronte com aquilo que h de mais genuno e universal no homem.

    A Literatura nos oferece, assim, o desvelamento no sentido heidegge-

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    riano1 do humano e, nesta medida, mostra-se um eficiente instrumento heurstico, a que as diferentes reas do conhecimento humano podem recorrer para pensar o homem em todas as suas dimenses, em suas complexas relaes afetivas e sociais, e, inclusive, para questionar critica-mente e problematizar aquilo que se cristalizou como senso comum teri-co nos diversos campos das ditas cin-cias humanas.

    IHU On-Line Por que a literatu-ra to cara psicanlise?

    Henriete Karam Historica-mente, a relao da Literatura com a Psicanlise remonta aos textos freudianos. Em especial, ao apro-veitamento que Freud2 faz do mito

    1 Martin Heidegger (1889-1976): filsofo alemo. Sua obra mxima O ser e o tem-po (1927). A problemtica heideggeriana ampliada em Que Metafsica? (1929), Cartas sobre o humanismo (1947), Intro-duo metafsica (1953). Sobre Heide-gger, a IHU On-Line publicou, na edio 139, de 02-05-2005, o artigo O pensa-mento jurdico-poltico de Heidegger e Carl Schmitt. A fascinao por noes fundadoras do nazismo, disponvel para download em http://bit.ly/ihuon139. Sobre Heidegger, confira as edies 185, de 19-06-2006, intitulada O sculo de Heidegger, disponvel para download em http://bit.ly/ihuon185, e 187, de 03-07-2006, intitulada Ser e tempo. A descons-truo da metafsica, que pode ser aces-sada em http://bit.ly/ihuon187. Confira, ainda, o n 12 dos Cadernos IHU em formao, intitulado Martin Heidegger. A desconstruo da metafsica, que pode ser acessado em http://bit.ly/ihuem12. Confira, tambm, a entrevista concedida por Ernildo Stein edio 328 da revista IHU On-Line, de 10-05-2010, disponvel em http://bit.ly/ihuon328, intitulada O biologismo radical de Nietzsche no pode ser minimizado, na qual discute ideias de sua conferncia A crtica de Heidegger ao biologismo de Nietzsche e a questo da biopoltica, parte integrante do ciclo de estudos Filosofias da diferena pr--evento do XI Simpsio Internacional IHU: O (des)governo biopoltico da vida huma-na. (Nota da IHU On-Line)2 Sigmund Freud (1856-1939): neuro-logista e fundador da Psicanlise. Inte-ressou-se, inicialmente, pela histeria e, tendo como mtodo a hipnose, estudava pessoas que apresentavam esse quadro. Mais tarde, interessado pelo inconscien-te e pelas pulses, foi influenciado por Charcot e Leibniz, abandonando a hip-nose em favor da associao livre. Estes elementos tornaram-se bases da Psican-lise. Freud, alm de ter sido um grande cientista e escritor, realizou, assim como Darwin e Coprnico, uma revoluo no mbito humano: a ideia de que somos movidos pelo inconsciente. Freud, suas teorias e o tratamento com seus pacien-

    apresentado na tragdia dipo rei de Sfocles3 e mediante o qual bus-cava comprovar a universalidade dos sentimentos inconscientes que a criana nutre por seus progenito-res: o desejo sexual ou amoroso em relao ao genitor do sexo oposto e o sentimento de hostilidade pelo ge-nitor do mesmo sexo.

    Neste sentido, pode-se dizer que a Psicanlise promoveu uma verda-deira popularizao da personagem dipo, possivelmente hoje muito mais conhecido pela nomeao complexo de dipo do que por sua origem na mitologia grega ou mesmo por outras obras literrias em que, direta ou in-diretamente, sua histria narrada como ocorre nas tragdias dipo em Colono, tambm de Sfocles, Laio, dipo e Sete contra Tebas, de squilo4, As fencias, de Eurpedes5; nas epo-peias Ilada e Odisseia, de Homero6;

    tes foram controversos na Viena do s-culo XIX, e continuam muito debatidos hoje. A edio 179 da IHU On-Line, de 08-05-2006, dedicou-lhe o tema de capa sob o ttulo Sigmund Freud. Mestre da suspeita, disponvel para consulta no link http://bit.ly/ihuon179. A edio 207, de 04-12-2006, tem como tema de capa Freud e a religio, disponvel em http://bit.ly/ihuon207. A edio 16 dos Cader-nos IHU em formao tem como ttulo Quer entender a modernidade? Freud explica, disponvel em http://bit.ly/ihuem16. (Nota da IHU On-Line)3 Sfocles: dramaturgo grego. Viveu em Atenas, cerca de 400 anos antes da Era Crist. Considerado um dos mais impor-tantes escritores gregos da tragdia. dipo Rei, Antgona e Electra so as suas peas mais conhecidas. (Nota da IHU On-Line)4 squilo (525/524 a.C.- 456/455 a.C.): foi um dramaturgo da Grcia Antiga. re-conhecido frequentemente como o pai da tragdia, o mais antigo dos trs trgi-cos gregos cujas peas ainda existem (os outros so Sfocles e Eurpedes). (Nota da IHU On-Line)5 Eurpedes (485 a.C.- 406 a.C.): poeta trgico grego, o ltimo dos trs grandes autores trgicos da Atenas clssica (os outros dois foram squilo e Sfocles). Es-pecialistas estimam que Eurpedes tenha escrito 95 peas, embora quatro delas provavelmente tenham sido escritas por Crtias. Ele foi autor do maior nmero de peas trgicas da Grcia que chegaram at ns: dezoito no total. (Nota da IHU On-Line)6 Homero: primeiro grande poeta grego, teria vivido h cerca de 3500 anos e con-sagrado o gnero pico com as suas gran-diosas obras: A Ilada e a Odisseia. Nada se sabe seguramente da sua existncia; mas a crtica moderna inclina-se a crer que ele ter vivido no sculo VIII a. C., embora sem poder indicar onde nasceu nem confirmar a sua pobreza, cegueira e

    alm de em textos de outros poetas e escritores gregos.

