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[Recensão a] GREGORY, Brad S. - Salvation at slake. Christian Martyrdom in EarlyModern Europe
Autor(es): Urbano, Carlota Miranda
Publicado por: Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, Instituto de EstudosClássicos
URLpersistente: URI:http://hdl.handle.net/10316.2/28142
Accessed : 23-Aug-2021 17:26:20
digitalis.uc.pt
Vol. LIV
IMPRENSA DA UNIVERSIDADE DE COIMBRACOIMBRA UNIVERSITY PRESS
A 5A RECENSÕES
dade do estudo de Virgínia Soares Pereira é na verdade sempre proporcional à clareza da exposição, quer em momentos mais lineares quer em momentos de maior tecnicismo cientifico.
Num estudo introdutório de cinco capítulos, a autora começa por situar o Aegi-
dius Scallabitanus no conjunto da produção bibliográfica de André de Resende. Reflecte sobre as razões do interesse e originalidade do texto resendiano, apresenta os interlocutores do diálogo e procura datá-lo com precisão, não sem apontar já para as vicissitudes históricas da transmissão do texto até aos nossos dias (pp. 19-64). O Capítulo II oferece ao livro um substancial suporte teórico, já que a autora reflecte sobre os antecedentes clássicos, helenísticos e cristãos do diálogo hagiográfico de André de Resende (pp. 65-86). Mas a análise deste capítulo versa também sobre a sua composição literária, sobre aspectos como espaço, tempo e interlocutores, e ainda aspectos como a inuentio e a dispositio do diálogo, em função dos quais a autora trata separadamente cada um dos quatro livros que compõem a obra (pp. 86-108). Um terceiro capítulo é dedicado ao estudo das fontes e dos epígonos de André de Resende no que respeita ao tratamento da narrativa biográfica de Frei Gil: desde a Vita ducen-tista, até à obra de Frei Luís de Sousa, entre outros, considerando também o conhecimento de outras fontes não declaradas pelo autor, como a Vida de Sam Frei Gil,
publicada em 1552.
O Capítulo ÏV é o mais longo e certamente o mais interessante do ponto de vista da exegese histórico-literária, pois nele a autora ocupa-se precisamente da abundância humanística do texto, das suas numerosas digressões e reflexões criticas, possibilitadas pelo género dialógico preferido pelo autor, mas omitidas pela tradição manuscrita do texto. Em tais digressões, cujos temas já referi, as matérias mais interessantes são as que se prendem com questões de natureza filológica, que a autora comenta atentamente, (como a busca da uerborum proprietas, característica de quem teve uma formação clássica exigente), mas também questões históricas e teológicas, de livre exame religioso, que têm o interesse de terem sido produzidas no universo pós-tridentino, de grande sensibilidade crítica.
Finalmente, no capítulo V, elaborado com extremo rigor e precisão, a autora expõe os problemas relacionados com a transmissão do texto, realizada através de duas tradições distintas (desde o original resendiano até às edições quinhentistas, por um lado, e até aos diversos manuscritos dominicanos, por outro). Num e noutro caso o texto original foi na verdade alvo de várias atitudes censórias, as quais a autora se propõe superar.
Texto e tradução, dispostos face a face para maior comodidade do leitor, e um conjunto valiosos de notas de carácter histórico-literátrio ocupam a última parte do livro, que inclui também extensa bibliografia e um índice antroponímico de grande utilidade.
Para terminar , cito a apreciação que do presente livro fez A. Costa Ramalho, ao redigir o Prefácio: "O Aegidius Scallabitanus de Resende (...) é da maior importância para o conhecimento da mentalidade do seu autor, amadurecido pelos anos e pela experiência da vida. (...) Com este estudo [a autora] ficará de certo consagrada inter-
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nacionalmente como um dos melhores especialistas da figura e da obra daquele que é, fora de dúvida, um dos principais humanistas portugueses, se não o principal" (p. 11).
Margarida Miranda
GREGORY, Brad S., Salvation at slake. Christian Martyrdom in Early Modern Europe,
Harvard University Press, Cambridge, Massachusetts and London, England
1999, (528 p).
