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Redes e Ruas Balançam o Brasil

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Revista Política Democrática Nº 36

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Redes e ruas balançam o Brasil

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Ailton BeneditoAlberto Passos G. FilhoAmilcar BaiardiAna Amélia de MeloAntonio Carlos MáximoAntonio José BarbosaArlindo Fernandes de OliveiraArmênio GuedesArthur José PoernerAspásia CamargoAugusto de FrancoBernardo RicuperoCelso FredericoCésar BenjaminCharles PessanhaCícero Péricles de CarvalhoCleia SchiavoDélio MendesDimas MacedoDiogo Tourino de SousaEdgar Leite Ferreira NetoFabrício MacielFernando de la Cuadra

Fernando PerlattoFlávio KotheFrancisco Fausto Mato GrossoGilson LeãoGilvan Cavalcanti de MeloHamilton GarciaJosé Antonio SegattoJosé Carlos CapinamJosé Cláudio BarriguelliJosé Monserrat FilhoLucília GarcezLuiz Carlos AzedoLuiz Carlos Bresser-PereiraLuiz Eduardo SoaresLuiz Gonzaga BeluzzoLuiz Werneck ViannaMarco Aurélio NogueiraMarco MondainiMaria Alice RezendeMartin Cézar FeijóMércio Pereira GomesMichel ZaidanMilton Lahuerta

Oscar D’Alva e Souza FilhoOthon JambeiroPaulo Afonso Francisco de CarvalhoPaulo Alves de LimaPaulo BonavidesPaulo César NascimentoPaulo Fábio Dantas NetoPedro Vicente Costa SobrinhoPierre LucenaRicardo Cravo AlbinRicardo MaranhãoRubem Barboza FilhoRudá RicciSérgio Augusto de MoraesSérgio BessermanSinclair Mallet-Guy GuerraSocorro FerrazTelma LoboUlrich HoffmannWashington BonfimWillame JansenWilliam (Billy) MelloZander Navarro

Fundação Astrojildo PereiraSEPN 509, Bloco D, Lojas 27/28, Edifício Isis – 70750-504

Fone: (61) 3224-2269 Fax: (61) 3226-9756 – [email protected]

Presidente de Honra: Armênio GuedesPresidente: Caetano Pereira de Araújo

Política DemocráticaRevista de Política e Culturawww.politicademocratica.com.br

Conselho de Redação

EditorMarco Antonio T. Coelho

Editor ExecutivoFrancisco Inácio de Almeida

Alberto Aggio Anivaldo Miranda Caetano E. P. AraújoDavi EmerichDina Lida Kinoshita Ferreira Gullar

George Gurgel de OliveiraGiovanni Menegoz Ivan Alves FilhoLuiz Sérgio HenriquesRaimundo Santos

Copyright © 2013 by Fundação Astrojildo PereiraISSN 1518-7446

Obra da capa: Barcos ao mar – Óleo s/tela, 40 cm X 50 cm

Os artigos publicados em Política Democrática são de responsabilidade dos respectivos autores.Podem ser livremente veiculados desde que identificada a fonte.

Conselho Editorial

Política Democrática – Revista de Política e Cultura – Brasília/DF: Fundação Astrojildo Pereira, 2013.No 36, jul./2013.200p.

CDU 32.008 (05)

Ficha catalográfica

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Política DemocráticaRevista de Política e CulturaFundação Astrojildo Pereira

Julho /2013

Redes e ruas balançam o Brasil

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Sobre a capa

As obras que ilustram e embelezam a capa e a contracapa desta edição são de autoria do artista plástico Francisco José de Araújo Costa, mais conhecido como Franzé. Nascido na cidade do Rio de Janeiro, filho de pai maranhense e mãe potiguar, ele desde muito jovem, acompanhando a família, veio morar em Brasília, onde se gra-duou em Pedagogia pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (Aeudf).

Apaixonado por cinema e pelas artes plásticas, desenvolveu suas aptidões nessa área e aprimorou sua sensibilidade artística no ate-lier da professora Shirley Indig, na capital da República, desde 2003, quando concebeu e materializou seu primeiro quadro.

Jovem ainda (tem 49 anos), já criou uma rica produção de obras (mais de 200) que têm sido apresentadas ao público brasiliense e de várias capitais e cidades brasileiras, por meio de exposições individu-ais e coletivas, em salões e galerias de arte. Vários de seus trabalhos valorizam acervos de importantes instituições, como o Superior Tribu-nal de Justiça, Codevasf e Tribunal Regional Federal da 1ª Região.

Além do reconhecimento crescente do público, que acompanha sua trajetória criativa, Franzé tem recebido prêmios e homenagens, sob a forma de Diploma Especial de Honra, concedido pela Associa-ção Fluminense de Belas Artes (2010); Menção Honrosa, no VII (2009), VIII (2010) e IX (2011) Salão de Belas Artes, promovidos pela Adesg (Associação da Escola Superior de Guerra) e no I Salão Nacio-nal de Artes Plásticas do Saber Cultural (2010), todos ocorridos no Rio de Janeiro.

Antenado com o que ocorre em sua cidade e no planeta em que habita, e preocupado em desenvolver seu talento, faz aprimoramen-tos em técnicas em lápis (sépia, carvão, grafite, pastel, lápis de cor faber castell) e óleo sobre tela. A maioria de suas criações são traba-lhos em ASTN, acrílico, quadrinismo, retrato, desenho em geral e outras formas criativas que ele domina. Trata-se de um artista que tem um amplo futuro à sua frente.

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Sumário

APReSentAçãoOs Editores ........................................................................................................ 07

I. temA de CAPA: RedeS e RuAS bAlAnçAm o bRASIl ..... 11As ruas e a modernidade políticaAlberto Aggio ............................................................................................................. 13o que eu sei e o que não sei sobre as manifestações de ruaLuiz Eduardo Soares ................................................................................................. 18A juventude toma conta das ruas Arnaldo Jordy ........................................................................................................... 24bom pra pensarMaria Alice Rezende de Carvalho ............................................................................. 26o mal-estar contemporâneoAndré Lara Resende ................................................................................................ 30o levante democrático das ruas no brasilMarcelo Burgos ......................................................................................................... 38mobilizações singulares exigem atenção incomumAugusto de Franco .................................................................................................... 43lições e perspectivas da revoltaHamilton Garcia ........................................................................................................ 51Vida política e estado democrático de direitoRaimundo Santos ...................................................................................................... 63Por que(m) jovens protestamMércio Pereira Gomes................................................................................................ 70

II. doSSIê ChIle, 40 AnoS do golPe de 1973Salvador Allende e seu legado democráticoFernando de la Cuadra ............................................................................................ 77o caminho inconcluso. A experiência chilena, 40 ou 20 anos depoisMarcos Sorrilha Pinheiro ........................................................................................... 84A formação da unidade Popular e a relação das esquerdas chilenas...Victor Augusto Ramos Missiato ................................................................................. 88Allende contemporâneo, Chile contingente Gonzalo Cáceres ....................................................................................................... 94A vida e a vida da revolução chilena Sergio Augusto de Moraes ......................................................................................... 99

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Quatro décadas depois, a lição política que se pode extrair do governo de Allende Joan del Alcàzar ..................................................................................................... 102

III. obSeRVAtóRIoPapa aponta a tarefa de reabilitar a políticaGilvan Cavalcante ................................................................................................... 109Desenvolvimento e sustentabilidade. Quais os desafios? George Gurgel de Oliveira ....................................................................................... 113Seca – o homem como ponto de partidaAriosto Holanda ...................................................................................................... 123

IV. bAtAlhA dAS IdeIASCrítica a um modo de produzir riquezaJosé Arthur Giannotti ............................................................................................. 135o proibicionismo das drogas e a politização do crime no brasilLaécio Noronha Xavier ............................................................................................ 141

V. QueStõeS do eStAdo e do CIdAdãonada sobre nós, sem nósLuciano Resende ..................................................................................................... 155transparência públicaCarlos Alberto Batista da Silva Júnior .................................................................... 158

VI. enSAIomarxismo, sistema e ação transformadoraBrasilio Sallum Jr. .................................................................................................. 165

VII. mundotouro sentadoPaulo Delgado ......................................................................................................... 179Para quem são os direitos humanos? Veronica de Jesus Gomes ....................................................................................... 182

VIII. memóRIACom Antônio granja em PragaClaudio de Oliveira ................................................................................................. 189

Ix. ReSenhAo instigante marxismo político de Armênio guedesPaulo Freire de Mello............................................................................................... 195gabeira e os caminhos da históriaAntonio Fausto de Nascimento ................................................................................ 197

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Apresentação

Só poderia haver um tema de capa para a edição presente de Política Democrática: as manifestações de rua que abalaram o Brasil nos meses de junho e julho. O movimento é inédito na

história republicana, em termos de magnitude; distribuição geográfi-ca; intensidade; heterogeneidade das reivindicações; formas de con-vocação e organização; e até do sucesso relativo das demandas que iniciaram o movimento: a redução das tarifas do transporte coletivo nas cidades brasileiras. Nossos autores analisam com propriedade, a partir de diferentes pontos de vista, essas e outras características das mobilizações, sua relação com movimentos similares em outros países, assim como sua inserção na política e no quadro partidário nacionais. Entre eles, há consenso a respeito da singularidade dessa experiência, da sua relevância e do seu caráter positivo, do ponto de vista do desenvolvimento da democracia no país.

A leitura desse conjunto de contribuições nos faz pensar em algu-mas das certezas antigas que foram derrubadas pela presença dos cidadãos na rua, bem como numa questão para a qual essa presença passa a exigir solução.

As certezas que se dissolveram dizem respeito à natureza da re-presentação política e corporativa no Brasil. A primeira delas postu-lava a existência de uma relação “natural” de representação entre a grande maioria dos cidadãos, principalmente aqueles mais pobres, e alguns partidos do espectro da esquerda, protagonistas da atual coalizão que governa o país. Nessa perspectiva, o governo está no campo da centro-esquerda, atende os interesses populares básicos,

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toma medidas que elevaram o nível de vida dos mais pobres e, em troca, recebe o merecido apoio desses setores.

É evidente, contudo, que as manifestações foram massivas, que se posicionaram contra os partidos e os políticos, e que, nesse lote de rejeição, a maior fatia coube aos governos.

Como explicar o fenômeno? Alguns tentam circunscrever as mo-bilizações às classes médias, a setores privilegiados dos quais não seria de se estranhar a postura oposicionista. Os mais pobres, no entanto, teriam ficado em casa, preservando seu apoio ao governo.

Essa interpretação não resiste ao exame dos fatos. A composição social dos manifestantes é, sem dúvida, heterogênea, porém ainda mais importante para a crítica dessa visão são as evidências do apoio majoritário ao movimento na opinião pública, coletadas por diversas pesquisas.

Aparentemente, os mais pobres querem também, como todos, serviços públicos de qualidade, na educação, na saúde, no transpor-te e na segurança pública. Sabem que cabe ao governo regular o provimento desses serviços e que muito pouco, em relação ao que seria necessário, foi feito nessa direção. Há claramente uma deman-da por um Estado mais eficiente e mais democrático, há uma deman-da por uma reforma democrática do Estado.

Não são procedentes, portanto, em nossa opinião, as posições que afirmam que as políticas de transferência de renda asseguram o apoio racional dos mais pobres ao governo, na linguagem dos governistas, ou que anestesiam sua percepção, na linguagem dos oposicionistas.

A falência da ideia de relação automática e natural de represen-tação atingiu também as máquinas sindicais e a União Nacional dos Estudantes. A resposta ao chamamento das centrais sindicais para as ruas foi visivelmente pobre. E num movimento hegemonizado pe-los jovens a ausência estrepitosa da UNE foi reveladora.

A segunda certeza a ruir refere-se à suposta adequação do siste-ma eleitoral brasileiro aos parâmetros de democracia estabelecidos em nossa Constituição. Essa certeza era cultivada em alguns setores da chamada “classe política” e por parte importante dos pesquisado-res da área.

Nessa perspectiva, nosso sistema eleitoral propiciaria alternância no poder e capacidade de os detentores do Poder Executivo construí rem as maiorias de que precisam nos diferentes legislativos. Produ-ziria ordem, previsibilidade e eficiência.

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Pois bem, os manifestantes vocalizaram o que as pesquisas de opinião haviam detectado há muito tempo: há uma enorme descon-fiança do brasileiro em relação aos políticos, aos partidos e aos legis-lativos. O cidadão demanda transparência, fiscalização sobre os elei-tos, responsabilidade dos mandatários, demanda, enfim, que seu voto tenha alguma relação com as ações futuras dos eleitos. Em ou-tras palavras, está claro que uma reforma política nessa direção não era apenas um devaneio que atendia a exigências valorativas de al-guns políticos e acadêmicos.

A terceira certeza destruída situa-se num plano mais geral: diz respeito à suficiência da representação política para a operação de uma sociedade democrática. Embora alguns clássicos do pensamen-to político tenham argumentado de maneira convincente sobre a ne-cessidade da participação direta do cidadão para fundamentar a re-presentação e prevenir as ameaças a que a democracia está sujeita em razão de sua própria dinâmica, a verdade é que, ao longo do sé-culo XX, a democracia foi reduzida a sua face representativa. Parece claro agora que uma situação de circulação da informação, e dos valores e expectativas a ela associadas, exige um novo equilíbrio en-tre participação e representação política. Esse aspecto vincula os movimentos brasileiros aos indignados espanhóis, ao Ocupar Wall Street, às manifestações na Turquia, entre outros.

Entretanto, se é razoável esperar uma nova articulação entre re-presentação e participação política, a ser construída na esteira dos movimentos, parece claro que o fim da representação não está no horizonte. Isso significa que, de alguma maneira, as demandas, ge-rais e específicas, dos manifestantes devem encontrar algum canal de ingresso no sistema legal e administrativo do país. As demandas precisam de institucionalização, e esse processo não cai pronto e acabado do céu. Partidos e candidatos devem abrir-se para o debate, com os movimentos e entre si, de modo a processar a energia das reivindicações e produzir reformas que diminuam o fosso entre o que existe e o que o cidadão deseja.

Permita-nos também o leitor chamar sua atenção para o Dossiê Chile, um conjunto de artigos de autores brasileiros e latino-ameri-canos examinando a singular experiência do governo Allende, no iní-cio dos anos 1970, e as lições que foram então deixadas para nosso continente e para o mundo. Neles também se reproduzem as delica-das condições, internas e externas, em que esse rico processo se deu, e as forças que, direta ou indiretamente, facilitaram o malogro da experiência e criaram as condições para o sangrento golpe de Estado que, em setembro próximo, completa 40 anos.

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Como a visita do papa Francisco ao Brasil, para a Jornada Mun-dial da Juventude, ocorreu na última dezena de julho (mês regular da nossa segunda edição a cada ano), não tivemos como dedicar maior atenção ao importante evento e, particularmente, às opiniões e propostas do Pontífice sobre os novos rumos da Igreja Católica, nem muito menos aos desdobramentos e consequências das mensa-gens que transmitiu não apenas a rapazes e moças, mas a lideranças políticas, sociais, empresariais, bem como a intelectuais, a respeito das questões maiores da cidadania em qualquer lugar do planeta. No entanto, não poderíamos deixar de trazer algum registro desse fato, o que pode ser lido na seção Observatório.

Há ainda ensaios e artigos variados, nas distintas seções em que está distribuída cada edição de nossa revista, que se preocupa em oferecer opiniões sobre temas instigantes da vida nacional e planetá-ria, de forma a termos cidadãos mais bem informados e conscientes da delicada e complexa seara, que é se fazer a boa política num país de tradições democráticas e republicanas que ainda exigem cuidados permanentes dos seus cidadãos, sempre em primeira pessoa.

Boa leitura!

os editores

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I. tema de capa: Redes e ruas

balançam o brasil

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Autores

Alberto AggioProfessor titular de História da Unesp/Franca.

André Lara ResendeEconomista formado pela PUC do Rio, com Phd em Economia pelo Massachusetts Institute of Technology, integrou a equipe que elaborou o Plano Real (1992) e foi diretor e presidente do Banco Central (1997-1998).

Arnaldo JordyDeputado federal (PPS-PA).

Augusto de FrancoFísico e cientista político, especialista em redes sociais, em desenvolvimento local e sustentável.

Hamilton Garcia Cientista político, professor da Universidade Estadual de Nova Friburgo-Darcy Ribeiro.

Luiz Eduardo SoaresAntropólogo, foi secretário nacional de Segurança Pública (2003). É autor, entre outros, do livro Justiça (Nova Fronteira, 2011).

Marcelo BurgosProfessor da PUC-Rio e membro da Coordenação do Centro de Estudos Direito e Socieda-de (Cedes).

Maria Alice Rezende de CarvalhoProfessora do Departamento de Ciências Sociais da PUC-Rio e membro da Coordenação do Centro de Estudos Direito e Sociedade (Cedes-PUC-Rio) <http://www.cis.puc-rio.br/cedes/>.

Mércio Pereira GomesAntropólogo, professor de História das Ciências e das Técnicas e Epistemologia, da Uni-versidade Federal do Rio de Janeiro (HCTE-UFRJ).

Raimundo SantosProfessor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e autor, dentre outros, do livro Agraristas políticos brasileiros (Nead/FAP) e organizador de O Marxismo Político de Ar-mênio Guedes (FAP, 2012).

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As ruas e a modernidade política

Alberto Aggio

Já se produziu uma quantidade razoável de interpretações sobre as mobilizações que no mês de junho despontaram por todo o país. Até mesmo o nosso aggiornamento publicístico em relação

ao mundo investiu numa novidade: foi lançado o primeiro instant--e.book do país, em atendimento àqueles que buscam, em relação a elas, uma análise supostamente mais exigente, feita no calor da hora.1 Dentre os analistas, já se sedimentou algum consenso: as manifestações têm caráter massivo, são nacionais, mas se mostram rigorosamente distintas quando comparadas às Diretas Já e ao im-peachment de Collor. De forma geral, elas devem ser compreendidas como expressões do contexto democrático brasileiro, mas, ao contrá-rio das mencionadas, são difusas, plurais e apresentam demandas republicanas fragmentadas em defesa da ética na política e contra a corrupção. Há nelas também um sentimento e uma demanda pelo bem comum e pela melhoria de vida das pessoas. De maneira inci-siva e contínua, as manifestações de junho colocaram em xeque a eficiência dos governos, em todos os níveis, especialmente o federal, por este ser o maior arrecadador de impostos e por ser dele que se esperam as respostas mais significativas em termos de financiamen-to das políticas públicas.

Não cabe dúvida que tais manifestações fazem parte da dimensão participativa da democracia representativa vigente no país. É impró-prio o qualificativo de “democracia direta” e tampouco a identificação de qualquer tipo de revolução digna do nome. Embora o “vandalismo”

1 NOBRE, Marcos. Choque de democracia. São Paulo: Cia das Letras (e.book), 2013.

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tenha se feito presente, num fenômeno que começa a ser descrito como “passeata-arrastão”, a violência não parece ser o método prin-cipal das manifestações e a sua reprodução não parece ser também o seu objetivo. Mas o fato é que elas expressam a sensação de um “represamento” que agora força sua passagem e se impõe nas ruas. E isso ainda não é tudo. Há nas manifestações um rechaço e, no li-mite, uma ira e um ódio contidos em relação aos representantes po-líticos em geral e aos partidos políticos, em particular, embora não se tenha expressado o desejo de colocar abaixo a democracia fundada na Carta de 1988. Esta ainda mantém sua legitimidade intocada. A ameaça em relação a ela parece não vir das ruas!

O que se nota, portanto, é que as manifestações expressam uma crise específica de legitimação da democracia que precisa ser com-preendida e acompanhada em seus desdobramentos, daí emergindo o diagnóstico de que elas representam uma demanda por “democra-tização da democracia”. Entretanto, esta seria uma consigna geral frente à crise contemporânea da democracia e abre parcos caminhos ou mesmo indica poucas respostas à especificidade da crise que en-frentamos nos dias de junho. Em suma, o que se estabeleceu e o que se vai seguir – em razão de um acúmulo de práticas paralisantes ao avanço da democracia perpetradas por diversos governos, especial-mente, o atual –, são dilemas próprios à assimilação e enriquecimen-to da cultura cívica entre nós e outros mais atinentes à engenharia das instituições e à renovação da relação povo-poder, que os atores políticos estarão obrigados a equacionar para evitar o aprofunda-mento da crise e conseguirem recompor a confiança do país em con-tinuar vivenciando e ampliando a política da democracia.

Uma das virtudes dessas manifestações tem sido o fato de que elas foram capazes de produzir efetivamente um retrato da nossa sociedade e do estado em que vivemos. Outra vez, os registros são consensuais: as pessoas se expressam livremente, protestam a res-peito de carências sociais, da ineficiência dos poderes públicos, da qualidade dos serviços essenciais, reivindicam seus direitos e neces-sidades, mas também revelam seus ardentes desejos igualitários em plena rua, à luz do dia. Revelam também uma nova maneira de se manifestar e de se agrupar, de dar sentido ao seu pertencimento, na qual a internet passou a ser o nexo agregador mais eficiente. Os mó-veis de arregimentação em cada passeata foram ao mesmo tempo iguais e diferentes em cada lugar do país. Mesmo assim, essa “falta de centro” não foi integral, elegendo-se algumas questões, como a tarifa do transporte público, a corrupção, a precariedade na saúde e a baixa qualidade na educação como unificadoras.

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1515As ruas e a modernidade política

Por tudo isso, as manifestações têm revelado um pouco (ou mui-to) do que somos como sociedade. Têm sido um retrato que cala fun-do, mas que é difícil distinguir, tanto pela falta de experiência histó-rica cumulativa quanto pelo rebatimento da crise mais geral de representação que atravessa o mundo e que gera a perda de referen-ciais anteriormente estabelecidos. Um dos aspectos mais notáveis e que chamam muita atenção é a marcante e difusa expressão indivi-dual de demandas: as manifestações não seguem uma liderança ou corrente política, um discurso único, uma mesma lógica, um mesmo sentido. Tudo que se expressa em cartazes artesanais carregados pelos manifestantes revela uma fragmentação que ultrapassa a nar-rativa da pós-modernidade. Estariam, por assim dizer, inscritas na hipermodernidade, de que nos fala Gilles Lipovetsky, na qual uma “cultura hiperindividualista”, desconfiada do político, faz dos direitos humanos o “fundamento último e universal da vida em sociedade”, reconhecendo o individuo como “um referencial absoluto, última bússola moral, jurídica e política de nossos contemporâneos desliga-dos de todas as antigas formas de inclusão coletiva”.2

Vale insistir nessa angulação. As passeatas exibem um conjunto de reivindicações individuais flagrantemente subjetivas, mas deman-dadas em termos coletivos, comunitários: demandas concretas tra-duzidas e expressas metafórica ou alegoricamente frente a governos e ao Estado, visando à melhora na vida de todos. Talvez seja pouco, mas é revelador e parece expressar um deslocamento no campo de crenças e de valores entre nós. Um deslocamento que não é inteira-mente estranho à nossa formação cultural. Na história do nosso país, como é sabido, o “Estado é tudo, mas o indivíduo também é”.3 Creio que está ai um traço de identidade das manifestações de agora com as anteriormente mencionadas: elas se impõem como uma mas-sa, sem facções, sem partidos, sem divisões, num movimento que estabelece o vínculo direto entre indivíduo e esfera pública, sem me-diações. As manifestações de junho se apresentam assim, em estado bruto, mas evidenciam a potencialidade de que algumas de suas de-mandas sejam assumidas por movimentos sociais organizados, como já vem acontecendo com metalúrgicos, caminhoneiros, médicos etc. Por outro lado, diferentemente das anteriores, hoje parece não haver um ator político que consiga se assenhorear da condução das mani-

2 LIPOVETSKY, G.; SERROY, J. A cultura-mundo – resposta a uma sociedade desorien-tada. São Paulo: Cia. das Letras, 2011, p. 52.

