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Encontros Teológicos nº 54 Ano 24 / número 3 / 2009 BIBLIA SAGRADAALMEIDA SÉCULO XXI, Antigo e novo Testamen- to, São Paulo, Ed. Vida Nova, 2008, 21 x 14cm, XX + 1.306 p. Ney Brasil Pereira* Na incessante busca de atualização da tradução da palavra de Deus, contamos, desde o ano passado, com este lançamento extraordinário que é o novo “Almeida”: a “Bíblia Sagrada Almeida Século XXI”. Fruto de “seis anos de trabalho minucioso de especialistas nas línguas originais, em tradução bíblica e revisão de textos” (p. XIX), aí está uma tradução que se apresenta com “três marcas essenciais”: tradição, exatidão e fluên- cia” (p. X). Essas “três marcas” são explicadas pormenorizadamente nas páginas X a XIII. Entre os “aspectos distintivos” da versão, alistam-se e explicam-se as “principais modificações realizadas pela equipe do pro- jeto de revisão e tradução”. Entre essas modificações, citam-se “ajustes de imprecisões da versão antiga, remanescentes no texto revisado em 1967” (p. XIII), “revisão exegética completa a partir da literatura erudita atualizada”, a “tradução do nome de Deus no Antigo Testamento por SENHOR’ (com todas as letras maiúsculas), a “reorganização do texto a partir da sintaxe natural da língua portuguesa” (p. 14), o ‘perfil tradi- cional do vocabulário e da linguagem” (p. XV), a “eliminação de termos arcaicos, desconhecidos e que caíram em desuso”, o “não uso de termos de conotação e de eufonia inadequadas ou ambíguas”, o “não uso de toda e qualquer tradução tendenciosa”, denotando “uma amplitude de visão muito maior do que os limites denominacionais permitem” (p. XVII). Outra modificação importante é o “acréscimo de notas exegéticas, críticas, técnicas e lingüísticas indispensáveis”, exemplificadas na p. XVII. Sobre essas notas, adverte-se que não são “extensas ou elaboradas, como numa Bíblia de estudo, mas oferecem “rápidas explicações indis- pensáveis para a compreensão do texto” (exegéticas), informam ao leitor “sobre a possibilidade de outras leituras” (críticas), apresentam as leitu- ras literais quando houve a necessidade de um ajuste do original para o * O recensor, Mestre em Ciências Bíblicas e membro da Pontifícia Comissão Bíblica, é professor no ITESC, Instituto Teológico de Santa Catarina, em Florianópolis, SC.

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BIBLIA SAGRADA ALMEIDA SÉCULO XXI, Antigo e novo Testamen-to, São Paulo, Ed. Vida Nova, 2008, 21 x 14cm, XX + 1.306 p.

Ney Brasil Pereira*

Na incessante busca de atualização da tradução da palavra de Deus, contamos, desde o ano passado, com este lançamento extraordinário que é o novo “Almeida”: a “Bíblia Sagrada Almeida Século XXI”. Fruto de “seis anos de trabalho minucioso de especialistas nas línguas originais, em tradução bíblica e revisão de textos” (p. XIX), aí está uma tradução que se apresenta com “três marcas essenciais”: tradição, exatidão e fluên-cia” (p. X). Essas “três marcas” são explicadas pormenorizadamente nas páginas X a XIII. Entre os “aspectos distintivos” da versão, alistam-se e explicam-se as “principais modificações realizadas pela equipe do pro-jeto de revisão e tradução”. Entre essas modificações, citam-se “ajustes de imprecisões da versão antiga, remanescentes no texto revisado em 1967” (p. XIII), “revisão exegética completa a partir da literatura erudita atualizada”, a “tradução do nome de Deus no Antigo Testamento por ‘SENHOR’ (com todas as letras maiúsculas), a “reorganização do texto a partir da sintaxe natural da língua portuguesa” (p. 14), o ‘perfil tradi-cional do vocabulário e da linguagem” (p. XV), a “eliminação de termos arcaicos, desconhecidos e que caíram em desuso”, o “não uso de termos de conotação e de eufonia inadequadas ou ambíguas”, o “não uso de toda e qualquer tradução tendenciosa”, denotando “uma amplitude de visão muito maior do que os limites denominacionais permitem” (p. XVII).

Outra modificação importante é o “acréscimo de notas exegéticas, críticas, técnicas e lingüísticas indispensáveis”, exemplificadas na p. XVII. Sobre essas notas, adverte-se que não são “extensas ou elaboradas, como numa Bíblia de estudo, mas oferecem “rápidas explicações indis-pensáveis para a compreensão do texto” (exegéticas), informam ao leitor “sobre a possibilidade de outras leituras” (críticas), apresentam as leitu-ras literais quando houve a necessidade de um ajuste do original para o

* O recensor, Mestre em Ciências Bíblicas e membro da Pontifícia Comissão Bíblica, é professor no ITESC, Instituto Teológico de Santa Catarina, em Florianópolis, SC.

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português (técnicas), e explicam as possibilidades de outro entendimento do texto “a partir de aspectos relacionados às línguas originais” (lingü-ísticas). Esses quatro tipos de notas estão exemplificados na p. XVII. É muito sugestiva, nas pp. XVII a XIX, a “comparação de passagens na Bíblia Almeida Século XXI com outras versões”: assim, Jeremias 17,5-10 na versão corrigida da IBB (Imprensa Bíblica Brasileira/JUERP), 1967, e Romanos 12,1-8 na Nova Versão Internacional.

No prefácio, assinado por Russell Shedd, destacam-se os seguintes “aspectos atrativos desta nova versão”: “primeiro, ela tem a vantagem de ser uma Bíblia que tem suas raízes na tradução de João Ferreira de Almeida, sendo ao mesmo tempo marcada por uma linguagem atual, de um nível que facilita a compreensão”; “segundo, as notas do rodapé acrescentam importantes informações acerca de palavras do texto bíbli-co que não seriam bem entendidas se fossem traduzidas literalmente”; “terceiro, as informações sobre pesos, medidas, distâncias e termos na língua original, entre outras encontradas nas notas, são muito úteis”. Por fim, o prefaciador ressalta “uma característica específica desta edição: uma introdução a cada livro da Bíblia, que oferece esclarecimentos de grande utilidade”.

Quanto às “notas de rodapé” e “introduções a cada livro da Bíblia”, elas não são novidade para as versões católicas correntes. São novidade, sim, para quem está habituado a manusear o Almeida tradicional, cujas únicas notas são as indicações, aliás preciosas, dos “lugares paralelos”, que ajudam para interpretar a Bíblia segundo a própria Bíblia.

Quanto às introduções “a cada livro da Bíblia”, parece-me que aí está o calcanhar de Aquiles desta “Almeida Século XXI”. Não pelo fato de elas não serem relevantes, mas pela opção tradicionalista, ou fundamentalista, que as caracteriza nas questões de crítica histórica e sob outros aspectos. A propósito, aproveito aqui para citar, como o fazem os apresentadores, a “distinção didática, senão semântica”, de Jaroslav Pelikan (p. X)1, entre tradição e tradicionalismo: “Tradição é a fé viva daqueles que já morreram. Tradicionalismo é a fé morta dos que ainda vivem”. E continuam os apresentadores: “Sob essa perspectiva, existem coisas que, embora antigas, vale a pena2 preservar por sua qualidade

1 PELIKAN, Jaroslav, The Christian Tradition, vol. 1, University of Chicago Press, 1975

2 Por um lapso de revisão, no texto lê-se: “coisas que, embora antigas, valem a pena preservar...”

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intrínseca; enquanto há outras que, apesar de atuais, não agregam valor algum”. Assim, a questão da autoria literária de um livro bíblico: é uma questão de fé, ou, antes, de crítica histórica? Se desde o século XVII se questiona, por razões críticas, se Moisés é realmente o autor do Penta-teuco, como é que se pode escrever, por exemplo, que “é provável que Moisés tenha sido o autor do próprio livro do Gênesis” (p. 1)? Também, na introdução ao livro do Êxodo, assim se conclui: “As teorias críticas não oferecem nenhum substituto adequado para a autenticidade mosaica” (p. 59). Será? “nenhum substituto adequado”? No final da introdução do livro do Levítico, não sei com que fundamento, se chega a este detalhe cronológico: “Esse período vai da construção do tabernáculo por Moisés (Ex 20,17) até a partida de Israel do monte Sinai, menos de dois meses depois (Nm 10,11), em maio de 1445 aC” (p. 109)... Na introdução ao Deuteronômio, no começo da segunda coluna, se diz que “o cerne de sua mensagem é espiritual”. Em que sentido? Naturalmente, sem deixar de ser social!

