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Reconhecimento de canções por crianças de quatro a cinco anos de idade: palavra ou melodia? Por Helena Rodrigues (1) & Paulo Ferreira Rodrigues (2) Cantar é um dos comportamentos musicais mais observados em crianças de diferentes faixas etárias. É também uma actividade com grande relevância quer na comunicação intuitiva entre o adulto e a criança quer na prática educativa em contextos formais. Pelas suas características estruturais e expressivas, a canção oferece inúmeras possibilidades para o estudo da interligação entre os processamentos musical e linguístico. Sabemos que o texto de uma canção exerce um forte poder de atracção sobre a criança em idade pré-escolar. Numa fase em que está muito desperta para a descoberta e exploração de capacidades linguísticas, ouvir uma história ou brincar com palavras que rimam adquire amplitudes diversas consoante se utilize a voz falada ou a voz cantada. Sendo a criança sensível à palavra cantada, envolvendo-se que na escuta quer na produção musical, poderemos questionar-nos sobre o “papel” desempenhado pela melodia no processamento do pensamento musical da criança quando produzida em simultâneo com a palavra. Como é que a criança se relaciona com as palavras e a melodia de uma canção? Em investigações preliminares, Rodrigues (1997) apresentou pares de fragmentos rítmicos, com a mesma estrutura rítmica mas com timbres diferentes, a crianças de seis e sete anos, pedindo-lhes para os compararem. Os exemplos incluíam pares de estímulos rítmicos em que um fragmento rítmico era percutido no tampo de uma mesa, sucedendo-se depois esse mesmo fragmento rítmico vocalizado numa determinada sílaba (por ex. em “papapá”). Apresentavam-se também pares de estímulos rítmicos em que o mesmo fragmento rítmico era vocalizado primeiro numa determinada sílaba (por ex. em “papapá”), sendo depois vocalizado noutra (por ex. em “téteté”). Para cada situação, pedia-se às crianças para compararem os dois fragmentos do par apresentado, dizendo se eram “iguais” ou “diferentes”. Caso as crianças optassem pela resposta “são diferentes”, pedia-se-lhes para dizerem se algo “permanecia igual”. Algumas crianças, perante um par de fragmentos rítmicos, em que um era executado em percussão e o outro era vocalizado com uma sílaba (por ex. em “papapá”), diziam tratar- se da “mesma música”. No entanto, quando esse mesmo par de fragmentos rítmicos era apresentado em duas sílabas diferentes (por ex. em “papapá” e “tititi”), diziam tratar-se 1

Reconhecimento de canções por crianças de quatro a cinco anos de idade- palavra ou melodia?

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Educação Musical

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  • Reconhecimento de canes por crianas de quatro a cinco anos de idade: palavra ou

    melodia?

    Por Helena Rodrigues (1) & Paulo Ferreira Rodrigues (2)

    Cantar um dos comportamentos musicais mais observados em crianas de diferentes

    faixas etrias. tambm uma actividade com grande relevncia quer na comunicao

    intuitiva entre o adulto e a criana quer na prtica educativa em contextos formais. Pelas

    suas caractersticas estruturais e expressivas, a cano oferece inmeras possibilidades

    para o estudo da interligao entre os processamentos musical e lingustico.

    Sabemos que o texto de uma cano exerce um forte poder de atraco sobre a criana

    em idade pr-escolar. Numa fase em que est muito desperta para a descoberta e

    explorao de capacidades lingusticas, ouvir uma histria ou brincar com palavras que

    rimam adquire amplitudes diversas consoante se utilize a voz falada ou a voz cantada.

    Sendo a criana sensvel palavra cantada, envolvendo-se que na escuta quer na

    produo musical, poderemos questionar-nos sobre o papel desempenhado pela

    melodia no processamento do pensamento musical da criana quando produzida em

    simultneo com a palavra. Como que a criana se relaciona com as palavras e a

    melodia de uma cano?

