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Recuperando a memória historiográfica dos moradores: escola e comunidade trabalham juntos na construção da cidadania Adriano de Souza Viana* Izabella Costa Santiago** 1 Resumo O presente trabalho, fruto de uma pesquisa que está em construção, pretende expor a experiência pedagógica desenvolvida em uma escola municipal de ensino fundamental situada em um bairro do município de Vitória, ES. Tal experiência busca levar os estudantes a fazer uma leitura histórica dos espaços que compõem o bairro, como escadarias, becos, vielas, etc. propiciando um sentimento de pertença ao local onde residem e uma conscientização crítica sobre a realidade socioambiental onde estão inseridos. Trata-se de relatar um estudo de caso de uma ação educacional, que a partir da perspectiva da Pedagogia Histórico-Crítica de Demerval Saviani, também conhecida como pedagogia dialética, que permitirá articular o trabalho pedagógico com as relações sociais. Esse pensador será um dos referenciais teóricos da pesquisa em questão. Busca sistematizar a historicidade das narrativas de estudantes que são moradores do bairro e posteriormente subsidiar uma reflexão mais aprofundada sobre os elementos que compõem a vida social e os impactos ambientais que a relação do ser humano com a natureza causa nos espaços da cidade. Os estudantes produzirão relatos para recuperar memórias sobre os ambientes que formam o bairro. Ouvirão o relato dos moradores mais antigos do bairro registrando-os e transformando-os em textos que serão produzidos a partir de oficinas que serão vivenciadas na escola. Tais produções serão devolvidas à comunidade através de exposição e relatos, permitindo que os moradores e estudantes envolvidos se apropriem positivamente de suas histórias, cultura, e ambiente. Os dados construídos serão analisados a partir do método dialético hermenêutico. A investigação é importante na medida em que a amplia do grau de pertencimento e a noção de cidadania dos estudantes envolvidos no projeto. Com isso, pretende-se que uma compreensão de cidadania emancipatória seja desenvolvida, criticando a lógica cultural que dissemina uma “cidadania” alienada e consumista na relação com os ambientes onde se vive. Palavras-chave: Historiografia, Cidadania, pertencimento, pedagogia histórico-crítica INTRODUÇÃO Esse presente artigo nasceu dentro das pesquisas em desenvolvimento junto a uma unidade escolar municipal da cidade de Vitória, ES. Exporemos, num primeiro momento, o referencial teórico metodológico que alicerça nossa análise da atividade pedagógica realizada. Partiremos da descrição do que se compreende por Pedagogia Histórico-Crítica. Em um segundo tópico, descreveremos o processo de ação educativa utilizado para produzir 1 * Mestrando do Programa de Pós Graduação em Ensino de Humanidades do IFES, Campos Vitória, ES. ** Mestranda do Programa de Pós Graduação em Ensino de Humanidades do IFES, Campos Vitória, ES.

Recuperando a memória historiográfica dos moradores ... · Na terceira parte do livro, intitulada “Escola e Democracia II: para além da teoria da curvatura da vara”, o autor

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Recuperando a memória historiográfica dos moradores: escola e comunidade trabalham juntos na construção da cidadania

Adriano de Souza Viana*

Izabella Costa Santiago**1 Resumo O presente trabalho, fruto de uma pesquisa que está em construção, pretende expor a experiência

pedagógica desenvolvida em uma escola municipal de ensino fundamental situada em um bairro do

município de Vitória, ES. Tal experiência busca levar os estudantes a fazer uma leitura histórica dos

espaços que compõem o bairro, como escadarias, becos, vielas, etc. propiciando um sentimento de

pertença ao local onde residem e uma conscientização crítica sobre a realidade socioambiental onde

estão inseridos. Trata-se de relatar um estudo de caso de uma ação educacional, que a partir da

perspectiva da Pedagogia Histórico-Crítica de Demerval Saviani, também conhecida como pedagogia

dialética, que permitirá articular o trabalho pedagógico com as relações sociais. Esse pensador será um

dos referenciais teóricos da pesquisa em questão. Busca sistematizar a historicidade das narrativas de

estudantes que são moradores do bairro e posteriormente subsidiar uma reflexão mais aprofundada

sobre os elementos que compõem a vida social e os impactos ambientais que a relação do ser humano

com a natureza causa nos espaços da cidade. Os estudantes produzirão relatos para recuperar

memórias sobre os ambientes que formam o bairro. Ouvirão o relato dos moradores mais antigos do

bairro registrando-os e transformando-os em textos que serão produzidos a partir de oficinas que serão

vivenciadas na escola. Tais produções serão devolvidas à comunidade através de exposição e relatos,

permitindo que os moradores e estudantes envolvidos se apropriem positivamente de suas histórias,

cultura, e ambiente. Os dados construídos serão analisados a partir do método dialético hermenêutico.