Vencedor do prémio anual Thomas J. Wilson de 1999, este livro faz pela pri
meira vez um estudo comparativo do fenómeno do martírio nas lutas religiosas da
Europa do séc. XVI. Com esta obra, o autor pretende fazer um estudo histórico do martírio para um
conhecimento mais profundo da Europa no começo da modernidade, mas a sua abordagem, pela própria natureza do fenómeno que observa, acaba por contribuir para o estudo das questões religiosas que dividiram as nações da Europa e que estiveram na origem e formação da identidade das várias confissões cristãs do Ocidente.
Depois de nos apresentar o tema na sua complexidade, e de justificar a sua metodologia no capítulo primeiro, o historiador dedica o segundo ao que chama 'A herança da Idade Média Tardia': o valor dado ao sofrimento e à paciência e a sua relação com a Paixão de Cristo, central na devotio moderna, e ainda alguns casos de martírio nesta época. Os capítulos terceiro e quarto são dedicados respectivamente aos perseguidores e aos perseguidos (mártires). O capítulo quinto estuda o martírio entre os protestantes, as suas razões e ideais, o seu martirológio, os seus contextos nacionais. O sexto capítulo, Gregory dedica-o ao martírio entre os anabaptistas, a formação de uma mentalidade martirológica nesta confissão directamente herdeira da Idade Média tardia e as suas circunstâncias específicas, perseguida por protestantes e por católicos. O capítulo número sete é dedicado ao martírio entre os católicos romanos, a sua 'paixão pela paixão' e o lugar dos mártires na vida espiritual dos católicos. Finalmente, e antes da conclusão, Brad Gregory dedica o capítulo oitavo às divergências profundas entre os três grupos e à controvérsia religiosa. Dando todos eles elevado valor ao martírio, estimavam e louvavam os 'seus' mártires, os 'verdadeiros', por oposição aos 'falsos mártires', classificados com base no critério doutrinal.
Para Gregory é impossível fazer a história social do início da modernidade europeia negligenciando os domínios doutrinal e espiritual da vida humana, pois os líderes espirituais, os teólogos, os pregadores, os pastores, não foram uma elite intelectual de importância marginal, mas antes influenciaram profundamente as suas sociedades e culturas, e essa influência perdurou, deixando marcas na história do Ocidente. Só pela integração das duas aproximações, social e teológica, do fenómeno, é possível considerar o impacto dessas figuras cuja influência é inegável. Por esta
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razão, este livro ieva-nos frequentemente ao universo doutrinal e espiritual, à controvérsia religiosa, às interrogações, dúvidas, razões e argumentos e convicções radicais daqueles que por elas se dispuseram a morrer ou a matar.
Demonstrando que um estudo profundo do martírio na Europa moderna exige uma análise trans-confessional, B. Gregory dedica a cada uma das três tradições martirológicas (protestante, anabaptista e católica romana) capítulos separados de uma história que deve ser considerada de forma global. O seu estudo abrange um arco temporal desde a Idade Média tardia, de que os vários grupos cristãos herdaram um entendimento comum do sofrimento, até ao séc. XVII e geograficamente abrange sobretudo a Inglaterra, a França e os Países Baixos, embora também considere o Sacro Império germânico e a Suiça. O autor justifica a exclusão de Espanha e de Itália, mas incompreensivelmente não justifica a mesma exclusão de Portugal, cuja situação era muito semelhante à da Espanha. O facto torna-se mais surpreendente porque quando trata do martírio dos católicos romanos, faz alusão à larga difusão de textos que relatam os martírios no Japão. Estes porém, estão fora do âmbito do estudo, uma vez que são considerados mártires 'estrangeiros' embora sejam na maioria europeus, e entre estes, portugueses. Naturalmente compreendemos que não façam parte do objecto do estudo porque estes martírios ocorrem em contexto religioso completamente diferente, não entre grupos cristãos divididos e, de resto, não se passam na Europa.
De qualquer modo, este estudo faz-nos pensar como seria interessante considerar a influência que terão tido esses martírios de europeus fora da Europa, tão divulgados nos seus países de origem e não só, no desenrolar do nascimento da Europa Moderna. Outra exclusão que o autor não justifica é, neste mesmo grupo dos católicos romanos, as vítimas da ocupação russa ortodoxa da Lituânia e da Polónia, por exemplo o mártir jesuíta St.0 André Bobola (f 1657).