    Em investigaes preliminares, Rodrigues (1997) apresentou pares de fragmentos

    rtmicos, com a mesma estrutura rtmica mas com timbres diferentes, a crianas de seis

    e sete anos, pedindo-lhes para os compararem. Os exemplos incluam pares de

    estmulos rtmicos em que um fragmento rtmico era percutido no tampo de uma mesa,

    sucedendo-se depois esse mesmo fragmento rtmico vocalizado numa determinada

    slaba (por ex. em papap). Apresentavam-se tambm pares de estmulos rtmicos em

    que o mesmo fragmento rtmico era vocalizado primeiro numa determinada slaba (por

    ex. em papap), sendo depois vocalizado noutra (por ex. em ttet). Para cada

    situao, pedia-se s crianas para compararem os dois fragmentos do par apresentado,

    dizendo se eram iguais ou diferentes. Caso as crianas optassem pela resposta so

    diferentes, pedia-se-lhes para dizerem se algo permanecia igual.

    Algumas crianas, perante um par de fragmentos rtmicos, em que um era executado em

    percusso e o outro era vocalizado com uma slaba (por ex. em papap), diziam tratar-

    se da mesma msica. No entanto, quando esse mesmo par de fragmentos rtmicos era

    apresentado em duas slabas diferentes (por ex. em papap e tititi), diziam tratar-se

    1

  • de msicas diferentes. Excepcionalmente, B., uma criana de seis anos, filosofou:

    Os sons so diferentes, mas a coisa a mesma. A coisa?, perguntou-se-lhe. Sim, a

    coisa a msica, foi a resposta.

    Na altura em que foi levado a cabo este tipo de experincias procurava-se apenas

    compreender como que crianas desta faixa etria se posicionavam face aos conceitos

    de igual e de diferente, presentes no teste Intermediate Measures of Music

    Audiation de Edwin Gordon (1986) visando a adaptao deste teste para a populao

    portuguesa. Entretanto, a resposta daquela criana os sons so diferentes, mas a coisa

    a mesma; a coisa a msica remeteu-nos para o universo piagetiano, para o

    conceito de conservao.

    As questes sobre conservao piagetiana foram redimensionadas para contextos

    musicais em diversos estudos. Simons (1978), Hargreaves (1986), Zimmerman (1986,

    1993), Sloboda (1985) e Gonalves (2006) referem trabalhos de autores como Pflederer,

    Zimmerman, Sechrest, Botvin, Foley, Serafine, Tunks e Webster em que foi abordada a

    conservao de parmetros musicais como a melodia, o andamento, a tonalidade, o

    ritmo, a harmonia, a mtrica ou o timbre. Mantendo o princpio bsico das experincias

    piagetianas (Piaget & Inhelder, 1962, 1966; Piaget, 1975) em que se pretende verificar

    se a criana capaz de conservar uma propriedade invariante de um objecto quando

    ocorrem transformaes noutra propriedade desse mesmo objecto , foram efectuadas

    experincias em que se verificava se perante duas verses de um fragmento musical

    diferindo num daqueles parmetros as crianas conseguiam conservar o parmetro ou

    parmetros que se mantinham sem alterao.

    Num estudo pioneiro, Pflederer (1963, in Zimmerman, 1993) pretendeu verificar a

    conservao da melodia quando apresentada, por exemplo, em metade do andamento da

    verso inicial. Considerou que as crianas de oito anos conseguiam dar respostas

    evidenciando a conservao da melodia ao indicarem que duas verses de uma melodia

    diferindo na mtrica, na tonalidade ou no ritmo eram de algum modo o mesmo

    embora diferentes em determinados aspectos (94%). Metade das crianas de cinco

    anos revelou no possuir ainda a capacidade de estruturar um pensamento com estas

    caractersticas.

    No entanto, a maioria dos investigadores privilegiou grupos de crianas com idades

    superiores a seis anos. Por outro lado, no so referidos estudos no mbito da

    conservao musical manipulando as palavras de uma cano (vulgo a letra, termo

    este que usaremos tambm neste estudo).