Quanto a Ester, sabidamente uma história edificante, novamente a preocupação da historicidade: “o livro de Ester é completamente estri-bado na história e documentado por informações específicas” (p. 536). Na introdução aos Salmos, a qualificação de Davi como “o meigo cantor de Israel ” (p. 577) reduz demasiado a complexidade da figura do rei. Entre as “categorias” dos salmos, mencionam-se primeiro os “Salmos do Homem Reto” (ibidem, itálico meu), um exemplo, entre vários, de linguagem não inclusiva3, o que é problemático numa tradução que se pretende atualizada. Quanto ao “Cântico dos Cânticos”, atribuído natu-ralmente a Salomão, pois “ainda não foi apresentado nenhum argumento convincente contra a autoria salomônica” (p. 688), se diz também, meio incompreensivelmente: “O livro não é alegoria nem tipo, mas é uma pa-rábola sobre o amor divino, que é o pano de fundo e a fonte...” (ibidem). Também não entendi, no começo da introdução ao livro de Isaías, em que sentido “Isaías é merecidamente conhecido como o profeta evangélico (itálico meu), visto que apresenta a mais completa e clara exposição do evangelho de Jesus Cristo...” (p. 694). Também é difícil de entender em que sentido, “por ser um tanto parecido com a Epístola aos Romanos (itálico meu), o livro de Isaías serve de compêndio das grandes doutrinas

3 É verdade que, na própria tradução do Sl 1,1, o texto é inclusivo: “Bem-aventurado aquele que...”

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do período pré-cristão...” (ibidem). Como é que se pode reduzir o livro de Isaías a um “compêndio doutrinal”?

No começo da introdução ao livro de Jeremias, deve ter havido um lapso na revisão, que não percebeu a omissão de uma ou duas linhas de texto na informação sobre os “mais de cinquenta anos de apostasia religiosa de Josias” (p. 749). Todo mundo sabe que ao rei Josias, cuja morte se deu em 609, não 607 aC, se atribui a reforma deuteronomística, não a “apostasia religiosa”. Também não me consta que o capítulo pri-meiro do livro narre “a chamada4 de Jeremias ao sacerdócio” (ibidem): pelo contrário, ele, de família sacerdotal, é chamado explicitamente, em Jr 1,5, ao profetismo, a ser profeta! Pelo final da introdução a Ezequiel, não sei que utilidade terá o leitor em receber a informação, nada edifi-cante, de que “os próprios críticos radicais não conseguem sustentar sua teoria de que Ezequiel era (seria) sujeito a ataques de catalepsia e sofria de esquizofrenia paranóica” (p. 819)!

Na introdução ao livro de Daniel, não se fala do gênero apoca-líptico, mas de “uma previsão da história completa do mundo até os últimos dias” (p. 875), incluída “a Segunda Vinda, o Milênio e o Dia do Juízo” (ibidem). Nega-se o reconhecido fato da pseudo-epigrafia, com a afirmação seguinte: “Não há, porém, nenhuma evidência na história de que os judeus tenham publicado sob pseudônimo um livro que afirme ser revelação da parte de Deus, situado séculos antes...” (ibidem). Quanto a Oséias, a Introdução silencia sobre a forte dimensão social do livro (cf Os 6,6!) e transforma o profeta num “ardente evangelista”, “autêntico evan-gelista”, “o evangelista escolhido do Senhor para convencer pecadores inveterados a voltarem para a casa de um Deus amoroso...” (p. 893).

Para o introdutor, o livro de Jonas é “biográfico” (p. 915), não havendo a mínima alusão a um gênero literário diferente... É interessante a qualificação de “profeta-filósofo”, dada a Habacuque (p. 926), certa-mente por causa das perguntas iniciais do profeta ao próprio Deus. Na introdução a Zacarias, se contesta a hipótese de a segunda parte desse livro ter-se originado em “tempos macedônicos”, porque isso seria “supor que Zacarias, como verdadeiro profeta de Deus a quem as coisas futuras eram reveladas, não poderia ter previsto a futura hegemonia da Grécia” (p. 934). Reduz-se assim o profeta, que é antes de tudo ser o portavoz de Deus a seus contemporâneos, a um anunciador de eventos futuros!

4 Eu diria “chamado”, “vocação”, não “chamada”.

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Na introdução ao livro dos Atos, se afirma que seu autor foi “tes-temunha ocular de certos acontecimentos, como no caso do Evangelho de Lucas” (p. 1094). Acontece que o próprio Lucas, no prólogo ao seu evangelho, se distingue dos que foram “testemunhas oculares e ministros da palavra” (Lc 1,2) e diz que escreveu “depois de investigar tudo cui-dadosamente desde o começo” (Lc 1,3)... Quanto à carta aos Romanos, o introdutor a considera “talvez o livro mais importante da Bíblia” (p. 1136), o que me parece um pouco exagerado, e injusto para com outros livros “importantes”, não?

Na introdução a Tito, a palavra “mito” é reduzida a seu sentido negativo e se deprecia a tradição judaica, quando se diz que nessa carta se alerta contra a “tendência de transformar tudo em mito, conforme se encontra no Talmude e nos Midrashins” (p. 1219). Quanto ao famoso texto de Tg 1,27 sobre a “religião pura e imaculada”, que consiste em “visitar os órfãos e as viúvas”... o introdutor o espiritualiza, vendo ali “a religião do amor divino vivido no coração” (p. 1238).

Na introdução à primeira carta de Pedro, se fala de seu autor como “pastor fiel e bispo de almas”, que visa “confirmar a seu rebanho a consoladora esperança da vinda do Espírito” (p. 1243). Não seria, antes, a esperança da Parusia? E essas “almas” não têm corpos? Quanto aos destinatários da segunda carta de João, o introdutor opta por tomar a expressão “senhora eleita” (2Jo 1) em sentido literal: a carta teria sido escrita “para advertir certa mulher crente”... (p. 1252). Na introdução à carta de Judas, a menção de Tiago encontra-se em Jd 1, não em “5,1”.

Passando agora para observações pontuais sobre o texto da pró-pria tradução, realmente esmerada, excelente, sei por experiência que a tradução bíblica é um trabalho sem fim: sempre escapa alguma coisa, o tradutor tem de fazer as suas opções, o revisor às vezes não percebe uma falha, o digitador se equivoca... Aliás, já o tradutor do Eclesiástico se queixava da dificuldade desse trabalho: “Os vocábulos hebraicos, quando vertidos para outra língua, já não têm a mesma força” (Prólogo do tradutor, linhas 20-21)5.

É claro que não li todo o texto. Antes de tudo, percebi que muitas vezes, não sempre, se optou pela linguagem não inclusiva, o que se torna problemático, como já escrevi acima, numa tradução “atualizada”. Há

5 O Eclesiástico, sendo deutero-canônico, não se encontra nas bíblias evangélicas, mas nas católicas ou, então, nas edições ecumênicas.