O estudo que Brad Gregory faz é bastante interessante, não só pelo facto de ser um estudo comparativo do martírio 'intra-cristão', entre mártires católicos, protestantes e anabaptistas, mas também porque nos procura fornecer as diferentes perspectivas do mesmo acontecimento: a argumentação das autoridades que condenam e executam, as motivações que 'sustentam' o mártir e a sua atitude diante da própria morte, o vivo interesse em perpetuar a memória dos mártires, por parte dos que escreveram sobre o martírio. O autor procura reconstruir essa multifacetada experiência humana, pois, como ele próprio afirma no primeiro capítulo em que introduz o leitor na problemática, nas razões e objectivos do seu estudo, nessa reconstrução do passado "we might
even gain insight into some of the differences that divide our own world. "
Outro aspecto interessante é o facto de o livro constituir um estudo amplo e simultaneamente bem documentado, graças ao vasto leque de fontes consultadas pelo autor. Elas são, não apenas textuais, entre martirológios, registos dos autos judiciais, tratados de devoção e tratados teológicos, panegíricos, poemas, sermões, correspondência, mas também fontes iconográficas.
Do nosso ponto de vista torna-se interessante analisar o martírio nesta perspectiva 'intra-cristã' em que os que matam e os que morrem partilham muitas vezes não
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só a cultura, mas também convicções religiosas fundamentais. Na Europa dos séc. XVI e XVII o 'mundo' que se opõe ao mártir não é verdadeiramente um 'outro' desconhecido, antes é alguém que se conhece, com quem se partilha uma história. A verdade é que a natureza fundamental, do ponto de vista religioso, do que se partilhava, influenciou o carácter e a intensidade das divergências doutrinais. Além disso, estas divergências saíram reforçadas com os martírios que as 'selaram' com sangue: "With every martyr's death, chances for reconciliation diminished, "(p. 345). Gregory aponta para o martírio e para a controvérsia sobre o reconhecimento dos verdadeiros e falsos mártires, como algo que contribuiu grandemente para reforçar o confessiona-lismo de cada grupo.
Em jeito de conclusão, Brad Gregory afirma que o cenário de pluralismo religioso que nos ficou do séc. XVI, numa Europa de confissões religiosas irreconciliáveis, foi solo fértil para o nascimento do relativismo filosófico, do cepticismo e do pensamento político secular, foi o que tornou a dimensão religiosa irrelevante, face às preocupações seculares da idade moderna. Uma vez que parecia impossível uma coexistência pacífica entre os cristãos europeus, só os valores não religiosos poderiam constituir a base da estabilidade social. Os homens poderiam acreditar, ou não acreditar, ou inclusive lutar contra os que acreditavam pois a religião era fonte de desentendimento.
Se, como diz o autor, seria um exagero atribuir à irresolução da questão religiosa no início da modernidade, o nascimento do iluminismo, a sua influência no trajecto do pensamento moderno é inegável.
Traduzindo a sua ideia para uma imagem comum, a modernidade procurou libertar-se da religião como de algo que se tornava incómodo, como quem arranca um dente que dói. Por ironia, o martírio (entre cristãos, acrescentamos nós) acabou por desempenhar um papel influente neste fenómeno. Reforçando com a sua morte a irredutibiiídade das suas confissões religiosas, os mártires, dando um valor incomensurável ao religioso e ao espiritual, contribuíram para pôr em questão o valor da religião, e para a sua relativização face às preocupações do Estado Moderno que se tornou mais poderoso que nunca. E Brad Gregory remata: o ateísmo que daqui nasceu, afirmou-se de tal modo que cepticismo e agnosticismo se confundem com neutralidade. Esses mártires do início da Europa moderna jamais poderiam imaginai- o futuro que ajudaram a construir. "Institutionally and intellectually, our world is one that
committed early modern Christians scarcely could have imagined. I am certain they
would not have wanted to live in it. "
Carlota Miranda Urbano