    2

  • Pode questionar-se se o conceito de conservao pode ser redimensionado para o

    contexto musical. Alguns aspectos crticos so apontados por Hargreaves (1986) e por

    Sloboda (1985) sobre estudos de conservao musical, nomeadamente: (1)

    comparativamente aos estudos de Piaget, as pesquisas realizadas sobre conservao

    musical diferem no sentido em que a criana no pode observar as transformaes da

    melodia nem ter a certeza que a segunda verso deriva da primeira, uma vez que a tarefa

    musical decorre numa dimenso temporal (nas tarefas de Piaget, de dimenso espacial,

    a criana via sua frente a transformao contnua dos materiais enquanto era

    questionada sobre os seus efeitos); (2), assim, nos estudos de conservao musical no

    existe a possibilidade de reversibilidade do fenmeno musical, ou seja, o retorno sua

    verso original, pelo facto de cada momento musical surgir isolado dos precedentes; (3)

    a terminologia utilizada, assim como a estrutura das perguntas, podem determinar as

    respostas; e (4) os resultados dos estudos devem ser tambm considerados em funo

    de, por exemplo, diferentes nveis de desenvolvimento da memria, da concentrao, da

    capacidade de percepo e da expresso verbal.

    Em suma, o facto de a msica ser um acontecimento que se desenrola no tempo, no

    permite que se estabeleam comparaes entre objectos musicais simultaneamente. Isto

    , aspectos ligados memria podem estar a interferir de modo diverso do que sucede

    nas provas piagetianas. Assim, se por um lado a expresso de B. (o som diferente,

    mas a coisa a mesma) fez ressoar uma situao de tipo piagetiano, levando-nos a

    questionar a capacidade da criana em conservar o ritmo de um fragmento musical

    perante variaes na letra ou timbre desse fragmento, podemos alternativamente

    equacionar as nossas observaes no mbito do estudo da percepo e da categorizao

    da informao musical.

    Por outro lado, importa recordar que, segundo os estdios de Piaget, o pensamento pr-

    operacional utilizado pelas crianas at cerca dos sete/oito anos caracteriza-se pela

    tendncia em centrar a ateno exclusivamente em partes isoladas ou pores limitadas

    do estmulo que, de alguma forma, se salientem ou tenham interesse particular para a

    criana, excluindo a informao restante. Considera-se, assim, a relevncia do processo

    de identificao de invariantes qualitativas a que Piaget chama identidade qualitativa

    (uma dissociao entre as qualidades permanentes e as qualidades variveis). A

    capacidade para descentrar ou considerar diversas propriedades simultneas de um

    estmulo poder constituir, ento, uma importante competncia perceptiva e

    discriminativa no processo de desenvolvimento musical.

    3

  • Este estudo foi desenhado com o objectivo de perceber se a utilizao de palavras numa

    melodia cantada interfere no reconhecimento dessa melodia e de que modo que

    palavras e melodia interferem no reconhecimento de uma dada cano. Concretamente,

    procurou-se verificar se o reconhecimento de uma melodia afectado pelo facto de essa

    melodia ser apresentada com palavras ou sem palavras. Procurou-se ainda verificar se,

    para a identificao de uma cano, a criana se baseava na letra ou na melodia. Ou

    seja, independentemente da referncia conservao, centramo-nos na descrio de

    experincias em que manipulmos as variveis melodia e letra de canes apresentadas

    a crianas de quatro e cinco anos de idade.

    O estudo deste problema lana pistas relevantes para o conhecimento do pensamento da

    criana e abre portas para questes acerca das relaes entre melodia e linguagem

    verbal, quer no mbito da investigao sobre o desenvolvimento psicolgico na infncia

    quer no mbito da pedagogia musical.

    Mtodo

    Participantes

    Participaram neste estudo 31 crianas com idades compreendidas entre os quatro anos

    (8 rapazes e 8 raparigas) e os cinco anos de idade (8 raparigas e 7 rapazes). Estas

    crianas frequentavam um jardim-de-infncia em Lisboa e tinham aulas de expresso

    musical no seu plano curricular com um professor especialista, realizando com

    regularidade actividades estruturadas de canto e de audio musical.

    As crianas estavam divididas em dois grupos homogneos (a sala dos 4 anos e a

    sala dos 5 anos), com os quais foram replicados os mesmos procedimentos de

    investigao.