A investigação é importante na medida em que a amplia do grau de pertencimento e a noção de

cidadania dos estudantes envolvidos no projeto. Com isso, pretende-se que uma compreensão de

cidadania emancipatória seja desenvolvida, criticando a lógica cultural que dissemina uma “cidadania”

alienada e consumista na relação com os ambientes onde se vive. Palavras-chave: Historiografia, Cidadania, pertencimento, pedagogia histórico-crítica

INTRODUÇÃO

Esse presente artigo nasceu dentro das pesquisas em desenvolvimento junto a uma

unidade escolar municipal da cidade de Vitória, ES. Exporemos, num primeiro momento, o

referencial teórico metodológico que alicerça nossa análise da atividade pedagógica realizada.

Partiremos da descrição do que se compreende por Pedagogia Histórico-Crítica. Em um

segundo tópico, descreveremos o processo de ação educativa utilizado para produzir

1* Mestrando do Programa de Pós Graduação em Ensino de Humanidades do IFES, Campos Vitória, ES. ** Mestranda do Programa de Pós Graduação em Ensino de Humanidades do IFES, Campos Vitória, ES.

memórias nos estudantes, e a forma como se trabalhou na produção de textos literários. E por

fim, apresentaremos uma análise dialética do conteúdo dos textos redigidos pelos estudantes.

1 A PEDAGOGIA HISTÓRICO-CRÍTICA

O referencial teórico e metodológico para a prática de ensino utilizado na análise das

atividades realizadas na recuperação da memória historiográfica dos estudantes foi a reflexão

de Demerval Saviani e seus colaboradores. Neste tópico será apresentada a origem da

Pedagogia Histórico-Crítica (PHC) e a dialética proposta nos cinco momentos para a

dinâmica do trabalho educativo.

1.1 Origem da Pedagogia Histórico-crítica

O nascimento da proposta educativa da PHC está diretamente ligado ao trabalho do

professor Demerval Saviani. No entanto, é importante fazer uma consideração destacada por

Costa e Loureiro (2015), quando falam sobre tal surgimento. Escrevendo sobre a contribuição

de Saviani eles afiançam que “sua Pedagogia Histórico-Crítica não é uma proposta educativa

formulado somente por ele, mas por um conjunto de pesquisadores que, desde fins da década

70 e começo da década de 80, dialogam acerca da realidade brasileira” (COSTA; LOUREIRO,

2015, p. 185). Portanto, a origem e consolidação da PHC estão associadas ao trabalho coletivo

de vários pesquisadores e pesquisadoras no campo da educação e ensino.

A obra que marca o início da reflexão sistematizada é o livro Escola e Democracia

(1987) de Saviani. Na terceira parte do livro, intitulada “Escola e Democracia II: para além da

teoria da curvatura da vara”, o autor descreve os cinco momentos que caracterizam a dinâmica

dialética da proposta educativa (SAVIANI, 1987, p. 79-81). Ele apresenta os cinco momentos

como uma proposta de superação dos métodos da Pedagogia Tradicional e da Pedagogia Nova.

Costa e Loureiro(2015) ao dissertarem sobre a obra Escola e Democracia afirmam que

o autor se coloca a favor de uma teoria crítica que, compreendida em seu caráter histórico,

oferece respostas à questão que ele considera central: “é possível encarar a escola como uma

realidade histórica, isto é, suscetível de ser transformada intencionalmente pela ação humana?

[...]”(COSTA; LOUREIRO, 2015, p. 185).

Na obra “Pedagogia Histórico-Crítica: primeiras aproximações” (1991), Saviani

continua desenvolvendo a base epistemológica de sua proposta educativa. Ele descreve de

maneira precisa a contribuição da tradição marxiana para seu trabalho. Ele testemunha da

seguinte maneira.

[...] o ponto que tenho trabalhado se reporta ao texto de Marx, “Método da economia política”, que está no livro Contribuição à crítica da economia política (MARX, 1973, p. 228-237). Nele explicita-se o movimento do conhecimento como a passagem do empírico ao concreto, pela mediação do abstrato. Ou a passagem da síncrise à síntese, pela mediação da análise. Procurei, de algum modo, compreender o método pedagógico com base nesses pressupostos (SAVIANI, 2011, p.120).