    Entretanto, alm de dipo Rei, Freud abordou outras obras literrias como Hamlet, de Shakespeare7, Os irmos Karamasov, de Dostoivski8, Gradiva, de Jensen9 , dando origem crtica literria psicanaltica, que pode ser alvo de questionamento, do ponto de vista dos estudos literrios, sempre que incorrer no equvoco de, ultrapassando os limites do texto, desviar o foco da anlise para o autor da obra, na busca por elucidar seus processos inconscientes, ou de, no distinguindo verossmil e verdadeiro, analisar as personagens como um caso clnico.

    Por outro lado, possvel com-preender tal ordem de equvocos quando se constatam algumas si-metrias entre o tipo de discurso dos textos literrios especialmente no que se refere narrativa literria e o discurso produzido por um sujeito em anlise, tendo em vista que se trata de uma narrativa do eu em que a lingua-gem est a servio da representao das experincias por ele vividas e da

    af de viajante, caracteres que tradicio-nalmente lhe tm sido atribudos. (Nota da IHU On-Line)7 William Shakespeare (1564-1616): dra-maturgo ingls. Considerado por muitos como o mais importante dos escritores de lngua inglesa de todos os tempos. Como dramaturgo, escreveu no s algumas das mais marcantes tragdias da cultura oci-dental, mas tambm algumas comdias, 154 sonetos e vrios poemas de maior di-menso. (Nota da IHU On-Line)8 Fidor Mikhailovich Dostoivski (1821-1881): um dos maiores escritores russos e tido como um dos fundadores do existen-cialismo. De sua vasta obra, destacamos Crime e castigo, O Idiota, Os Demnios e Os Irmos Karamzov. A esse autor, a IHU On-Line edio 195, de 11-9-2006, dedi-cou a matria de capa, intitulada Dostoi-vski. Pelos subterrneos do ser humano, disponvel em http://bit.ly/ihuon195. Confira, tambm, as seguintes entrevis-tas sobre o autor russo: Dostoivski e Tolstoi: exacerbao e estranhamento, com Aurora Bernardini, na edio 384, de 12-12-2011, disponvel em http://bit.ly/ihuon384; Polifonia atual: 130 anos de Os Irmos Karamazov, de Dostoivski, na edio 288, de 06-04-2009, disponvel em http://bit.ly/ihuon288; Dostoivski chorou com Hegel, entrevista com Lzl Fldnyi, edio n 226, de 02-07-2007, disponvel em http://bit.ly/ihuon226. (Nota da IHU On-Line)9 Wilhelm Jensen (1837-1911): escritor alemo que teve grande influncia na cultura europeia, sobretudo entre os sur-realistas. (Nota da IHU On-Line)

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    expresso da sua realidade psquica, nas quais se encontram implicadas a fabulao e o imaginrio.

    IHU On-Line Em que medida as obras de Albert Camus10 estabelecem esse dilogo entre a psicanlise e o direito? Como isso ocorre?

    Henriete Karam Para avaliar a importncia que a produo de Ca-mus adquire quando se trata de exa-minar as interseces entre psican-lise e direito, deve-se, inicialmente, considerar que seus textos remetem condio humana na contemporanei-dade, questo central tanto nas suas obras literrias quanto nas de cunho filosfico, entre as quais se verifica uma ntima relao temtica, de con-tinuidade e de complementariedade: O mito de Ssifo (1942) d origem a O estrangeiro (1942); O homem revolta-do (1951) se vincula aos romances A peste (1947) e A queda (1956).

    O universo que Camus explora o da falta de sentido da existncia humana. Diante da morte de Deus e da falncia da supremacia da ra-zo que vigorava desde o Iluminis-mo , o homem se v jogado numa existncia em que o absurdo passa a ser o nico absoluto apreensvel. Lucidamente, em sua Introduo de O estrangeiro, Sartre destaca a inutilidade da razo que raciocina e conduz a pensar na necessidade com que se impe o dilogo entre a psicanlise e o direito.

    A Psicanlise, apesar de suas ra-zes positivistas, colaborou tanto para a crise da razo e para a, consequen-te, superao do paradigma da cons-cincia a partir da formulao freu-diana do inconsciente quanto para a instaurao do paradigma da lingua-gem, com a compreenso lacaniana11

    10 Albert Camus (1913-1960): escritor, novelista, ensasta e filsofo argelino. Confira a entrevista Camus entre a emo-o e a graa, concedida por Waldecy Tenrio ao IHU On-Line em 03-02-2010, disponvel em http://bit.ly/ihu030210. (Nota da IHU On-Line)11 Jacques Lacan (1901-1981): psica-nalista francs. Realizou uma releitura do trabalho de Freud, mas acabou por eliminar vrios elementos deste autor (descartando os impulsos sexuais e de agressividade, por exemplo). Para Lacan, o inconsciente determina a conscincia, mas este apenas uma estrutura vazia e sem contedo. Confira a edio 267 da revista IHU On-Line, de 04-08-2008,

    de que o inconsciente estruturado como linguagem. J o Direito, devido sua rigidez formal e cristalizado dog-matismo, continua, via de regra, blin-dado compreenso de que o ser linguagem, o que significa dizer que pela linguagem que atribumos senti-dos s coisas.