3 A formulação é de Luiz Werneck Vianna, inspirada provavelmente em leituras de Sérgio Buarque de Holanda.

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1616 Alberto Aggio

festações e representar, ainda que momentaneamente, a encarnação da virtude republicana.

Chamar tudo isso de “ativismo autoral” não ajuda a compreender em profundidade o que ocorre, embora esboce parcialmente uma narrativa correta a respeito dessa nova forma de manifestação. Há certamente uma marca pré-política nela e talvez uma visão reducio-nista da construção do “bem comum” como uma celebração coletiva que pede um Estado de todos e para todos, mais eficiente, que pro-mova mais qualidade de vida, custando menos aos cidadãos – quase uma “utopia política” que não sabe dizer precisamente qual política deve ser adotada para colocar esse Estado em pé. Trata-se de um “melhorismo” inconteste e rarefeito que não precisou de nenhuma corrente político-partidária com o mesmo nome para poder vir à tona. Ele não é de esquerda nem de direita e menos ainda advém dos ex-tremos desses polos. Por isso, essa animação não nasce nem deve ser enquadrada em nenhuma visão recortada por classes sociais opostas ou mesmo antagônicas. Ela nasce da abstração da nação que de-manda um Estado de Bem-Estar homólogo à catarse das ruas. Note--se que, em certo sentido, já vivenciamos uma experiência similar quando a emergência do “mundo dos interesses” se espraiou pelas camadas populares e impactou integralmente o corpo da sociedade política entre as décadas de 1980 e 1990 do século passado.4 O que veio depois daquela conjuntura, nós conhecemos. Hoje, o que virá é, até o momento, difícil de divisar.

Assim, o que as ruas exprimem não é um programa ideológico, mas a antecipação dos traços de uma imagem do que já somos e do que queremos ser. Não há uma palavra de ordem galvanizadora: o contexto não é jacobino nem bolchevista e tampouco fascista, dispen-sando, portanto, as condutas e a aura da cultura heroica. Mesmo as-sim, o cartaz, a voz, o grito, a cantoria, a festa, funcionam como ani-madores e expressam a expectativa de atendimento integral de cada uma das demandas. É nesse momento que o ruído que apenas ouvía-mos do subterrâneo, das entranhas da sociedade em que vivemos, vem à tona nas manifestações. Trata-se de uma espécie de “protestan-tismo político” hipermoderno, que nasce dos desejos mais profundos de cada indivíduo, assume o vigor das revelações cujo ato de manifes-tar-se, em si mesmo, lhe basta para “lavar a alma”. Mas tudo é mo-mentâneo, fugaz, e o que se segue é a espera da graça, como em outros tempos. Aqui, a política ainda é persona estranha e desconhecida.

4 VIANNA, L. W. A transição – da Constituinte à sucessão presidencial. Rio de Janeiro: Revan, 1989, especialmente p. 91-113.

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1717As ruas e a modernidade política

Nesse contexto, o novo reencontra-se com o velho, numa circula-ridade que demonstra, entre outras coisas, o quanto a modernidade é frágil: o indivíduo se autonomiza e se potencializa em alta velocida-de e em extensão nunca vista, as condições materiais e tecnológicas dão a todos a sensação de uma ruptura do tempo histórico – vive-se uma revolução sem os revolucionários de antanho –, um turbilhão de possibilidades se abre em cada momento, e essas parecem estar ao alcance da mão. É por isso que aqui e agora já não estamos mais em 1968: esse não é um mundo próprio para sonhadores.

Mas não é difícil reconhecer a necessidade de que a política de-mocrática – essa invenção da moderna sociedade de massas, alicer-çada na representação, nas liberdades, na soberania popular e, por fim, em identidades e subjetividades que impetuosamente se ex-pandem – deva e mereça recobrar sentido para, com isso, buscar estabelecer as balizas para o equacionamento de interesses e de-mandas por meio de reformas pactuadas das instituições do Estado democrático de Direito. Apesar de todas as dificuldades e dúvidas, resta a expectativa de que a alegria das ruas e o desprendimento dos atores da política democrática, dentro e fora das instituições do Estado, hão de inventar maneiras para promover, em novo pata-mar, o encontro do país com a modernidade política. A voz das ruas, bem traduzida, pode enfim anunciar um novo momento da jovem democracia brasileira.

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o que eu sei e o que não sei sobre as manifestações de rua

Luiz Eduardo Soares

Diante de um fenômeno que rompe a rotina e surpreende a ex-pectativa de estabilidade, as reações individuais são as mais variadas. Entretanto, de um modo geral, o primeiro impulso é

defensivo e visa à autoconservação. Qualquer mudança nos ameaça porque traz consigo a fantasia de que nosso mundo pessoal tão pre-cário e incerto está em risco e pode ruir a qualquer momento. Essa fantasia provém da radical insegurança que nos é constitutiva, seres mortais que somos. Não apenas a vida humana é frágil como aqui-lo que chamamos “realidade” é débil e movediço. Para sustentar-se, nossa “realidade” precisa dos outros, do olhar alheio, de seu reconhe-cimento, de sua confiança, da reiteração de manifestações de amor, amizade e respeito. A “realidade” depende das redes sociais que tecem afetos, valores, símbolos e ideias, tudo isso embrulhado em narrativas cotidianas verossímeis para o conjunto dos interlocutores.

Por isso, a ruptura do movimento contínuo e previsível da vida – que só é contínuo e previsível em nossa fabulação amedrontada, in-segura e defensiva – suscita em nós respostas que negam ou exorci-zam a mudança. Nesse sentido, há um complô conservador em cada um de nós – e entre nós – contra a mudança, ocorra ela em nós, nos outros ou na sociedade – como escrevi em um capítulo conhecido do livro Cabeça de Porco.

O que significam, nesse contexto, negar e exorcizar? Negar não significa recusar-se a admitir a existência de fatos, mas sua novida-de, sua diferença. Exorcizar quer dizer livrar-se do embaraço que assusta e ameaça nossas crenças, nossa estabilidade, interior e ex-terior. Qual a melhor maneira de fazer ao mesmo tempo as duas coisas, negar e exorcizar? Explicando. Sobretudo, explicando com as categorias já conhecidas, disponíveis em nosso repertório de crenças e teorias. Quando eu explico um fenômeno novo, o teor de novidade deixa de perturbar meus esquemas cognitivos e valorativos, e as ideias que me ligam aos outros e àquilo que considero a realidade. Minha sanidade, a solidez de minhas verdades, principalmente a so-lidez de mim mesmo como sujeito, tudo isso salva-se com a explica-

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1919O que eu sei e o que não sei sobre as manifestações de rua

ção, quando, insisto, e apenas quando ela não coloca em dúvida seus próprios pressupostos ou métodos, seu próprio estoque de ideias prontas. O evento, em sua novidade, infiltra um excedente em nossa sensibilidade, em nossas ideias, em nossas emoções e percepções. Por outro lado, prestando um serviço a nosso aparato de autodefesa, a explicação domestica a diferença, circunscreve seu potencial sub-versivo e sua força questionadora. Meu argumento é simples: se um evento coloca um problema para meus esquemas mentais e práticos, deixa de fazê-lo quando estes últimos demonstram a capacidade de descrevê-lo (e integrá-lo) sem que haja resíduos, sem que seja neces-sária a invenção de novas estratégias descritivas e práticas, novas categorias e procedimentos. Na verdade, em vez de conhecimento, estaria em jogo apenas a confirmação de meu repertório prático, mo-ral, ideológico e cognitivo.

Estas reflexões não pretendem ser o elogio à ignorância ou a crí-tica obscurantista ao conhecimento. Pelo contrário, visam distinguir a tarefa do conhecimento do comodismo classificatório reassegura-dor, que nos impedem de olhar com os olhos de ver, de escutar para ouvir, projetando menos o que já sabemos ou supomos fazer, e nos abrindo à positividade desafiadora do evento em sua contingência: ação, protagonismos reconfigurando arenas e relações. O ponto a destacar é o seguinte: explicações que funcionam como meras consa-grações do que já se sabe – ou se supõe saber – não produzem conhe-cimento. Se o propósito é conhecer, devemos buscar a compreensão autorreflexiva, a desnaturalização das imagens já constituídas e das descrições correntes. Até porque, nesse campo, todo esforço de en-tendimento, toda interpretação é também intervenção, é também ação social, uma vez que os intérpretes participamos da atribuição de significado aos fatos. Portanto, a atitude amiga do conhecimento deve exercitar os limites do saber e onde há limites, há pelo menos dois espaços, ou seja, para abordar o que ignoro, devo afirmar o que sei, ou julgo saber.

Contemplemos o objeto que nos interroga, tanto quanto o interro-gamos: os eventos em que milhares ocupam as ruas de várias cidades, protestando contra o aumento de tarifa do transporte coletivo e pondo a nu uma série de problemas vividos pelos brasileiros. O que ousaria dizer que sei a seu respeito? O que não sei?, ou melhor, que boas per-guntas posso formular para as quais não disponho de respostas?

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2020 Luiz Eduardo Soares

I. Sobre o universo temático das manifestações

Sei que o aumento de tarifas afeta a maioria e que atinge o bolso dos trabalhadores em um momento marcado pelo aumento da infla-ção. Sei que o Poder Executivo, nas três esferas (municipal, estadual e federal), adotou mecanismos de proteção aos interesses populares, postergando uma medida que dificilmente seria evitável. Esse fato tornou a elevação dessas tarifas um fato raro, especial, destacado, descolando-o da expectativa internalizada relativa à dinâmica geral dos preços de alimentos e serviços. Sei que o valor do transporte é apenas a cabeça de um imenso iceberg, formado por sua qualidade e pelo verdadeiro drama em que se converteu a mobilidade urbana – e não só em São Paulo e no Rio de Janeiro. Sei, portanto, que a cadeia metonímica no imaginário individual e coletivo transporta os signifi-cados do preço da tarifa às jornadas desumanas a que os trabalha-dores têm sido submetidos, estendendo-se daí a outros aspectos ne-gativos da experiência popular nas cidades: a precariedade do emprego ou do trabalho, as condições desiguais de moradia, saúde, educação, segurança e acesso à Justiça.

Os elos de contiguidade simbólica e política conectam problemas entre si, acentuando sua marca permanente: a desigualdade. E o fazem em um contexto normativo e institucional, o Estado democrá-tico de Direito, no qual o princípio cantado em prosa e verso é a equi-dade. Por isso, os significados negativos se agravam, acentuando a intensidade emocional em que são apreendidos e comunicados: eles se destacam porque remetem à desigualdade, a qual contrasta forte-mente com as expectativas geradas pelo pacto constitucional. Afinal, a conversa sobre cidadania é ou não para valer?

Há ainda cinco tópicos conectados na teia metonímica: (a) os cha-mados grandes eventos esportivos, e um religioso, que dominam o calendário oficial e governam as agendas dos governos, sinalizando prosperidade e abundância, uma vez que bilhões são investidos, em descompasso com demandas por equidade e qualidade de vida. (b) O modelo econômico parece ter feito o desenvolvimento refém da in-dústria automobilística, na contramão do que seria racional para reduzir o caos urbano, que obstrui a mobilidade, afetando os interes-ses de todos, em especial os que dispõem de menos recursos e alter-nativas. (c) A reputação dos políticos permanece negativa e o ceticis-mo popular esvazia a legitimidade do instituto da representação, sem que as lideranças deem mostras de compreender a magnitude do abismo que se abriu – e aprofunda-se, celeremente – entre a institu-cionalidade política e a opinião da maioria. As denúncias de corrup-ção se sucedem, endossando a visão negativa que, injustamente,

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mas compreensivelmente, generaliza-se. (d) O Executivo prestigiado, em contexto de dinamismo econômico, pleno emprego e redução de desigualdades, sob a aura carismática de Lula, freou o desgaste do Estado, já avançado em sua face parlamentar. Quando o modelo co-meça a dar sinais de que está claudicando, a corrosão contamina a legitimidade (a credibilidade) de todas as áreas do Estado. (e) Toc-queville nos ensinou que os grupos sociais mais dispostos a agir e reagir não são os mais pobres e impotentes, mas aqueles que têm o que perder. Isso significa que os avanços sociais das últimas duas décadas ampliaram a faixa da população potencialmente disposta a resistir ante o risco de perda. Aqueles que ascenderam não entrega-rão sem luta suas conquistas.

Outro aspecto que me parece decisivo é o acesso à internet, a participação em redes e a fixação de um modelo globalizado de toma-da dos espaços públicos como método de democracia direta ou de ação política não mediada por instituições, partidos e representan-tes. Evidentemente, o modelo remete à ideia clássica da democracia direta como tipo ideal, sem cumpri-lo inteiramente, uma vez que as mediações nunca deixam de atuar, conectando diferentes procedi-mentos à energia da massa nas praças. O que conta, neste cenário dramatúrgico, são a memória idealizada e a linguagem comum, como se os eventos se citassem mutuamente, construindo uma constela-ção virtual de hiperlinks. Nesse contexto, tornam-se possíveis o or-gulho, a vaidade, a máscara do heroi cívico, a política vivida em gru-po como entretenimento cult antipolítico (mas também risco iminente de morte), a experiência gregária fraterna (ante um inimigo tão abs-trato e fantasmático quanto óbvio e imediato, com o rosto policial e o sentido da tragédia), experiência que enche o coração de júbilo, exal-tando os sentimentos e os elevando a uma escala quase espiritual, a convicção de que se pode prescindir de propostas e metas, ou da negociação de métodos para inscrever o curso da prática na vida da cidade, não só no chão das ruas.

II. Sobre os manifestantes

São muitos e diversos, e seus propósitos são múltiplos. São gru-pos semiorganizados que debatem as opções nas redes sociais, são aqueles atraídos para a praça por solidariedade, a qual se fortalece não porque o tema principal, o preço da tarifa, mobilize intensamen-te, mas porque a brutalidade policial, isto é, a violência do Estado suscita a coesão dos que a repudiam – e, de novo, nesse repúdio es-tende-se toda a cadeia metonímica referida. Há, é claro, como é na-

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2222 Luiz Eduardo Soares

tural e inevitável, militantes políticos que percebem a oportunidade de enfraquecer os adversários que estão no poder, considerando-se a visibilidade do país e dos governos estaduais e municipais, na con-juntura em que transcorrem os grandes eventos esportivos e religio-so. Há o cidadão comum, revoltado com a tarifa, a (i)mobilidade ur-bana, a qualidade dos serviços públicos e o rosário de problemas já elencados. Haverá sempre alguns provocadores, animados pelas mais variadas motivações, em um ambiente caracterizado pela falta de lideranças claramente reconhecidas ou consensuais e pela falta de experiência ou de expertise nessa modalidade de ação coletiva, o que favorece a ação de provocadores ou daqueles dispostos a ações violentas, obviamente minoritários e deslocados. Neste ponto, subli-nhe-se a falta que faz o PT na oposição, ou a falta que faz qualquer partido popular não cooptado. Por mais que sejamos críticos da for-ma partido, é indiscutível sua importância na transmissão de expe-riências acumuladas e na formação da militância. Até a linguagem das massas nas ruas tem sua gramática. A espontaneidade é a ener-gia, mas a organização a potencializa e canaliza.

III. Sobre o estado, em suas diversas instâncias, em especial, as polícias

Sei que as polícias militares agiram, sobretudo em São Paulo, com brutalidade criminosa e, desafortunadamente, como é de praxe, seu comportamento foi defendido pelo governador, reproduzindo a postura que tem promovido a impunidade dos policiais que cometem execuções extra-judiciais. Sei também que a polícia militar organiza-da como exército está condenada a inviabilizar-se como instrumento a serviço da cidadania e da garantia de direitos. Sei que é injusto acusar os policiais, individualmente, ainda que cada indivíduo deva ser responsabilizado por seus atos. Seus atos exprimem a orientação que recebem e a educação corporativa, o que amplia o espectro da responsabilidade por ações criminosas, incluindo as instituições po-liciais e os governos.

IV. o que não sei

Este é o tópico decisivo. Não sei o que há a mais nas manifesta-ções (mas sei que há), além do que pude ver, apoiado no que o meu esquema cognitivo me permite ver. Ou seja, não sei o que esse movi-mento, em sua heterogeneidade, está inventando e nos está dizendo, e está dizendo a si mesmo, ao constituir-se. Não sei que narrativa

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2323O que eu sei e o que não sei sobre as manifestações de rua

nova produzirá, ou melhor, já produziu. E aqui estão as perguntas que me parecem chave: por que, no marasmo gerado pelo ceticismo político, tantos vão às ruas, apaixonando-se pela ação coletiva, cor-rendo risco de ferir-se, ou mesmo morrer, ou de ser preso? Qual o novo sentido de um grupo que se forja nas redes e nas ruas, tecendo sua unidade na diferença, caminhando lado a lado, experimentando uma solidariedade de outro tipo, uma fraternidade sem bandeiras, a despeito da (e por causa da) multiplicidade de desejos provavelmente muito diferentes e objetivos difusos?

A força da multidão foi reencontrada pelos jovens e pelos cida-dãos que passam perto e se deixam atrair pelo magnetismo de um pertencimento precário, provisório, sem rosto, mas com alma. Que alma tem o movimento? Sim, intuo, suponho, sinto que ele tem alma, isto é, uma unidade toda sua – não verbalizada – e uma personalida-de. Intuo que esta alma não seja aquela que se derivaria – como o negativo ou o avesso – de uma comparação com o que sabemos: não sendo, o movimento, organizado ao modo antigo, deduzir-se-ia que seria inorgânico; não tendo uma plataforma clara e uma visão com-partilhada que incorporasse as mediações, deduzir-se-ia que seria irracional, despolitizado, quando não selvagem. As visões negativas correspondem ao preenchimento das lacunas de nossa ignorância com as figuras do que já sabemos. Creio que nos conviria optar pela humildade, em vez de precipitarmo-nos em julgamentos e análises. Não me parece razoável dizer o que o movimento não é, tomando as gerações passadas por molde e vendo como irrealização e incomple-tude aquilo que é simplesmente diferente e ainda não conseguimos compreender. Há no movimento magnetismo, há conexão metoními-ca com questões centrais para o Brasil e o mundo, há um diálogo tácito, consciente e inconsciente, com a humanidade em escala pla-netária, com nossa memória social e com a tradição de nossa cultura política. Há coragem de perder o medo e de renunciar à apatia. Há, nesses eventos, no movimento pelo passe livre – ou dê-se a ele o nome que se queira – a disposição de aprender, fazendo. Há coragem para criar e, portanto, para errar. De nossa parte, os anciãos e os governantes, autorreferidos e inseguros, ameaçados em nossos es-quemas cognitivos e práticos, caberia escutar, acompanhar, respei-tar, repelir a violência policial (e qualquer outra), admitir nossa igno-rância, e considerar a hipótese de que algo novo esteja surgindo e essa novidade talvez seja virtuosa e republicana, quem sabe a rein-venção da política democrática. Talvez a melhor forma de escutar seja tentar unir-se ao coro, na rua. Para (re)aprender a falar.

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A juventude toma conta das ruas

Arnaldo Jordy

As manifestações que acontecem há pouco mais de um mês em todo o país revelam a face de um Brasil que estava adormeci-do, como vaticina a principal palavra de ordem do movimento:

“O Gigante Acordou”. E acordou com disposição para recuperar o tempo perdido.

Ao longo da história, os estudantes sempre desempenharam pa-pel fundamental na organização das massas que foram às ruas pedir liberdade, democracia e condenar a corrupção. Foi assim em 1964, 1968, Diretas Já e o impeachment de Fernando Collor, em 1992, epi-sódio que levou a juventude a pintar a cara, para ser um fator deci-sivo na queda do ex-presidente, hoje senador da República e aliado do governo. Isso há 21 anos, quando boa parte dessa geração que está nas ruas não havia sequer nascido.

O poeta carioca Carlito Azevedo, ao ver a multidão nas ruas do Rio de Janeiro, um dos principais focos dos protestos, disse com pro-priedade: “quem não estiver confuso neste momento, não está bem informado”. De fato, muita gente foi pega de surpresa. As elites fica-ram perdidas, batendo cabeça. Alguns dizendo bobagens do tipo: “seria um movimento de direita”. Aqueles que se achavam “donos” dos movimentos sociais, inconformados com a perda de controle. Nas redes sociais, os jovens construíram suas assembleias alheias às estruturas tradicionais da política, chamando para uma nova forma de fazê-la e redemocratizando a democracia.

A presidente Dilma anunciou que “quer dialogar com os líderes do movimento”. Não entendeu nada! Não existem “os líderes”. Não existe um centro de comando, nem hierarquia. O movimento é hori-zontal. O comando vem das bordas.

Nos cartazes que empunham nos protestos e na internet, o Brasil se deu conta que o movimento “não era apenas por 20 centavos”, mas contra a desigualdade econômica e social, a ganância, a corrup-ção quase generalizada, o privilégio de empresas e os investimentos obscuros em arenas milionárias para a Copa de 2014. Aqui trata-se

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2525A juventude toma conta das ruas

de uma farra inexplicável. Em 2010, o presidente Lula anunciava que não haveria recursos públicos nos estádios, depois o governo falava em 2,5 bilhões de investimentos e hoje já se contabiliza 8,6 bilhões de gastos do tesouro.

Com essas palavras de ordem, não foi difícil mobilizar consciências cada vez maiores, de muitas cores, gêneros e opiniões políticas dife-rentes, que englobam pessoas de todos os estratos da complexa socie-dade brasileira. E reunir tanta gente assim traz efeitos colaterais não desejados, que são a violência e o vandalismo patrocinados por menos de 1% dos manifestantes, gente infiltrada que aposta na baderna, na depredação, no confronto e no descontrole do movimento.

Nos últimos dois anos, a juventude esteve à frente das principais manifestações no mundo, tendo como bandeiras de organização a ordem e a defesa intransigente da não violência, para pedir democra-cia e protestar contra a corrupção. Primeiro, na chamada Primavera Árabe, especialmente nos protestos da Praça Tahir, no Cairo, em 2011. E depois, no movimento Ocupe Wall Street, também em 2011, em que milhares de jovens ocuparam o distrito financeiro de Nova Iorque, em protesto contra a corrupção e a influência das empresas financeiras na economia americana.