    Materiais

    Foram utilizadas duas melodias e duas canes criadas especificamente para este estudo

    como se pode verificar, a cano do co foi criada a partir da melodia 1 e a cano

    do pato foi criada a partir da melodia 2 que abaixo se transcrevem:

    Melodia 1

    4

  • Melodia 2

    Cano 1. Co

    Cano 2. Pato

    Para as respostas das crianas foram usados cartes coloridos e cartes com imagens em

    associao com as melodias e as canes.

    Para a recolha das respostas das crianas foi utilizado um conjunto de 31 envelopes e

    um mesmo nmero de cartes (coloridos ou com imagens, de acordo com o

    procedimento) em associao com as melodias e as canes.

    5

  • Procedimento

    Este estudo desenrolou-se em duas fases, cada uma das quais constituda por um

    perodo de instruo (em que as crianas escutavam o professor a cantar) e um perodo

    de testagem do reconhecimento das melodias ouvidas durante o perodo de instruo

    (em que as crianas participavam sob a forma de jogo).

    Primeira Fase

    Na primeira fase, sujeitou-se as crianas a um perodo de instruo em que foram

    expostas audio da melodia 1 e da melodia 2. Posteriormente, fez-se a testagem do

    reconhecimento da melodia:

    a) nas mesmas circunstncias da instruo, isto , entoando a melodia 1 e a melodia 2

    em lailailai;

    b) introduzindo palavras, isto , cantando a cano do co e a cano do pato.

    Durante o perodo de instruo, o professor de Msica explicou s crianas que iriam

    ouvir "duas msicas" (melodia 1 e melodia 2) que designou por msica amarela e por

    msica azul. Ao longo de trs sesses, no incio, o professor entoou cada uma das

    melodias usando o vocbulo lailailai (ou seja, no usou palavras), pela seguinte

    ordem: 1, 1, 2, 2, 1 e 2. Tendo em ateno a faixa etria destas crianas e pretendendo

    envolv-las activamente na audio das melodias, o professor recorreu a estratgias

    ldicas semelhantes s que costumava habitualmente usar nas suas aulas. As crianas

    estavam sentadas no cho, em crculo, cada uma possuindo dois cartes (um amarelo e

    outro azul) e iam seguindo as indicaes do professor. Este pediu s crianas que,

    enquanto entoava a melodia 1, movessem livremente o carto amarelo; e que, enquanto

    entoava a melodia 2, movessem livremente o carto azul. Assim, a melodia 1 passou a

    ser designada por msica amarela e a melodia 2 por msica azul.

    Na quarta sesso, passou-se ao perodo de testagem, tendo o professor pretendido

    verificar se as crianas reconheciam as melodias 1 e 2, na mesma condio em que

    foram escutadas durante o perodo de instruo (isto , entoando-as em lailailai).

    Depois, o professor cantou a cano do co e a cano do pato procurando verificar se

    nesta nova condio, em que eram utilizadas palavras, as crianas continuavam a

    identificar as melodias.

    Para isso, instruiu as crianas no sentido de, aps ouvirem cada uma das melodias j

    suas conhecidas, colocarem no envelope o carto com a cor correspondente melodia

    6

  • entoada (amarelo ou azul). No caso de no saberem a resposta deveriam colocar um

    carto branco no envelope.

    Visando assegurar a mxima individualidade e exactido nas respostas, e seguindo o

    contexto ldico criado, o professor explicou s crianas que iam fazer uma viagem de

    comboio, sentando-as numa fila de cadeiras. O jogo consistia em cada passageiro

    ouvir a melodia e colocar dentro do envelope o respectivo bilhete (o carto colorido

    associado a cada melodia), o que deveria ser feito em segredo. Aps ter entoado cada

    melodia, o professor verificava a resposta dada por cada criana, escrevendo o resultado

    obtido nos respectivos envelopes.

    Este jogo foi repetido quatro vezes, tendo os exemplos musicais sido apresentados pela

    seguinte ordem: melodia 1, melodia 2, cano do co e cano do pato. Nesta primeira

    testagem pretendeu-se, pois, verificar se as crianas, tendo identificado as melodias 1 e

    2, continuavam a reconhec-las quando as mesmas eram apresentadas com palavras.