    Luis Alberto Warat12, certamen-te o mais genuno de nossos anti- juristas, sempre chamou a ateno para o fato de que o direito , tam-bm, o espelho da irracionalidade humana, de que a justia , tam-bm, o teatro do absurdo, de que a Verdade um lugar vazio. Neste contexto, ao se debruarem sobre a produo de Camus, psicanalistas e juristas podem usufruir da oportuni-dade de problematizar as verdades que, oriundas do paradigma cienti-ficista, continuam vigentes em suas respectivas reas do conhecimen-to, mas isto exigir se confronta-rem com o absurdo, que decorre do ato de adquirir conscincia da falta de sentido, em outras palavras, ter conscincia da ininteligibilidade do real e da sua impotncia, pois o de-sejo humano pelo acesso verdade absoluta, pela unidade e pelo eter-no est fadado ao fracasso, tendo em vista a condio limitada e finita do homem. No se trata, portanto, da explicao do humano, mas de

    intitulada A funo do pai, hoje. Uma leitura de Lacan, disponvel em http://bit.ly/ihuon267. Sobre Lacan, confira, ainda, as seguintes edies da revista IHU On-Line, produzidas tendo em vista o Colquio Internacional A tica da psica-nlise: Lacan estaria justificado em dizer no cedas de teu desejo? [ne cde pas sur ton dsir]?, realizado em 14 e 15 de agosto de 2009: edio 298, de 22-06-2009, intitulada Desejo e violncia, dis-ponvel para download em http://bit.ly/ihuon298, e edio 303, de 10-08-2009, intitulada A tica da psicanlise. Lacan estaria justificado em dizer no cedas de teu desejo?, disponvel para downlo-ad em http://bit.ly/ihuon303. (Nota da IHU On-Line)12 Luis Alberto Warat (data desconheci-da 2010): jurista argentino radicado no Brasil durante a ditadura militar do pas vizinho. Doutor em Direito pela Univer-sidade de Buenos Aires e ps-doutor em Filosofia do Direito pela Universidade de Braslia, Warat publicou mais de 40 livros e lecionou por mais de 40 anos, principal-mente no Brasil, em universidades no Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paran, Rio de Janeiro, Distrito Federal, Paraba, Gois e Bahia, como professor titular e visitante. (Nota da IHU On-Line)

    sua compreenso, pois, como j h muito apontando por Wilhelm Dil-they13, os fenmenos da natureza se explicam por suas causas, enquanto os fatos humanos se compreendem por seu sentido ou por sua ausn-cia de sentido, acrescentaria eu.

    IHU On-Line No romance O estrangeiro, Camus conta a histria de um protagonista que acusado de assassinar um sujeito, mas em seu julgamento pesa mais o fato de ele no ter chorado no funeral da me do que o homicdio que cometeu. Que aproximaes essa histria nos permite fazer com a prtica jurdi-ca? O que est sendo julgado nesse caso, o assassinato ou a indiferena do personagem em relao morte de sua me?

    Henriete Karam A narrativa do romance O estrangeiro se divide em duas partes. Na primeira parte, Meursault que o narrador-prota-gonista de ambas relata o enterro de sua me e os eventos ocorridos nos dias subsequentes, at o mo-mento em que ele comete o assassi-nato de um rabe. Na segunda parte, temos a investigao do assassinato, os depoimentos prestados ao juiz de instruo, a condenao morte e a espera pela deciso do recurso im-petrado contra a sentena de morte, ou seja, o relato dos procedimentos judiciais, sob a tica do narrador-pro-tagonista, e nos quais se constata que a sua condenao no se deve, unicamente, ao assassinato, mas, tambm, sua insensibilidade diante da morte de sua me.

    Assim, entre as diversas leituras possveis, a histria de O estrangeiro nos remete a questionar aquilo que constitui a realidade processual, ou seja, o entendimento de que a verda-de o que consta nos autos do pro-cesso e do qual decorre o equvoco da no diferenciao entre fato e re-lato. Trazendo para a prtica jurdica, no processo, no temos os fatos, no estamos diante da realidade empri-ca, mas de um ou mais relatos do que teria ocorrido. Portanto, no de se estranhar que, via de regra, os depoi-

    13 Wilhelm Dilthey (1833-1911): filso-fo hermenutico, psiclogo, historiador, socilogo e pedagogo alemo. (Nota da IHU On-Line)

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    mentos colhidos das testemunhas de um mesmo evento sejam dspares.

    O direito e a prpria prtica jur-dica processual incidem no equvoco da pretenso de descobrir a verda-de e de acreditar na imparcialidade e neutralidade do juiz como se se tratasse de algum desinvestido de subjetividade e alienado daquilo que o condiciona social e culturalmente , desconsiderando que as decises judiciais so fruto de uma atividade hermenutica e que, portanto, di-zem tanto do sujeito julgado quanto daquele que julga. Assim, repensar o direito atravs da literatura possibili-ta questionar seus pressupostos, seus fundamentos, sua legitimidade, seu funcionamento, sua efetividade, etc., superar as barreiras colocadas pelo sentido comum terico e reconhecer a importncia do carter constitutivo da linguagem.