O Brasil mostra uma juventude antenada com as causas mun-diais, com os protestos e com a força do povo, em ação direta, sem a interferência do atual sistema representativo. O povo não se sente representado pelo Brasil do poder institucional. Chegou a hora dos dirigentes do país ouvirem o que disseram as ruas. Não foi um mu-xoxo nem um recado suave. Foi um grito forte e certeiro. A reforma política é urgente e necessária. A população já não acredita mais nesse sistema que está aí.

As manifestações são fruto de uma revolta sufocada pela agenda política e econômica do país e pela corrupção. E as suas lideranças coletivas conduzem as discussões sem as estúpidas disputas por he-gemonias partidárias.

O que está em xeque é o sistema político vigente; é a alienação das elites e da maioria dos governantes; é um Brasil que tem a séti-ma economia do mundo e detém o 73º lugar do Índice de Desenvol-vimento da Educação Básica (Ideb), o 85º lugar no Índice de Desen-volvimento Humano (IDH), o quinto com os maiores juros reais e a terceira maior carga tributária do mundo. É a falta de transparência dos gastos públicos, é o Brasil da oitava maior sociedade desigual do planeta. É o Brasil que foi às ruas para dizer basta.

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bom pra pensar

Maria Alice Rezende de Carvalho

Assim como as ruas vêm se manifestando de forma clara e con-tundente, também o entendimento acerca dessa manifestação não tem conhecido maiores disputas. Trata-se, reconhecida-

mente, do mais importante movimento em prol de direitos num Bra-sil urbano, democrático e economicamente em expansão.

É claro que há avaliações precárias sobre os tempos em que vive-mos: as que apontam a recente alta da inflação como o caldo da fer-vura, as que denunciam o poder da mídia burguesa, as que acredi-tam ser esse um movimento orquestrado pela direita radical (sic). Mas, sinceramente, ainda que tais ideias possam animar acólitos de seus formuladores, suas premissas, se convertidas em iniciativas go-vernamentais, não demoveriam a sociedade do seu impulso atual. Ou alguém crê que centavos abatidos do preço do transporte público ou mesmo o cerceamento da chamada mídia burguesa poderão re-trazer o Brasil à situação ex ante?

As ruas avançaram muito e querem mais; e uma dimensão desse desejo consiste em se unir ao movimento globalizado por direitos, cujas colorações locais não desmarcam sua vocação transnacional, planetária. Até hoje, o movimento social que continha, com exclusi-vidade, esse caráter e que, não atoa, realizou a grande revolução do século 20, uma revolução surda, invisível, mas que mudou a vida no planeta, foi o movimento feminista. A afirmação da mulher onde quer que ela se dê, no lar ou na arena pública, é o maior legado do século passado e a maior potência a animar a relação entre humanos, inu-manos, artefatos e símbolos. E se “juventude”, como categoria analí-tica, encerra as dificuldades sabidas, é mediante sua aproximação com a “revolução feminina”que se pode, talvez, começar a arranhar a compreensão do fenômeno em curso.

Nos arredores de Paris, nos anos de 1990, em bairros pobres de Londres, nos 2000, em praças de importantes cidades do Oriente Médio e Norte da África, a partir de 2010, no Zuccotti Park, em New York, no outono de 2011, e, ainda hoje, em torno do ameaçado Par-que Gezi, de Istambul, a experiência de jovens amotinados, há 30

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2727Bom pra pensar

anos, é similar à que tem curso nas praças brasileiras – da maior à menor pracinha de municípios até ontem mortos. Há fatores demo-gráficos envolvidos – em alguns casos como efeito de políticas moder-nizantes já disparadas –; há demandas pela moralização da política e pela diminuição dos índices de corrupção aferidos pela Transpa-rency International, sediada em Berlim; há a valorização da liberda-de e da desmilitarização em regimes autoritários e democráticos; e, afinal, um componente performático irremovível, pois, como disse um jovem traficante entrevistado em pleno calor dos saques londri-nos, “você sabe como funciona a mente dos britânicos. Rola concor-rência o tempo todo. Se em Tottenham as gangues quebram tudo, em Croydon ou em Chatham as gangues vão querer fazer pior”.

Há performance no movimento das ruas – performance como as-pecto estruturante da atual argumentação pública em torno de direi-tos. Não se trata apenas de defendê-los, vocalizá-los, mas de agen-ciar identidades construídas em público, no movimento. E se a revolução feminina foi silenciosa e distendida ao longo do tempo, a revolução juvenil tem urgência, irreverência e força, além de outro diferencial importante: é mais inclusiva. São poucos e limitados, até agora, os momentos em que a política se investiu da identificação feminina, como no movimento das Madres de la Plaza de Mayo ou, mais recentemente, no das Mujeres de Blanco, que tem curso em Cuba. Mas, no caso da identificação juvenil, é desnecessário pergun-tar quem não foi rejuvenescido pela energia das ruas? De sorte que, um mundo que se entregara à crença no fim da história, um mundo enrijecido e burocrático, que via na “civilização dos segurados” seu melhor índice de acerto, naufraga diante de nós. Haverá tempos e colorações distintas nesse naufrágio, mas o fenômeno é universal e diz da vitalidade da política e da luta pela ampliação do seu escopo.

Portanto, política e direitos são termos entrelaçados no movimento das ruas. E se é verdade que tal movimento vem sendo devidamente entendido no seu sentido geral, há que pensar algumas temáticas que o emolduram e que deverão seguir conosco, reflexivamente. A primeira delas diz respeito à centralidade da questão urbana no mundo con-temporâneo e, se quisermos, no Brasil, país que, nos últimos 100 anos, viu a população residente em suas cidades caminhar progressi-vamente até a marca atual de 85% da população total. O percentual é suficientemente expressivo para que entendamos que, hoje, nossas tensões distributivas estão contidas nessa moldura urbanística. Ainda mais se nosso modelo de cidade é o extensivo ou rodoviário.

O modelo rodoviário de cidades, como a ele se referiu Milton San-tos ainda no começo dos anos de 1990, não é uma exclusividade

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2828 Maria Alice Rezende de Carvalho

brasileira, caracterizando-se por afastar o trabalhador do centro ur-bano e levando-o a percorrer vários quilômetros por dia, entre os dois principais polos de sua existência: casa-trabalho-casa. No Brasil, contudo, esse modelo foi implantado nos anos de 1960, a partir da opção governamental pelo transporte rodoviário em detrimento do transporte sobre trilhos, que era, até então, a forma convencional de estruturação da malha urbana. Tal opção não obedeceu, é claro, a critérios urbanísticos, afinando-se com iniciativas voltadas ao desen-volvimento da indústria automobilística. E a ditadura militar impe-diu que os efeitos desse novo lançamento do capitalismo no país fossem dosados, avaliados, revistos, eventualmente.

Ela simplesmente recalcou o problema diante de uma classe tra-balhadora reprimida e progressivamente desorganizada.

Hoje, mais de duas décadas após a promulgação da Constituição de 1988, a agenda da democratização brasileira ainda não havia lan-cetado esse tumor. Nesse sentido, as ruas tocaram o cerne da nossa experiência cidadã ao não permitirem que se aumentasse o paga-mento por um serviço discricionário, que humilha e degrada o traba-lhador, que não faculta a ele, com igualdade de condições, o acesso à cidade. A cidade como bem público, que vinha sendo encurtada na sua dimensão política teve aí um primeiro sopro de vitória. Há, nesse caso, um dever de casa a ser executado pelas autoridades governa-mentais; mas, independente do que venham a fazer, o entendimento acerca do desastroso modelo rodoviário, que sobrevive como um en-tulho autoritário nas cidades do Brasil, foi sedimentado entre todos os cidadãos.

Outra questão a ser destacada, e que se articula à primeira, diz respeito aos vínculos entre democratização urbana e tecnologias de comunicação e informação. Não é possível aventurar-se nesse ocea-no usando boia de pneu – não o farei. Mas o aspecto a ser destacado é que a literatura sobre cidades jamais conviveu positivamente com a emergência dessas tecnologias, atribuindo a elas o risco da atomi-zação dos urbanitas, o fastio de cidade. Chegou-se a aventar que as vias engarrafadas das megacidades encontrariam uma solução “na-tural”, na medida em que homens e mulheres desistiram das ruas, substituindo seus deslocamentos físicos pelas trocas facultadas pela internet.

Nesse mundo imaginado – e que aqui conhece uma exageração –, o argumento central, embora subentendido, era o da progressiva reunião virtual de iguais, ao modo de condomínios de ideias, valores e práticas, replicando, aliás, o ambiente urbano das últimas déca-

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2929Bom pra pensar

das. Contudo, ao longo desse último mês, o que se observa é que as redes e as ruas foram sendo tomadas pela diversidade – fato que, por um lado, torna o cenário potencialmente mais explosivo, porém, por outro, retraz a cidade à sua mais profunda figuração humanista, republicana.

Por fim, uma terceira questão política que deverá alimentar nossa reflexão sobre os atuais acontecimentos concerne à democracia re-presentativa e, mais especificamente, à noção de que a instituciona-lização democrática não se esgota no funcionamento do regime; ela prevê “condições adicionais” que extrapolam a definição restrita de democracia. Uma dessas condições consiste, por exemplo, na perma-nente reconstrução de uma identificação social comum, sem a qual o sentimento de participação no jogo se vê arrefecido e a democracia, fragilizada. Portanto, o regime democrático é central, mas deve ser permanentemente inquirido a partir das suas margens – lugar que pode oferecer um ponto de vista revelador daquilo que permanece oculto ou naturalizado sob a rotina das instituições.

Após um mês de efervescência das ruas, pode-se dizer que o prin-cipal saldo político do movimento não foram as respostas pontuais das autoridades às demandas da população, embora seja essa a perspectiva do regime. O principal saldo consistiu na construção de uma “comunidade” não essencializada e indeterminada, isto é, na formação “em ato” da vontade coletiva, apoiada na intersubjetividade e em pressupostos pragmáticos dos atores. E isso é tão importante porque o fato de indivíduos ordinários terem criado um novo padrão cultural de comunidade extrai a possibilidade de renovação demo-crática da chave da utopia, dos maciços filosóficos, de seus intérpre-tes exclusivos e suas lideranças exotéricas.

Estamos diante de um movimento que dialoga com a sugestão habermasiana de que a solidariedade possível na modernidade tar-dia é a que se fundamenta racionalmente. Uma solidariedade reflexi-va, sinônimo de interesse comum racionalmente obtido. Estamos to-dos juntos, por ora e afinal.

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o mal-estar contemporâneo1

André Lara Resende

Nenhuma liderança soube captar e expressar o mal-estar con-temporâneo. Este é provavelmente o seu elemento novo: a in-ternet viabiliza a mobilização antes que surjam as lideranças.

Na tentativa de interpretar o protesto das ruas nas grandes cida-des brasileiras, há uma natural tentação de fazer um paralelo com os movimentos similares nos países avançados, sobretudo da Europa, mas também nos EUA – Occupy Wall Street – assim como com os da chamada Primavera Árabe. As condições objetivas são, contudo, muito distintas. A Primavera Árabe é um fenômeno de países totali-tários, onde não há representação democrática. Não é o caso do Bra-sil. Na Europa, sobretudo nos países mediterrâneos periféricos mais atingidos pelos efeitos da crise financeira de 2008, houve uma drás-tica piora das condições de vida. O desemprego, especialmente entre os jovens, subiu para níveis dramáticos. Mais uma vez, não é o caso do Brasil.

Nem os críticos mais radicais ousariam argumentar que o Brasil de hoje não se enquadra nos moldes das democracias representati-vas do século XX. Podem-se culpar os desacertos da política econô-mica nos últimos seis anos. Embora devam ficar mais evidentes da-qui para a frente, os efeitos negativos da incompetência da política econômica só muito recentemente se fizeram sentir. Fato é que, des-de a estabilização do processo inflacionário crônico, houve grandes avanços nas condições econômicas de vida dos brasileiros. Nos últi-mos 20 anos, houve ganho substancial de renda entre os mais po-bres. Ao contrário do que ocorreu em outras partes do mundo, até mesmo nos países avançados, a distribuição de renda melhorou. O desemprego está em seu mínimo histórico.

É verdade que a inflação, especialmente a de alimentos, que se faz sentir mais intensamente pelos assalariados, está em alta. Por mais consciente que se seja em relação aos riscos, políticos e econô-

1 Texto apresentado na Festa Literária de Paraty (Flip), em debate com o filósofo Mar-cos Nobre, dia 14 de julho.

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3131O mal-estar contemporâneo

micos, da inflação, é difícil atribuir à inflação o papel de catalisadora do movimento das ruas nas últimas semanas. Só agora a taxa de inflação superou o teto da banda – excessivamente generosa, é ver-dade – da meta do Banco Central.

Os dois elementos tradicionais da insatisfação popular – dificul-dades econômicas e falta de representação democrática – definitiva-mente não estão presentes no Brasil de hoje. Inflação, desemprego, autoritarismo e falta de liberdade de expressão não podem ser invo-cados para explicar a explosão popular. O fenômeno é, portanto, novo. Procurar interpretá-lo de acordo com os cânones do passado parece-me o caminho certo para não o compreender.

O movimento de maio de 1968 na França tem sido lembrado diante das manifestações das últimas semanas. O paralelo se justifi-ca, pois maio de 68 é o paradigma do movimento sem causas claras nem objetivos bem definidos, uma combustão espontânea surpreen-dente, que ocorre em condições políticas e econômicas relativamente favoráveis. Movimento que, uma vez detonado, canaliza um senti-mento de frustração difusa – um malaise – com o estado das coisas, com tudo e todos, com a vida em geral.

A novidade mais evidente em relação a maio de 68 na França é a internet e as redes sociais. Embora não tivesse expressão clara na vida pública francesa, a insatisfação difusa poderia ter sido diagnos-ticada, ao menos entre os universitários parisienses. No Brasil de hoje, a irritação difusa podia ser claramente percebida na internet e nas redes sociais. O movimento pelo passe livre fez com que este mal-estar transbordasse do virtual para a realidade das ruas. Tanto os universitários franceses de 68, quanto os internautas do Brasil de hoje, não representam exatamente o que se poderia chamar de as massas ou o povão, mas funcionam igualmente como sensores e ca-talisadores de frustrações comuns.

Quais as causas do mal-estar difuso no Brasil de hoje, que trans-bordou da internet para a realidade e levou a população às ruas?

Parecem ter dois eixos principais. O primeiro, e mais evidente, é uma crise de representação. A sociedade não se reconhece nos pode-res constituídos – Executivo, Legislativo e Judiciário – em todas suas esferas. O segundo é que o projeto do Estado brasileiro não corres-ponde mais aos anseios da população. O projeto do Estado, e não do governo, é importante que se note, pois a questão transcende gover-nos e oposições. Este hiato entre o projeto do Estado e a sociedade explica em grande parte a crise de representação.

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3232 André Lara Resende

O Estado brasileiro mantém-se preso a um projeto cuja formula-ção é do início da segunda metade do século passado. Um projeto que combina uma rede de proteção social com a industrialização forçada. A rede de proteção social inspirou-se nas reformas das eco-nomias capitalistas da Europa, entre as duas Grandes Guerras, re-forçadas após a crise dos anos 1930. Foi introduzida no Brasil por Getúlio Vargas, para a organização do mercado de trabalho, basea-do no modelo da Itália de Mussolini. A industrialização forçada atra-vés da substituição de importações, introduzida por Juscelino Ku-bitschek nos anos 1950, e reforçada pelo regime militar nos anos 1970, tem raízes mais autóctones. Suas origens intelectuais são o desenvolvimentismo latino-americano dos anos 1950, que defendia a ação direta do Estado, como empresário e planejador, para acele-rar a industrialização.

Não nos interessa aqui fazer a análise crítica do projeto desenvol-vimentista que, com altos e baixos, aos trancos e barrancos, cum-priu seu papel e levou o país às portas da modernidade neste início de século. Basta ressaltar que o desenvolvimentismo, em seus dois pilares – a industrialização forçada e a rede de proteção social – de-pendem da capacidade do Estado de extrair recursos da sociedade. Recursos que devem ser utilizados para financiar o investimento pú-blico e os benefícios da proteção social.

Diante da baixa taxa de poupança do setor privado e da precarie-dade da estrutura tributária do Estado, a inflação transferiu os re-cursos da sociedade para o Estado, até que nos anos 1980 viesse a se tornar completamente disfuncional. Com a inflação estabilizada, a partir do início dos anos 1990, o Estado se reorganizou para arreca-dar por via fiscal também os recursos que extraía através do imposto inflacionário. A carga fiscal passou de menos de 15% da renda nacio-nal, no início dos anos 1950, para em torno de 25%, nas décadas de 1970 a 90, até saltar para os atuais 36%, depois da estabilização da inflação. O Brasil tem hoje uma carga tributária comparável, ou mes-mo superior, à das economias mais avançadas.

O projeto do PT no governo revelou-se flagrantemente retrógrado. É essencialmente a volta do nacional-desenvolvimentismo

Apesar de extrair da sociedade mais de um terço da renda nacio-nal, o Estado perdeu a capacidade de realizar seu projeto. Não o consegue entregar porque, apesar de arrecadar 36% da renda nacio-nal, investe menos de 7% do que arrecada, ou seja, menos de 3% da renda nacional. Para onde vão os outros 93% dos quase 40% da ren-da que extrai da sociedade? Parte, para a rede de proteção e assis-

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tência social, que se expandiu muito além do mercado de trabalho organizado, mas, sobretudo, para sua própria operação. O Estado brasileiro tornou-se um sorvedouro de recursos, cujo principal obje-tivo é financiar a si mesmo. Os sinais dessa situação estão tão evi-dentes, que não é preciso conhecer e analisar os números. O Execu-tivo, com 39 ministérios ausentes e inoperantes; o Legislativo, do qual só se tem más notícias e frustrações; o Judiciário pomposo e exasperadoramente lento.

O Estado foi também incapaz de perceber que seu projeto não corresponde mais ao que deseja a sociedade. O modelo desenvolvi-mentista do século passado tinha dois pilares. Primeiro, a convicção de que a industrialização era o único caminho para escapar do sub-desenvolvimento. Países de economia primário-exportadora nunca poderiam almejar alcançar o estágio de desenvolvimento das econo-mias industrializadas. Segundo, a convicção de que o capitalismo moderno exige a intervenção do Estado em três dimensões: para es-tabilizar as crises cíclicas das economias de mercado; para prover uma rede de proteção social; e, no caso dos países subdesenvolvidos, para liderar o processo de industrialização acelerada. As duas pri-meiras dimensões da ação do Estado são parte do consenso formado depois da crise dos anos 1930. A terceira decorre do sucesso do pla-nejamento central soviético em transformar uma economia agrária, semifeudal, numa potência industrial em poucas décadas. A prote-ção tarifária do mercado interno, com o objetivo de proteger a indús-tria nascente e promover a substituição de importações, completava o cardápio com um toque de nacionalismo.

O nacional-desenvolvimentismo, fermentado nos anos 1950, teve sua primeira formulação como plano de ação do governo na proposta de Roberto Simonsen. Embora sempre combatido pelos defensores mais radicais do liberalismo econômico, como Eugênio Gudin, autor de famosa polêmica com Simonsen, e posteriormente por Roberto Campos, foi adotado tanto pela esquerda, como pela direita. Seu pe-ríodo de maior sucesso foi justamente o do “milagre econômico” do regime militar.

Na década de 1980, a inflação se acelera e se torna definitivamen-te disfuncional. As sucessivas e fracassadas tentativas de estabiliza-ção passam a dominar o cenário econômico. Com a estabilização do real, a partir da segunda metade da década de 1990, ainda com al-gum constrangimento em reconhecer que o nacional-desenvolvimen-tismo já não fazia sentido num mundo integrado pela globalização, o país parecia estar em busca de novos rumos. A vitória do PT foi, sem dúvida, parte da expressão desse anseio de mudança.

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Nos dois primeiros anos do governo Lula, a política econômica foi essencialmente pautada pela necessidade de acalmar os mercados financeiros, sempre conservadores, assustados com a perspectiva de uma virada radical à esquerda. A partir daí, o PT passou a pôr em prática o seu projeto. Um projeto muito diferente do que defendia enquanto oposição. O projeto do PT no governo, frustrando as expec-tativas dos que esperavam mudanças, muito mais do que o aparente continuísmo dos primeiros anos do governo Lula, revelou-se flagran-temente retrógrado. É essencialmente a volta do nacional-desenvol-vimentismo, inspirado no período em que este foi mais bem-sucedi-do: durante o regime militar. A crise internacional de 2008 serviu para que o governo abandonasse o temor de desagradar os mercados financeiros e, sob pretexto de fazer política macroeconômica anticí-clica, promovesse definitivamente a volta do nacional-desenvolvi-mentismo estatal.

O PT acrescentou dois elementos novos em relação ao projeto nacional-desenvolvimentista do regime militar: a ampliação da rede de proteção social, com o Bolsa Família, e o loteamento do Estado. A ampliação da rede de proteção social se justifica, tanto como uma iniciativa capaz de romper o impasse da pobreza absoluta, em que, apesar dos avanços da economia, grande parte da população brasilei-ra se via aprisionada, quanto como forma de manter um mínimo de coerência com seu discurso histórico. Já a lógica por trás do lotea-mento do Estado é puramente pragmática. Ao contrário do regime militar, que não precisava de alianças difusas, o PT utilizou o lotea-mento do Estado, em todas suas instâncias, como moeda de troca para compor uma ampla base de sustentação. Sem nenhum pudor ideológico, juntou o sindicalismo de suas raízes com o fisiologismo do que já foi chamado de Centrão, atualmente representado princi-palmente pelo PMDB, no qual se encontra toda sorte de homens pú-blicos, que, independentemente de suas origens, perderam suas con-vicções ao longo da estrada e hoje são essencialmente cínicos.

Há ainda um terceiro elemento do projeto de poder do PT. Trata--se da eleição de uma parte do empresariado como aliada estratégica. Tais aliados têm acesso privilegiado ao crédito favorecido dos bancos públicos e, sobretudo, à boa vontade do governo, para crescerem, absorverem empresas em dificuldades, consolidarem suas posições oligopolistas no mercado interno e se aventurarem internacional-mente como “campeões nacionais”.

A combinação de um projeto anacrônico com o loteamento do Es-tado entre o sindicalismo e o fisiologismo político, ao contrário do pre-tendido, levou à sobrevalorização cambial e à desindustrialização. Só

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foi possível sustentar um crescimento econômico medíocre enquanto durou a alta dos preços dos produtos primários, puxados pela de-manda da China. A ineficiência do Estado nas suas funções básicas – segurança, infraestrutura, saúde e educação – agravou-se signifi-cativamente. Ineficiência realçada pela redução da pobreza absoluta na população, que aumentou a demanda por serviços de qualidade.

Loteado e inadimplente em suas funções essenciais, enquanto absorvia parcela cada vez maior da renda nacional para sua própria operação, o Estado passou a ser visto como um ilegítimo expropria-dor de recursos. Não apenas incapaz de devolver à sociedade o míni-mo que dele se espera, mas também um criador de dificuldades. A combinação de uma excessiva regulamentação de todas as esferas da vida, com a truculência e a arrogância de seus agentes, consoli-dou o estranhamento da sociedade. Em todas as suas esferas, o Es-tado deixou de ser percebido como um aliado, representativo e pres-tador de serviço. Passou a ser visto como um insaciável expropriador, cujo único objetivo é criar vantagens para os que dele fazem parte, enquanto impõe dificuldades e cria obrigações para o resto da popu-lação. O contraste da realidade com o ufanismo da propaganda ofi-cial só agravou o estranhamento e consolidou o divórcio entre a po-pulação e os que deveriam ser seus representantes e servidores.