    Segunda Fase

    Na segunda fase, as crianas foram expostas a um perodo de instruo em que lhes era

    dado a ouvir a cano do co e a cano do pato. Posteriormente fez-se a testagem do

    reconhecimento:

    a) retirando as palavras, ou seja, reapresentando a melodia 1 e a melodia 2;

    b) trocando as letras das canes entre si, conforme abaixo se descreve:

    Melodia 1 com letra do pato

    Melodia 2 com letra do co

    7

  • O professor seguiu procedimentos semelhantes aos da fase anterior: ao longo de trs

    sesses subsequentes explicou s crianas que iriam ouvir a msica do co e a

    msica do pato ao mesmo tempo que fazia corresponder cano do co e cano

    do pato um carto com a imagem do respectivo animal. Ao longo destas sesses foi

    possvel verificar que no havia dvidas por parte das crianas em associar a imagem

    respectiva cano, na sua forma original.

    Depois, numa quarta sesso, passou-se ao perodo de testagem, tendo o professor

    pretendido verificar:

    a) se as crianas reconheciam a cano do co e a cano do pato, quando voltava a

    ento-las sem palavras (melodias 1 e 2, novamente entoadas em lailailai);

    b) se as crianas identificavam as canes em funo da melodia ou em funo da letra

    quando as canes eram cantadas com as letras trocadas entre si (cano do co com a

    letra do pato e vice-versa).

    Ou seja, procuraram-se dados que indicassem, por um lado, se o reconhecimento da

    melodia de uma cano era afectado pela ausncia da letra da cano e, por outro lado,

    se a identificao de uma cano se fazia em funo do reconhecimento da melodia ou

    da letra.

    Mantendo o contexto ldico criado na fase anterior, as crianas sentaram-se em

    diferentes locais da sala, tendo-se-lhes sugerido que a moravam os animais das duas

    canes conhecidas, os quais necessitavam de ajuda para regressar a casa. Nesse

    sentido, o professor instruiu as crianas para ouvirem cada uma das canes e para

    colocarem no envelope o carto com a imagem correspondente ao animal associado

    cano ouvida. No caso de no saberem a resposta deveriam colocar o carto branco no

    envelope.

    Visando certificar-se da fiabilidade das informaes recolhidas, o professor apresentou

    duas vezes seguidas a melodia 2 (em princpio, se as crianas estivessem a responder

    sem ser ao acaso repetiriam a mesma resposta) e, depois, uma vez a melodia 1. De

    8

  • seguida, procedeu experincia de apresentar as canes com troca de letras. De forma

    a aumentar a fiabilidade do procedimento de resposta, nesta ltima situao o professor

    deu tambm a hiptese de as crianas no colocarem nenhuma imagem no envelope

    dando a seguinte instruo: "s colocam no envelope se for a msica do co ou a

    msica do pato que conhecemos da sesso; se vocs acharem que no igual, msica

    do co ou msica do pato que ouvimos nas aulas ento no pem nada no

    envelope.

    Apresentao dos Resultados

    Na primeira fase do estudo, 27 crianas, do total de 31 crianas, reconheceram a

    melodia 1 e a melodia 2 na situao em que a melodia era apresentada tal e qual como

    havia sido ensinada (isto , sem palavras).

    A Figura 1 apresenta os resultados obtidos na primeira fase do estudo na situao em

    que se testou se as crianas apresentavam o carto amarelo e o carto azul quando

    ouviam as melodias, comportamento esse indicativo de que estariam a reconhecer a

    melodia que durante o perodo de instruo foi associada ao respectivo carto.

    9

  • Na primeira fase do estudo verificou-se ainda que as crianas alteraram a sua opo de

    resposta na situao seguinte, em que se testou se as crianas continuavam a apresentar

    o carto amarelo e o carto azul quando as respectivas melodias eram apresentadas

    com palavras (a melodia amarela cantada com a letra do co; a melodia azul

    cantada com a letra do pato).

    A Figura 2 apresenta os resultados obtidos nesta situao. Quando as melodias foram

    apresentadas com palavras (melodia 1. Co e melodia 2. Pato) , verificou-se que 26 e

    24 crianas, para as melodias 1. Co e 2. Pato, respectivamente, optaram pela hiptese

    de resposta "carto branco", indicativa (segundo as instrues dadas) de que no sabiam

    que resposta dar. Para a melodia 2. Pato regista-se que 2 crianas no deram nenhuma

    resposta. Finalmente, assinale-se que uma criana optou por ter colocado no envelope

    dois cartes: o respeitante melodia em causa (melodia 1.) e o carto branco.