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muito tempo, mas ultimamente cada vez mais, interpelam-se, num au-ditório, “senhoras e senhores”, “irmãs e irmãos”, “amigas e amigos”. E, pelo menos de uns vinte anos para cá, se fala em “ser humano”, ou uma expressão equivalente, quando a mulher está incluída. Mas vejamos, em sequência, o que anotei: 1) Na tradução de Gn 1,26 “façamos o homem” e Gn 1,27 “Deus criou o homem”, por que não dizer “ser humano”? 2) em Gn 1,28 “uma ajudadora”: não seria melhor “uma auxiliar”? ou “colaboradora”? 3) em Gn 2,21-22 “a costela” de Adão: por que não traduzir, como a LXX, “o lado”, tradução importante para entender Jo 19,34 “um dos soldados perfurou-lhe o lado com a lança” (também Jo 20,20.25.27)? Em João, por quatro vezes, é sempre pleurá, o mesmo termo usado pela LXX em Gn 2,21-22. 4) Em Gn 18,19 “para praticarem retidão e justiça”: o original hebraico não seria melhor traduzido por “justiça e direito”, hendíade tão importante nos profetas?

5) Em Ex 20,5 “sou Deus zeloso”: por que não “ciumento”, que é o sentido mais exato, embora ousado, do original? 6) Na p. 108, na citação de Lv 20,26, aparece a mesóclise “ser-me-eis”, felizmente evitada na tradução do texto: “Sereis santos para mim...” (p. 133). 7) Na p. 144, no final da “análise” de Números, a referência a Jo 3,14-15 mereceria ser explicitada. E a frase “ilustrar o modo que” deveria ser “o modo como”. 8) Na introdução ao livro dos Juízes, se diz que eles “funcionavam como magistrados” (p. 263): não seria melhor “como líderes carismáticos”? Na mesma introdução, na segunda coluna, se fala de “um apelo mais profundo à consciência dos homens”: e das mulheres, não? Não seria melhor, simplesmente, “um apelo...à consciência”? 9) Na introdução ao livro de Samuel, na metade da primeira coluna, um lapso: “o chamado profética” (p. 297). Naturalmente, “o chamado profético”. No começo da segunda coluna: “conservar a lealdade dos homens”: e das mulheres, não? Sugiro: a lealdade das pessoas, ou do povo. 10) Na introdução ao primeiro livro das Crônicas, quase no final da primeira coluna, há um “ambos” mal empregado, porque “ambos” se refere a dois singulares: “os governantes civis e religiosos tinham ambos a obrigação...” (p. 433) Sugiro: tinham todos, ou algo equivalente. Na mesma página, na segun-da coluna, ao referir-se aos livros de Esdras e Neemias, há um “estes” demais: “antecedem os outros, que tratam dos acontecimentos...”

11) Na introdução a Esdras, no começo da segunda alínea, usa-se no mesmo período o infinito pessoal e o impessoal: “permitido aos judeus regressarem do exílio e reedificar o templo arruinado”. Então: “regres-sarem e reedificarem”, ou “regressar e reedificar. 12) Na introdução

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a Ester, na segunda coluna, o demonstrativo “esse” deveria ser “este”, porque se trata do livro comentado a seguir: “Este livro, assim como a profecia de Ageu”... (p. 536). 13) No Sl 33,7 a tradução conjectural ficou meio estranha: “ajunta as águas do mar como num montão”... 14) Na introdução a Isaías, na segunda coluna, um lapso de digitação: “O livramento final dels...” (p.694), deve ser, evidentemente, “deles”. Na mesma coluna, pelo meio, é estranha a expressão “livramento de alma”. Por que não, simplesmente, “livramento” ou, melhor, salvação, liber-tação? 15) Na introdução a Jeremias, no final da segunda coluna, um lapso: “A disposição desordenado” (p. 749. Evidentemente, “disposição desordenada”. 16) Na introdução a Ezequiel, na metade da segunda coluna, se fala do “plano de salvação para todos os homens” (p. 818): e das mulheres, não? Por que não, simplesmente, “para todos”, ou “para toda a humanidade”? 17) Na introdução a Joel, pela metade da primei-ra coluna, um adjetivo difícil: “crestada” (p. 902), referindo-se à terra invadida pelos gafanhotos. Que tal, “devastada”?

18) Na introdução a Obadias, na primeira coluna, em cima, um anglicismo: “entregar (deliver) mensagens de condenação”... (p.913). Pela metade da mesma coluna, “a forma terrível que essa profecia”, em vez de “forma terrível como”. Na mesma página, na segunda coluna, em cima: “um comentário dessa natureza”, deveria ser “desta natureza”, isto é, o comentário que está sendo apresentado. 19) Na introdução a Naum, na segunda coluna, em cima, a citação de Na 1,2 atribui a Deus o qualificativo de “zeloso”, quando deveria ser, literalmente, “ciumento” (p. 923), como já observado acima. 20) Na introdução a Mateus, no fim da primeira alínea da primeira coluna, estranhei a expressão “propósito remidor divino” (p. 951). Na mesma coluna, embaixo, novamente a con-junção “que” em lugar de “como”: “o modo que esses dois conceitos”... 21) No texto de Mt 1,20, na expressão “um anjo do Senhor”, o nome divino “Senhor” não deveria ser grafado em maiúsculas, SENHOR, como foi a opção em todo o Antigo Testamento? Por exemplo, em Gn 16,7, é o “Anjo do SENHOR” que aparece a Agar... 22) No texto das bem-aventuranças, em Mt 5,3.6.8, o artigo definido em grego deveria aparecer em português, e isso por motivos relevantes, que não cabe explicar aqui: “pobres no espírito”, “fome e sede da justiça”, “limpos no coração... Quanto a “limpos”, não seria melhor “puros”, por causa da questão da pureza ritual? 23) No texto de Mt 17,27, um cochilo de concordância: “tira o primeiro peixe que pegares”, não “que pegar”. 24) No texto de Mc 9,19, novos cochilos de concordância: “Até quando

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terei de suportá-los? Tragam-me o menino.” Deveria ser suportar-vos... trazei-me..., porque na frase anterior temos a segunda pessoa plural: “Até quando estarei convosco”.

25) A saudação do anjo a Maria, em Lc 1,28, “Alegra-te, agracia-da”, está bem traduzida, embora a tradução quase bimilenar da Vulgata e, já antes, a Vétus Latina, tenham entendido “cheia de graça”. 26) O título da secção Lc 6,17-49 não deveria ser “o sermão do monte”, mas “da planície”, como o próprio texto do v. 17 diz: “Jesus parou num lugar plano”... 27) Na introdução a João, na primeira coluna, diz-se que “o leitor é constantemente constrangido a prostrar-se...” (p. 1062). Não será melhor: “sente-se constantemente impelido...”? Na mesma coluna, em baixo, Jesus é apresentado como “a única esperança de uma raça...” Não será melhor; “de um povo”? Na segunda coluna, em cima, em vez de “salvar o homem”, por que não: “salvar o ser humano”, ou “a humanida-de”? 28) No texto do prólogo (Jo 1,1.10.14), os tradutores optaram por permanecer com o tradicional “Verbo”. Por que não: “Palavra”? O fato de ser um substantivo feminino não poderia ser obstáculo, como também não o é quando Cristo é chamado “Sabedoria” de Deus (1Cor 1,24.30). 29) A tradução de Jo 2,4 : “Que tenho eu contigo?” corresponde bem ao original “que há entre mim e ti?”. Já a nota explicativa, “por que estás me envolvendo?”, parece-me induzir outra coisa. 30) A tradução de Jo 19,1 suavizou o “flagelar” ou “chicotear” do original, transformando-o em “espancar”. 30) Outro cochilo de concordância na tradução de Jo 20,27c: “Não sejas (tu) incrédulo, mas creia!” (você) Proponho: “mas acredita! ”, ou, literalmente, “mas fiel ”.