A insatisfação com a democracia representativa não é um fenô-meno exclusivamente brasileiro. As razões dessa insatisfação ainda não estão claras, mas é possível que o modelo de representação de-mocrática, constituído há dois séculos para sociedades menores e mais homogêneas, tenha deixado de cumprir seu papel num mundo interligado de 7 bilhões de pessoas, e precise ser revisto. O debate público deslocou-se das esferas tradicionais da política para a inter-net e as redes sociais. Ameaçada pelo crescimento da internet e ha-bituada ao seu papel de agente da política tradicional, a mídia não percebeu que o debate havia se deslocado.

No caso brasileiro, perplexa com sua aparente falta de repercus-são e pressionada financeiramente pela competição da internet, uma parte da mídia desistiu do jornalismo de interesse público e passou a fazer um jornalismo de puro entretenimento. Mesmo os que resis-tiram, cederam, em maior ou menor escala, à lógica dos escândalos. Foram incapazes de compreender a razão da sua falta de repercus-são, pois não se deram conta de que o público e o debate haviam se deslocado para a internet. Surpreendida pelo movimento de protes-tos, num primeiro momento, a mídia não foi capaz de avaliar a exten-são da insatisfação. Transformou-se ela própria em alvo da irritação popular. Em seguida, aderiu sem convencer, sempre a reboque do

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debate e da mobilização através da internet. A favor da mídia, diga-se que ninguém foi capaz de captar a insatisfação latente antes da eclo-são do movimento das ruas. As pesquisas apontavam, até muito re-centemente, grande apoio à presidente da República, considerada praticamente imbatível, até mesmo por seus eventuais adversários nas próximas eleições. Nenhuma liderança soube captar e expressar o mal-estar contemporâneo. Este é provavelmente o seu elemento novo: a internet viabiliza a mobilização antes que surjam as lideran-ças. Tanto as possibilidades como os riscos são novos.

O projeto nacional-desenvolvimentista combina o consumismo das economias capitalistas avançadas com o produtivismo soviético. Ambos pressupõem que o crescimento material é o objetivo final da atividade humana. Aí está a essência de seu caráter anacrônico. Os avanços da informática permitiram a coleta de um volume extraordi-nário de evidências sobre a psicologia e os componentes do bem-es-tar. A relação entre renda e bem-estar só é claramente positiva até um nível relativamente baixo de renda, capaz de atender às necessi-dades básicas da vida. A partir daí, o aumento do bem-estar está associado ao que se pode chamar de qualidade de vida, cujos ele-mentos fundamentais são o tempo com a família e os amigos, o sen-tido de comunidade e confiança nos concidadãos, a saúde e a ausên-cia de estresse emocional.

Os estudos da moderna psicologia comprovam aquilo que de uma forma ou de outra, mais ou menos conscientemente, intuímos todos: nossa insaciabilidade de bens materiais advém do fato de que o bem--estar que nos trazem é efêmero. Para manter a sensação de bem-es-tar, precisamos de mais e novas aquisições. O consumismo material tem elementos parecidos com o do uso de substâncias entorpecentes que causam dependência física e psicológica.

No mundo todo, a população parece já ter intuído a exaustão do modelo consumista do século XX, mas ainda não encontrou nas es-feras da política tradicional a capacidade de participar da formulação das alternativas. Apegada a fórmulas feitas, a política continua pau-tada pelos temas e objetivos de um mundo que não corresponde mais à realidade de hoje. As grandes propostas totalizantes já não fazem sentido. O nacionalismo, a obsessão com o crescimento material, a ênfase no consumo supérfluo, os grandes embates ideológicos, te-mas que dominaram a política nos últimos dois séculos, perderam importância. Hoje, o que importa são questões concretas, relativas ao cotidiano, questões de eficiência administrativa para garantir a qualidade de vida.

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É significativo que os protestos no Brasil tenham começado com a reivindicação do passe livre nos transportes públicos urbanos. A questão da mobilidade nas grandes metrópoles é paradigmática da exaustão do modelo produtivista-consumista. A indústria automobi-lística foi o pilar da industrialização desenvolvimentista e o automó-vel o símbolo supremo da aspiração consumista. O inferno do trân-sito nas grandes cidades, que se agrava quanto mais bem-sucedido é o projeto desenvolvimentista, é a expressão máxima da completa in-viabilidade de prosseguir sem uma revisão profunda de objetivos. Ao que parece, a sociedade intuiu a falência do projeto do século passa-do antes que o Estado e aqueles que deveriam representá-la – gover-no e oposição, Executivo, Legislativo e imprensa – tenham se dado conta de que hoje trabalham com objetivos anacrônicos.

A insatisfação difusa dos protestos pode vir a ser catalizadora de uma mudança profunda de rumo, que abra o caminho para um novo desenvolvimento, não mais baseado exclusivamente no crescimento do consumo material, mas na qualidade de vida. Para isso, é preciso que surjam lideranças capazes de exprimir, formular e executar o novo desenvolvimento.

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o levante democrático das ruas no brasil

Marcelo Burgos

Mesmo que as cenas de depredações e de enfrentamentos violentos possam, momentaneamente, encobrir com o man-to da incerteza e da insegurança o significado do levante

de junho de 2013, é evidente que seu impulso originário é a luta por mais democracia, por mais igualdade, mais liberdade de parti-cipação e por mais direitos. É essa a motivação que tem arrastado milhares de jovens às ruas país afora e que conquistou o amplo en-tusiasmo da sociedade.

Seja qual for o desfecho mais imediato das manifestações, sua razão de fundo é a luta por acesso à política, que tem sido sistema-ticamente interditado, em cima, por anéis de interesses que articu-lam máquinas partidárias e o grande empresariado, sempre justifi-cado pela fórmula do que se convencionou denominar de “presidencialismo de coalização”; e em baixo, pelos mecanismos de controle do acesso ao voto que incluem desde o clientelismo tradi-cional até a coerção mais direta e brutal realizada pelos mandões locais, do que são exemplo as milícias.

O grito das ruas traz essa voz sufocada pelo amesquinhamento da representação política e por isso seu alvo principal são as institui-ções cuja legitimidade está fundada no voto. Os sinais da insurgên-cia já estavam dados, mas os altos índices de aprovação da gestão da presidenta impediam que fossem notados – e por aí se vê o quão en-ganosas podem ser as pesquisas de opinião. As evidências ganham contornos mais nítidos com a crescente descrença no Legislativo, e o excessivo protagonismo conferido ao Judiciário nos últimos anos – sobretudo com o julgamento da Ação Penal 470 –, escancara o enor-me vazio de política; a tal ponto que em um dado momento um único juiz da Suprema Corte parecia encarnar o sentimento de justiça de toda a nação. Mais do que ativismo judicial, contudo, o quadro indi-cava uma situação de grave subserviência do Legislativo ao Executi-vo, que tem atuado como principal acionista da desmoralização da

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democracia representativa.1 O julgamento do mensalão foi, na verda-de, a antessala da explosão das ruas.

Sempre se pode argumentar, evocando Tocqueville, que nada tor-nava o levante das ruas inevitável, e que ele é um acidente, cujos efeitos serão no máximo o de acelerar processos de reformas já em curso e que iriam ocorrer sem ele. Talvez, se os sinais tivessem sido escutados antes, se as sondas fossem suficientemente sensíveis, o levante não tivesse chegado ao ponto que chegou. Mas sua eclosão é a contraprova do quanto o sistema político brasileiro se tornou au-torreferido e por isso mesmo tão vulnerável.

O mais importante agora, no entanto, é constatar que tal como no ataque ao Muro de Berlim cuja derrubada, apesar de previsível, se deu de forma surpreendente, o levante das ruas do Brasil se im-pôs como força irresistível sem que suas razões sequer precisassem ser justificadas.

A identificação de amplos segmentos da sociedade com ele foi quase instantânea, e para isso contribuiu a sua natureza mais per-formática que argumentativa, e a conformação desse novo espaço–tempo característico dos movimentos sociais contemporâneos, que se dá nesse ambiente etéreo existente entre o mundo virtual das re-des sociais e o encontro presencial das ruas.

Plástico e multiforme, o levante pôde incorporar um largo feixe de anseios represados pelo constrangimento do acesso à política, e por trazer a carga dramática das ruas, num simulacro das barricadas das revoluções democráticas, serviu à catarse de um acúmulo de insatisfação e de indignação.

Com o levante, uma parcela da soberania popular é recuperada pela sociedade, desestabilizando o modelo vigente, baseado na usur-pação quase completa do acesso à política.

Seu maior legado deverá ser a correção de rumo de um projeto político de afirmação da democracia a partir de cima, capitaneado por um governo cuja história política tem raiz nos partidos de es-querda, mas que reivindicou para si a prerrogativa de se investir de uma racionalidade tecnocrática, que há muito deixou de consultar os interesses da sociedade, esterilizando sua participação.

Muitas são as evidências de que a ruptura com os anseios de-mocráticos de participação ocorreu logo no início do governo Lula. Em qualquer setor que se fizer a pesquisa as evidências serão abun-

1 Sobre o assunto, ver Boletim Cedes, abril de 2013.

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dantes. É ver o que se deu com o Ministério das Cidades, filho de uma longa mobilização popular conduzida pelo Fórum Nacional da Reforma Urbana.

Passado o primeiro momento do novo governo, a pasta logo é sub-metida ao balcão de negociação chancelado pela fórmula do presi-dencialismo de coalizão, e ainda que as lideranças dos movimentos sociais continuassem a frequentar as reuniões dos conselhos que o compõem, suas bases gradualmente se tornam elos remotos de uma cadeia cujo comando está todo encerrado na lógica autopoiética do governo. O mesmo pode ser verificado no Fórum Nacional do Traba-lho, igualmente criado na primeira hora da era Lula, no interior do Ministério do Trabalho e Emprego. Logo seu impulso reformista é interrompido em favor de uma ampla coalização operária organizada a partir de cima, com as centrais, deixando as bases sindicais dis-tantes dos processos decisórios, e ainda mais fragilizadas com a ma-nutenção do imposto sindical.

Assim é que o impulso participativo que parecia ganhar novo fô-lego com a chegada de Lula ao poder sofre, ao contrário, seu pior revés, de vez que agora, diversamente do que ocorrera com o ciclo FHC, sequer se contaria com um partido de oposição capaz de cana-lizar os anseios da sociedade, e muito especialmente dos que estão chegando agora à cena pública, como esses jovens que já nascem nas portas do século 21.

Nos estados e na vida local, a interdição das vias de acesso à polí-tica a partir do arranjo no plano federal tende a se tornar ainda mais dura. Um bom laboratório para se observar essa configuração é a po-lítica educacional e o que vem ocorrendo com as escolas públicas.

Concebidas como esteio da formação da cultura democrática em um país que vinha de uma longa história de exposição ao autorita-rismo, a escola deveria gozar de autonomia para se converter no berço da formação da cidadania, internalizando formas de participa-ção coletiva, que valorizassem a voz de seus estudantes e professo-res; no entanto, o que se assiste é, ao contrário, sua submissão a uma racionalidade tecnocrática, que cancela quase completamente sua autonomia, silenciando-a no interior de seus muros ao desqua-lificar os sindicatos de seus profissionais e ao esvaziar suas instân-cias internas de participação coletiva. A redução da escola a um serviço, cuja eficiência deve ser avaliada por indicadores de profici-ência na aprendizagem submetidos aos ditames das tecnocracias locais, é um efeito sensível da privação de política no âmbito da vida pública de estados e municípios.

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4141O levante democrático das ruas no Brasil

Em outras áreas, também, o fenômeno se faz sentir. Os processos decisórios envolvendo a definição de grandes intervenções urbanas, como criação de novas vias de transporte ou a remoção de morado-res, têm sido realizados sob uma espessa capa de discricionariedade por parte dos executivos municipais e estaduais, não admitindo a participação da sociedade. E para isso o pretexto de atender às ne-cessidades de eventos como a Copa e a Olimpíada é perfeito. Aliás, agora que a rua desnudou o rei, restaram escandalosamente eviden-tes as razões do empenho dos governos federal e regionais para ofe-recer o país a esses eventos. É que poucos artifícios se prestam tão formidavelmente ao cancelamento da política.

O caso da luta por um outro projeto de construção da Linha 4 do metrô no Rio de Janeiro é, sob esse aspecto, exemplar. Tendo à fren-te as associações de moradores e o Forum da Mobilidade Urbana, liderados por homens e mulheres – quase todos de cabelos brancos – o Movimento “Linha 4 que o Rio Precisa” contestou o projeto apre-sentado pelo governo estadual, apresentando uma proposta alterna-tiva. Para essa causa conseguiu mobilizar o apoio de diversos parla-mentares, do Clube de Engenharia e do Ministério Público, construindo uma opinião tecnicamente fundamentada e utilizando todos os canais de participação criados pela democracia de 1988.

No entanto, foi arrogantemente ignorado pelo poder público. E desse enorme esforço organizacional resultou um profundo senti-mento de impotência em face de um governo que já não precisava mais consultar a sociedade para tomar a decisão de investir cerca de R$ 9 bilhões em um projeto comprometido por graves vícios técnicos, e cujas motivações de fundo somente se tornam nítidas quando se considera que sua lógica obedece às razões particularistas dos anéis de interesses que articulam o círculo governante, as grandes emprei-teiras responsáveis pela obra e a concessionária que administra o Metrô. A dura derrota do movimento deixava claro que às autorida-des já não era necessário consultar a sociedade civil organizada, e que para assegurar no próximo ciclo eleitoral a sua quase ilimitada discricionariedade bastaria acionar as engrenagens de sua fábrica de votos, cuja captura já quase nada tinha a ver com a política.2

Com o levante3 das ruas e a recuperação de ao menos parcela de sua soberania a sociedade deverá se reorganizar, reatando os elos entre sindicatos, associações e movimentos sociais, e abrindo novos

2 Sobre o assunto, ver Boletim Cedes, jan.-mar./2012.3 Esta palavra é definida pelos dicionários como “manifestação coletiva contrária”,

“motim” e “revolta”, mas também como “lugar onde o sol nasce”.

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espaços para o diálogo e a gradual reconquista de espaços nas dife-rentes áreas da vida pública. Disso se poderá esperar muito mais do que simplesmente serviços públicos mais eficientes, mas toda uma nova institucionalidade democrática, que multiplique em todas as esferas da vida brasileira uma cultura mais substantivamente par-ticipativa. Disso também se poderá esperar uma reforma profunda da política, que revitalize os partidos e recupere para a cidadania o poder do voto.

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mobilizações singulares exigem atenção incomum

Augusto de Franco

Foram as maiores manifestações de rua desde as dos carapinta-das (que antecederam o impeachment de Collor em 1992). Com características inovadoras desta feita: não foram convocadas

centralizadamente, não havia liderança (e sim multiliderança, múlti-plas lideranças emergentes e eventuais) e uma prova disso, em São Paulo, as passeatas se bifurcaram, percorreram e ocuparam várias localidades da cidade. Mais de 2 milhões de pessoas já saíram às ruas no Brasil em junho, movimentação que ocorreu em dezenas de cidades (além das capitais).

Na verdade, trata-se da maior movimentação da sociedade brasi-leira de que se tem notícia. Nunca houve algo assim tão profundo, tão generalizado, tão duradouro e tão espontâneo. A partir de 17 de junho, ficou registrado em nossa história o maior swarming (enxa-meamento, uma dinâmica de rede, uma fenomenologia da interação em mundos altamente conectados) já visto no país. Embora muitos grupos tentassem convocar os eventos, as pessoas compareceram por seus próprios motivos e interagiram nos seus próprios termos. Ainda bem.

A grande maioria (o Ibope aponta 75%) da população apoiou as movimentações. Ou seja, os que – por algum motivo – não compare-ceram aos atos, passeatas e ocupações, são solidários a tudo isso e continuam favoráveis ao que está acontecendo. Pensem bem: é quase todo o Brasil! É claro que essas pessoas não apoiam os atos violen-tos, os saques, as depredações, o chamado vandalismo. Mas elas continuam favoráveis às multidões que estão se constelando em pra-ças e ruas de praticamente todo o território nacional. Porque sabem que – apesar da cobertura da mídia, concentrada em noticiar a vio-lência – esses incidentes são laterais e extremamente minoritários (se compararmos com os grandes contingentes que saem às ruas de modo pacífico, os tais vândalos não chegam nem a 1%).

O inovador dessa movimentação incrível (e inédita) que estamos vivendo no Brasil é que ela não tem organização verticalizada, não tem direção, foi convocada de modo distribuído e com a utilização de

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4444 Augusto de Franco

mídias interativas. Ou seja, a despeito dos sinceros esforços dos que querem convocá-los e orientá-los, os eventos estão sendo organiza-dos pelos próprios participantes, pessoalmente ou em múltiplos gru-pos que não podem ser representados por ninguém.

O grupo que lançou o Movimento Passe Livre (MPL) não represen-ta a agitação que está em curso no país. Aliás, não existe um movi-mento, existem várias movimentações sintonizadas, que se sinergi-zam mutuamente. Essas multidões – atenção: não massas – que se aglomeram e enxameiam em todo o país não são representadas pelo MPL, nem por qualquer comitê, coordenação, direção de algum mo-vimento hierárquico. O que está ocorrendo é mais a manifestação de uma fenomenologia da interação em mundos sociais altamente co-nectados do que uma dinâmica participativa assembleísta que possa ser administrada e conduzida por estruturas centralizadas por meio de seus agentes (dirigentes e militantes).

Estamos diante de um fenômeno de rede. Mas parece que a ficha ainda não caiu na cabeça daquela parte da militância que tem a tara de organizar os outros e conduzi-los para algum lugar. Uma prova disso é a ansiedade para ter um foco, uma pauta de reivindicações, um programa definido para negociar com os governos... Se continuar assim não tardará a surgir algum esperto propondo a criação de uma nova organização, de um comitê nacional, de comitês estaduais, de comitês municipais, e até de um novo partido (com a maior boa in-tenção do mundo, é claro, para não desacumular, para não desper-diçar o imenso potencial que foi despertado).

Por tudo isso, penso que estamos diante, neste exato momento, de uma bifurcação importante. Não tenho a menor ansiedade ou pre-ocupação com a continuidade do que alguns chamam de “o movi-mento” e que, na verdade, são múltiplas manifestações: elas foram, são e serão o que serão. O que foi feito (não me refiro propriamente à redução do preço das passagens) já foi feito (e modificou a sociedade na sua intimidade, em profundidade maior do que podemos agora alcançar). O que será feito, será feito e acontecerá o que poderá acon-tecer, ao sabor dos ventos, no imprevisível fluxo interativo percorren-do múltiplos caminhos. As redes distribuídas não são instrumentos para realizar a mudança: elas já são a mudança!

O que me preocupa é a eventual criação de barreiras, filtros, ar-madilhas de fluxos (como o são as organizações hierárquicas) que tentem bloquear ou condicionar a livre interação: por exemplo, ini-ciativas que tentem erigir comitês, realizar eleições para escolher re-presentantes, reunir assembleias para aprovar pautas, plataformas,

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4545Mobilizações singulares exigem atenção incomum

programas e adotar modos de regulação que criem artificialmente escassez, introduzindo as inevitáveis disputas de tendências e luta de facções etc. Se tomarmos o ramo da bifurcação que leva a isso, começaremos a viagem de volta para algum lugar do passado.

Se tomarmos o outro ramo da bifurcação, porém, confiando na rede e nos abandonando ao fluxo interativo, continuaremos anteci-pando futuro no presente. Não há nada melhor do que isso. E para isso, nada melhor do que ocupar pacificamente os espaços públicos e festejar. A festa, o riso, a alegria, desarmam os hard feelings, con-vertem inimizade em amizade política, configuram ambientes favorá-veis à colaboração (e não à competição) e questionam profundamente os esquemas de poder que estão na raiz dos males que levaram as multidões às ruas.

E apesar das lideranças de organizações hierárquicas financiadas pelo Estado e aparelhadas pelo governo e por seu partido, estarem envolvidas em uma campanha sórdida para dizer que os fascistas, a direita e os conservadores estão por trás das manifestações com ob-jetivos de instalar no Brasil uma ditadura, mesmo assim a população continua apoiando e continua se mobilizando. Sim, as manifestações continuam, evoluindo agora para vários formatos inéditos. As velhas passeatas continuam, mas vão dando lugar a ocupações menores, atos mais pontuais e, felizmente, até ocupações pacíficas de praças, acampamentos, celebrações e festas.

A novidade é que a invenção de novos formatos está ocorrendo segundo um padrão cada vez mais distribuído. Provavelmente o que vamos assistir a partir de agora é a pulverização das manifestações. Mas isso é bom, não é ruim. Significa multiplicação por mais distri-buição e mais reinvenção, mais cocriação. Significa mais rede e me-nos hierarquia. Significa mais democracia e menos autocracia. Auto-cracia é um metabolismo de organizações centralizadas (hierárquicas) voltadas para a guerra, para o confronto, para a violência (eventual ou continuada, quer dizer, institucional).

As manifestações expressaram um descontentamento com a rela-ção Estado-sociedade ainda vigente. O sentimento generalizado – difu-so porém identificável – expressava uma indignação com a velha polí-tica, sobretudo com os partidos. A multidão gritando “Sem partido, sem partido” e constrangendo os militantes partidários a recolherem suas bandeiras, indica uma clara recusa à privatização da política.

Não se trata mais de massas convocadas por organizações cen-tralizadas, mas de multidões de pessoas consteladas de modo distri-buído (e que se não entendermos isso não vamos entender nada).

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4646 Augusto de Franco

Como o Estado e os governos, a partir de agora, vão poder se comu-nicar com essa sociedade altamente conectada e com graus crescen-tes de interatividade? Não sei a resposta. O Estado e os governos vão ter que descobrir um modo de se conectar mais e interagir mais, por dentro e para fora.

Ressalto que os agentes políticos ainda não estão entendendo nada quando pedem lideranças para negociar. Mas não existem lide-ranças capazes de representar esse tipo de movimentação. E nem se trata propriamente de negociação. Embora um dos elementos desen-cadeadores dos protestos fosse o aumento das passagens de ônibus, as movimentações expressaram uma pauta variadíssima (que vai desde as fortunas gastas com a Copa das Confederações e a Copa de 2014 vis-à-vis à péssima qualidade dos serviços públicos, passando pela indignação com a corrupção política generalizada até o descon-tentamento com certas leis antidemocráticas que vêm sendo aprova-das pelo Congresso Nacional: como a PEC 37 e o projeto de lei do PT que tenta manietar o Supremo Tribunal Federal).