    IHU On-Line Considerando a obra de Miguel de Cervantes, Dom Quixote, o protagonista, depois de vender suas terras, comprar e ler li-vros sobre cavaleiros passa a acredi-tar que um deles e sai no mundo em busca de justia aos desvalidos. Entretanto, retorna para casa preso em uma gaiola e sendo considerado um louco. Esse um bom exemplo para pensarmos a relao entre lite-ratura e psicanlise?

    Henriete Karam Considerada a mais importante obra da literatura ocidental de todos os tempos, O enge-nhoso fidalgo Dom Quixote de la man-cha o livro mais lido depois da Bblia. Isto no sem razo, pois h uma infi-nidade de temas que podem ser abor-dados a partir dos conflitos entre real e ideal que vemos representado em Dom Quixote. O protagonista um he-ri s avessas ou anti-heri, que, sob os efeitos das inmeras leituras que fizera, se desliga da realidade e passa a viver num mundo de fantasia, tendo como misso fazer justia e ajudar os desvalidos.

    Ironicamente, Dom Quixote movido por um iderio de justia e liberdade, e ns poderamos nos perguntar, quando ele retorna para casa engaiolado no final do primei-ro livro, publicado em 1605 , se sua priso se deve ao seu estado de lou-cura ou defesa deste iderio. J no

    final do segundo livro, de 1615, Dom Quixote recebido, aparentemente com todas as honrarias, por um casal de duques. Sem saber que est sendo alvo de chacota, ele v sua fantasia se tornar realidade e, ao mesmo tempo, adquire conscincia de seu estado de loucura. A partir deste momento, a narrativa assume um tom melanc-lico, Dom Quixote retorna para casa desiludido e morre. Esta obra oferece elementos para que se abordem, do ponto de vista da psicanlise, ques-tes relativas ao devaneio e melan-colia, relacionando-as com o princpio do prazer e o princpio de realidade, mas um tema que me parece parti-cularmente interessante a reflexo que ela nos oferece sobre o poder da literatura.

    Reflexo que, alis, se pode ex-trair tambm de outras obras em que, com maior ou menor destaque, de forma mais ou menos explcita, a prpria literatura transforma-se em tema: em Dom Quixote, o excesso de leitura que secou o crebro do protagonista; na Divina comdia, de Dante Alighieri14, no canto V do Infer-no, temos o trgico destino de Fran-cesca di Rimini e de Paolo Malatesta, cujo envolvimento amoroso comea com a leitura da histria de Lancelot e Guinevere e tem como consequn-cia sua danao na vida eterna; em Madame Bovary, de Gustave Flau-bert15, a leitura de romances que faz com que Emma, ainda jovem, anseie pelo dia em que iria viver uma paixo arrebatadora.

    Considerando o fato de que, nes-tas trs obras, o alerta para os perigos da leitura est a servio de uma nova esttica se opondo poesia e ao ro-mance corts, na Divina comdia; s novelas de cavalaria, em Dom Quixo-te; ao romantismo, em Madame Bo-vary , a questo que se destaca a capacidade que a literatura possui de

    14 Dante Alighieri (1265-1321): escritor italiano cuja principal obra A Divina Comdia. Leia tambm a edio n 65 dos Cadernos Teologia Pblica, O livro de Deus na obra de Dante, disponvel em http://bit.ly/ihuteo65. (Nota da IHU On-Line)15 Gustave Flaubert (1821-1880): escri-tor francs, autor de Madame Bovary, es-crito em 1844, romance realista no qual critica os valores romnticos e burgueses da poca. Sofria de epilepsia. (Nota da IHU On-Line)

    despertar em ns a sensibilidade e a fabulao.

    IHU On-Line Que outros auto-res e obras so bons exemplos para pensarmos a questo da psicanlise e do direito? Por qu?

    Henriete Karam Tarefa difcil, pois certamente vou deixar de refe-rir grandes obras. Mas vamos l. As tragdias gregas, sem exceo, pois nelas temos representados os sen-timentos mais arcaicos da natureza humana. Outros bons exemplos se-riam Otelo, de Shakespeare, com a questo do cime levado s ltimas consequncias; Crime e castigo, de Dostoivski, que nos faz pensar so-bre o sentimento de culpa e a possi-bilidade de reparao; O senhor das moscas, de William Golding16, para tratar o estado de natureza versus o estado de cultura; Frankstein ou o moderno Prometeu, de Mary Shel-ley17, e O estranho caso de Dr. Jekyll e Mr. Hyde, de Robert L. B. Steven-son18, para discutir cincia e tica, sob o vis do desejo humano de onipotncia. Na literatura brasileira, temos a imensa riqueza das obras de Machado de Assis19, e eu des-tacaria, especialmente, o romance Memrias pstumas de Brs Cubas e