31) Pequena inexatidão na tradução de At 6,8, sobre Estevão, “cheio da graça”: como não tem artigo no original, deve ser “cheio de graça”. 32) Na introdução a Romanos, na primeira coluna, em cima, a afirmação “todos os homens são pecadores” (p. 1135), deveria ser, em linguagem inclusiva, “todos são pecadores”, ou “todos somos...”. Na mesma coluna, no meio, “não são justos os que somente ouvem a lei, mas também os que...” Melhor: “mas os que também a praticam”. O mesmo problema reaparece no texto de Rm 2,13. Na mesma coluna, em baixo, questiono a afirmação de que o “sangue derramado (do Filho) satisfaz a justiça de seu Pai”. Prefiro a afirmação da 1Jo 3,16: “Nisto conhecemos o amor: Ele deu a vida por nós...” No final da mesma introdução, na p. 1136, a alusão à “crítica destrutiva”, aparentemente, questiona a “crítica construtiva”, ou seja, o sadio método histórico-crítico. 33) No final da introdução à primeira carta aos Coríntios, na p. 1153, a afirmação de que

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“os princípios” do Apóstolo “aplicam-se aos nossos dias e condições tanto quanto (itálico meu) aos dias e às circunstâncias” dos coríntios, parece não levar em conta o mistério da Encarnação: a Palavra se encarna hoje numa época de mudanças cada vez mais rápidas e radicais. 34) Na intro-dução à segunda carta aos Coríntios, na primeira coluna, um detalhe do demonstrativo, já apontado acima: trata-se não “dessa notável epístola” (p. 1170), mas “desta”, da qual se está falando e se falará a seguir. O mesmo detalhe, mais duas vezes, na segunda coluna.

35) Na introdução à carta aos Gálatas, na primeira coluna, em cima: “tinham procurado fazer os gálatas se voltarem contra Paulo e os (itálico meu) convencerem de que...” (p. 1182). Não fica melhor: “convencendo-os de que”, ou “e se convencerem...”? Logo a seguir, aparece o “nessa carta”, quando deve ser: “nesta”, pela razão já apontada. Novamente o problema do demonstrativo, no final da introdução da carta aos efésios: “essa epístola” (p.1188), e também no da carta aos filipenses: “essa carta” (p. 1194). 36) Na introdução à carta aos Colossenses, na segunda coluna: “ele fala do modo que marido e mulher”, deveria ser: “do modo como...” (p.1199). 37) Na introdução à segunda carta aos Tessalonicenses, na segunda coluna, depois de “a fim de louvá-los” (p. 1207, repete-se desnecessariamente, por três vezes, a preposição “de”: “de consolá-los”; “de corrigir”; “e de repreender...”. 38) Na introdução à carta aos Hebreus, na primeira coluna, por quatro vezes se emprega o substantivo “homens”, evidentemente com o sentido de “homem e mu-lher”. Sempre que possível, porém, use-se a linguagem inclusiva. Assim, em vez de “pecados dos homens” (duas vezes, na p. 1224), por que não simplesmente “pecados”? Em vez de “em harmonia aos homens”, por que não “aos seres humanos”? Em vez de “sondam os homens”, por que não “os seres humanos”, ou “os filhos de Adão”, ou...? Na mesma p. 1224, no final da primeira coluna, um demonstrativo mal empregado: “acerca da falta de preparo destes (itálico meu). Deveria ser: “falta de preparo deles”. 39) Na introdução à segunda carta de Pedro, um cochilo de revisão: “nas epístola (itálico meu) das igrejas...” (p.1248) Claro que deve ser: “nas epístolas”.

Isso foi o que consegui anotar. Li pouca coisa do próprio texto bíblico, cuja tradução atualizada é o “carro forte” desta “Almeida Século XXI ”. Também não pude repassar as notas. Por isso mesmo, a maior parte das minhas observações focalizaram as Introduções, as quais, como escrevi acima, parecem-me o “calcanhar de Aquiles” deste importan-te lançamento, e mereceriam ser revistas. Infelizmente não consegui

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identificar o nome do seu autor6, cujo texto é por isso mesmo assumido pela coordenação geral, de Luiz Alberto Teixeira Sayão. Outros leitores atentos deverão ter feito, ou ainda farão, as suas observações e sugestões de melhoria desta edição excepcional. A tradução atualizada e fiel da Bíblia continuará desafiando-nos, justificando assim esta e outras versões do texto sagrado. Mudam-se as versões, mas “a Palavra do nosso Deus permanece para sempre” (Is 40,8).

Endereço do Recensor:Endereço postal: ITESC, cx postal 5041

88040-970 Florianópolis, SCE-mail: [email protected]

6 Ao contrário, por exemplo, da Bíblia da CNBB, cujas introduções e notas, nas edições saídas até agora, são todas de Johan Konings SJ, professor na Faculdade Jesuíta de Belo Horizonte.

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MARCON, Cornélio Ângelo, “ALICE NO PODER DE ASCLÉPIO, entre óvulos, embriões e fetos”, Ed. do Autor, Florianópolis, 2007, 22,5x15 cm

Lauro Junkes*

Começo esta recensão, citando o próprio autor, que assim resume o seu livro: “Partindo da imaginária popular sobre o nome Alice, a nar-rativa se constrói contrapondo duas mulheres, descendentes de famílias conflitantes do Contestado, no Meio-Oeste catarinense: Alice e Agair.

Fruto de relações familiares de aparência, Alice associa-se ao ma-rido como mulher médica servil e dedica-se ao comércio dos produtos da maternidade. No contraponto de Alice, Agair organiza a reflexão sobre os direitos da Pessoa Humana e propõe alternativas inovadoras para as instituições: Família e Sociedade.

Mais denso, o início da obra prepara o leitor para a linguagem figurada (Metáfora), utilizada como instrumento de interpretação de mitos e lendas da cultura greco-romana. Fontes de luz descobertas prin-cipalmente no mito de Édipo revelam atitudes de pais em relação aos filhos, mostrando como acontece a prática da Biotecnologia aplicada às ciências médicas, que invadem a intimidade feminina e põem às claras como a humanidade se atrasa décadas de séculos quando, e com visão escravista moderna, se relaciona com o embrião humano.

Em apoio à narrativa central, elementos da cultura clássica e ame-ríndia são arrolados em defesa do Ser Humano (em qualquer fase da vida) ou para o extermínio dele. A representação maior da destruição da vida afigura-se na mítica família canina de Tifon e Quidina, imagens da fúria e poder destruidor do homem ocidental, não apenas contra ecossistemas, nos métodos de colonização e de desenvolvimento, mas também contra si mesmo, contra os semelhantes e contra os próprios filhos.

O livro pretende informar e entreter. Entrelaça fatos históricos, conhecimentos científicos ao domínio tecnológico. Mostra como as pessoas se contagiam pelos seus interesses e, para consegui-los, sa-crificam os seus princípios éticos, corrompendo-se. Finalmente, a obra

* O recensor é Presidente da Academia Catarinense de Letras.

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busca instigar a diversidade de gostos e de cultura, quer favorecer e aprofundar o diálogo de casais, de formadores de opinião, de lideranças e do público em geral.”

Até aqui, o autor. Agora, a minha opinião. Constrói-se escritor quem enfrenta decididamente o desafio de escrever. Não se exige prévio e misterioso substrato genético, porque arte é fruto de prática, não de talento inato, nem de sopro de musas. A lógica da estruturação mental requer cultivo persistente do pensamento. O manejo da palavra pressupõe infindável leitura e exercício de expressão verbal: escrever, ler, reler, reescrever. E o escritor não se diploma após o primeiro texto. Não se interpõe, entretanto, idade-limite para iniciar-se o percurso.