O sentido mais geral de tudo o que vem acontecendo nessas no-vas expressões políticas da sociedade-em-rede, no Brasil e em outros países, aponta para uma reinvenção da política, para uma reinven-ção da democracia.

de onde provém a democracia

O importante é construir a paz e não a guerra. A democracia nun-ca nasce da violência. Não há um caso, um único caso na História. A primeira democracia, a dos antigos gregos, não nasceu assim: os atenienses frequentadores da Ágora não organizaram um atentado ao tirano Psístrato ou ao seu filho Hipias, nem, muito menos, insu-flaram uma rebelião popular. O protagonismo daquela nascente di-nastia autocrática foi interrompido, sim, mas por ação pacífica. Os democratas simplesmente proclamaram um édito em que dispensa-vam os serviços do autocrata. Clístenes, Efialtes e Péricles não toma-ram o poder tirânico para exercê-lo à sua maneira, simplesmente dispensaram esse poder (quer dizer, recusaram-se a reproduzi-lo do modo como estava estruturado: e é a isso, precisamente, que chama-mos de primeira invenção da democracia).

A democracia dos modernos também não se estabeleceu a partir de nenhuma guerra, ainda que tenha ficado constrangida a se trans-formar (e a se rebaixar) em um modo de administração política do Estado-nação, este sim, uma estrutura desenhada pela guerra e para

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a guerra. Esta, aliás, é a principal razão dos limites que a democracia atualmente existente impõe ao processo de democratização e, inclu-sive, mais do que isso, a razão da sua falência, agora anunciada pe-los novos movimentos da sociedade-em-rede.

A terceira democracia, quando vier, também não virá por meio de uma guerra. Por que? Ora, porque a democracia é um modo pazeante das relações. Ela é o contrário da autocracia, que só pode se manter com base na guerra. Ela não é um lugar para se chegar e sim um modo de caminhar que desconstitui autocracia na medida em que recusa combater e vencer para derrotar inimigos (reais ou construí-dos como pretexto para justificar uma estratégia de poder).

As democracias não nascem de rebeliões, nem de revoluções en-tendidas como atos violentos de remoção dos antigos ocupantes dos cargos de poder e sua substituição por novos ocupantes. Todos os processos que foram assim desencadeados produziram mais auto-cracia, não mais democracia. Estreitaram a brecha democrática que foi aberta, uma ou outra vez na antiguidade e na modernidade, na civilização patriarcal e guerreira. Restringiram em vez de ampliar as liberdades. As primeiras medidas dos governos revolucionários que chegaram ao poder pela violência foram, via de regra, a abolição da liberdade de imprensa e da liberdade de organização, a instalação de polícias políticas e a ereção de monstruosos aparelhos estatais de repressão. Ademais, provocaram verdadeiros genocídios, os maiores de que se tem notícia na história.

Não são originadas as democracias em eventos épicos, em grandes batalhas, mas são resultados de processos moleculares, de dinâmicas de rede (sim, se não houvesse uma rede social em Atenas, com signi-ficativo grau de distribuição, a conversação na praça do mercado que deu origem à primeira democracia não teria acontecido). As democra-cias não são regimes de heróis, de visionários desvairados que querem conduzir rebanhos, de líderes manipuladores, de utopistas vidrados em suas fórmulas para redimir a humanidade e salvar a espécie hu-mana por meio de grandes confrontos épicos, de batalhas titânicas.

A democracia é lírica, é um modo de convivência pacífico e pacifi-cante voltado para transformar inimizade em amizade política e – para lembrar John Dewey (1939) – praticado pelas pessoas comuns. Atribui-se ao Mahatma Gandhi o dito de que não existe um caminho para a paz, a paz é o caminho. O mesmo pode ser dito da liberdade, da materialização do ideal de liberdade como autonomia e da demo-cracia como modo pazeante de regulação de conflitos. Não existe ca-minho para a democracia: a democracia é o caminho. Se queremos

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uma nova democracia, mais democratizada ou radicalizada, não há outro caminho senão a democratização.

tentativas inaceitáveis de controle

Na grande mobilização de rua do dia 17 de junho (em São Paulo, no Rio de Janeiro e em várias capitais e outras cidades do país), a violência praticada por grupos isolados (desencadeada, talvez, por agentes infiltrados, provocadores, bandidos e manifestantes imbuí-dos de espírito adversarial mesmo), foi lateral, pontual, pouco signi-ficativa. Deve-se estar sempre atento para esse risco da instrumen-talização das manifestações por grupos que costumam adotar a tática de provocar o confronto.

A movimentação se espalhou por todo o país e, na maioria dos casos, houve violência praticada por pequenos grupos isolados e in-divíduos fora de sintonia com a imensa maioria dos participantes. Em geral, foram grupos e indivíduos que tentaram invadir prédios de governos e do legislativo ou que tentaram furar os bloqueios erigidos pela polícia. Esses grupos e indivíduos atuam quando as manifesta-ções já estão no fim, em alguns casos fazendo saques, depredando e ateando fogo em viaturas, lojas comerciais, agências bancárias e até bancas de jornais. A maioria dos manifestantes nem presencia as cenas de violência e só fica sabendo depois, pela televisão.

Em alguns casos, porém, houve conflito entre os que queriam manter o caráter pacífico das manifestações e alguns meliantes. Em São Paulo, foi notável o esforço de alguns manifestantes para impe-dir a depredação da sede da prefeitura.

Destaque-se que muita gente anda em dúvida depois que esses grupos (de vários matizes ideológicos) tentaram dirigir, controlar e conduzir ou deturpar as múltiplas manifestações de rua neste me-morável junho de 2013 no Brasil. A dúvida aumentou quando entra-ram em cena o governo e seu partido lançando suspeitas sobre os objetivos dessas mobilizações.

Permitam-me afirmar que quem está em dúvida sobre o que fazer agora, já tem um bom critério para saber se deve ou não apoiar as manifestações, se deve ou não comparecer aos eventos, se deve ou não tomar a iniciativa de convocar novos atos. Este critério é a paz. A democracia é um modo pazeante de relação e de regulação de con-flitos. Podemos continuar protestando, podemos continuar reivindi-cando, podemos continuar propondo, podemos continuar inventan-do novas formas de convivência que questionem o sistema: sem

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violência, sem confronto, sem guerra. Aliás, esta é a única forma de fazer isso. É a única forma de não cair na armadilha da centralização (da hierarquia) e da autocracia. É a única forma de não cair na arma-dilha da unificação de pautas e da escolha de lideranças e direções para centralizar em vez de distribuir. Quando combatemos inimigos, nos tornamos o inimigo. Quando centralizamos, erigimos sistemas muito parecidos com os que queremos desmontar.

Cada pessoa que interage nesse grande processo social convulsivo em que estamos imersos pode ajudar a coibir a violência. Ela não será totalmente evitada, por certo, mas pode novamente voltar a ser apenas incidental, fortuita, lateral, pontual. Além de carregar cartazes e gri-tar, com perdão do termo, a “palavra-de-ordem” sem violência, aju-daria muito, a meu ver, ocupar pacificamente determinados espaços públicos e fazer festas.

Para entender porque as manifestações de hoje são diferentes

Em 1970, vivíamos em plena ditadura militar no Brasil. Agora, em junho de 2013, não (felizmente). Lutávamos à época por liberda-de (embora não estivéssemos ainda convertidos à democracia). Agora também (mas não lutamos hoje contra a limitada democracia real-mente existente na sua essência, quer dizer, no que ela tem de demo-crático: as multidões que saem às ruas nesses dias estão expressan-do um descontentamento com um velho sistema que – do modo como está organizado – sentem não mais representá-las). Antes havia lide-rança, programas políticos, estratégia, táticas. Agora não há. Há mi-lhares de micromotivos diferentes que se combinam e recombinam por emergência.

Antes não vivíamos em uma sociedade altamente conectada (e nem havia as ferramentas virtuais que permitem a interação em tem-po real ou sem distância). Agora vivemos no dealbar de uma socieda-de-em-rede (e temos a Internet e as midias sociais, como o Facebook, o Twitter, além da telefonia celular).

Antes, a dinâmica era mais adesiva e participativa. Agora é mais interativa. Antes havia assembleísmo, recrutamento para organiza-ções hierárquicas, militantes obedientes às suas direções que atu-avam como agentes no meio da “massa” para conduzi-la. Agora te-mos interativismo (ativismo interagente, no qual cada pessoa comparece nos seus próprios termos e desobedece aos que querem mandá-la) compondo uma espécie de sistema nervoso fractal de imensas multidões.

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Antes, a fenomenologia da interação – a contaminação que se alastra de forma distribuída, seguindo uma dinâmica epidemiológi-ca, peer-to-peer – não podia se manifestar, de modo perceptível (como reverberação, múltiplos laços de realimentação de reforço, clustering, swarming, cloning, crunching). Agora, a fenomenologia da interação está acelerada, contraída no tempo de sorte a poder ser percebida e assistimos, em vários lugares do mundo, a incidência cada vez mais frequente de aglomeramentos, enxameamentos, contaminação viral por proximidade, imitação nas vizinhanças e contração do tamanho social do mundo (ou redução dos graus de separação).

Em alguns lugares (como São Paulo e Rio), aconteceu a manifes-tação de uma fenomenologia da interação que só pode ocorrer em so-ciedades altamente conectadas. Foi o primeiro claramente identificá-vel (e contraído no tempo a ponto de poder ser percebido) no Brasil (semelhante aos de Madri e de outras cidades espanholas e ao da Praça Tahir, no Egito). O vandalismo, onde houve, foi lateral, pontual. As multidões enxameadas se manifestaram pacificamente e coibiram atos violentos.

Os que anseiam por mudanças profundas, os que querem uma verdadeira revolução capaz de mudar o status quo e reiniciar (ou reprogramar) o sistema no sentido da democratização da democra-cia, devem saber que só a paz é revolucionária. Portanto, é bom re-petir, temos um critério. Não à violência. Não à guerra. Só a paz – não um objetivo utópico distante, mas um modo amoroso de caminhar – é democratizante.

Isso significa que você que está em dúvida pode continuar intera-gindo sem problema. Pode tomar coragem e continuar aceitando con-vites para manifestações e para convocar novos eventos. E, sobretu-do, para inventar novos formatos de ocupação pacífica do espaço público e de cocriação de novas propostas, de novos projetos. Esta-mos agora em um momento excepcional. Estamos diante da possibi-lidade de construir novos mundos em nossa convivência.

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lições e perspectivas da revolta

Hamilton Garcia

É cedo para tirarmos todas as lições da revolta juvenil-popular de junho de 2013, mas salta aos olhos seu caráter democráti-co, pluralista e horizontalista: o rechaço ao vandalismo como

forma de manifestação, o repúdio à violência contra os partidários e a recusa às tentativas de monopolização dos protestos por grupos autoritários de variadas inspirações ideológicas, são alguns dos no-vos elementos que ela trouxe à vida política nacional. Trata-se de uma perspectiva bastante diversa daquela vigente até o movimento dos caras-pintadas (1991). Até os anos 90, as mobilizações popula-res encabeçadas pela vanguarda estudantil – que nos anos 60 e 70 chegou a contagiar o operariado fabril – eram guiadas pelas verti-calizadas organizações comunistas, as únicas capazes, diga-se de passagem, de furar a couraça autoritária da ditadura que impedia a organização/mobilização popular – infelizmente, tais organizações, quase sempre possuídas por certezas dogmáticas, não souberam conduzí-las pelos caminhos que levariam à (re)redemocratização.

No impedimento de Collor estávamos comemorando sete anos de governo civil no país, os regimes comunistas desabavam e o PT en-carnava a crítica a todas as formas de autoritarismo, por isso foi capaz de liderar a juventude nas ruas contra a captura oligárquica do Estado pelo voto popular. A mobilização vitoriosa, porém, à seme-lhança de 1968, encontraria a direção equívoca de uma vanguarda divorciada dos anseios populares. Diante da necessidade de susten-tação do governo interino do vice-presidente Itamar, os petistas to-mam o atalho da oposição a qualquer custo, não só inviabilizando suas chances eleitorais presidenciais por uma década, como esterili-zando as energias jovens no sentido da defesa e do desenvolvimento da democracia por meio de campanhas golpistas contra o presidente duas vezes eleito no período. Daí por diante, crescentemente, o canal de manifestação política da juventude democrática nunca mais en-contraria um partido político com o qual interagir.

Hoje o quadro que vemos é o de radicalização deste divórcio. Com o PT envelhecido e corroído pelos seguidos escândalos de corrupção,

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as novas gerações se afastaram ainda mais da militância partidária e os partidos dissidentes, surgidos antes e depois da degeneração petista, apesar da longa semeadura da revolta popular em que se empenharam, apenas em parte conseguiram atrair a força da juven-tude desgarrada do petismo e do pecedobismo. Dos partidos modera-dos de esquerda, apenas a Rede parece vocacionada para angariar simpatias neste segmento.

Os novos movimentos sociais emergentes e sua linguagem franca contra a decrepitude do Estado e seu sistema clientelista de repre-sentação, que perverte e corrói a democracia brasileira, parece ser o anticorpo contra a cooptação dos organismos sociais responsáveis pela pax lulista da última década. A nova geração política, ainda ta-teando o campo em busca de um partido para chamar de seu, inicia seu protagonismo com agências próprias ainda de caráter antiparti-dário. Isto, ao contrário do que pensam muitos analistas e jovens, está longe de significar a despolitização desta geração, sendo antes uma nova forma de começo em meio a um ambiente político saliniza-do, saturado de ideias anacrônicas e mentalidade oportunista.

As novas formas horizontais de organização – baseadas em redes virtuais – terão diante de si agora, no refluxo natural do movimento, o desafio de encarar as tarefas que os partidos não são mais capazes de executar e outras que tais organizações só poderão desempenhar em associação íntima com algum partido político coetâneo. Ao tempo em que encaram o desafio do amadurecimento de suas organizações, elas lançam o desafio a todas as velhas organizações de se renovarem por meio das redes – redes essas que, no caso dos partidos oposicionistas, chegaram a se formar espontaneamente nas eleições de 2006 sem que eles tenham entendido seu potencial renovador, para além do mero instrumentalismo. Nesse processo, o novo deve se apropriar da expe-riência do velho, depurando de seus anacronismos, e o velho que ain-da não envileceu deve abrir-se ao diálogo com a nova mentalidade.

Tudo indica que o exercício, como sempre, será mais difícil àque-les já viciados ou conformados com as práticas políticas correntes, incapazes de ver nos novos atores mais do que a imagem retrospec-tiva das próprias ilusões juvenis de sua época. Eis aqui a razão prin-cipal para o divórcio entre o povo e os partidos que as novas gerações revelaram de maneira radical, independente do programa e da histó-ria: a incapacidade generalizada de aprender com a história e se re-novar com a vida.

É certo que a ausência de uma perspectiva partidária em geral pelos novos movimentos facilitou a agregação autônoma dos varia-

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dos grupos descontentes nas ruas, ao mesmo tempo que inibiu o ataque dos grupos dominantes que costumam reduzir toda forma de oposição à mera jogada eleitoral ou golpe das elites. Isto, aliás, deno-ta um espírito democrático forte dessa geração se comparada à dos anos 1960-70, quando predominava o sectarismo e a vontade de do-mínio de um grupo sobre o outro. Os novos movimentos sociais, nes-se ponto, parecem muito mais preparados para enfrentar os velhos cacoetes da esquerda do que as velhas organizações, quase todas capturadas por facções e partidos de viés autoritário.

O protoanarquismo ensaiado por algumas lideranças, amalgama-do ao romantismo antipolítico conservador mais baixo, tende, toda-via, a perder seu papel positivo se, no segundo momento, não abrir seu campo de visão para o terreno amplo e intrincado da política, não apenas como conchavo parlamentar, mas também como diversi-dade e contradição social – este último aspecto mal revelado nas ruas. Sem reunir e organizar os recursos políticos disponíveis e ne-cessários para as mudanças mais profundas, inclusive em termos programáticos e intelectuais, a fragmentação e a espontaneidade vão sucumbir ao jogo pesado dos políticos e das classes sociais organiza-das. O fim prematuro da política, tal como historicamente preconiza-do pelos anarquistas, observou Yuli Mártov, não só embotou a ação política deste segmento, como teve consequências perversas até para seus críticos que não observaram apropriadamente o papel da demo-cracia e da participação popular na transformação do Estado e da sociedade, propiciando, inadvertidamente, as condições necessárias para a emergência do totalitarismo no século passado.

Sem adentrar o campo político, portanto do Estado, com todos os apetrechos capazes de amplificar as vozes das ruas no interior da arquitetura democrática de 1988, a mudança almejada pela nova geração pode ter o mesmo fim melancólico das gerações 1970-80, que tentaram fazer política acreditando cegamente em seus partidos dogmáticos e não foram capazes de fazer seus velhos diri-gentes abrirem os olhos para a nova realidade democrática do Bra-sil. Perseguir este objetivo exige ler criticamente a trajetória das gerações passadas, compreendendo seus limites, entendendo suas derrotas e apreendendo as dificuldades inerentes da disputa da di-reção de um Estado que, ao longo do século passado, ampliou fan-tasticamente sua capacidade de intervenção na economia e na so-ciedade de um modo geral.

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os perigos e as oportunidades que se prenunciam

Às vésperas do esgotamento da estratégia de compromisso da Carta aos Brasileiros (2002), que abriu as portas para o Real II e seu enfrentamento da exclusão social com base no incremento das ren-das financeiras dos pobres (devedores) em proveito dos ricos (credo-res), é inquietante para os grupos no poder o surgimento de um mo-vimento que, forjado no vácuo do petismo, alcança grandes proporções entre as camadas mais intelectualizadas antes mesmo que a crise econômica se estabeleça. A preocupação dos principais segmentos sociais beneficiários do sistema deriva do que pode vir a acontecer com seu domínio se, ao descontentamento atual, se juntar, num fu-turo próximo, a fúria dos afetados por uma crise econômica que, in-diferente às esconjuras governamentais e suas alquimias, ameaça incapacitar o Estado a continuar promovendo sua legitimação à base da paz social ou, em outras palavras, de benefícios como o bolsa fa-mília (cerca de R$ 25 bilhões do orçamento público federal) e o bolsa Miami (cerca de R$ 47 bilhões de evasão de divisas), ameaçado pela depreciação cambial do Real, para não falar da potencial insustenta-bilidade do bolsa juros (cerca de R$ 200 bilhões do orçamento públi-co federal) que devora recursos vitais para a qualidade de vida de milhões de famílias, expressa em milhares de cartazes, em proveito de centenas de milhares de pessoas – somado a este montante con-cretamente despendido, o pagamento do principal da dívida pública, sob a forma de nova dívida a ser paga, chegamos ao patamar de 42% do orçamento federal ou cerca de R$ 900 bilhões.

Mesmo sendo o assunto tema de poucos cartazes nas ruas, seus beneficiários diretos e indiretos não cansam de ameaçar com retro-cesso econômico àqueles que apresentam propostas em prol do fim da vandalização do erário público e da desordem das políticas pú-blicas causadas pela ditadura do superávit primário, tachando de “estapafúrdia” e “próxima do ridículo” a ideia de um freio a este san-gramento sem fim que une, no mesmo barco, credores e governos, sejam eles de qual partido for: PMDB, PSDB ou PT.

O espectro da instabilidade política não assusta somente os gru-pos no poder e seus dependentes mais diretos, mas até mesmo os setores oposicionistas não beneficiários, temerosos de outro retro-cesso, aquele ligado ao fim das liberdades conquistadas na dura ba-talha pela redemocratização – que lhes custou a vida de inúmeros companheiros – e que para eles é uma ameaça proveniente mais da esquerda do que dos rentistas, embora a esta altura seja difícil su-bestimar a ameaça que vem da economia.

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O medo do retrocesso entre os petistas, por sua vez, é buscado em outro lugar, na tradição republicana elitista e sua capacidade de instrumentalizar as Forças Armadas em prol dos conservadores – pelo menos desde 1954. O medo do “golpe das elites” impregnou seg-mentos das novas lideranças assustadas pelas potências contraditó-rias liberadas nas manifestações de rua, embora este sentimento não pareça capaz de paralisá-las de todo, servindo, todavia, como um exemplo do modo como o petismo ainda consegue alguma ascendên-cia sobre seus dissidentes.

O retrocesso que, todavia, salta aos olhos depois de junho – em-bora os elementos já estivessem todos bem claros antes para quem quisesse encará-los com o mínimo de honestidade intelectual – é o da silenciosa corrosão das instituições democráticas acicatada pela der-rama fiscal da conta financeira do Estado, que não só enfraquece a política pública, como ainda a entorpece pela enorme capacidade de financiamento de campanha. O fracasso oposicionista de forças di-versas, como o PPS e o Psol, em dar resposta ao vazio deixado pela agenda petista de democratização da república – fracasso este mas-carado pela intensa propaganda oficial, as pesquisas de opinião e vãs esperanças em torno de instrumentos de participação direta como o Consocial –, deixou para as ruas a tarefa de enfrentá-la, alimentando os medos atávicos que vemos florescer de todos os lados e com um vigor preocupante em seu potencial paralisante; senão das ruas, pelo menos das velhas lideranças que poderiam vir ao socorro das novas e ainda desorientadas e relativamente incapazes de direcionar sua luta no sentido da agenda construtiva (governo).

Não só os partidos oposicionistas de esquerda falharam em seus diagnósticos e terapias; também a intelectualidade jovem faltou ao encontro com as ruas. Essencialmente acadêmica e beneficiária da expansão dos gastos públicos na fase da bonança lulista, tais segmen-tos, guiados por teorias pretensamente neutras e meramente instru-mentalistas ou filosofias integracionistas, enxergaram na relativa re-signação popular e no desprendimento do mundo parlamentar, emoldurados pelo voto, uma poliarquia em franca fase de consolida-ção e, por isso, deixaram de pensar o mundo concreto das coisas em suas contradições para dedicarem-se a reforçar a mensagem ideológi-ca progressista do petismo e de sua paz social, seguindo de perto seus mestres encastelados nas agências fomentadoras de carreiras.

Vemos agora, em meio a todas essas dificuldades e insuficiências, abrir-se diante de nós as várias portas políticas cujas chaves pareciam sob o controle do bloco no poder. Assim, renasce o esforço teórico--analítico de desvendar a realidade em busca da solução dos proble-

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mas reais e não daqueles imaginários, derivados de ideologias hege-mônicas e tendentes ao mero esforço individual pelo qualis acadêmico – que vem esgotando as potências intelectuais de seguidas gerações.

A primeira dessas portas a investigar seria a democrático-repre-sentativa que, apesar de claramente refletida na postura exibida pela maioria dos manifestantes – não obstante os embaraços ideológicos do anarquismo e do romantismo – tende a ser aberta de maneira tí-mida em função tanto dos embaraços implícitos à arquitetura dos novos movimentos, como pela fragmentação e desorientação das for-ças políticas e intelectuais, oposicionistas e situacionistas, capazes de dar-lhes uma boa direção.

Em particular, deve-se destacar o paradoxo de ser a porta mais coadunada com a Constituição de 1988 a de mais difícil abertura, dificuldade esta plasmada na visão dos herdeiros do comunismo de-mocrático – que se afirmou em 1967, no interior do PCB, como antí-doto à esquerda autoritária militarizada –, mais preocupados, à se-melhança inversa dos petistas, com o “golpismo de esquerda” do que em interpelar as ruas na perspectiva de sua bandeira histórica do aprofundamento democrático com as ruas.