Dessa forma, pode-se afirmar que essa segunda obra, referente à PHC, aprofunda os

argumentos filosóficos e pedagógicos que a caracterizam. A obra amadurece a compreensão

dos processos educativos dentro da lógica dialética. Saviani cita uma definição de educação

extraída de outro livro seu intitulado Ensino público e algumas falas sobre universidade. Para

ele “o trabalho educativo é ato de produzir, direta e intencionalmente, em cada indivíduo

singular, a humanidade que é produzida histórica e coletivamente pelo conjunto dos homens”

(SAVIANI, 2011, p.120). Vê-se claramente que a intencionalidade do ato de ensinar deve ser

movida pelo desejo de transformação dos sujeitos humanos, para que esses atinjam a

plenitude de seu potencial existencial, sejam emancipados, livres, autônomos, de fato pessoas

humanas.

E por fim, para fechar este subtópico é necessário dizer que a produção coletiva mais

recente sobre essa proposta pedagógica é o livro “Pedagogia Histórico-Crítica 30 anos”,

editado após o seminário que levava o mesmo nome da obra. Esse seminário realizou-se em

2009, organizado pelo grupo de pesquisa “Estudos Marxistas em Educação”. O livro é uma

síntese do percurso teórico que PHC tem trilhado.

1.2 A dialética dos cinco momentos

A proposta da PHC, também identificada por alguns pesquisadores como “pedagogia

dialética” (NASCIMENTO, 2015, p. 30), tem seu núcleo de prática de ensino organizada no

movimento espiralado e crescente de cinco momentos. De forma sucinta, pode-se afirmar que

seus fundamentos estão fincados no arcabouço teórico filosófico do marxismo, visto que a

articulação entre os cinco momentos (prática social, problematização, instrumentalização,

catarse e prática social) ocorre de forma dialética, buscando “compreender as determinações

que se ocultam sob as aparências dos fenômenos que se manifestam empiricamente à nossa

percepção” (SAVIANI, 2015, p.36). Apresenta-se a seguir, com base em Gasparin (2012),

uma breve explanação dos cinco momentos da PHC.

O primeiro momento é a Prática social inicial. Nesta etapa, ocorre a identificação de

problemáticas sociais comuns a aluno e professor, ou seja, uma preocupação coletiva.

Também podemos entender essa etapa como uma contextualização do conteúdo. Nessa fase, o

estudante expõe o que sabe em relação àquela problemática escolhida, não sendo necessária a

vinculação com conhecimentos científicos que se relacionam.

O segundo momento é a Problematização. Etapa na qual se dá começo da

transformação do conhecimento popular em conhecimento erudito. Neste momento o aluno

identifica as questões que necessitam ser resolvidas, buscando nas disciplinas e conteúdos

escolares elementos que auxiliem no entendimento do problema. O processo de investigação

para solucionar as questões em estudo, é o caminho que predispõe o espírito do educando para

a aprendizagem significativa, uma vez que são levantadas situações-problema que estimulam

o raciocínio (GASPARIN, 2012, p. 33).

A terceira fase é a Instrumentalização. Nela, o educando é posto diante dos

conhecimentos teórico-científicos relacionados à problemática inicial com a intenção de

resolvê-la. Nessa fase, a ação educativa intencional do professor apresenta ao aluno os novos

conteúdos e conceitos de modo sistemático para promover a apropriação do conhecimento.

Essa apropriação se dá na interação social entre os sujeitos e o objeto estudado. É nesse

terceiro momento que os estudantes terão contato com o saber histórico e socialmente

produzido, o acervo cultural produzido pela humanidade, sendo capazes de, a partir dele,

transformar sua realidade.

O quarto momento da dinâmica dialética proposta na PHC é a Catarse. É a etapa da

incorporação de uma nova forma de compreensão da prática social inicial que traz “elementos

integrantes da própria vida dos alunos” (SAVIANI, 2007, p. 420). Nesse ponto, a

compreensão sincrética, permeada de variados elementos e saberes, passa a uma síntese que

visa resolver os problemas iniciais problematizados e instrumentalizados. Gasparin (2012)

afirma que a catarse é a síntese do cotidiano e do científico, do teórico e do prático, marcando

um novo posicionamento do educando em relação ao conteúdo estudado e à forma de sua

construção social na história.