    16 William Golding (1911-1983): novelis-ta e poeta ingls. Recebeu o Nobel de Li-teratura de 1983. (Nota da IHU On-Line)17 Mary Shelley [Mary Wollstonecraft Shelley] (1797-1851): escritora brit-nica, filha do filsofo William Godwin e da pedagoga e escritora Mary Wollstone-craft. mais conhecida pela novela gti-ca Frankenstein: ou O Moderno Prometeu (1818). (Nota da IHU On-Line)18 Robert Louis Stevenson (1850-1894): novelista, poeta, escritor escocs, repre-sentante do neo-romantismo na literatu-ra inglesa. (Nota da IHU On-Line)19 Machado de Assis [Joaquim Maria Machado de Assis] (1839-1908): escritor brasileiro, considerado o pai do realismo no Brasil, escreveu obras importantes como Memrias pstumas de Brs Cubas, Dom Casmurro, Quincas Borba e vrios livros de contos, como O Alienista, que discute a loucura. Tambm escreveu po-esia e foi um ativo crtico literrio, alm de ser um dos criadores da crnica no pas. Foi o fundador da Academia Brasi-leira de Letras. Sobre o escritor, foram produzidas duas edies, a 262, de 16-06-2008, Machado de Assis: um conhecedor da alma humana, disponvel em http://bit.ly/ihuon262, e a 275, intitulada Ma-chado de Assis e Guimares Rosa: intr-pretes do Brasil, de 29-09-2008, dispon-vel em http://bit.ly/ihuon275. (Nota da IHU On-Line)

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    contos como O alienista, A carteira, Ideias de canrio, Suje-se gordo!, Pai contra me, etc.

    IHU On-Line Como podemos pensar questes relativas ao tempo e memria na literatura que tem como eixo de discusso aspectos da Psicanlise?

    Henriete Karam A meu ver, entre as obras literrias, so as nar-rativas de memria ou narrativas do eu que, na contemporaneidade, mais suscitariam tais questes. Este tipo de narrativas que engloba a biografia, autobiografia, romance biogrfico ou confessional, entre outros , que se encontra atrelado concepo de si mesmo como individualidade e ideia do indivduo soberano, vai ganhando destaque na medida em que se aden-sa a conscincia de que cada vida nica, incomparvel e irrepetvel. Em outras palavras, o homem dedica-se a registrar a prpria histria na medida em que acredita na importncia de sua existncia e no vazio deixado por sua morte e, tambm, porque deseja inscrever no mundo as marcas de sua presena.

    Entretanto, no podemos des-considerar que a linguagem torna possvel representar a realidade e, por isso mesmo, no se confunde com ela. Disso decorre que, qualquer narrativa ou relato apresentar, ainda que se pretenda a correspondncia absoluta com os fatos, algum grau, por mnimo que seja, de ficcionalidade.

    Alm disso, observa-se nestas narrativas, como salienta Paul de Man20, a estrutura especular do tex-to em que o sujeito pretende sua au-tocompreenso e toma a si mesmo como objeto. Alm disso, o homem que recorda seu passado faz tempo que deixou de ser aquele que era nes-se passado. De tal modo que, ao reca-pitular o vivido, ele ir situar o que ele na perspectiva do que ele foi, pois a memria lhe concede a perspectiva necessria para reelaborar o vivido.

    20 Paul de Man (1919-1983): nascido Paul Adolph Michel Deman, foi um crti-co e terico literrio belga. No momento da sua morte, de Man foi um dos crti-cos mais conhecidos nos Estados Unidos, particularmente, por sua importao de abordagens filosficas alems e francesas em estudos literrios anglo-americanos. (Nota da IHU On-Line)

    Outra questo que, neste con-texto, o discurso produzido apresenta os sintomas de sua ficcionalidade e assume os contornos de criao lite-rria, pois o eu que no discurso re-presenta o sujeito da enunciao no coincide completamente com o sujei-to do enunciado. Para Walter Benja-min21, este discurso constitui figuras do eu inventadas da memria, ope-rando uma verdadeira autocriao, pois as imagens do passado se modi-ficam desde o presente, so fices criadas pela atividade simbolizadora do psiquismo.

    Assim, no exame das articulaes entre o discurso que o sujeito produz de si e ele prprio, preciso conside-rar em que medida e de que maneira o discurso o representa. Principal-mente, porque o sujeito que toma a si mesmo como objeto constri uma imagem de si, e tal imagem, esse du-plo, um outro eu-mesmo, que lhe possibilita ver-se como se fosse outro entre outros, ver-se situado no espa-o social, no qual sua realidade e sua subjetividade se manifestam tambm num campo intersubjetivo que re-criado por sua imaginao.

    Assim, Paul de Man alerta para o fato de que a autoinveno que se encontra implicada no contar a pr-pria vida produz uma desfigurao do eu. Outros autores vo ainda mais longe, seja ao afirmarem que quando algum relata sua vida o que h , no a reproduo ou a criao dessa vida, mas a sua desapropriao, seja ao destacarem que no narrar-se ocorre a alienao do sujeito, tendo em vis-ta que a linguagem, ao mesmo tempo que lhe d o poder para contar sua vida, o subtrai, pois as palavras jamais podero expressar o sentido total de um ser.

    Portanto, considerando como eu disse anteriormente que o dis-curso produzido por um sujeito em anlise constitui uma narrativa do eu,

    21 Walter Benjamin (1892-1940): filsofo alemo. Foi refugiado judeu e, diante da perspectiva de ser capturado pelos nazis-tas, preferiu o suicdio. Um dos principais pensadores da Escola de Frankfurt. Sobre Benjamin, confira a entrevista Walter Benjamin e o imprio do instante, conce-dida pelo filsofo espanhol Jos Antonio Zamora IHU On-Line n 313, disponvel em http://bit.ly/zamora313. (Nota da IHU On-Line)

    pode-se vislumbrar em que medida e extenso no s os textos literrios, mas, inclusive, os estudos sobre a narrativa literria poderiam colaborar com temas para discusso no campo da psicanlise.