Adeptas, em tese, desta saída, as alas mais conservadoras do oposicionismo, doutrinariamente avessas à representação ativa dos cidadãos, embora não ao empreendedorismo econômico, preferem pegar o desvio à direita do liberal-representativo no qual podem des-frutar do conforto de uma democracia sazonal e limitada, fingindo não entender que ela está no centro da atual crise e que tende a agravá-la, deixando de ser, portanto, uma alternativa real. A insis-tência desses setores em reduzir a crise ao desgoverno – certamente não de seus partidários – apenas explicita sua visão eleitoreira da política que, nas circunstâncias atuais, quando as ruas desfazem o fetiche da circulação das elites, encolhe as chances dos pescadores eleitorais de águas turvas e tende a pôr por terra as estratégias polí-ticas em termos estritamente liberais.

Isto tudo acaba beneficiando a porta historicamente mais conheci-da entre nós: a nacional-populista, que não apenas é forte em termos culturais, como tem potenciais lideranças mobilizáveis em variados espectros ideológicos. Embora historicamente de caráter socialmente democratizante e politicamente conciliador – ou seja, não necessaria-mente democrática em sentido político, mas certamente antípoda à tradição elitista republicana –, tal porta costuma se abrir sob o co-mando de lideranças carismáticas mais capazes de tirar proveito das vantagens eleitorais da desigualdade social do que propriamente de

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resolvê-las, inclusive usando as dificuldades das soluções para avan-çar sobre as instituições democráticas por vários vieses, como outrora o fizeram Quadros, Goulart e Brizola nos anos 1960.

As hesitações e insuficiências das forças postadas à frente da primeira porta criam boas perspectivas para as forças abrigadas na segunda, sendo já possível divisar, na relativa preservação da popu-laridade de Lula em meio à crise, um possível fio condutor para a (pseudo)solução eleitoral do impasse, ironicamente em detrimento das forças oposicionistas que reduzem tudo às urnas, com as mes-mas regras que não lhes parece urgente mudar.

A última grande porta que se apresenta à mão das forças político--sociais ora em movimento, era, até pouco, tida como definitivamente fechada pelos oráculos do regime. Ocorre que de nenhuma perspectiva histórica digna do nome se pode deixar de considerá-la: a porta libe-ral-autoritária com seu foco tradicional na manutenção da “ordem” e na expressão eleitoral estritamente controlada da vontade popular por meio de um sistema partidário restritivo e “responsável”. No limite, esta porta costuma se abrir quando todas as outras se fecham para os interesses fundamentais do capitalismo brasileiro. Os setores mais conservadores, da oposição e da situação, que temem o risco do retro-cesso, muitas vezes, na verdade, o que fazem é anunciar, de maneira diplomática, seu engajamento no partido da ordem ao menor sinal de “descontrole popular” ou de “desordem econômica”. De certa maneira, a rebelião da base aliada do governo prenuncia que o velho camaleo-nismo partidário começa a ganhar contornos programáticos conserva-dores tendentes a uma coalizão mais coerente. Mas, para que esta aposta se concretize é necessário que Aécio ou Campos se credenciem eleitoralmente a liderá-la, visto que Serra e Marina são candidaturas mais controversas em relação ao sentido pretendido.

A viabilidade política de cada uma dessas portas, naturalmente, dependerá de forças que vão muito além daquelas envolvidas na re-volta em si, e das respostas que sejam capazes de produzir em face dos desafios colocados e de novos que se insinuam – embora, como já foi assinalado, a ampliação da capacidade política dos revoltosos possa lhes reservar um protagonismo importante nesse processo. De qualquer modo, é de se esperar que mesmo que a movimentação de rua arrefeça, diluída em reivindicações centrífugas de seus variados grupos – como seria normal esperar neste caso –, o certo é que ele deverá migrar para um estado de latência não menos ameaçador. Diante disso, é preciso explorar algumas variáveis que podem se co-locar diante das portas em tela, beneficiando a abertura de umas em detrimento de outras.

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Em especial, é preciso levar em conta a possibilidade da luta pe-las reformas (política, judicial, legislativa, econômica etc.) nas ruas se confrontar com os exércitos eleitorais das forças oligárquicas acantonadas por detrás dos partidos fisiológicos, a partir de um sis-tema eleitoral que se reluta em reformar de imediato, por motivos aqui em parte já descritos. Neste caso, o sistema eleitoral prosseguirá intacto em sua capacidade cooptadora, alimentando o real perigo de sérios enfrentamentos de rua entre as forças da mudança e o infeliz exército dos dependentes das oligarquias, que, no controle de vastos setores do Estado, não teriam porque não usar desses recursos para manter seu caminho livre ao poder. Tal enfrentamento, porém, só se-ria possível se a crise não afetasse a confiança dos dependentes na estabilidade do pacto oligárquico que os sustentam em diferentes ní-veis da escala social – caso contrário, eles poderiam se juntar aos re-voltosos, não sem prejuízos éticos ao movimento de junho.

O potencial confronto entre os dois segmentos sugere uma luta de classes às avessas, com as classes médias autônomas, de peso amplificado pelas políticas de inclusão desde o governo Itamar, re-presentando a massa popular do Brasil moderno, enquanto os de-pendentes surgem como expressão do ciclo modernizante abortado pelo colapso do “milagre brasileiro” (1967-73), com seu lumpesinato acantonado nas franjas do sistema legal – e mesmo em seu interior – na forma de um exército de reserva de baderneiros prontos a de-sempenhar o papel de ponta-de-lança das oligarquias, e outros seto-res dependentes, na resistência de rua às mudanças.

Mesmo na hipótese de que a crise econômica, inibindo as engre-nagens cooptativas do Estado, desarme a armadilha montada com os marginais, é de se esperar que seu engajamento no outro lado se faça sob a égide do mais desabrido vandalismo, em oposição aos senti-mentos democráticos das ruas. A antevisão das classes dirigentes em relação a este perigoso contexto, para além do mero instinto de sobrevivência, está por trás do destravamento das instituições repu-blicanas que estamos assistindo em todos os poderes do Estado e até em segmentos do setor privado – como se vê no congelamento dos altos juros privados mesmo em face da recomposição da Taxa Selic –; o que não significa que eles tenham qualquer escrúpulo em utilizar a possível desordem em proveito da alternativa autoritária já referida.

Ansiosos por manterem-se preservados da fúria popular, tanto os políticos como os rentistas atuam com doses maciças de dema-gogia e publicidade, num esforço de desassociação como grandes beneficiários das políticas públicas de regulamentação frouxa, quer da vida pública, quer do sistema financeiro e sua cobrança extorsiva

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de taxas de empréstimos automáticos aos setores populares, assim como da imensa dívida pública cujo custo orçamentário é quase o dobro do investimento público federal (R$ 108,7 bilhões), com signi-ficativo impacto sobre a qualidade dos serviços públicos.

A agenda concreta

O desafio que está posto para todas as forças políticas a partir das manifestações de junho foi, na verdade, imposto por décadas de desvirtuamento institucional sob o beneplácito de coalizões dirigidas por elites organizadas no PMDB, PFL-DEM, PSDB e PT. Querendo ou não, é chegada a hora de encarar de frente a fatura de uma “consoli-dação democrática” que obstruiu os canais parlamentares e políticos (partidos) por onde deveriam fluir a representação, e deixou burocra-tizar os novos instrumentos de participação direta, como os conse-lhos de direitos, relegando ainda à marginalidade as consultas popu-lares constitucionalmente previstas sobre variados assuntos temáticos que o parlamento não quer ou não se mostra capaz de equacionar. A agenda da (re)redemocratização inferida das ruas pode ser, assim, resumida como a restauração da representatividade das instituições políticas e a desburocratização das novas agências par-ticipativas, ao par do desengavetamento das consultas populares e da inovação institucional em direção a uma democracia mais partici-pativa e coetânea.

A situação de hoje, em função das largas e profundas distorções produzidas ao longo de mais de duas décadas, exige um esforço re-formador quase constituinte, e, deste ponto de vista, é inequívoco o acerto das forças políticas que propuseram a Constituinte específica já. Embora se possa obstar uma série de argumentos políticos e jurí-dicos, isoladamente válidos, contra a proposta, jamais se pode defi-ni-la como “mera manobra diversionista” diante da gravidade da cri-se. Seja por quais canais será enfrentada a questão – a Constituinte teve o mérito de dar a dimensão correta, embora, talvez, sob a forma errada, ao problema que as ruas desnudaram –, o fato é que a res-posta tem que ser urgente; não há tempo a perder para aqueles que querem o aperfeiçoamento e o desenvolvimento das instituições de-mocráticas de 1988. A excessiva cautela e o medo da participação, expostos pelos partidos moderados da situação e da oposição, em conúbio, só podem ser entendidas pelos setores mais avançados da sociedade brasileira como um pacto supra-partidário contra a mu-dança ou por mudanças controladas desde cima. A velha fórmula da mudança lenta, gradual e segura, que está na base do modelo de

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dominação capitalista brasileiro com a preponderância do conserva-dorismo sobre o liberalismo, como nos mostrou Caio Prado Jr., Sér-gio Buarque de Hollanda, Raimundo Faoro e Florestan Fernandes, dentre outros, é parte do problema a superar, não da solução.

Os riscos que o PT, em particular, corre sustentando sua propos-ta de urgência em sintonia geral com as ruas – que, naturalmente pode esconder pretensões políticas antidemocráticas oriundas de seus setores populistas e extremistas –, é o de empurrar sua base aliada conservadora em direção à oposição liberal-conservadora às vésperas de importantes definições de alianças eleitorais, risco este que embute outro de igual potência para os oposicionistas: o de se-rem identificados com a mesma base parlamentar responsável pela crise – o que encontra confirmação histórica no fato de que a oligar-quia política da era petista não ser de natureza diversa daquela do período tucano. No momento, parece claro que a oposição liberal--conservadora aposta suas fichas na aproximação com a base gover-nista em decomposição, sem se importar muito com os odores que ela exala, e já proclama o fim da era Lula sem se dar conta de que é forte candidata a dividir o ônus da crise com o mesmo governo que pretende derrotar nas urnas.

A reforma política, designação genérica a um conjunto de refor-mas que abarca desde o sistema eleitoral até a reforma judiciária concernente à contenção dos crimes cometidos no âmbito dos Três Poderes, passando pelo sistema partidário e legislativo, deve ser en-carado como um verdadeiro desafio programático que envolve todas as forças sociais, dentro e fora do Estado. Concebê-la de outra forma é não entender o transbordamento democrático das ruas e sinalizar para elas, à moda de Schumpeter, com a condescendência diante do político profissional e seus protopartidos, o que patenteia escassa compreensão da natureza da crise e do verdadeiro significado da he-rança de 1988.

A reforma política inadiável pode ser levada a cabo combinando--se múltiplos instrumentos: as comissões parlamentares abertas à participação social, projetos de lei de iniciativa popular, plebiscitos e referendos, podem ser utilizados numa hierarquia de temas por cri-térios temporais, meritocráticos e consensuais, visando respostas de curtíssimo e curto prazo. Se a sociedade, em termos gerais, tem difi-culdade em entender a reforma política em toda sua extensão técni-ca, o mesmo não se pode dizer de seu sentido político geral, clara-mente intuído pelos manifestantes ao bradarem não contra a democracia, mas contra o funcionamento do sistema democrático; não contra o Estado, mas contra seus aparatos burocráticos; não

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contra seus técnicos, mas suas soluções etc. O problema parece re-sidir na outra ponta, onde grande parte dos dirigentes, lideranças e especialistas, demonstram genuína dificuldade em compreender o sentido geral destas postulações, num preocupante sintoma, no caso dos últimos, de como o sistema universitário vem especializando seus técnicos de maneira acrítica e unilateral em nome de um mérito que reduz o conhecimento à progressão num ranking quantitativo de iniciativas formais, não raro, estranhas à realidade e à natureza mesma das coisas.

Não é tarefa fácil reverter esse quadro diante da magnitude das distorções acumuladas em largos setores da vida social, do setor pú-blico ao educacional, passando pelo político, num despreparo e des-virtuamento cultural que, à luz de Sócrates (469-399 a.C) não pode ser subestimado como um dos elementos básicos do amesquinha-mento da nação como um todo. Também nesse ponto, é preciso se espelhar na postura majoritariamente madura e compreensiva das ruas para afastar os medos e restaurar a capacidade de fazer política em sentido real e não meramente instrumental, com a sociedade e não a despeito dela.

Assim como a luta pela redemocratização só pôde evoluir à medi-da do engajamento social na arena política, a (re)redemocratização necessita da mesma energia vital. Este é o desafio que devemos en-carar por nosso compromisso democrático, que não pode ser confun-dido, à guisa de projetos eleitorais, nem com a aposta populista da manipulação dos pobres por meio de bolsas, nem com a redução li-beral da democracia às instituições esclerosadas titulares da repre-sentação – que as oligarquias consideram suas.

É justo que as oposições, moderadas ou radicais, queiram assu-mir os governos por meio do voto na esteira da crise política, afinal cabe ao situacionismo, em seus 11 anos de poder na esfera nacional, parte da responsabilidade pela incompetência denunciada nas ruas. Mas não conseguirão fazê-lo ao arrepio das expectativas populares mobilizadas, sob pena de acabarem identificadas com a opressão que se quer eliminar – identificação esta que, diga-se de passagem, o PT vem fazendo com sucesso desde 2002 contra seus principais adver-sários, apesar de se basear nela para governar desde então –, ou se conseguirem, ameaçam cair vitimadas pelas mesmas alianças que fez o PT incapaz de resolver os graves problemas nacionais e, de que-bra, agravar a dominação oligárquica à sombra de uma Constituição que eles sempre subestimaram.

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A massa jovem que irrompeu nas ruas é órfã da democracia em dois sentidos: um novíssimo, representado pela corrosão ético-pro-gramática do PT nos ambientes dos podres poderes; outro, tão antigo quanto a própria República, representado pela histórica subordina-ção do voto das parcelas mais pobres da população à vontade das oligarquias geolocalizadas, detentoras da maquinaria estatal, e do poder econômico. Às gerações mais velhas e experimentadas da luta política, estejam onde estiverem, cabe o desprendimento e o descor-tino para ajudar as novas gerações a virar esta página nova e velha de nossa história, numa perspectiva democrática, ou seja, longe dos velhos cacoetes de caráter autoritário (blanquista) ou oportunista (socialdemocrata).

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Vida política e estado democrático de direito

Raimundo Santos

Dimensão da civilização brasileira, a vida política se ativa à medida que seus protagonistas se diversifiquem na esfera pública. O primeiro Império teve, durante sua conservado-

ra “revolução de 1848”, protestos e rebeliões sociais dissidentes da ordem social restritiva; e o segundo Império foi agitado pelas contro-vérsias e mobilização eleitoral da Campanha Abolicionista (Nabuco, 1885). No começo do século XX, eclodiram vários movimentos, cada um à sua maneira expressando a diferenciação do país (greves ope-rárias, pregação civilista, levantes da juventude militar, Semana de Arte Moderna, Coluna Prestes).

Em 1930, uma coligação de elites de oligarquias agrárias ligadas ao mercado interno, liderada por Getúlio Vargas, tomou o poder. Em aliança com setores médios de extração urbana, o gaúcho iria dar curso à ampliação do Estado brasileiro (VIANNA, 1976), abrindo aos agentes econômicos sua estrutura e serviços. Vargas desencadeou um processo modernizador que levaria ao industrialismo, tempo em que modulou a área operário-sindical mediante revolução corporati-va e interditou no mundo rural qualquer movimento vindo de baixo.

Vargas deparou-se com oposições, como a da Aliança Nacional Li-bertadora (ANL), uma articulação frentista que atuaria até 1935. A partir de 1943, ano do Congresso Brasileiro de Escritores, emergi-ram formações em defesa da democratização do país, sendo exemplos a União Democrática Nacional (UDN) e os Comitês de Ação, criados por militantes comunistas como lugar de aproximação entre correntes partidárias, grupos sociais e entidades sindicais, como testemunha um deles, Manuel Batista Cavalcante (cf. Cavalcante, 1983).

Após a destituição de Vargas, o governo transitório do presidente do Supremo Tribunal Federal, o cearense José Linhares, no seu curto tempo (29 de outubro de 1945 a 1º de fevereiro de 1946), agiria visan-do estabilizar a redemocratização então posta num quadro instável (cf. PRADO JR., 1945, in: IUMATTI, 2007). “1945” também foi o ano de mobilizações em todo o país para eleger os constituintes da Carta de 1946. Eleito presidente da República o general Eurico Gaspar Dutra,

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no final de 1945, seu governo (1946-51) foi marcado pelo autoritaris-mo. O retorno de Getúlio Vargas, pelo voto, empossado na Presidência da República, em janeiro de 1951, abre uma fase de dinamismo polí-tico. Entretanto, governará sob dura oposição da UDN e viverá crises que o levaram ao suicídio, no dia 25 de agosto de 1954.

Na sequência, crescem convergências em época de eleição presi-dencial, posse e governo heterogêneo de Juscelino Kubitschek. Come-çava ali propriamente a formação de uma frente única nacional e de-mocrática, logo posta à prova durante o governo reformista do João Goulart (1961-1964). Ela será derrotada em 31 de março de 1964, quando os militares destituíram Jango e violaram a Constituição de 1946, pondo fim à breve tentativa de revolução burguesa no Brasil. O 31 de Março era mais do que um golpe de Estado, pois significara, como diziam os pecebistas, uma alteração profunda na “forma de do-minação estatal” (cf. PCB, 1965). A partir de maio desse ano, o PCB passaria a usar a noção “regime de 1964” como parâmetro para pen-sar o caminho da resistência democrática (para os pecebistas, as liber-dades eram o centro das atividades oposicionistas, ibid).

Instalado o novo regime, no começo de abril de 1964, ele perde-ria, no ano seguinte, as eleições para governador em Minas Gerais e no então estado da Guanabara, derrota que já sinalizava dificulda-des para ir adiante. 1965 tornou-se o ano em que correntes políticas se articulavam para criar o Movimento Democrático Brasileiro (MDB), e, em 1967, surgiu a Frente Ampla com o objetivo de aproxi-mar lideranças que haviam tido atitudes divergentes no contexto que levara ao 31 de Março – Carlos Lacerda, Juscelino e Jango –, mas logo seria ilegalizada.

De 1966 a 1968, o regime viu diante de si oposição advinda de ambientes da cultura (intelectualidade, teatro, literatura, cinema, jornalistas etc.) e dos estudantes da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (Ubes) e da União Nacional dos Estudantes (UNE), que se mobilizariam até à passeata dos 100 mil, quando foi baixado o Ato Institucional nº 5 (AI-5), em 13 de dezembro de 1968.

Com essa nova “revolução institucional” (era como Florestan se referia ao pós-AI-5, cf. FERNANDES, 1975), os dirigentes do establis-ment mergulharam o país na fase mais negra da ditadura. Entretan-to, por meio da política – e de forma pacífica –, a resistência seguiria buscando os que discordavam (total ou parcialmente, a um ou mais aspectos) da orientação econômica do regime, e os que denunciavam a repressão do Estado policial do AI-5.

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Nos anos de chumbo, não obstante os obstáculos, prosseguiria o trabalho de estruturação de uma frente democrática em torno do MDB. Seu ponto alto foi a anticandidatura do deputado Ulisses Gui-marães e Barbosa Lima Sobrinho, presidente da Associação Brasilei-ra da Imprensa (ABI), às eleições indiretas para presidente da Repú-blica, em 1973. A peregrinação dos anticandidatos em defesa das liberdades se estenderia a muitos pontos do país. A frente única do MDB protagonizava uma verdadeira guerra de posições gramsciana, em condições sumamente adversas.

Começava o “degelo” da sociedade civil (CARDOSO, 1973-74; 1975). De sua movimentação, parecia estar emergindo, na visão de algumas áreas intelectuais, um novo protagonista nacional. Subiam à superficie outras ativações oposicionistas vindas, novamente da esfera cultural, do variado associativismo de classe média, urbano, operário-sindical (na região do ABC paulista) e sindical-rural.

Da anistia de 1979 em diante, a frente emedebista continuou in-duzindo dinamismo à vida política, indo animar as ruas e o país com as Diretas Já! Derrotado este movimento, uma larga concertação ele-gerá Tancredo-Sarney no Colégio Eleitoral, em 1985, por fim derro-tando o regime de 1964.

Em relação ao governo do presidente Sarney, que teve aspectos positivos, como a remoção do entulho autoritário, e outros muito criticados, principalmente na economia e na área social, registra-mos apenas que mobilizações de diversos tipos pressionaram o seu governo heterogêneo. A Constituinte de 1987 espelhou na redação da Carta Cidadã as resistências da frente emedebista e de outros partidos e correntes de oposição, e foi extensa em matéria de direi-tos e combate às desigualdades, expressando as várias dimensões da vida nacional.

Este mesmo padrão de convergência para agir, com fins políticos dirigidos ao conjunto da sociedade, seguiria nas mobilizações políti-copartidárias, de ambientes transclassistas e dos “caras pintadas” que exigiram o impeachment do presidente Fernando Collor de Melo, vivendo momento de vida politica ativa. Dai em diante, segue a his-tória mais recente e próxima de todos nós.

O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva não atenta para o sentido dessa longa trajetória, especialmente a do tempo contemporâneo, quando protagonistas convergentes desenvolveram atividades asso-ciadas à conquista, preservação, recuperação, alargamento e institu-cionalização constitucional das liberdades democráticas, ativando a vida política. Em momentos difíceis, como no tempo do MDB, partido

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sem economia, como disse um sociólogo, e longe das benesses gover-namentais, houve rica contribuição para acrisolar entre nós uma cultura de valores democráticos, marcante em consideráveis am-bientes do seu tempo e viva até hoje.

Tampouco reconhece que a política e os partidos podem se am-pliar cada vez mais sob o Estado democrático de Direito; aliás, terre-no no qual o PT se tornou socialmente forte e por demais competitivo nas eleições. Lula fez má escolha quando abandonou os referenciais característicos da sua base sociopartidária originária (interesses de trabalhadores e de variados contingentes organizáveis) e vem tentan-do impor ao país – em nome do social – imaginário autorreferido à sua própria figura.

Não é questão menor o fato de o PT ser um partido sem teoria, como já foi observado. Sua ideia do “nós e “eles” tem sido fator elei-toral decisivo, notadamente na campanha da sua reeleição. As pre-gações do ex-presidente em torno da ideia de divisão do país ao meio vem se naturalizando no seu campo de influência (popular, partidá-rio, em entidades, inclusive entre intelectuais). A pretensão autojus-tificada de homogeneizar a sociedade (representação exclusiva dos pobres, demonização das privatizações tucanas, menosprezo pela política e pelo Congresso, insistência no controle da imprensa) ex-pressa relação ambígua com a democracia política e o descompro-misso com o Estado democrático de Direito.