Já plenamente maduro, após longo exercício do magistério em nível superior, Cornélio Ângelo Marcon decidiu dar vazão às suas in-quietações interiores, defrontar-se com a página em branco e lançar suas sementes mentais. Despontou e consolidou-se um primeiro livro: uma narrativa de vida, genealógica, biográfica, registro da concretização de um sonho – Sonho da Terra – resgatando lances épico-romanescos do desbravamento das terras do planalto e Meio-Oeste catarinenses, ainda infestadas pela arrogância de rapinas de terras, contestadas e ameaçadas, quando legítimos donos as trabalhavam com o suor amargo do rosto. A saga de Nelo e Pina, arroteando, plantando, colhendo crescente produção agrícola, e gerando sucessão quase inacabável de filhas (le sue tosette) até surgir o varão que registrou essa epopéia familiar, constitui inesti-mável contribuição para um mapeamento vigoroso da saga da nossa gente, intrépida e empreendedora, gente que propiciou a ocupação do nosso território, a fixação do homem na terra, o empenho pertinaz dos que extraíram da terra o progresso.

Deslanchada a empresa, o autor adotou plenamente o desafio do nosso poeta Lindolf Bell: Menor do que meu sonho não posso ser. E a produção literária prosseguiu em ritmo vibrante. Está agora requerendo seu registro uma ficção bastante densa, incursão autêntica no reino do romance – romance sem qualquer conotação de enleios sentimentais, por-que solidamente enraizado no contexto real, histórico-científico-social, do nosso tempo, com aberturas para os caminhos futuros, imprevisíveis, da ciência e da humanidade: Alice – no poder de Asclépio, entre óvulos, embriões e fetos.

Diante desta narrativa, sinto-me tentado a afirmar que se trata de um romance de tese, porque mais do que emoções, o relato explora

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conteúdos ideológicos, sociais, éticos, e não raro muitos discursos de personagens assumem francos ares dissertativos, de caráter mais vigo-roso do que o puramente narrativo. Trata-se de vastíssima tentativa de proceder a uma interpretação ético-psicológico-sociológica de cruciais questões da Bioética e da Cultura da morte que se projetam nas áreas médico-biológicas, através dos estudos das células-tronco e problemas com fecundação assistida, pesquisas com embriões humanos, sobre os quais se debruçam inescrupulosas ganâncias para empreender comércio com óvulos, embriões e fetos. (E a personagem Beto declara, a certa altura, com naturalidade: Os fracos são para o serviço dos vitoriosos).

Entretanto, todo esse universo imaginário se entretece estrita e perspicazmente com dezenas de figuras da mitologia greco-romana, pelo que, considerando os precários conhecimentos dos nossos leitores em relação ao assunto, seria sumamente conveniente um prévio contacto com esse universo, cuja compreensão é essencial para bem entender a presente narrativa. Apresenta-se constante e básica intertextualidade: o texto romanesco, sua trama, suas personagens estão estreitamente entrelaçados com mitos gregos, que, aliás, percorreram a história dos últimos três mil anos. Talvez no centro de tudo esteja o mito de Édipo, cuja interpretação revela penetrante subtileza, talvez até abrindo novas perspectivas, para além daquela de Freud, no famoso “complexo de Édipo”. Entre as personagens emblemáticas de caminhos transversos, encontram-se, explicitamente, as referências: AlicÉdipo, VerbiCasta e HerciLaio, que remetem diretamente ao mito. Aliás, defrontar-se com a Esfinge (como Édipo) constitui estágio inevitável na vida de todos nós, seres humanos. Estaremos preparados para tal momento? O contraponto entre situações do nosso tempo e elementos míticos conduz a uma nova interpretação, psicológica e sociológica, de muitos heróis fundamentais daquela visão que os gregos formularam sobre as contingências e insta-bilidades do existir humano.

Embrenhado no vastíssimo universo que o relato vai desdobran-do, talvez fosse mais apropriado falar-se em novel do que em romance. Desde a referida e retomada “mancha na meia de Agair”, multiplicam-se as perspectivas: os confrontos entre Agair e Alice; entre o comércio de embriões e o Lar Escola da Vida; entre os casais Alice/Beto e Beatrice/Ander; entre as raízes de Agair no Contestado catarinense e as de Alice nos desejos de Verbéia e nas ganâncias de Hircino; entre a luta pela valo-rização da vida humana e a comercialização desta para satisfazer ganância de lucros. Do Contestado catarinense à grande metrópole paulista, de

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sofisticados laboratórios aos barracos de favelas, da sociedade urbana à esfinge caingangue guarani, da felicidade à angústia, do Eros ao Ágape, qual a receita da autenticidade existencial? A novela propõe veredas, desenrola cenas, dramatiza situações e deixa abertos outros tantos cami-nhos, sem necessidade de concluir aquele fecho, porque permite ao leitor imaginar outros tantos episódios. Aqui mesmo, a questão cruciante, em meio aos meandros desencaminhantes, reside no desfecho a ser dado ou nas interrrogações em aberto. Torna-se, por vezes, complexo o tratamento das temporalidades na evolução, paralelismo e sobreposição dos fatos. Não obstante posicionamentos incisivos do texto, a participação do leitor exigirá amoldagem própria e opões dentro do seu próprio contexto.

O texto de Cornélio Ângelo Marcon não teme desnudar proble-mas, chagas e irresponsabilidades da civilização de nossos dias. Viver a vida significa o quê? Onde e quando inicia a vida? Embriões obtidos por múltiplas fecundações terão todos direito ao prosseguimento da vida? Viver em plenitude constitui objetivo desejável para todos; entretanto, perseguir tal objetivo permitirá servir-se dos demais?

Sob certos aspectos, Alice, não obstante os direcionamentos apontados por essa personagem-título, entretece os fios de uma nova Utopia – a busca de um mundo novo, após Platão, Tomás Morus, Tom-maso Campanella, Charles Fourier, H.G.Wells, Tolstoi, Chesterton ou Orwell. O autor destaca os grandes desafios que enfrenta a vida humana e adverte para a irresponsabilidade de manipulações da mesma. Alerta sobre as múltiplas dimensões do ser humano: histórica, social, conjugal, afetiva, psicológica, espiritual, centrando-se impreterivelmente sobre o valor da vida humana. Certamente não se propõe a uma simples leitura de lazer. Aqui, ler é comprometer-se!

Endereço do Recensor:Rua Romualdo de Barros, 970

Carvoeira88040-600 Florianópolis, SC

E-mail: [email protected]

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LA DUE, William J., O Guia Trinitário para a Escatologia, trad. Milton Camargo Mota, São Paulo, Ed. Loyola, 2007, 21x13,5cm, 231p.

Joel Sávio*

A humanidade vivencia um novo tempo. Um tempo de mudanças cada vez mais imediatas, onde os interesses coletivos são substituídos pelo desejo egocêntrico de realização pessoal a todo custo. Porém, depara-se com o limite da vida. Nunca se mataram tantos por tão pouco. Diante da morte, todos se perguntam sobre o sentido da vida, e constantemente se encontram com o vazio. De face com a frustração, muitos atribuem a Deus, transcendente, toda a esperança numa vida futura, diferente daquela vivida até então de forma imanente.

Perante tão grande abandono, algumas perguntas permanecem: Aqueles que rejeitam o amor de Deus são condenados ao inferno ou simplesmente perecem? A expiação depois da morte é uma experiência momentânea ou ela retarda a entrada no céu? Após a morte, a alma tem uma vida individuada ou é absorvida na Matriz divina? A salvação final de todos é uma tese teológica sustentável? É possível que Deus miseri-cordioso condene alguém por um único pecado, por toda a eternidade?