    IHU On-Line Em que medida obras literrias nos fazem compre-ender melhor aspectos de nossa vida cotidiana, inclusive, em relao ao Direito? Por que ela se torna impor-tante nas nossas vidas?

    Henriete Karam De um lado, as obras literrias se vinculam con-cepo de homem e de mundo vigen-te na poca e na cultura em que elas foram produzidas seja para confir-m-la, seja para problematiz-la , o que possibilita uma viso histrica; de outro, a literatura se sustenta na representao das grandes questes humanas abordando, tematicamen-te, o cime, a ambio, a loucura, o abandono, a morte, a vida, o sagrado, a violncia, o poder, a justia do que resulta tanto sua universalidade quan-to sua atemporalidade, o que nos ofe-rece uma viso do homem.

    Alm disso, como destaca Wol-fgang Iser22 um dos maiores teri-cos da esttica da recepo quando aborda o processo de leitura na con-cretizao do texto literrio, o leitor, ao se identificar com as personagens e se projetar para dentro do universo ficcional, enriquece sua prpria vida, usufruindo da experincia de aven-turas seguras, pois se encontram eli-didos os riscos e consequncias dos atos inscritos na vida real e ele pode experimentar, com segurana, coisas que lhe seriam inacessveis.

    Assim, a leitura de textos lite-rrios tem como efeito a ampliao do nosso horizonte de compreenso e, nos conduzindo a refletir sobre os fenmenos psquicos, antropolgi-cos, sociais e jurdicos, nos humaniza e colabora para a construo de uma formao mais crtica.

    22 Wolfgang Iser (19262007): foi profes-sor de Ingls e Literatura Comparada na Universidade de Constance na Alemanha. Junto com seu colega Hans Robert Jauss, Iser um dos maiores expoentes da Te-oria da recepo, que fundamenta suas bases na prpria crtica literria alem. (Nota da IHU On-Line)

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    A literatura como tradutora das complexidades sociais atravessadas pelo DireitoCarlos Maria Carcova debate sobre o papel da literatura para a compreenso das questes de fundo com que o Direito se defronta

    Por Ricardo Machado | Traduo: Moiss Sbardelotto

    Na complexa teia em que as socie-dades se formam, compreend-las exige disposio intelectual e co-nhecimento, cuja literatura exerce papel importante, mesmo quando o paradigma vem da perspectiva jurdica. Para entender melhor as nossas sociedades, devemos co-nhec-las, e os grandes autores da tradio literria latino-americana nos permitiram exatamente isso. Entender como funciona uma sociedade envolve entender tambm as suas estruturas institucionais e as suas prticas jurdico-polticas, avalia Carlos Maria Carcova, em entrevista por e-mail IHU On-Line. Para dar um exemplo cla-ro para o Brasil, basta lembrar Guimares Rosa e o seu Grande Serto: Veredas. E mais tarde o chamado boom da literatura latino- americana, cujos autores, quase sem ex-ceo, tomaram como eixos principais das suas obras os dados esmagadores de uma geografia de misria e explorao. O mes-mo vale para as geraes atuais de escrito-res da regio, complementa.

    Na opinio do professor, esse clima in-telectual de novo tipo ainda no chega especulao dos juristas tradicionais, que, segundo ele, entendem o Direito como um

    fenmeno mais relacionado s cincias duras que a reas como filosofia e cincias sociais. Acabou se universalizando a ideia de que o conhecimento do direito se baseava na dog-mtica e na exegese, que o que continua sendo ensinado no mundo inteiro, com raras excees. Isso implica sustentar que as nor-mas possuem um contedo semntico que unvoco, universal, definitivo e cristalizado. Mas acontece que as normas so linguagem, e afirmar o anterior com relao linguagem um verdadeiro disparate, pondera. As pa-lavras e os textos que elas formam no dizem qualquer coisa, mas certamente podem dizer mais do que uma, com perfeita plausibilida-de, destaca.

    Carlos Maria Carcova doutor em Direito e professor da Universidade de Buenos Aires UBA. diretor do Instituto de Investigacio-nes Jurdicas Ambrosio L. Gioja, sendo consi-derado um dos grandes nomes da discusso internacional sobre Direito & Literatura. autor, entre outros, das obras Las Teoras Jur-dicas Post Positivistas (Buenos Aires: Lexis Ne-xis, 2007), La opacidad del derecho (Madrid: Trotta, 1998) e Derecho, Poltica y Magistra-tura (Buenos Aires: Biblos, 1996).

    Confira a entrevista.

    IHU On-Line Como se d a incurso da Literatura no Direito e como tal movimento implica nas pr-ticas jurdicas?