O regime de 1964, fazendo alusão apenas neste ponto do relacio-namento com o mundo político, enganou-se quanto à eficácia da po-lítica. Tudo fez para esvaziar os partidos mediante cassações de mandato, suspensão de direitos políticos e restrições a suas movi-mentações e às competências do Congresso, reprimindo as correntes de esquerda. Dizia que iria limpar o país da corrupção, lançando esta segunda (depois da subversão) acusação persecutória às forças der-rotadas em 1964. Os dirigentes do regime recusaram-se a ver que a vida política vinha se ativando, seguindo a complexidade do país, e que ela reagira às tentativas de modelação da sociedade em diversos momentos, na Era Vargas por exemplo e, por certo, estava resistindo ao seu autoritarismo. Não acreditavam que o mundo político, comba-lido no tempo pós-64, mais tarde viria a derrotá-los.

Agora na Era Lula, a cooptação assumiu nível desconhecido, in-corporando ao governo, como já foi dito, tudo o que era vivo. Os dois governos do presidente Lula aprofundaram o enfraquecimento da classe política, sendo o mensalão o exemplo maior da busca apolítica de controle dos partidos e do Congresso.

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Convocadas pelos jovens, as passeatas de junho de 2013 tiveram o seu ponto alto no dia 20, quando mobilizaram mais de um milhão e meio de manifestantes em muitas cidades, sendo o contingente mais volumoso o do Rio de Janeiro. Nesse dia, se concretizava seu protesto de opinião pública com profundo impacto na vida nacional, lembrando a narrativa de O Manifesto Comunista quando diz que, no curso transformador da revolução burguesa, “tudo o que é solido se desmancha no ar”. As passeatas de junho vieram mostrar o quão dissociada está a sociedade do seu Estado perfilado na Constituição de 1988. A Carta de Ulisses Guimarães não teve ainda implementa-dos instrumentos de aproximação da democratização social à demo-cracia política.

Logo após a passeata de 20 de junho, um dos jovens de São Paulo disse com clareza que, a partir dali, caberia à sociedade lutar, ela própria, para resolver os seus problemas, como se veria, à sequência daquele memorável dia, na presença de diversos setores sociais com demandas as mais variadas nas ruas e nas mídias.

As jornadas juvenis de junho também erosionaram aquilo que, após mais de 10 anos, parecia inamovível, quando as coisas, até en-tão, estavam sob domínio do establisment governamental, inclusive já considerada ganha a eleição presidencial de 2014 por antecipação. Tudo vinha se parecendo com uma sedimentação sólida da base so-ciopartidária e do establisment.

De repente, os protagonistas do establisment viram-se ante outro curso, real, mas incompreensível para suas balizas ideológicas. In-terpelados pelos acontecimentos de junho, eram levados pelos fatos a mover-se (como numa circunstância de revolução passiva, teoriza-da por Gramsci). Se fossem adeptos do Estado democrático de Direi-to, essa era hora de fazer política como tal, olhando – conscientemen-te – para a realidade, como a tradição da nossa esquerda clássica do tempo contemporâneo.

Como se postam fora desse estilo de agir segundo previsão e pers-pectiva, revelaram-se impossibilitados de interpretar as passeatas de junho. Procuraram, por assim dizer, trocar os fatos e seguir com seu pragmatismo, até ali bastante exitoso. Ensaiaram conduzi-los, sa-bendo duvidosos os movimentos, operando no plano da sagacidade e dos apelos ao imaginário do social, entendidos por eles como política. A rigor, não fazem política (seus métodos dela se dissociam em não poucos pontos), agem com o olhar posto na sua reprodução continu-ada (gestos seus indicam que não aceitam com tranquilidade a alter-nância no poder).

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Assim, a questão perigosa do momento subsequente ao dia 20 de junho e ainda hoje são as posturas do principal ator, o governo, com seu enorme poder. A presidente da República atua como se estivesse em campanha, recorrendo a meios que, desde o começo, introduzem mais instabilidade à situação. Abalada pelo dia 20, anunciou medi-das emergenciais em um pacto de cima para baixo com os governa-dores e prefeitos das capitais. E lançou a ideia da Constituinte exclu-siva para a reforma política sem prévio conhecimento dos executivos chamados a Brasília. Recuou da Constituinte exclusiva, proclamou um plebiscito, voltou à Constituinte e agora quer novamente o ple-biscito, com essas operações buscando tornar-se defensora autorre-ferida do “ouvir o povo” e da consulta popular que estaria sendo re-cusada pelos partidos e pelo Congresso.

Não se sabe o que ainda virá desse campo que quer transformar a reforma política na questão mais importante do presente visando confinar a baixa representatividade nos partidos e no Congresso. Evitando ser parte do que ruiu naquele dia, a Presidência da Repú-blica apresenta fórmulas a uma reforma política vocacionada a bene-ficiar os grandes partidos e as máquinas partidárias, a liquidar os pequenos partidos, especialmente os de esquerda, e a criar entraves para os novos partidos (em particular, a Rede, da ex-senadora Mari-na da Silva). Nesta movimentação também busca conservar a hege-monia petista, até aqui sustentada na aliança principal com o PMDB. Se tem como certa sua reprodução em 2014, como a tinha pouco tempo atrás, agora se esquece do “DNA político” daquele partido an-tigamente chamado de MDB.

A mística personalista e a tática das alianças de conveniência e da campanha eleitoral como ação midiática estão trincadas. Resta ao establishment navegar em águas turvas guiados por uma ideologia corporativizada, estranhamente diversa da originariamente calcada na defesa de interesses de trabalhadores e de outros contingentes sociais, de um tempo para cá transformada em um imaginário de base social dispersa.

De onde virá racionalidade que sobrepasse esse mar encapelado? E que, à sequência da eleição de 2014, encaminhe o país a viver uma fase de transição a um momento de pleno Estado democrático de Direito sem veleidades messiânicas pairando sobre a vida nacional? A situação atual é boa, pois consideráveis contingentes das classes médias e grande parte da opinião pública, se já há algum tempo se ressentiam, em dias de junho abriram dissidência mais clara com o sistema da Era Lula.

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Para surpresa dos partidários da antipolítica, essa racionalidade poderá vir do interior do mundo político ora interpelado pelos acon-tecimentos de junho.

De onde mais?

Com habitat no terreno do Estado democrático de Direito, corren-tes do mundo político reativado fazem tramitar no Congresso solu-ções positivas aos reclamos das ruas e também estão em andamento iniciativas de partidos da oposição dirigidas à eleição presidencial, reações sujeitas à avaliação, agora em 2013 e sobremaneira em 2014. A vida política se amplia sob o Estado democrático de Direito, ao mesmo tempo em que este se estenderá a toda a sociedade e a todos os territórios se tivermos um país com uma vida politica bem ativa.

Esse terreno no Brasil tem sua maior riqueza não só no bom lu-gar nas economias mundiais, mas nas nossas diversidades sociocul-turais, das esferas estatais e de governos (federal, estaduais e muni-cipais), da extensa malha de sociabilidade (ONGs, voluntariado e assim por diante) e das mídias. Estas diversidades indicam que este é o momento da política compromissada com a democracia política e da aceitação do Estado democrático de Direito, sem reservas.

Referências

CAVALCANTE, Manuel Batista. Memórias, inéditas. Campina Grande, 1983.

CARDOSO, Fernando Henrique. Autoritarismo e democratização. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1975.

FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil. Rio de Janeiro: Zahar, 1975.

IUMATTI, Paulo T. Diários de Caio Prado Júnior: 1945. São Paulo: Brasiliense, 2007.

NABUCO, Joaquim. Discursos de Joaquim Nabuco. Recife – Eleições de 1884. Rio de Janeiro: Leuzin & Filhos, 1885.

PCB. Resolução política do Comitê Central do PCB, Rio de Janeiro, 1965.

VIANNA, Luiz Werneck. Sindicato e liberalismo no Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976.

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Por que(m) jovens protestam

Mércio Pereira Gomes

É evidente que não é (essencialmente) por causa do aumento da passagem de ônibus, nem tampouco contra os pais ou contra as injustiças do país.

No dia 13 de junho, participei, um dentre algumas dezenas de coroas, da passeata que saiu do Largo da Candelária até a Cinelân-dia e de lá até a Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj) e depois pela Presidente Vargas até a Central do Brasil. Participei acompanhando, batendo palmas e observando, em zigue-zague, os milhares de jovens que, autoconscientes de suas vidas e de suas paixões, marchavam em alegre, mas contida, manifestação a propó-sito do aumento das passagens de ônibus. No fim da passeata, en-contrei meu filho de 18 anos, junto com outros colegas, todos em suas primeiras passeatas, já correndo das bombas e balas de borra-cha da policia. Um deles foi atingido quase no olho, tal qual a jorna-lista de São Paulo, soube depois.

Em certo momento divaguei que estava na passeata a favor das Diretas Já, em 1984, tal a festiva e distencionada atitude dos mani-festantes. Melhor ainda: não havia um político comandando as mas-sas, uma esperança ilusória de mudanças políticas, uma bandeira de fé. Os pequenos partidos políticos de retórica esquerdista estavam por lá, com suas bandeiras e suas tentativas de controlar, mas eram poucos militantes e não comandavam a massa. Todos pareciam sa-ber que estavam tão somente ensaiando para algo que ainda não sabem o quê é e em quê vai dar, mas que almejam alcançar.

Quase todo mundo tinha menos de 30 anos, estudantes universi-tários e colegiais. Uns engravatados e umas vestidas de executivas desceram dos seus escritórios para acompanhar, meio embevecidos, alguns um tanto emburrados. Não havia corre-corre, nem empur-rões, ninguém perdeu um chinelo no meio da multidão, não se bateu carteira, não rolava bebida, apenas um leve cheiro de erva aqui e ali, quase nenhum momento de azaração. Dois casais se beijavam na boca, sendo um de mulheres. Um único cabeção estourou em frente a um banco e alguns soltavam fraquíssimos foguetes de São João e

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até as infantis estrelinhas. Já se aproximando da Cinelândia, vi al-guém embebendo um chumaço com algum liquido, mas logo consta-tei que estava tão-somente molhando sua máscara cirúrgica com vi-nagre. Dizem que para amenizar os efeitos do gás lacrimogêneo.

Caminhavam em grupos de rapazes e moças, certamente colegas, que se abraçavam com outros grupos, de outros colégios ou faculda-des, ou conhecidos de redes sociais. Sim, as redes sociais funciona-ram no chamamento à passeata.

Tudo parecia improvisado. Os cartazes empunhados por moças e rapazes, alguns com máscaras do farsante, eram de papelão com dize-res em lápis coloridos que mal se enxergava a dez passos de distância. Serviam para os amigos e os fotógrafos documentarem suas ousadias.

Um carro de som se arrastava no meio da multidão puxando as rimas e palavras de ordem. “Se a passagem não baixar, o Rio vai pa-rar”, “Ô, ô, ô, Cabral é ditador”, “O povo não é bobo, abaixo a Rede Globo”. E o mais esperançoso: “Ô, ô, ô... o povo acordou”. Em algum momento uma equipe da rede Globo foi encurralada na portaria da Caixa Econômica, e a Globo foi associada, numa rima engraçada, ao seu antigo apoio à ditadura.

Não havia palhaçada, gaiatices, nem palhaços, nem figuras es-drúxulas, como nas passeatas políticas da década de 1980. Nenhu-ma brincadeira de mau gosto, tampouco. Senti falta das figuras po-pulares, das vestimentas extravagantes, do protesto escrachado; apenas as carrocinhas de cachorro-quente e refrigerante demonstra-vam que o povão estava presente, a trabalho.

Ao chegar na Cinelândia percebeu-se que a multidão estava com-pacta e era expressiva, quem sabe umas dez mil pessoas. E não se soube mais o quê fazer, como concluir o acontecimento. Ninguém para fazer um discurso de glória pela manifestação pacífica e orgu-lhosa, para fazer novos encaminhamentos, para chamar a novos pro-pósitos. Faltou o gozo. O carro de som não podia subir nas calçadas da Praça da Câmara Municipal e virou pela Evaristo da Veiga rumo à Alerj. Lá deu-se o momento de espetáculo, mas não da glória da pas-seata, ao subir as escadarias do Palácio Tiradentes e se agarrar à estátua que adorna a Assembleia Legislativa. Mas nenhuma jovem ousou desfazer-se da blusa e do alto do pedestal empunhar a bandei-ra da liberdade. Pudor e acanhamento, mas falta muito ainda para a glória ressurgir.

Até aí a policia olhava de uma distância regulamentar, aceitável para todos, que não denotava provocação. Os manifestantes apenas

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registravam sua presença em fotos, até deles próprios de costas para o símbolo da repressão. Porém, ao se dirigir pela 1º de Maio e dobrar para a Getúlio Vargas, começou a fuleragem. Sacos de lixo foram chutados e rasgados e um grupo de umas 30 pessoas saiu quebran-do algumas vitrines, grafitando muros e destroçando as paradas de ônibus. A polícia se eriçou e a porradaria começou.

Foi quando a TV Globo interrompeu sua malsinada novela de fo-focas sobre quem é pai de quem, para mostrar as cenas de vandalis-mo da multidão e demonstrar sua falta de compostura. E provar que tudo não passa de jovens descomprometidos com a realidade do país, sem razão e sem motivos.

Eis o busílis da questão. Há quem ache que tudo não passa de desventuras fúteis o que os jovens estão fazendo. Os noticiários tele-visivos nos levam a crer que é isso mesmo. Mas uma pesquisa da DataFolha mostrou que mais da metade da população está a favor das manifestações dos jovens indo às ruas. Por que será?

Tem algo no ar que não pode ser desmerecido por comentários derrisórios de jornalistas de plantão e análises superficiais de soció-logos acadêmicos. Uns acham que é ato inconsequente de jovens mimados, falta do quê fazer; outras, que é gente incapacitada para o diálogo. Por que uma comissão de jovens não dialoga com o prefeito? Aos que os jovens desaforadamente respondem: “Como pode haver um diálogo entre o c... e a p...?”

Não se dialoga com a máquina da modernidade líquida, como po-deria dizer Zygmunt Bauman. O diálogo sempre é falso e se dá em condições de poder do mais forte e com propósitos farsantes. A más-cara do farsante cai bem a propósito da ironia dos jovens.

O Brasil – e alguém diria, o mundo – parece ter virado uma farsa cheia de mentiras, conversa mole, enganações e espetáculos. O der-ramamento de dinheiro para a Copa, para as Olimpíadas, contrasta com as ruas esburacadas, com os estádios mal feitos, com as leis ridiculamente draconianas, com as sempiternas filas de hospitais, com a educação às aparências sem sentido, com o trânsito ruim de-mais, os trens cheios e demorados, com os ônibus – sim, os ônibus e as passagens – para deixar todo mundo revoltado, doente de frustra-ção e de não saber o quê fazer mais. Quase todo mundo já encheu o saco de tudo isso, mas quase ninguém sabe como dizer, agir e mu-dar. A indiferença prevalece como autodefesa: “O que se pode fazer, vai tudo continuar do mesmo jeito”, foi o que ouvi de um homem que olhava o acontecimento.

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7373Por que(m) jovens protestam

Esta é uma juventude do falso bem-estar brasileiro. Nasceu bem, cresceu sem inflação galopante, sem salários escorchantes, num tempo em que o Brasil foi aos poucos paralisando. Cada um por si, que se dá um jeito. O que está aí é o que é.

Mas, por ironia à modernidade líquida, é uma juventude que quer ao menos cuidar de si. Manifesta-se pelo cuidado com amigos. Os grupos se formam naturalmente, por afinidade ou proximidade, e gostam de estar próximos. Cada grupo cuida de si, mas a inveja ou rivalidade grupal, que já foram tão naturais em outros tempos, não prevalece. Para onde derramar esse amor, ou talvez, carinho, se não há como organizar o mundo de outro modo?

Os garotos das passeatas são condenados ipso facto por serem de classe média. Mas a classe média aí está e crescendo, segundo o go-verno. Aliás, confundindo classe média com consumo de bens, todos querem ser classe média. Em outros tempos, os bem-pensantes di-ziam que a classe média é quem puxa o povão. Bem que esses garotos gostariam de puxá-lo para a ribalta da luta. Mas o povão não vem porque nada lhes é confiável, ainda, muito menos para protestos con-tra o preço de passagens e promessas de boa educação para todos.

Os que já passaram do meio caminho da vida também estão frus-trados e reclamam pelos cantos como que em desafogo. Perderam a vontade de transformar suas vidas, muito menos as injustiças do país. Persistem na farsa do “deixa como está para ver como é que fica”.

Os jovens haviam se acostumado com isso, mas procuram um meio para sair. Defendem índios e quilombolas, o vetusto Museu do Índio, qualquer pequena causa que lhes traga de volta a identidade de ser no mundo. Não sabem para onde vão, mas quem o sabe?

Quando é a próxima passeata?

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II. dossiê Chile, 40 anos do golpe de 1973

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Autores

Fernando de la CuadraSociólogo chileno, doutor em Ciências Sociais pelo Curso de Pós-Graduação em Desenvol-vimento, Agricultura e Sociedade (CPDA( da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e pesquisador da Rede Universitária de Pesquisadores sobre a América Latina (Rupal). E-mail: [email protected].

Gonzalo CáceresHistoriador chileno, mestre em Desenvolvimento Urbano pela Universidade Católica do Chile, professor associado do Instituto de Estudios Urbanos y Territoriales, da PUC de Santiago do Chile e pesquisador associado do Centro de Desarrollo Urbano Sustentable (www.cedeus.cl).

Joan del AlcàzarCatedrático do Departamento de História Contemporânea da Universidade de Valencia/Espanha. Publicou como editor Historia actual de América Latina, 1959-2009 (2011).

Marcos Sorrilha PinheiroDoutor e professor assistente do Departamento de História da Unesp/Franca.

Sérgio Augusto de MoraesEngenheiro, mestre em Econometria, trabalhou no governo de Salvador Allende, de 1971 a 1973, e autor do livro Viver e Morrer no Chile (FAP /Contraponto, 2012).

Victor Augusto Ramos MissiatoMestrando do curso de pós-graduação em História, pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp/Franca).

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Salvador Allende e seu legado democrático

Fernando de la Cuadra

No próximo 4 de setembro, comemoram-se 43 anos desde que o candidato socialista Salvador Allende venceu as eleições pre-sidenciais, liderando uma coalizão de forças de esquerda e

centro-esquerda denominada Unidade Popular. O triunfo foi aper-tado – ele obteve somente 36,2% dos votos válidos e representou a quarta tentativa de se eleger presidente. Venceu o pleito com um programa de governo que incluía transformações importantes na estrutura econômica, política e social, num marco do respeito às instituições democráticas vigentes no país, sem uso da violência re-volucionária (via armada) e sem rupturas dramáticas da convivência nacional. Este projeto transformador chegou a ser conhecido como a “via chilena ao socialismo”.

A ratificação de Allende como presidente no Congresso Nacio-nal tampouco esteve livre de conflitos. Poucos dias antes da vota-ção no parlamento, o comandante em chefe do Exército, general René Schneider, foi assassinado por um grupo de civis e ex-militares da ultradireita, como uma forma de pressionar os setores da Demo-cracia Cristã para apoiar o candidato que obteve a segunda maioria, Jorge Alessandri, representante da direita tradicional e que alcan-çou 34,9% dos votos válidos.

O processo de mudanças empreendido por Allende e os partidos da Unidade Popular foi, como é amplamente sabido, interrompido abrup-ta e dramaticamente depois de quase 1.000 dias de governo, pelo Gol-pe de Estado do dia 11 de setembro de 1973. Portanto, neste ano se cumprirão quatro décadas dessa cruenta jornada. Quando afirmamos

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que essa jornada foi sangrenta, não nos referimos a uma enteléquia, pois, durante o mesmo dia do Golpe, vários partidários do governo que defendiam o palácio presidencial La Moneda foram mortos em comba-te e o próprio presidente Allende imolou sua vida quando as forças militares irromperam no seu gabinete. A repressão e o revanchismo sangrento desatado depois desse dia foram de uma ferocidade inusita-da na história política chilena e deixaram uma sequela de executados, detidos desaparecidos, torturados, prisioneiros em campos de concen-tração, exilados e desterrados que ainda hoje pairam como uma som-bra cinzenta sobre a memória de milhares de chilenos. E não somente isso, o próprio projeto socialista empreendido pelo governo da Unidade Popular é um tema que continua dividindo grande parte do país, prin-cipalmente aqueles que viveram a experiência.

Até hoje a historiografia se interroga a respeito das condições que tornariam possível – ou não – a continuidade do Governo Popular. Uma tese postula que dita permanência se assegurava através de uma grande aliança entre a esquerda e os setores progressistas do centro, conformando aquilo que, precisamente a partir da tragédia chilena, Enrico Berlinguer chegou a teorizar como “bloco histórico”. Quer dizer, a construção de uma ampla aliança entre o conjunto de forças impulsionadoras das mudanças necessárias para obter uma maior justiça social. Este pacto dar-se-ia por meio de um compro-misso histórico em que se preparasse o tecido unitário da “grande maioria do povo em torno de um programa de luta pelo saneamento e a renovação democrática de toda a sociedade e do Estado”.

Diferentemente disso, a implantação da “via chilena” foi sendo de-senhada e alimentada por diversas leituras com relação ao percurso que devia seguir a revolução, algo que era inédito, com traços nacio-nais, e que, como dizia o próprio Allende, tinha que ser “com sabor a empanada e vinho tinto”. No entanto, existia uma contradição funda-mental entre as forças políticas que davam sustentação ao projeto da Unidade Popular. O principal embate dessas concepções polares se encontrava entre aqueles setores que tinham uma proposta de inspi-ração republicana do processo de transformações, subordinando a um segundo plano o ideário revolucionário marxista-leninista. Estes seg-mentos consideravam que era preciso manter as garantias democráti-cas e respeitar as instituições da República, negociando e executando paulatinamente as primeiras 40 medidas e outras mudanças que constavam no programa da coalizão de esquerda.

Entre estas ações, a maioria moderada destacava a entrega de meio litro de leite diário para todas as crianças; a instalação de con-sultórios materno-infantil em todos os bairros; atendimento gratuito

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nos hospitais públicos com entrega de medicamentos; supressão dos altos salários dos funcionários de cargos de confiança; um aprofunda-mento da reforma agrária; bolsas para estudantes do ensino básico, médio e universitário; criação de um sistema de previdência universal solidário com fundos estatais; criação do Ministério de Proteção à Fa-mília. A nacionalização do cobre e de outros minerais não figurava entre as primeiras 40 medidas, ainda que já existisse um amplo con-senso sobre sua necessidade imperiosa para aumentar os recursos fiscais destinados a financiar a política social do Estado. Como sempre afirmava o próprio Allende, o cobre era “o salário do Chile”.

Como era um bom negociador, ele conseguiu no início do seu go-verno contar com o apoio do principal partido de centro, a Democra-cia Cristã, com o qual tinha pactuado um Estatuto de Garantias Constitucionais, no qual o governo se comprometia a realizar as transformações anunciadas dentro do total respeito à Constituição e às instituições democráticas. Os partidários do governo insistiam em caracterizar a via chilena como um “processo” de mudanças graduais que levariam finalmente ao socialismo através de uma senda demo-crática. Para isso, era fundamental planejar corretamente a aplica-ção de cada medida do programa, o qual requeria equipes prepara-das tecnicamente para efetuar essas funções.