La Due, nesta obra, não busca responder a estas questões. Antes, re-sume o pensamento de vinte e um recentes teólogos cristãos proeminentes na área, baseando-se num apurado exame de dados bíblicos e históricos na esfera da escatologia cristã. O trabalho de La Due é fantástico: apre-sentar em sete capítulos a diferença entre as explicações escatológicas dos primórdios da Igreja cristã até as recentes descobertas da teologia católica e protestante. Dos vinte e um especialistas (dentre esses, algumas teólogas), alguns são bastante conhecidos em âmbito universal, outros nem tanto. La Due é norte-americano, e utiliza-se da contribuição de estudiosos de seu país de origem para ilustrar o pensamento moderno sobre a teoria do final dos tempos.

A obra de La Due não permite uma leitura acelerada, uma vez que exige do leitor extremada atenção. São vinte e um especialistas, cada um defendendo o ponto de vista do seu lugar específico. Em determinados momentos, o autor apresenta a controvérsia entre pensamentos de épocas

* O recensor, bacharelando em Teologia pelo ITESC, pertence à diocese de Criciúma, SC.

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diferentes, mas que pertencem à mesma tradição religiosa. Apresenta também a evolução do pensamento sobre o escathon, suas variantes e seus vícios. Por isso, suas análises exigem apurada atenção.

No primeiro capítulo, o autor busca ambientar a discussão esca-tológica dentro da tradição bíblica e histórica. Segundo ele, o povo de Israel tinha pouca clareza sobre a vida após a morte. Para esse povo, os mortos estavam todos num lugar comum – Sheol – onde eram como sombras. Foi no pós-exílio que surgiu a ideia de lugares diferentes para os mortos. Virtuosos e impuros não poderiam habitar um mesmo lugar. Pode-se perceber esta distinção nos textos do profeta Daniel (12,2) e 2Macabeus (12,43-44).

Após o evento Cristo, a dimensão escatológica ganhou novas postulações. Paulo, trinta anos após a morte e ressurreição de Jesus, fala sobre a ressurreição dos mortos no Dia do Senhor (parusia). Segundo Paulo, quando o indivíduo morre, a alma sobrevive e ganha um novo corpo espiritual. Dos evangelistas, João é aquele que, aparentemente, tem maior clareza do que significaria a Parusia. Marcos faz confusão entre parusia e segunda vinda de Cristo. Mateus, diferente de Paulo, afirma que ao morrer, a alma permanece à espera do corpo material, que seria ressuscitado. Lucas parece afirmar que o Reino de Deus se alcança ao longo dos eventos humanos. João insiste que aquele que crê em Jesus jamais verá a morte.

Com o passar do tempo, a Igreja fundada sobre a experiência dos apóstolos busca dar resposta sobre a morte e a ressurreição prometida. Pa-dres como Ireneu, Justino, Tertuliano e Hipólito utilizavam-se de teorias milenaristas para explicar o juízo final. Por outro lado, Orígenes, Gregório de Nissa, Jerônimo e Agostinho se recusam a dar-lhes crédito. Enquanto que Orígenes e Gregório defendiam a possibilidade de salvação universal, Agostinho condena a tese da restauração final de todos. Segundo ele, depois do julgamento geral, céu e terra desaparecerão e um novo céu e uma nova terra surgirão. Somente aqueles que merecem habitarão estas novas realidades. Os demais estarão presos no desespero eterno.

As contribuições de Agostinho sobre os conceitos tradicionais de céu e inferno permaneceram por longa data no Ocidente. A reforma protestante trouxe novos ares sobre a discussão do fim dos tempos. De acordo com Lutero, a ressurreição de Cristo é uma garantia absoluta da ressurreição de todos os crentes. Após a morte as almas continuam a viver sem um corpo no lugar de repouso. Essas almas não necessitam da oração dos

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vivos para que se salvem. Após o juízo, elas voltam a receber um corpo, agora glorificado. Esse tempo de espera é demasiado curto. Para Lutero, o tempo entre a morte da pessoa e sua entrada no tempo eterno de Deus é mais que um instante. Depois da morte, as pessoas entram no novo mundo da ressurreição, e a noção de purgatório torna-se supérflua. O estágio inter-mediário é, antes, o tempo entre a ressurreição de Cristo e a ressurreição geral, quando Cristo passar o reino ao Pai (1Cor 15,28)[156].

No segundo capítulo, La Due apresenta as abordagens protes-tantes clássicas da escatologia do século XX, citando como principais expoentes Rudolf Bultmann, Oscar Cullmann e Paul Tillich, autores reconhecidamente influentes. Segundo Bultmann, o Reino de Deus não é um evento que passará no futuro. Por detrás do mito da eternidade, o amor ao próximo é o que conta para a salvação. Cullmann enfatiza a dimensão histórica da salvação e afirma que a continuidade da vida da alma após a morte não é resultado de um processo natural, mas prêmio pela ação de Cristo. Há necessidade da intervenção divina. Para Tillich, o futuro do ser humano é determinado pelas decisões que a pessoa toma na vida. Porém, quando morre, perde a condição de escolha. Assim, com relação ao eterno, a ninguém é dado o direito de escolha de que lado vai ficar.

Em contrapartida, no terceiro capítulo, La Due apresenta a teologia dos teólogos católicos do século XX sobre a escatologia, citando como principais expoentes Karl Rahner, Ladislau Boros e Joseph Ratzinger. Rahner afirma que desde os primeiros séculos cristãos a Igreja fez decla-rações acerca do futuro que deixaram muita coisa que é oculta e obscura. Com a morte, o indivíduo se integra ao universo e sua realidade espiritual se torna parte do mundo. A ressurreição do corpo constitui a finalização da entrada na nova vida quando matéria e espírito se reúnem. Para Boros, é apenas na morte que os humanos podem tomar uma decisão totalmente pessoal que determina seu destino último. Na visão de Ratzinger, atual papa Bento XVI, não se pode conceber a possibilidade da ressurreição corporal ocorrendo imediatamente após a morte. Ele defende a noção de purgatório, que prepara para a vida com Deus, e sem dúvida rejeita a noção da “restauração universal” de Orígenes.

No capítulo seguinte, o autor apresenta as visões de Hans Küng, Monika K. Hellwig e Hans Urs von Balthasar como visões complemen-tares recentes da escatologia. Küng insiste na ideia de purgatório como processo de purificação. Além disso, diz que afirmar a eternidade do

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inferno é contradizer a misericórdia de Deus. Porém, afirma que a salva-ção não é uma garantia a priori, mas um processo. Hellwig, assim como Küng, dá ênfase à realidade do purgatório e afirma que este prepara para a consumação do amor perfeito, que é Deus. Com relação à eternidade do inferno, Hellwig não a nega, mas põe dúvida se existe alguém eternamente condenado. Balthasar introduz a tese da apokatástasis pántôn – salvação de todos. De acordo com Balthasar, haverá um único julgamento final, para todos. Isso ocorrerá no último dia, quando todos os seres humanos serão examinados detalhadamente [126].

Voltando às tendências protestantes contemporâneas, La Due vê em John A.T. Robinson, Wolfhart Pannenberg e Jürgen Moltmann a continuidade do pensamento protestante sobre a ressurreição como destino último. Segundo Robinson, a ressurreição se situa no último dia, e não imediatamente após a morte do indivíduo. Sobre a possibilidade da eternidade do inferno, do dia da ressurreição e do número de escolhidos, Robinson prefere dizer que, sobre as coisas últimas, há coisas que jamais saberemos. Para Pannenberg, a essência da tradição purgatorial é a base da discussão sobre a imortalidade da alma. Segundo ele, é provável que o fogo purificador escatológico seja experimentado imediatamente após a morte e, só então, pela presença intensa do Senhor no momento da morte. Moltmann reafirma as posições de Lutero, insistindo na ideia de que os mortos, antes de ressuscitarem, já estão com Cristo. Por essa razão, não há necessidade de fazer nada para a redenção das almas dos que já se foram, pois elas já experimentam o amor de Cristo.