    Na segunda fase do estudo, na situao em que se procurou testar se as crianas

    reconheciam as melodias quando lhes eram retiradas as palavras depois de terem tido

    um perodo de instruo em que as aprendiam com palavras (cano 1. Co e cano 2.

    Pato) verificou-se que um grande nmero de crianas optou pelo carto que

    10

  • identificava a respectiva melodia. A Figura 3 mostra que 24 crianas optaram pelo

    carto pato na primeira apresentao da melodia correspondente cano 2. Pato e

    que 27 crianas optaram pelo carto pato na reapresentao da melodia (reteste),

    revelando estabilidade no seu comportamento (o que indicia que no estavam a

    responder ao acaso). Mostra ainda que 28 crianas optaram pelo carto co na

    apresentao da melodia correspondente cano 1. Co.

    Na segunda situao da segunda fase do estudo, em que se apresentaram as canes

    com as letras trocadas, verifica-se que a maior parte das crianas optou pelo carto

    correspondente s palavras da cano.

    A Figura 4 mostra que, quando apresentada a melodia 1. Pato, 22 crianas escolheram

    a hiptese de resposta "pato", enquanto que 5 optaram por no colocar nenhum carto

    no envelope, 2 colocaram o carto branco e 2 colocaram ambos os cartes do Co e

    do Pato. Para a melodia 2. Co, 15 crianas optaram pela resposta "Co", 13 crianas

    optaram por no colocar nenhum carto no envelope (estas respostas foram observadas

    nas crianas com cinco anos) e 3 crianas optaram pela resposta "Pato" (estas respostas

    foram observadas nas crianas com quatro anos). Verificou-se, na altura, que algumas

    11

  • crianas reagiram com estranheza nova situao, fazendo comentrios como mudou o

    ritmo".

    Discusso dos resultados

    Os resultados indicam que:

    a) as crianas observadas reconheceram facilmente uma melodia sem palavras

    depois de a terem ouvido num perodo de exposio que ocorreu ao longo de

    3 sesses;

    b) quando questionadas se a melodia apresentada com palavras correspondia

    melodia que tinham ouvido durante as sesses as crianas optaram pela

    resposta carto branco, indicativa de que no sabiam a resposta;

    c) depois de essa mesma melodia passar a ser apresentada com palavras as

    crianas continuaram a reconhec-la quando, novamente, as palavras foram

    retiradas (note-se, no entanto e isto constitui uma limitao metodolgica

    do presente trabalho , que apesar de na segunda fase as crianas terem sido

    12

  • expostas apresentao das melodias com palavras, as mesmas j tinham sido

    apresentadas sem palavras na primeira fase do estudo);

    d) quando se trocaram os textos dessas melodias e se pediu para as crianas

    compararem as canes entre si, a maior parte das crianas julgou o

    reconhecimento da canco em funo das palavras e no da melodia,

    enquanto que um outro grupo de crianas, mais reduzido, optou por uma

    resposta indicativa de que no se tratava da cano escutada durante o

    perodo de instruo.

    Note-se, ainda, neste ltimo caso, que h excepes aos dois tipos de comportamentos

    tpicos. Por exemplo, logo na primeira fase do estudo quando se apresentou com

    palavras a melodia inicialmente exposta sem palavras, uma das crianas optou por

    colocar no envelope dois cartes: o respeitante melodia em causa e o carto branco.

    Interpretmos este comportamento como a sinalizao, por um lado, de que se tratava

    de uma situao diferente daquela a que tinha sido exposta mas tambm de que se

    tratava da mesma melodia.

    Se interpretarmos estes dados como um problema de conservao, dir-se- que numa

    situao de teste de conservao em que se manipulam as variveis palavra e melodia,

    as crianas parecem "conservar" melhor a palavra que a melodia. O facto de inserir ou

    retirar palavras a uma melodia entoada parece afectar a conservao da melodia das

    mesmas.