    Carlos Maria Carcova Algumas dcadas atrs, organizou-se nos Es-tados Unidos o chamado Movimento do Direito e da Literatura (Law and

    Literature Movement). Ele era inte-grado por prestigiosos juristas de diversas tendncias, no s teorica-mente, mas tambm politicamente. Sua influncia foi notria no mundo inteiro por razes bastante bvias. No entanto, seria injusto no recordar prestigiosos precedentes como Tulio

    Ascarelli1 e o seu Antgona e Prcia (In: Rivista Internazionale di filosofis

    1 Tulio Ascarelli (1903-1959): economis-ta, jurista e professor italiano. Foi ex-pulso do pas durante o regime facista e viveu no Brasil de 1941 a 1946. (Nota da IHU On-Line)

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    del Diritto, 1955), ou Perelman2 e Ol-brechtsTyteca3 com o seu Tratado da Argumentao. Muitos so os autores que, de maneira individual, descobri-ram o isomorfismo existente entre o regime de produo do discurso jur-dico e o do discurso narrativo em ge-ral. Esse clima intelectual de novo tipo ainda no chega especulao dos juristas tradicionais, que continuam entendendo o direito como um fen-meno mais afim s cincias formais ou, em todo caso, s cincias duras, do que com a filosofia e as cincias sociais. De todos os modos, isso est mudando aceleradamente.

    IHU On-Line Que papel a Lite-ratura cumpre no sentido de promo-ver o humanismo e ser um campo de tenso com as prticas jurdicas?

    Carlos Maria Carcova Eu no acredito que a literatura tenha por que promover o humanismo. Ela cum-pre outras funes, em geral. Gran-des literatos foram profundamente anti-humanistas: Malaparte4, Cline5, apenas para dar alguns poucos exem-plos. De todo o modo, o conceito de humanismo, a meu ver, entra no campo dos suspeitos. A que chama-mos de humanismo? A certos valores que consideramos prprios da natu-reza humana, como diriam os jusna-turalistas. Isso implica pressupor que

    2 Cham Perelman (1912-1984): fil-sofo do Direito belga. um dos mais importantes tericos da retrica do s-culo XX. Sua obra principal Trait de largumentation la nouvelle rhtorique (1958), escrito em conjunto com Lucie Olbrechts-Tyteca. (Nota da IHU On-Line)3 Lucie Olbrechts-Tyteca (1899-1987): acadmica belga e colaboradora do fil-sofo Chaim Perelman. Sua obra mais im-portante, escrita com ele, foi Trait de largumentation la nouvelle rhtorique (1958). (Nota da IHU On-Line)4 Curzio Malaparte, pseudnimo de Kurt Erich Suckert (1898-1957): foi um jor-nalista italiano, dramaturgo, contista, romancista e diplomata. Seu sobrenome, Malaparte, que ele usou a partir de 1925, significa em portugus a parte m e trata-se de uma brincadeira com o nome da famlia de Napoleo Bonaparte, que significa, em italiano, parte boa. (Nota da IHU On-Line)5 Louis-Ferdinand Cline, pseudnimo de Louis Ferdinand Destouches Au-guste (1894-1961): romancista francs, panfletrio e mdico. O nome Cline foi o primeiro nome de sua av. Ele desen-volveu um novo estilo de escrita que mo-dernizou a literatura francesa. (Nota da IHU On-Line)

    existem valores imutveis, trans-his-tricos e transpessoais. Ao contrrio, os valores dominantes de uma poca que modelam o chamado humanis-mo no so mais do que construes histricas que se organizam em luta pela construo do sentido que, em cada poca, passa a ser o das classes ou grupos que conseguem hegemoni-zar o poder. Althusser6, para dar um exemplo, era um crtico feroz de qual-quer humanismo.

    IHU On-Line Como pode-mos pensar o tema Direito e Lite-ratura, considerando a experincia latino-americana?

    Carlos Maria Carcova A rela-o direito/literatura compreende a experincia latino-americana, mas a transcende. Porque se trata de enten-der mais apropriadamente a formula-o de uma teoria jurdica a partir de categorias que provm do campo da lingustica. Contando com elas, ser mais fcil entender o papel histrico do direito, o modo em que se constri subjetividade e o problema do poder, no apenas no campo dos conflitos materiais, mas tambm naqueles que envolvem travar batalha pela apro-priao e criao de sentido.

    IHU On-Line Que obras da lite-ratura latino-americana nos ajudam a compreender essa relao entre Direito e sociedade? A realidade trazida pelos autores da Amrica do Sul nos ajuda a compreender melhor nossa sociedade?

    6 Louis Althusser (1918-1990): filsofo marxista francs. Seu envolvimento com a ideologia marxista pode ser devido ao tempo gasto nos campos de concentrao nazista, durante a segunda guerra mun-dial, depois da qual comeou sua carreira acadmica. (Nota do IHU On-Line)

    Carlos Maria Carcova Para en-tender melhor as nossas sociedades, devemos conhec-las, e os grandes autores da tradio literria latino--americana nos permitiram exatamen-te isso. Entender como funciona uma sociedade envolve entender tambm as suas estruturas institucionais e as suas prticas jurdico-polticas. Para isso nos ajudaram os clssicos: Da Cunha7, Sarmiento8, Mart9 e tantos outros, impossveis de enumerar aqui. Tambm nos ajudaram aqueles que continuaram essas tradies. Para dar um exemplo claro para o Brasil, bas-ta lembrar Guimares Rosa10 e o seu