Por fim, o quinto momento é o retorno à prática social, entendida como ponto de

chegada da prática educativa. Inicia-se na prática social e para ela retorna. O estudante

instrumentalizado, com a posse dos conhecimentos científicos elaborados, pode compreender

de maneira crítica a prática social, propondo transformações que solucionem o problema

inicial. Para Gasparin (2012) a aplicação do saber na realidade concreta é a expressão mais

forte da prática social final, que embora assim denominada, não significa que o processo

tenha acabado, ele continua em movimento dialético na história.

2 A PRODUÇÃO DAS MEMÓRIAS

Exposto o referencial da PHC, descreveremos o processo que mobilizou a produção

das memórias junto aos estudantes envolvidos na pesquisa. A abordagem metodológica que

será utilizada se enquadra dentro da pesquisa qualitativa tipo estudo de caso. Optamos por

essa metodologia, pois, para André (2008, p. 33) o estudo de caso permite uma visão profunda,

ampla e integrada de uma unidade social complexa, composta de múltiplas variáveis. Ela

possibilita retratar situações da vida real e iluminam a compreensão do leitor sobre o objeto

estudado. Iniciaremos relatando como se deu a participação de uma escola de ensino

fundamental do município de Vitória/ES, na 5ª edição da Olimpíada de Língua Portuguesa em

2016. E descreveremos o processo de oficinas que produziram os textos destacando os

momentos da PHC.

A escola tomou conhecimento deste concurso pelos meios de comunicação. O

interesse neste evento surgiu em função do tema proposto, e também na experiência de

produção de textos que possibilita nos estudantes a ampliação de suas competências na

linguagem oral, na leitura e na escrita, além de aprofundar o olhar sobre o lugar em que

vivem, aproximando a comunidade da escola. O tema “O lugar onde vivo” veio fortalecer um

trabalho que a escola vem realizando ao longo dos últimos anos, com o objetivo de aproximar

mais a escola e a comunidade de seus estudantes e familiares.

Inicialmente a pedagoga conversou com as professoras de língua portuguesa sobre a

participação na olimpíada. A equipe de língua portuguesa da escola se manifestou

positivamente em participar do evento. Sendo assim, foram envolvidos neste processo os

estudantes do 6º ano na categoria poema, do 8º ano na categoria memórias literárias e do 9º

ano na categoria crônica.

Para realizar este trabalho a organização da 5ª edição da Olimpíada de Língua

Portuguesa disponibilizou no site “www.escrevendoofuturo.org.br” um material de apoio para

ser utilizado em cada uma das oficinas (nas categorias: poema, memória literária, crônica) e

também diversas orientações e propostas para auxiliarem as professoras e professores durante

a caminhada. No site foram sugeridas algumas opções de trabalho bem interativas, oferecendo

autonomia para os profissionais escolherem o caminho de construção.

A participação da escola na Olimpíada da Língua Portuguesa baseou-se no princípio

básico da formação de novos leitores, e também na oportunidade de falar sobre o lugar onde

vivem. Para isso, cada um dos gêneros escolhidos (poemas, memórias literárias e crônicas)

foram explorados por meio da leitura de diversos textos com diferentes abordagens, dentro de

cada um dos gêneros. Cada oficina contava com duas horas de duração. Algumas adaptações

aconteceram durante as oficinas propostas pela organização das Olimpíadas, sem prejuízo

para o desenvolvimento dos trabalhos.

Para dar início ao processo as professoras conversavam com os estudantes sobre a

proposta de trabalho em oficinas, e que ao final do processo eles produziriam poemas,

memórias ou crônicas que deveriam contar sobre o lugar onde vivem. Em outras palavras, as

professoras partiram da Prática Social inicial, nesse caso, a visão que cada estudante tem de

seu bairro. Ao término das oficinas foi escolhido um texto de cada gênero literário da escola

que participou da etapa municipal. Os escolhidos seguem para a etapa estadual e finalmente

para a etapa federal. Cada uma das etapas são classificatórias. Os 500 estudantes

semifinalistas e seus professores serão premiados com medalha, livros e participação em

oficinas culturais e de formação, seguindo para a grande final.

As professoras envolvidas no processo relataram que não foi fácil esta caminhada.

Mas por outro lado, os estudantes se surpreenderam com as situações que passaram a ser

relatadas em cada uma das oficinas/gêneros.