    Uma interpretao possvel que a presena de palavras vai direccionar a ateno da

    criana para este elemento e que, mais do que uma questo centrada na capacidade da

    criana reconhecer ou no a melodia, se trata de uma questo cultural uma cano, ou

    um dado fragmento musical, so referenciados no quotidiano por um nome. Neste

    estudo, o problema da "conservao" apareceria, assim, mesclado com um problema de

    "conceito" da informao (o que constitui a "msica do Pato" ou a "msica do Co": a

    melodia ou as palavras?). Ou seja, de certa forma a identidade de uma cano

    definida no imaginrio da criana pelas suas palavras e no pela sua melodia.

    Assim, ser possvel argumentar que se est perante um processo de categorizao da

    informao e no de um problema de conservao. Isto , so as palavras que

    determinam a catalogao e denominao da melodia: duas melodias diferentes

    executadas com o mesmo texto passam a ser "a mesma coisa"; uma mesma melodia

    executada com textos diferentes passa a ser "duas coisas diferentes". Indirectamente, o

    problema da conservao estar associado s noes de igual e de diferente (ou,

    13

  • talvez melhor, de no igual) que constituem noes importantes na aprendizagem. a

    partir destas noes que se podem estabelecer comparaes e categorizaes.

    Em alternativa, poder-se- argumentar que estamos perante uma questo metodolgica:

    as crianas podero compreender que so melodias diferentes mas no dispem ainda

    das competncias de verbalizao que permitiram a B. (referido no incio deste

    trabalho) explicar que eram "sons diferentes" apesar de se tratar da "mesma coisa".

    No obstante, na situao a que todos os sujeitos foram submetidos, no se pode

    negligenciar que se obteve trs grandes tipos de resposta:

    a) crianas que se centraram predominantemente nas palavras em vez da

    melodia;

    b) crianas que se mostraram confusas perante as experincias de troca de

    palavras entre as melodias/canes;

    c) crianas que conseguiram lidar com ambas as variveis (palavra e melodia) de

    forma independente, considerando as propriedades invariantes de cada uma.

    Ser que retomando o tpico da conservao piagetiana, se poderia descrever esses trs

    tipos de resposta em termos de: a) inexistncia de conservao da melodia; b)

    comportamentos de transio; c) existncia da conservao da melodia?

    Dito de outro modo: a capacidade de lidar com a transformao de uma cano a partir

    das variveis melodia e palavras configura, efectivamente, um problema de conservao

    piagetiana redimensionado para o contexto musical ou ser que deveramos antes

    analisar o conjunto de dados obtidos em termos de memorizao e de armazenamento

    de informao?

    Poder tambm haver limitaes de carcter metodolgico: a mesma criana, perante

    tarefas similares, quando colocada perante dispositivos de observao ou de dispositivos

    experimentais diferentes poder apresentar diferentes respostas, revelando formas de

    funcionamento e de pensamento inconsistentes.

    Poderemos tambm interrogar-nos se no existiro diferenas individuais no que toca ao

    processamento da informao lingustica e da informao musical. Poder haver

    crianas que, em determinadas situaes, recorrem mais ao canal de informao

    musical, enquanto outras apresentam estruturas de pensamento mais direccionadas para

    o canal de informao lingustico?

    A este respeito, cabe referir que, em observaes informais que temos efectuado quer

    com crianas com idades compreendidas entre os dois e os trs anos de idade quer com

    14

  • adultos submetidos ao mesmo tipo de experincias que as aqui relatadas temos

    encontrado dois plos opostos de comportamento: sujeitos que se centram nas palavras

    e para os quais as diferenas meldicas parecem ser irrelevantes e sujeitos muito

    exigentes no que toca associao de uma determinada letra a uma determinada

    melodia.