    7 Euclides da Cunha (1866-1909): en-genheiro, escritor e ensasta brasilei-ro. Entre suas obras, alm de Os Ser-tes (1902), destacam-se Contrastes e confrontos (1907), Peru versus Bolvia (1907), margem da histria (1909), a conferncia Castro Alves e seu tempo (1907), proferida no Centro Acadmico XI de Agosto (Faculdade de Direito), de So Paulo, e as obras pstumas Canudos: di-rio de uma expedio (1939) e Caderneta de campo (1975). Confira a edio 317 da IHU On-Line, de 30-11-2009, intitulada Euclides da Cunha e Celso Furtado. De-miurgos do Brasil, disponvel para down-load em http://bit.ly/ihuon317. (Nota da IHU On-Line)8 Flix Rubn Garca Sarmiento (1867-1916): conhecido como Rubn Drio. Po-eta, jornalista e diplomata nicaraguense, considerado o Prncipe das Letras Caste-lhanas. (Nota da IHU On-Line)9Jos Julin Mart (1853-1895): mrtir da independncia cubana em relao Espanha. Alm de poeta e pensador fe-cundo, desde sua mocidade demonstrou inquietude cvica e simpatia pelas ideias revolucionrias que gestavam entre os cubanos. Em 19 de maio de 1895, no co-mando de um pequeno contingente de patriotas, aps um encontro inesperado com tropas espanholas nas proximidades do vilarejo de Dos Rios, Jos Mart foi atingido, morrendo em funo dos feri-mentos. Seu corpo, mutilado pelos solda-dos espanhis, foi exibido populao e posteriormente sepultado na cidade de Santiago de Cuba. (Nota da IHU On-Line)10 Joo Guimares Rosa (1908-1967): escritor, mdico e diplomata brasilei-ro. Como escritor, criou uma tcnica de linguagem narrativa e descritiva pesso-al. Sempre considerou as fontes vivas do falar erudito ou sertanejo, mas, sem reproduzi-las num realismo documental, reutilizou suas estruturas e vocbulos, estilizando-os e reinventando-os num dis-curso musical e eficaz de grande beleza plstica. Sua obra parte do regionalismo mineiro para o universalismo, oscilando entre o realismo pico e o mgico, inte-grando o natural, o mstico, o fantstico e o infantil. Entre suas obras, citamos: Sagarana, Corpo de baile, Grande serto: veredas, considerada uma das principais obras da literatura brasileira, Primeiras estrias (1962), Tutameia (1967). A edi-

    Para entender melhor as nossas

    sociedades, devemos

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    SO LEOPOLDO, 02 DE JUNHO DE 2014 | EDIO 444

    Grande Serto: Veredas. E mais tarde o chamado boom da literatura latino--americana, cujos autores, quase sem exceo, tomaram como eixos princi-pais das suas obras os dados esmaga-dores de uma geografia de misria e explorao. O mesmo vale para as ge-raes atuais de escritores da regio.

    IHU On-Line Fazendo um para-lelo entre os rituais jurdicos e os possveis esvaziamentos de sentidos e a Literatura, como podemos pen-sar a lei baseada em uma fico jur-dica, conforme sua discusso no livro A opacidade do direito (So Paulo: LTR, 1998)?

    Carlos Maria Carcova Se inter-preto corretamente o que voc me pergunta, eu sustento que a teoria da fico desempenhou um papel muito mais importante no desenvol-vimento da teoria do direito do que uma teoria da verdade. No direito, e sobretudo no direito judicial, nunca h verdade no sentido forte do ter-mo. Como diz meu amigo Jos Calvo Gonzlez [entrevistado neste nmero da IHU On-Line], com sorte podemos esperar que haja verossimilhana. Ao contrrio, a fico foi um suporte estratgico na prtica dos romanos e no que foi, depois, a reinterpretao catlico-medieval da fictio juris. Para os primeiros, a fictio juris era conside-rada uma construo atravs da qual se assumiam certos atos como acon-tecidos, com o conhecimento de que isso era falso, a fim de estender, criar ou explicar uma regra legal, porque a lei assim o prescrevia de forma irrefu-tvel. Existem inmeros exemplos do uso das fices em diversos institu-tos do direito romano, como o so a per legis actionem e a per formulam, a capitis diminutio, a imaginarium venditio, para os fins da emancipa-

    o 178 da IHU On-Line, de 02-05-2006, dedicou ao autor a matria de capa, sob o ttulo Serto do tamanho do mundo. 50 anos da obra de Joo Gui-mares Rosa, disponvel para download em http://migre.me/qQX8. De 25-04 a 25-05-2006, o IHU promoveu o Semin-rio Guimares Rosa: 50 anos de Grande Serto: Veredas. Confira, ainda, a edio 275 da Revista IHU On-Line, de 29-09-2008, intitulada Machado de Assis e Gui-mares Rosa: intrpretes do Brasil, dis-ponvel em http://bit.ly/mBZOCe. (Nota da IHU On-Line)

    tio e tantos mais. Diz Enrique Mari11: Com base nesses procedimentos, o direito civil forjava deuses (consagra-o), filhos (adoo), mudava a vida em morte (morte civil) e a morte em vida (restituio), as pessoas em coi-sas (capitis...) e as coisas em pessoas (personificao). Abolia a distncia e o tempo, para mudar a ausncia em presena. Em uma palavra, as fices administravam um arsenal de tcnicas para evitar os obstculos que a reali-dade levantava frente s aes huma-nas, proporcionando uma autntica alquimia, uma poderosa ferramenta para transformar a realidade.

    Por sua vez, a escolstica tirou pragmatismo e naturalismo do institu-to, mas o transformou no grande me-canismo de legitimao da autoridade real. A teoria comea com O Policra-ticus (Cambridge: University Press, 1991), de Joo de Salisbury12, e, pro-vavelmente culmina muito mais tarde com a famosa obra de Kantorowicz13, Os dois corpos do rei