O grupo que trabalhou com produção das memórias viabilizou o contato dos

estudantes com as pessoas mais antigas do bairro para realizar a produção dos textos.

Conversar com seus familiares ou com o vizinho mais antigo levou os estudantes a ampliarem

seu conhecimento sobre as suas histórias pessoais e do lugar onde eles vivem.

Nas oficinas de crônica os estudantes passaram a trazer situações que passavam

desapercebidas no seu dia a dia. Perceberam que o local onde vivem está cheio de vida. Vidas

que criam muitas histórias e fatos que podem ser transcritos em textos literários.

As oficinas de poesia foram realizadas com os estudantes do 6º ano, os mais novos do

grupo. Foram orientados a conversarem com seus familiares e seus vizinhos, e também a

perceberem o que chamava a atenção no lugar onde vivem. Percebe-se em seus textos

poéticos os relatos do dia a dia que vivenciam no lugar onde vivem. Eis um exemplo:

Onde estou?

Estou em um morro, lugar de todos. Gosto de nadar, na praia da Castanheira, lá só tem brincadeira. Pulamos de beira em beira. Na quadra fazemos zueira. Na minha rua,

só tem fofoqueira! A noite é só brincadeira. (K, 13 anos).

Foi no processo de realização das oficinas que as professoras vivenciaram os

momentos da Problematização e Instrumentalização. Dando aos estudantes os recursos

técnico-linguísticos, e os conhecimentos necessários para a produção dos textos nos gêneros

literários escolhidos. Nota-se que dentro da dinâmica dialética, a Cartase aconteceu em

variados momentos da prática educativa. Ora nas entrevistas com os familiares e vizinhos, ora

nas oficinas orientadas pelas educadoras e na produção dos próprios textos.

Para além da participação no evento em âmbito nacional, a Escola produzirá um livro

com os textos dos estudantes, fruto das oficinas. Foi um movimento que proporcionou ações

que foram para além do proposto nas Olimpíadas da Língua Portuguesa, ações estas que

ampliaram o olhar dos estudantes e da Escola para “O LUGAR ONDE VIVO”. Esse livro que

será produzido é uma parte da Prática Social final. Uma resposta dos professores e estudantes

para transformar a realidade onde vivem pela conscientização nos processos educativos.

O material produzido foi analisado também para responder as interrogações da

pesquisa de mestrado que se pretende desenvolver junto à escola. Investigação que visa fazer

um resgate histórico do bairro e alimentar uma educação cidadã numa perspectiva crítica.

3 ANÁLISE DIALÉTICO HERMENÊUTICA

Ao direcionarmos um olhar interpretativo, a partir da análise dialética, percebemos

alguns elementos dos textos produzidos pelos estudantes que merecem ser destacados.

Focaremos nas contradições que nos ajudam a problematizar a realidade social do bairro. As

observações não pretendem atribuir juízo de valor sobre a realidade socioambiental da

localidade investigada, apenas se pretende mostrar as oposições presentes em uma mesma

realidade.

De uma forma geral, percebem-se no conteúdo dos textos (poesias, memórias e

crônicas) alguns elementos das contradições inerentes à realidade humana. Neles está descrito

o lado positivo do bairro onde vivem, mas, em contrapartida, também retratam os problemas

presentes naquele ambiente. Os poemas falam das belezas naturais e culturais do bairro. Sua

“vista para mar”, sua “gente alegre”, suas “ruas calmas”, seu comércio, sua “praia de água

azul”. No entanto, também aparecem elementos contraditórios a esses supracitados. Fala-se de

“poluição”, “pilhas de lixo”, “doidos que gostam de matar”, “entrar no crime”, “crianças se

revoltando”.

Desta forma, nota-se que há pontos de vista diferente sobre o bairro onde se vive. Ora se

apresenta uma visão mais positiva, porém idealizada, ora se mostra uma realidade com

problemas socioambientais, que tocam no tema da poluição, da criminalidade ligada à

desigualdade social. Mesmo assim, diante destas contradições percebe-se nos textos o

sentimento de pertencimento e a visão de quem está dentro da realidade em questão.