    Esta discrepncia de comportamentos, notada quer na infncia como na idade adulta,

    dever-se- sobretudo a diferenas individuais? Isto , as crianas que exibem

    privilegiadamente um determinado tipo de comportamento em detrimento do outro

    sero mais ou menos "musicais" ou mais ou menos "lingusticas"? Tratar-se- de uma

    questo de desenvolvimento musical? A diferena de comportamentos evidenciados tem

    reflexos ao nvel da compreenso e da performance musical? Ou pura e simplesmente

    de mbito cognitivo? De que forma palavra e melodia interferem nas estratgias de

    memorizao? De que forma que palavra e melodia se inter-relacionam ao longo do

    desenvolvimento individual; isto , o enfoque sobre a palavra ou a melodia altera-se ao

    longo da trajectria de desenvolvimento individual? Estas so algumas das questes a

    que ser necessrio responder no futuro, para alm de se prosseguir no sentido da

    replicao e aperfeioamento metodolgico do estudo aqui relatado.

    Perante os factos relatados, pode-se perguntar se, na presena de duas linguagens

    (musical e verbal), a criana privilegia aquela cujo cdigo melhor domina. Mas pode

    ainda questionar-se se as letras e as melodias, em si prprias, no tm tambm a sua

    "autonomia ontolgica". Isto , h letras ou melodias que so melhor reconhecidas ou

    "conservadas" que outras? H letras que so conservadas independentemente das

    melodias ou h melodias que as "conservam" melhor?

    Finalmente, uma reflexo de carcter epistemolgico: pretender investigar se existe

    "conservao da melodia" poder revelar um enviesamento por parte do investigador:

    porque ser que, alternativamente, no equacionmos ns o problema em termos de

    conservao da letra?

    Concluses

    Em face dos dados observados pode concluir-se que a utilizao de palavras numa

    melodia cantada interfere no reconhecimento dessa mesma melodia. O desenho do

    estudo no permite concluir, no entanto, se uma melodia apresentada desde o incio com

    palavras to facilmente reconhecida quando "despida" de palavras como outra

    apresentada sem palavras desde o incio da aprendizagem.

    15

  • Os dois momentos de testagem efectuados parecem indicar a existncia de trs tipos de

    comportamento associados s experincias efectuadas para o reconhecimento de uma

    cano: crianas que centram a sua ateno nas palavras (que identificam uma cano

    pelas suas palavras), crianas que centram a sua ateno na melodia (que identificam

    uma cano pela sua melodia) e crianas que exibem comportamentos intermdios entre

    estas duas situaes.

    Recorde-se que Gordon (2000) na sua teoria de aprendizagem musical tem defendido a

    necessidade de incluir canes sem palavras no ensino da msica, pois esta uma

    situao que permite que a ateno se concentre em caractersticas intrinsecamente

    musicais. Dando continuidade ao estudo aqui relatado, ser importante desenvolver

    estudos que procurem perceber que implicaes tem ensinar melodias com letra e

    melodias sem letra para diferentes situaes de desempenho musical e para o

    desenvolvimento de capacidades musicais.

    Tentar estabelecer relaes entre a natureza do pensamento musical da criana e as

    estratgias de ensino-aprendizagem, contribuir para que a prtica pedaggica tenha

    uma sustentao emprica com base na Psicologia e na Psicologia da Msica.

    Referncias bibliogrficas

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    os seis e os dez anos de idade manipulando as variveis texto e melodia. Tese de

    Mestrado apresentado ao Instituto de Estudos da Criana da Universidade do

    Minho.

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    16

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    the Council for Research in Music Education, 116, 1-21.

    Agradecimentos

    s crianas, educadoras de infncia e auxiliares de aco educativa que participaram

    neste estudo.

    A Paulo Maria Rodrigues pela criao dos materiais musicais.

    A Orlindo Gouveia Pereira, a Ana Mono e a Maria Manuel Vidal pelas sugestes

    relativas redaco deste artigo.

    (1) - Investigadora-responsvel do Projecto de Investigao Desenvolvimento Musical

    na Infncia e Primeira Infncia (PTDC/EAT/68361/2006), financiado pela Fundao

    para a Cincia e Tecnologia ([email protected]). Professora-auxiliar da

    FCSH-UNL.

    (2) - Membro do Projecto de Investigao Desenvolvimento Musical na Infncia e

    Primeira Infncia (PTDC/EAT/68361/2006), financiado pela Fundao para a Cincia e

    Tecnologia ([email protected]). Professor Adjunto da ESE-IPL.

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    mailto:[email protected]:[email protected]