No sexto capítulo de sua obra, La Due apresenta as vozes divergen-tes de John Macquarrie, Marjorie H. Suchocki e John Hick. Macquarrie insiste na esperança como fenômeno humano universal. Porém, a espe-rança é uma atitude vulnerável que pode transformar-se em medo. Diante das múltiplas dificuldades, o povo de Israel transformou a esperança em espera apocalíptica. Suchocki põe especial atenção sobre a imortalidade subjetiva. Segundo ela, o que permanece não é o real, mas os valores, que são próprios do sujeito. A subjetividade é eternamente retida na na-tureza consequente de Deus. Segundo Hick, a ideia de sofrimento eterno é totalmente incompatível com a ideia de Deus como amor infinito. Por esse motivo, em razão do amor e do poder salvífico de Deus, deve-se acreditar na salvação de toda a humanidade.

Por fim, o autor apresenta outras correntes de pensamento contem-porâneo que buscam lançar luzes sobre a escatologia. Para os ortodoxos,

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nem os salvos, nem os condenados atingirão seu destino final antes do dia final. Eles rejeitam a possibilidade da apokatástasis – salvação universal – pois esta aliena o direito de autodeterminação. Já os libertacionistas (que conhecemos por Teologia da Libertação), impulsionados por Gus-tavo Gutiérrez e James H. Cone, admitem que o futuro seja exatamente aquilo que se apresenta no presente. É preciso, antes de gastar tanta energia refletindo sobre o futuro, que pertence a Deus, buscar transfor-mar a sociedade, em vista de uma libertação já aqui, entre os vivos. Para a corrente feminista, a questão da morte é mais aparente nos homens. Segundo essa tese, as mulheres, pelo fato de gerarem filhos, estão mais preocupadas com o desenvolvimento da vida na terra. Se há uma outra vida, é difícil afirmar. Portanto, focaliza-se o esforço na vida presente. O interesse pela imortalidade individual é, na verdade, um sintoma do esforço masculino de vencer a mortalidade.

Ao final do texto, La Due introduz algumas perguntas que percor-rem toda a tradição cristã, como por exemplo: é possível que um Deus misericordioso puna um pecado único, finito, não-expiado, com uma eternidade infinita de tormento? Um Deus de amor consistente deixaria alguém à margem, sem derramar nele o pleno calor convincente da afeição divina? E como alguém poderia resistir a isso?

Fica claro que o autor da obra – William J. La Due – não pretendeu responder a esses questionamentos. Quis, sim, apresentar uma série de pensadores que, no decorrer do tempo, buscaram dar esclarecimento a uma das questões mais antigas e mais atuais da humanidade: para onde vamos quando morremos? A questão continua em aberto. E continuará, até o fim dos tempos.

Endereço do Recensor:Instituto Teológico de Santa Catarina (ITESC)

Rua Dep. Antônio Edu Vieira, 1524Caixa Postal 5041

Pantanal88040-001 Florianópolis, SC

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MANZATTO, Antonio; PASSOS, João Décio; VILLAC, Sylvia, “De esperança em esperança”, São Paulo, Paulus, 2009, 13,5 x 21cm, 152 p.

Joel Marcolino Bittencourt*

Este livro faz parte da Coleção “Teologia Sistemática”, e trata especificamente da Escatologia. Tema cada vez mais presente na reflexão atual e que encontra seus fundamentos na história dos povos e religiões. O título da obra é muito adequado, pois a escatologia cristã é marcada pela esperança. Os autores, na apresentação do livro, afirmam: “A espe-rança nos move! Ela nos faz agir, caminhar e ser” (p. 5). O livro é fruto da vivência dos autores junto ao povo nas comunidades e também no ambiente acadêmico.

O primeiro capítulo é intitulado “A escatologia do povo e das religiões”. Nele os autores procuram fazer uma aproximação de algumas visões escatológicas do nosso povo, de outros povos e também de outras religiões. O termo escatologia é, ao mesmo tempo, palavra estranha e importante para o povo. Aborda uma problemática central: a salvação, o céu, a vinda de Jesus, o julgamento, o inferno. O termo é de origem grega, éskhaton, e significa futuro absoluto. Não se pergunta somente sobre o fim do mundo, mas sobre o sentido mais profundo de tudo o que existe (pp. 9-13).

Os autores apresentam as diversas imagens escatológicas presentes no imaginário popular. Com linguagem humana se faz esforço de falar de Deus. Portanto, “quando falamos de Deus, nós o fazemos a partir de nossa própria experiência” (p. 14). Por visão escatológica tradicional, entende-se a “maneira como o catolicismo popular explica, imagina e se relaciona com a vida depois da morte” (p. 15). O livro apresenta relatos do povo, sobre seu entendimento da morte e afirmações da escatologia popular tradicional. Nessa visão temos a distinção do mundo natural e o sobrenatural. O mundo sobrenatural está acima, onde habitam Deus, os santos e as almas benditas. O outro mundo, que está abaixo, é onde estão os demônios e as almas condenadas. Existe ainda um lugar intermediário, o purgatório, para as almas padecentes. O imaginário popular estimula ao mesmo tempo o desejo do céu e o medo do inferno (pp. 14-20).

* O recensor, bacharelando em Teologia pelo ITESC, pertence à diocese de Tubarão, SC.

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A visão escatológica das comunidades de hoje possui elementos diversos, “tradições antigas misturadas com idéias novas, elementos da catequese da Igreja e elementos da religiosidade popular” (p. 22). A visão escatológica de hoje faz a relação entre o histórico e o escatológico. A problemática escatológica é central nas religiões e cada uma responde, a seu modo, a seus questionamentos. A seguir, o livro apresenta a visão escatológica das religiões. Em relação à vida pós-morte encontram-se três posições: 1) morte como fim; 2) a volta da alma em um outro corpo; 3) ressurreição final após a morte (pp. 22-48).

No segundo capítulo, intitulado “Escatologia cristã”, vemos as raízes da escatologia cristã na antropologia grega e semita e também na teologia bíblica. O tema da morte “é como um nó que enfeixa a pro-blemática geral da antropologia no seu sentido mais vasto, dando um novo sentido à existência humana” (pp. 51 e 52). É apresentada a visão grega a respeito do homem e da morte. Para os gregos, o ser humano é composto de uma alma imortal e um corpo perecível. Assim sendo, a morte é separação da alma e do corpo. Na visão semita, o homem é uma unidade. Na teologia bíblica do Antigo Testamento o judeu entendia a morte como algo fatal, com aspectos sombrios. Por isso, ter uma vida longa era sinal das bênçãos divinas. Portanto, a morte era vista como castigo, conseqüência do pecado. Para a fé neotestamentária, o homem ressuscita todo inteiro, assim a morte é cheia de esperança e alegria. No Novo Testamento ao falar da ressurreição de Jesus Cristo relaciona-se a ela a ressurreição dos justos. Quem faz os homens ressuscitarem é Cristo, que a si mesmo denomina-se “a ressurreição e a vida” (Jo 11,25) (pp. 51-63).

O estudo segue apresentando as interpretações da fé na ressurreição na teologia católica. Para tal são apresentadas as tendências da exegese. Na tendência tradicional, a ressurreição de Cristo é somente um fato histórico, era a prova principal da divindade e veracidade do cristianismo. A tendência da exegese moderna positiva vê a ressurreição como um fato de fé da Igreja primitiva. “A ressurreição é corporal e é mais do que um fato histórico” (p. 65). Já para a exegese histórico-crítica, a ressurreição não é diretamente um fato histórico, que possa ser detectado pelo histo-riador. Portanto, “o fato da ressurreição entra na ordem do mistério, que rompe as categorias de espaço e tempo” (p. 66). A pregação primitiva sobre a ressurreição a descrevia como elevação, glorificação, ida para o Pai. Somente após as aparições de Jesus, o sepulcro vazio ganha o sentido de sinal da ressurreição. A seguir, os autores abordam dois temas

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distintos: ressurreição e reencarnação. Ressurreição, doutrina cristã, é obra de Deus: depois de uma única vida na terra, Deus dá ao homem uma nova existência junto de si. A doutrina espírita da Reencarnação afirma que a pessoa pode viver vidas sucessivas, em épocas e corpos diferentes (pp. 64-74).