O texto de memórias que foi selecionado para participar da etapa municipal da

olimpíada também destaca um elemento interessante para se pensar a relação dos moradores

com o lugar onde se vive. Ao apresentar o relato de um morador idoso sobre seu bairro

percebe-se que há um movimento de conscientização de classe e de autoafirmação da

identidade local. O morador faz questão de deixar claro que prefere chamar o lugar onde mora

de bairro, e não “morro”. Ele afirma que a visão negativa que essa palavra provoca o

incomoda. Ou seja, temos presente nesse detalhe o fato da contradição social presente na

cidade. O bairro está numa região que é marginalizada e recebe o estereótipo de favela. Seus

próprios moradores resistem a essa classificação e buscam recontar e recriar o valor de seu

ambiente de vida.

A seguir transcreveremos um pequeno trecho da crônica que foi escolhida para

representar a escola na etapa municipal e que, em tempo, seguiu para a etapa estadual

representando assim, o município de Vitória nesta categoria, no estado do Espírito Santo.

[…] Neste simples momento eu pude perceber o valor de cada pessoa daquele

lugar. O afeto ultrapassa fronteiras, mesmo sem poder, a família conseguiu um jeito

de cuidar do cão, que só estava a defender a família. Ali estão representados toda a

família daquela favela, mostrando simplicidade e humildade, coisas que nos

diferenciam e nos tornam únicas em uma sociedade. Não temos riqueza material,

mas posso dizer que o coração está cheio de amor para dar. […] (RF, 14 anos).

Percebe-se nestas palavras o potencial intelectual e reflexivo que está presente nos

“adolescentes” que participaram da produção dos textos. Potencial este que através de

movimentos simples e intencionais, no ambiente escolar, levam o outro a mostrar sua força

crítica e literária a partir da valorização do seu espaço vivido que refletirá na construção da

identidade individual e coletiva do lugar onde vive.

Outro trecho da crônica apresenta a contradição social entre a realidade simples do

bairro situado em uma região de relevo elevado as margens da baia de Vitória, e os iates de

luxo que cruzam o mar diante dos olhos dos moradores. Esse detalhe do texto da crônica

demostra novamente a tensão dialética que há na consciência social dos estudantes. Eles

percebem as variantes da desigualdade social que marcam a identidade de seu bairro. Esses

detalhes da redação foram explorados para problematizar e instrumentalizar os educandos

envolvidos na atividade pedagógica relatada nessa pesquisa preliminar.

CONCLUSÃO

Ao final desse trabalho fica evidente que a metodologia da Pedagogia Histórico-

Crítica possui um grande potencial para atividades que se objetivam trabalhar o contexto

social e histórico com estudantes. O resgate da memória dos moradores, vinculado com a

atividade pedagógica da área de linguagens, provocou nos estudantes novas formas de

perceber, sentir e olhar seu próprio bairro. Estes estudantes resgatam e trazem para dentro da

escola relatos e impressões sobre sua cultura e seus costumes, misturando o conhecimento

sistematizado oficial com o conhecimento popular produzido pela sua comunidade. Este

diálogo amplia a capacidade de olhar com critério investigativo e possibilita o resgate da

historicidade do vínculo com a cidade onde vive.

Com uma de análise hermenêutica, com base no materialismo histórico dialético, foi

possível problematizar as contradições da realidade e dar instrumentos de criticidade aos

estudantes envolvidos na ação pedagógica. É importante frisar que essa atividade pretende ser

aprimorada na pesquisa de mestrado do Programa de Pós-Graduação em Ensino de

Humanidades (PPGEH) do IFES, Campos Vitória, ES. O que se percebe é que o processo

educativo para a construção de uma cidadania crítica passa necessariamente pela

conscientização social e sobre a valorização da história de cada grupo ou povo.

REFERÊNCIAS

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GASPARIN, João Luís. Uma didática para a Pedagogia Histórico-Crítica. 5. ed. Campinas: Autores Associados, 2012.

LAGINESTRA, Maria Aparecida. PEREIRA, Maria Imaculada. Equipe de produção. A ocasião faz o escritor: caderno do professor: orientação para a produção de textos. 5ª edição. São Paulo: Cenpec. (Coleção Olímpiada). 2016.

MARSIGLIA, Ana Carolina Galvão (org.). Pedagogia histórico-crítica: 30 anos. Campinas, SP: Autores Associados, 2011. (Coleção memória e educação).

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SAVIANI, Demerval. Escola e Democracia: teorias da educação, curvatura da vara, onze teses sobre educação e política. 32.ed. Campinas: Autores Associados, 1999. (Coleção polêmicas de nosso tempo; v. 5).

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__________. Pedagogia Histórico-Crítica: primeiras aproximações. 11.ed. rev. Campinas: Autores Associados, 2011. (Coleção educação contemporânea).