Lendo a nossa ressurreição a partir da antropologia de hoje, os autores afirmam que “a morte não vem de fora, mas cresce e amadurece dentro da vida do homem mortal [...] A morte acontece continuamente e cada instante pode ser o último” (p. 78). O momento da morte é momento de decisão. Nesse momento, livre de condicionamentos, a pessoa toma uma decisão radical, a qual implica seu destino eterno: comunhão eterna e facial com Deus, ou inferno. “O que ressuscita é o nosso eu pessoal, aquilo que criamos em interioridade dentro da vida terrestre, eu esse que inclui também a relação com o mundo e, por isso, o corpo” (p. 79). Vemos ainda que, “como a morte significa o fim do mundo para a pessoa, nada repugna que também se realize aí a ressurreição do homem” (p. 80). O Reino de Deus é o núcleo da escatologia. Na pregação de Jesus aparece diversas vezes o Reino de Deus, que é o alvo da sua ação salvífica. O Reino de Deus foi o centro da pregação de Jesus, enquanto a pregação da Igreja se centrou na pessoa de Jesus. O Reino de Deus vem ao nosso encontro, mas precisamos nos abrir a ele para que ele aconteça. (pp. 76-85).

O terceiro capítulo trata dos “Novíssimos”. Os novíssimos, assim chamados pela tradição teológica, abordam o sentido cristão dos últi-mos acontecimentos de nossa existência humana: juízo, céu, inferno, purgatório. O cristianismo tem como fundamento de fé a sobrevivência pessoal após a morte. A morte nos introduz numa vida transfigurada, eterna. Sobre a realidade nova – “novíssima” – não temos como fazer afirmações precisas, mas a teologia tenta apontar para o mistério e um mistério que está reservado ao próprio Deus. Apesar de usar uma lin-guagem indicativa, “é um estudo que se fundamenta numa esperança segura” (p. 98). Com Jesus o céu veio até nós e se tornou para nós uma possibilidade. Contrariando a afirmação de Marx, o cristão que espera a vida eterna, não deve alienar-se e esquecer-se das coisas deste mundo (pp. 97-100).

No Antigo Testamento, a morte é o fim da vida humana, não se espera a vida eterna: a vida é sinal de bênção; a morte, de maldição. En-tretanto, três aspectos devem ser considerados: 1) tem-se a esperança de que a morte não seja o fim de tudo; 2) A fé, do povo do Antigo Testamento,

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crê que Deus pode vencer o mal e a morte; 3) Daniel afirma que a morte será suprimida. No judaísmo não havia uma teologia sistematizada sobre a vida eterna. “A idéia de vida eterna dependia de cada grupo religioso e das diversas idéias ou concepções do Messias” (p. 104). Nesse sentido, cada grupo esperava por um messias diferente (pp. 102-104).

Em relação à vida eterna no Novo Testamento, os autores iniciam apresentando o tema nos sinóticos e em Paulo. O centro da pregação de Jesus é o Reino de Deus. “Para Jesus, o Reino de Deus é escatológico, isto é, uma realidade que está intimamente ligada à ressurreição final” (p. 105). Para Paulo, a vida eterna começa no batismo. Para João, todos, justos e injustos, ressuscitarão e serão julgados pela Palavra ou revela-ção de Jesus. E ainda, mesmo os cristãos já possuindo a vida eterna, a ressurreição será “no último dia”. Para o ímpio é reservado o inferno, o Xeol. Para o Novo Testamento, os ímpios são definitivamente excluídos da vida eterna, não porque Deus não os ame, mas por rejeitarem tudo aquilo que Deus lhes ofereceu em seu imenso amor. Com Agostinho temos a idéia de “fogo purificatório”, ou seja, “purgatório”. Essa idéia se desenvolve mais e mais e o purgatório passa a ser afirmado como um lugar, reservado aos que morrem “necessitando alcançar a maturidade completa e a santidade perfeita” (p. 114). Deus “faz essas pessoas passa-rem, após a morte, pelo purgatório, isto é, por um processo doloroso de amadurecimento e aperfeiçoamento” (p. 115). Todo ser humano passará pelo juízo de Deus, ou seja, irá se confrontar com Deus e desse confronto resulta a aceitação ou a recusa (105-117).

O quarto capítulo aborda “A Parusia e o sentido da História”. Os autores refletem sobre a pergunta: o mundo vai acabar? A palavra parusia é de origem grega e significa “presença” ou “chegada”. “Essa palavra era usada para mostrar como deveria ser a cerimônia na visita de um rei a uma cidade” (p. 123). Parusia no Novo Testamento se refere à segunda vinda de Jesus, situada “no fim do mundo”. A segunda vinda do Filho do homem será precedida por sinais e não será anunciada, será repentina. “A parusia acontece todos os dias, a cada vez que Jesus é anunciado: quem crê, passa da morte para a vida, e quem não crê, já está julgado” (cf Jo 5,24) (p. 125). A História é história de salvação. O mundo é lugar onde se realiza a salvação. O fim do mundo e da História será no dia em que Deus for “tudo em todos” (1Cor 15,28) (pp. 123-130).

O quinto e último capítulo apresenta “A esperança cristã em nossa vida”. As esperanças do homem de um mundo novo e sociedade

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Recensões

nova, Deus as confirmou por meio de Jesus. “A vida cristã é um cami-nhar de esperança em esperança” (p. 134). O ser humano é um ser de esperança, é um ser utópico e sonha com um mundo diferente. Quando a esperança humana se une à promessa divina, esta pode se concretizar nos progressos e realizações da história humana (pp. 133-136).

Os autores afirmam que a ressurreição de Jesus é a instauração definitiva do reino de Deus entre os seres humanos e ao mesmo tempo a confirmação da fidelidade de Deus à sua promessa. O nosso Deus é o Deus da esperança. É Ele o objeto de nossa esperança. “Os seres humanos constituem o objeto da esperança de Deus, na medida em que o que Ele deseja é, simplesmente, tê-los no seu Reino e ser amado por eles” (p. 139). O objeto da esperança cristã é Deus. Através dos avanços e progressos da humanidade, a esperança cristã possui sentido e vai se realizando. A esperança é algo para ser vivido no dia a dia. Vivida nos momentos celebrativos, no dia a dia, na solidariedade, no sofrimento (pp. 137-145).

A escatologia é um tema que perpassa a vida e o pensamento de todo o ser humano. Cotidianamente a vida é confrontada com a morte. A morte é vivenciada na perda de um amigo, parente ou mesmo em uma fatalidade noticiada pelos meios de comunicação. Portanto, a morte ques-tiona: qual o sentido da vida humana, a morte é o fim? Para o cristão, a esperança o encoraja e fortalece, dando sentido à sua existência terrena e a certeza de uma vida eterna, ou seja, com Jesus ressuscitado.

O livro fundamenta a nossa esperança na ressurreição e esta por sua vez nos impulsiona para vivermos a nossa vida não só preocupados com o céu – uma realidade que pode parecer muito distante – mas fa-zermos aqui, no hoje de nossas vidas, a experiência do Reino de Deus, como o próprio Jesus explicou: “o Reino de Deus está no meio de vós” (Lc 17, 21). Deste modo, a vida presente nos prepara para a vida plena e a visão beatífica de Deus.

Endereço do Recensor:Instituto Teológico de Santa Catarina (ITESC)

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