No cronograma governamental, as expropriações das indústrias, fábricas e das fazendas improdutivas e maiores de 80 hectares de irrigação básica (HRB) tinham que ser realizadas de forma gradual, controlada e planejada, considerando-se que a incorporação de tais empresas à área de propriedade social somente deveria ser efetivada depois que a aquisição e expropriação dos bancos e das empresas de capital estrangeiro estivessem concluídas, “para dessa forma dividir, isolar e neutralizar os setores bem-sucedidos da burguesia nacional durante a transição para o socialismo”. A própria reforma agrária, que foi planejada pela Corporação da Reforma Agrária (Cora), teve que dar conta das pressões dos sindicatos de trabalhadores e “inqui-linos”, e experimentou uma vertigem de tal magnitude na velocidade das expropriações que já em meados de 1972 se encontrava pratica-mente concluída. Ou seja, no entendimento de Allende, “os proces-sos revolucionários bem-sucedidos transcorriam sob uma direção férrea, consciente, não ao acaso. As massas não podiam substituir os dirigentes, porque estes tinham a obrigação de comandar e não de se deixar dirigir pelas massas”.

Entretanto, havia outros setores à esquerda, da UP e fora dela, que visualizavam com pessimismo a realização das transformações socialistas nos marcos da “institucionalidade burguesa” e condena-

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vam o modelo instaurado como sendo uma revolução burocrática, “desde cima”, sem poder popular real. Para estes grupos e movimen-tos, o fundamental era avançar sem negociar com as entidades da “classe burguesa” – enquistadas no Parlamento, no Poder Judiciário, nas empresas e nas entidades profissionais –, para formas concretas de propriedade social, radicalizando e acelerando a expropriação de indústrias, fazendas e outras formas de propriedade privada existen-tes no país. Ao contrário do que pretendia Allende e seu governo, o que se observava no fragor da luta diária pelo socialismo era que as suas diretrizes e a intenção de conduzir as mudanças de forma pau-latina e progressiva foram completamente ultrapassadas pela ação direta dos trabalhadores mais radicalizados e seus sindicatos, dos camponeses e trabalhadores rurais, dos estudantes, dos pobladores, dos povos originários.

Questionando frontalmente o apelo de Allende – e de parte de seus seguidores – para que se conduzisse o processo dentro dos prin-cípios democráticos, esta vertente revolucionária postulava que a de-mocracia possuía um valor estritamente tático, instrumental, como o alicerce necessário para instaurar a luta pelo socialismo. Segundo tal visão, a democracia política, apesar de ser útil à luta das massas populares, não seria mais útil como forma de organização social, de-vido a sua própria natureza de classe, como modalidade de domina-ção da burguesia, para continuar usufruindo dos benefícios decor-rentes da exploração capitalista. Esta perspectiva enfatizava o protagonismo popular e o inevitável enfrentamento com as forças reacionárias, razão pela qual os acirramentos com os setores “con-trarevolucionários” eram imprescindíveis para permitir que o Chile enveredasse consistentemente rumo ao socialismo: a revolução tinha que ser feita pelo povo, vinda “a partir de baixo”.

Na terceira parte da trilogia A batalha do Chile, realizada pelo documentarista Patricio Guzmán – intitulada justamente O Poder Popular – há uma cena emblemática em que se mostra um funcioná-rio do governo tentando explicar, numa reunião com dirigentes e operários de um “cordón industrial”, a necessidade de se realizar as reformas acatando os convênios internacionais assinados pelo gover-no, desacelerando dessa maneira o ritmo das expropriações empre-endidas pelas autoridades. Diante da explicação do representante oficial, um dirigente respondeu-lhe: “Neste momento, estamos ques-tionando a institucionalidade e a legitimidade do governo, já que ago-ra estamos entrando numa etapa de tomada do poder por parte das classes trabalhadoras, porque o poder legal tem sido superado e de-vemos lutar até esmagar a outra classe, a classe burguesa”.

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A natureza e convicção deste discurso revelam o quanto estes setores mais radicalizados estavam conscientes de que o enfrenta-mento com as forças contrárias ao projeto allendista era inevitável. Porém, esta consciência não tinha nenhum correlato numa política efetiva de defesa diante da eventualidade de um golpe de Estado, e hoje conhecemos perfeitamente o quanto as forças de apoio ao gover-no foram esmagadas já no próprio dia 11 de setembro. O que se se-guiu a essa jornada foi um genocídio sem precedentes na história política chilena.

Tal experiência continuou durante muitos anos suscitando inume-ráveis debates sobre quais eram os caminhos mais pertinentes para conquistar o socialismo no Chile. Com a derrota do Governo Popular através do golpe, a tese de que Allende foi sumamente ingênuo ao con-fiar nos militares ganhou muito alento, e também foi predominante entre a esquerda a ideia de que o governo tinha que armar o conjunto da população para resistir à agressão militar. No entanto, com o pas-sar do tempo foram adquirindo destaque aquelas interpretações que insistiam na importância da constituição de um bloco ou aliança his-tórica entre todos os setores políticos empenhados em realizar mu-danças nas estruturas econômicas, políticas e sociais imperantes no país, utilizando para isso os instrumentos e as medidas que eram permitidos nos marcos da convivência democrática.

Além disso, o projeto de Allende e a via chilena eram uma experiên-cia inédita, não existia nenhum modelo histórico que podia dar indí-cios do caminho a ser percorrido de uma transição pacífica, institu-cional e democrática para o socialismo. O sistema presidencialista imperante no Chile permitia a Allende certo grau de liberdade para comandar o processo de mudanças estruturais. No entanto, durante o percurso do mesmo foi ficando cada vez mais evidente, que, tanto na divisão interna da coalizão governante quanto nas convictas e veementes forças contrárias a tais transformações, o programa da Unidade Popular começou a desmanchar-se e o Executivo somente conseguiu administrar uma crise que aumentava quotidianamente.

Porém, em todos os conflitos suscitados durante seu governo, Allende procurou encontrar as saídas e os consensos que lhe permi-tissem seguir impulsionando seu programa sobre bases democráti-cas, e desta forma, interpelar a todos os setores na manutenção do diálogo e evitar os enfrentamentos, que finalmente significaram o fim da vida republicana. No mesmo dia do golpe, “colocado num trânsito histórico”, Allende foi convocado para se unir às forças que resistiam ao embate golpista num dos cordões industriais de Santiago. O pre-sidente eleito, coerente com sua trajetória democrática, declinou da

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oferta e decidiu morrer no Palácio La Moneda, tal e como tinha pro-metido em suas sucessivas alocuções ao povo chileno:

Yo les digo a ustedes, compañeros, compañeras de tantos años, se los digo con calma, con absoluta tranquilidad: yo no tengo pasta de após-tol ni tengo pasta de Mesías, no tengo condiciones de mártir. Soy un luchador social que cumple una tarea, la tarea que el pueblo me ha dado. Pero que lo entiendan aquellos que quieren retrotraer la historia y desconocer a la voluntad mayoritaria de Chile: sin tener carne de mártir, no daré un paso atrás; que lo sepan, dejaré La Moneda cuan-do cumpla el mandato que el pueblo me diera (...) no tengo otra alter-nativa, solo acribillándome a balazos podrán impedir la voluntad que es hacer cumplir el programa del pueblo.

Independente do caráter dramático das circunstâncias nas quais foi deposto Allende, seu gesto de morrer no Palácio do Governo enfati-za sua férrea convicção de concluir o mandato para o qual foi eleito, no lugar que representava o centro do poder político, no local que era a síntese dos valores democráticos e republicanos acalentados durante tantos anos na história política chilena. Tinha claro que seu mandato terminaria em novembro de 1976 e mesmo sabendo que seis anos de governo pareciam pouco para o gigantesco da obra a ser construída, o presidente confiava no entusiasmo de um conjunto de forças progres-sistas que se inclinava por apoiar tais transformações.

Nesse sentido, o projeto de mudanças que Allende almejava para o país não era uma utopia surgida de uma mente alucinada, muito ao contrário, ele se apoiava numa leitura consciente da realidade, na certeza de que era possível utilizar as instituições e as leis da Repú-blica para atingir o conjunto de medidas incluídas no seu programa de governo, entre elas a reforma agrária, a nacionalização dos recur-sos naturais e a estatização dos bancos e do sistema financeiro.

Contudo, o projeto allendista não foi compreendido cabalmente pelos mesmos partidos que formavam a Unidade Popular, e a “soli-dão intelectual” de Allende foi sendo cada vez mais patente num ce-nário onde a polarização da sociedade foi cada vez maior e seu epílo-go trágico se anunciava como o desfecho inevitável de um país dividido pelo ódio e a intolerância. Este foi em parte o drama da ex-periência chilena, o afastamento in crescendo entre as contrapostas visões e estratégias políticas, sendo que a capacidade de Allende para arbitrar estas disputas foi diminuindo progressivamente, ficando cada vez mais isolado em seu projeto de construir um socialismo pela via democrática.

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Passados 40 anos dessa experiência inédita e abortada na feroci-dade das armas, o pensamento de Allende e a via chilena ao socialis-mo emergem como um grande legado para as futuras gerações. Isto é, pensar que socialismo e democracia não somente são possíveis e de-sejáveis, mas que ambas as dimensões são essencialmente imprescin-díveis. Não num sentido meramente teórico, mas numa práxis política de um modo dialeticamente novo de conceber essa relação.

Tal como foi apontado na feliz síntese de Carlos Nelson Coutinho: “Sem democracia não há socialismo, e sem socialismo não há democracia”.

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o caminho inconcluso. A experiência chilena, 40 ou 20 anos depois

Marcos Sorrilha Pinheiro

O historiador peruano Alberto Flores Galindo,1 dizia que a Histó-ria deveria ter uma função similar à psicologia, colocando a socieda-de em uma espécie de divã. Assim como na sessão terapêutica, a retomada das lembranças e os momentos que impactaram sua “me-mória coletiva” não deveriam ter a função de aprisioná-la aos erros do passado. Ao contrário. Revolver sua trajetória funcionaria como uma forma de libertá-la de seus tormentos. Em suas palavras, “do-minados por fantasmas, é impossível encarar qualquer futuro. O de-safio consiste em criar novas ideias e novos mitos. Porém, é evidente que não se trata de deixar tudo de lado e prescindir do passado”.2

Neste ano, completam-se quarenta anos do golpe militar deflagra-do no Chile sob o comando do general Augusto Pinochet. Lembrar o bombardeio ao Palácio La Moneda, o suicídio do presidente Salvador Allende e as milhares de vidas perdidas como resultado do terrorismo de Estado implantado no país possui, evidentemente, uma função pe-dagógica. No entanto, existem outros fantasmas que se recusam a ser sepultados nessa história. Dentre eles, destaca-se o fato de que o gol-pe de Estado de 1973 colocou um ponto final na experiência chilena de se alcançar o socialismo pelas vias institucionais.

“Experiência chilena” era comumente o nome dado ao período compreendido entre os anos de 1970 a 1973, quando o governo da Unidade Popular (UP), sob a presidência de Allende, adotou uma série de medidas como forma de se realizar a transição democrática ao so-cialismo. Este desafio trazia consigo uma série de significados simbó-licos que diziam respeito não apenas à América Latina, mas ao mun-do. De um lado, representava a defesa da concepção de que o caminho ao socialismo não se realizaria apenas pelas armas, ou pelas trilhas

1 Alberto Flores Galindo (1949-1990), historiador peruano de perfil marxista, fez parte da Nova História Peruana que se destacou na década de 1980. Escreveu impor-tantes obras sobre a História peruana, dentre elas Buscando un Inca: identidad y utopia en los Andes, de 1986.

2 FLORES GALINDO, Alberto. Buscando un Inca: identidad y utopía en los Andes. In: Obras Completas. Tomo III. Lima: SUR, 1995, p. 374.

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deixadas em aberto por Fidel e seus camaradas. Neste lado do mundo, a palavra socialismo se conjugava com insurreição e não com institu-cionalidade. O que se apresentava era, portanto, algo novo, para não dizer, novíssimo. Para a esquerda mundial, em especial a europeia, a proposta também foi recebida com grande entusiasmo, mobilizando um número considerável de intelectuais – em especial franceses e es-panhóis – que deixaram seus países, ou que já estavam fora dele, e foram para o Chile contribuir com esta criação socialista.

Desta maneira, falar sobre o golpe é inegavelmente uma forma de se recordar o fracasso da experiência chilena e suas possibilidades não concluídas. Por um lado, os motivos do golpe se encontram in-terseccionados aos descaminhos e tensões levantadas pelo governo da UP no seio da sociedade chilena daquela época. Por outro lado, é também uma forma de se debruçar sobre o inacabado, na tentativa de se descobrir os locais onde residem suas falhas e encontrar res-postas para a sua incompletude.

Nessas quatro décadas percorridas, em várias partes do mundo, muitos estudiosos se dedicaram a este exercício. Entre as diversas análises, no Brasil, deve-se registrar um livro publicado há precisa-mente 20 anos. Trata-se de Democracia e Socialismo: a experiência chilena, de Alberto Aggio. O livro não se resume a uma versão brasi-leira do evento e tampouco é um testemunho dos acontecimentos, mesmo porque o autor não viveu no Chile no período investigado. Na realidade, trata-se de um livro que procurou inserir-se, sobretudo, na discussão historiográfica chilena, colocando-se em diálogo com importantes autores do país, tais como Manuel A. Garretón, Tomás Moulian e Eugenio Tironi, dentre outros. Por ser assim, o objetivo daquela iniciativa intelectual de 20 anos atrás não era apenas re-constituir os passos que levaram Allende à vitória e à derrocada, mas, também, discutir aquilo que se produziu a respeito daquele processo histórico. Conforme anunciou: “a problemática central des-te livro reside na discussão sobre as leituras desta experiência e do que ficou conhecido como a via chilena ao socialismo”.3

Na senda dessas premissas, o que se fez foi, em primeiro lugar, dar voz aos diversos setores político-sociais envolvidos nesta histó-ria. Dos militares à esquerda, passando pela Democracia Cristã, to-das as versões do processo são levadas à cena, com enfoque especial aos discursos produzidos pelos partidos e intelectuais abarcados na trama. Entretanto, não era o caso de apenas dar voz aos protagonis-

3 AGGIO, Alberto. Democracia e Socialismo: a experiência chilena. 2. ed. São Paulo: Annablume, 2002, p. 11. Grifo do autor.

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8686 Marcos Sorrilha Pinheiro

tas e sim abrir espaço para analisar as hipóteses elaboradas pelas ciências sociais – ciências políticas e historiografia – a respeito da experiência chilena e de suas características. Neste plano, aos pou-cos, vão sendo trazidos para a análise, alguns elementos peculiares da via chilena, e a sua integração com a própria história do Chile e sua cultura política de ordem e estabilidade democrática. Dentro desta perspectiva, o socialismo em democracia resultaria como uma forma de tornar o socialismo em algo coerente aos mecanismos da própria política chilena. No entanto, ao contrário de seu objetivo, acabou por representar o fim de um longo período democrático. De certa maneira, o governo da UP foi o desenlace de uma crise de con-senso que colocou arremate ao arreglo democrático4 estabelecido en-tre as décadas de 1930 e 1970.

Não há dúvida que o elemento inusitado desse processo é a democra-cia e, por isso também, é a preocupação central do livro. Para o autor, a estratégia de Allende – ainda que localizada na intersecção das diversas expectativas que comunistas e socialistas possuíam a respeito do que deveria ser a via chilena – residia na radicalização dos mecanismos in-clusivos da democracia, como forma de provocar uma ativação das mas-sas e, concomitantemente, promover a socialização do Estado. No entan-to, na medida em que avançou, tal processo provocou uma instabilidade na ordem política e social fruto de um descompasso entre a inclusão das massas e a abertura do Estado. Conforme concluiu o autor:

Pode-se dizer que entre a ativação de massas e a preservação da ordem democrática residiu o enigma da transição democrática ao socialismo proposto na via chilena. No cenário real das “alternati-vas globais”, que se estruturaram no interior das elites políticas chilenas a partir dos anos 60, o desencadeamento pela esquerda de um processo “antirrevolução passiva” acabou-se por afirmar-se como antagônico ao “arreglo democrático” chileno, que havia sido construído desde o final da década de 1930 e que, naquele momen-to, vivia uma aguda contestação em virtude da emergência das massas na vida política do país.5

Como experiência histórica, o que se tomou por evidente do fracas-so da via chilena ao socialismo foi a interpretação de que havia se cancelado “em definitivo qualquer possibilidade de proposição de uma via democrática ao socialismo”.6 Confirmava-se o diagnóstico de que o sinônimo de socialismo era a insurreição. No entanto, dentro da inves-tigação de Alberto Aggio, a realidade é, ao mesmo tempo, mais dura e

4 Termo cunhado por Eugenio Tironi.5 AGGIO, Alberto. Democracia e Socialismo... Op. Cit. Nota 4, p. 169. Grifos do autor.6 Ib., p. 26.

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diferente. Na verdade, a via chilena não conseguiu produzir uma gran-de criação. Não formulou uma nova noção de tempo político e, tam-pouco introduziu uma nova noção de ruptura. Sem conseguir criar mecanismos para ser a via democrática ao socialismo, a experiência chilena “apenas conseguiu se anunciar como uma via democrática”.7 Neste sentido, não pode ser a representação cabal da impossibilidade de um socialismo pela institucionalidade, pois, de fato, nunca o foi. A resposta para este enigma seguiria assim em aberto.

Vinte anos depois, o livro continua sendo uma referência obrigató-ria para quem se dedica ao estudo deste importante capítulo da histó-ria latino americana. De outra forma, para além da precisa análise sobre o ocorrido na época de Allende, é interessante pensarmos que sua confecção e publicação ocorreram em uma época extremamente importante para a história das recentes democracias no Brasil e no Chile. Foi por volta desses anos que ocorreu o plebiscito que colocou um ponto final na ditadura do gal. Pinochet no Chile e, por outro lado, se elaborou e aprovou a atual Constituição brasileira, permitindo ao país vivenciar, em seguida, a eleição por voto direto do primeiro presi-dente – Fernando Collor – depois de anos de autoritarismo. Ao mesmo tempo, chegava ao fim o comunismo soviético, enterrando a via bol-chevique para a revolução. Num mundo em que a democracia pedia retumbante passagem, qual o espaço reservado ao socialismo? Era possível encontrar uma conciliação entre socialismo e democracia? Se tomada a experiência chilena como ensinamento, a resposta era não.

Neste sentido, Democracia e Socialismo pode ser visto como um trabalho de investigação que pretendia entender os caminhos de in-sucesso da via chilena. Mas, ao mesmo tempo, uma maneira de ten-tar romper com aquela imagem residual de que socialismo e demo-cracia são substâncias que não podem ser dispostas numa mesma fórmula. Como síntese, ficaria a lição de que a insolubilidade de am-bos foi algo específico da incompletude daquela experiência e que, portanto, a descoberta a respeito das possibilidades de sua mistura ainda estaria em pauta. Ao enterrar o “fantasma de Allende”, o livro abre espaço para que se busquem novas ideias e novos mitos que sejam capazes de encarar a qualquer futuro. Diferente de uma sen-tença de impossibilidade, a lição que se tira da experiência chilena é a de que ela não fecha as portas para o socialismo em democracia, mas a reflexão sobre ela pode ser uma maneira de se alimentar a discussão a respeito da possível existência de fórmulas que lhe tra-gam alguma estabilidade pelos vinte ou quarenta próximos anos.

7 Ib., p. 170.

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A formação da unidade Popular e a relação das esquerdas chilenas com a democracia

Victor Augusto Ramos Missiato

Cenário histórico de regimes oligárquico-liberais e autoritá-rios que restringiam a participação popular, a América Lati-na nos séculos XIX e XX destacou-se por ser uma região de

enormes desigualdades sociais. No entanto, esse quadro não ex-cluiu as peculiaridades e diferenças nos processos políticos de seus Estados nacionais. Pelo contrário. Prova disso é o processo político chileno que vai do final dos anos 1930 ao início dos anos 1970, marcado por uma larga experiência política republicana e democrá-tica, considerada inédita no continente, porém não desvinculada de contradições e retrocessos.

A origem desse processo está na apertada vitória (50,17% dos votos) da Frente Popular, em 1938, com a eleição do candidato do Partido Radical, Pedro Aguirre Cerda, apoiado pelos partidos Comu-nista e Socialista. Essa aliança se opôs à sucessão do governo Arturo Alessandri (1932-1938), marcado por ações repressivas e autoritá-rias. Após essa eleição, os Radicais mantiveram-se no poder até 1952, período em que estabeleceram “as bases de um padrão de mo-dernização que se notabilizou no continente latino-americano por sua singularidade e continuidade ao combinar desenvolvimento eco-nômico com uma extensiva e quase sempre ilimitada liberdade polí-tica” (AGGIO,1999, p. 16). Diferentemente do caso brasileiro, “a polí-tica conciliatória, flexível e pragmática do Partido Radical passou a ser o ponto de referência central na vida política do país, fortalecendo as convicções democráticas do republicanismo chileno” (Ib., p. 20). Como comparação, nesse período, o Estado Novo comandado por Getúlio Vargas estabelecia-se como um regime de exceção no Brasil.

Afirma-se que o Chile vivenciou uma “quase sempre ilimitada liberdade política” durante os governos radicais em razão da emer-gência da Guerra Fria, quando a conjuntura internacional polariza-da entre EUA x URSS deu ensejo à proibição da atuação dos comu-nistas chilenos além de voltar-se contra as atividades sindicais (AGGIO, 2002, p. 79). Em decorrência da decretação da Lei de De-

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fesa Permanente da Democracia (1948), o Partido Comunista per-maneceria na ilegalidade por uma década.

Uma vez ilegalizados, diminuiu notavelmente a influência do parti-do dentro do movimento operário e os comunistas passaram a atuar clandestinamente sob uma forte e contínua perseguição. É neste contexto que surgiram correntes rupturistas que descartaram os ca-minhos institucionais de expressão política, projetando atuar de ma-neira armada e direta. A secretaria geral, liderada por Galo Gonzáles, por outro lado, propôs reconquistar a legalidade, reinserindo-se no sistema político por meio de amplas alianças com outros setores po-pulares. A vitória desta última postura, e a expulsão do grupo dissi-dente, possibilitaram a ratificação desta linha sistêmica, reforçando suas noções sobre a valorização da democracia e a aproximação já mencionada com os Socialistas do Chile, conduzidos por Allende (ARAYA, 2010, p. 23-24).

Prova dessa convergência foi a formação da Frente Nacional del Pueblo (Frenap) em 1952, resultado das alianças entre comunistas e setores socialistas, que lançou Salvador Allende na disputa das elei-ções presidenciais em 1952. Sucintamente, as propostas apresenta-das nesse programa de governo foram as seguintes: independência econômica através da nacionalização das riquezas naturais (cobre e salitre), políticas anti-imperialistas e antioligárquicas (crítica ao lati-fúndio) e elevação da qualidade de vida das massas populares. Trata--se, portanto, de um aprofundamento do programa da Frente Popu-lar de 1938, envernizado por tintas democratizantes e reformistas (ARAYA, 2010, p. 25). Ao final do pleito, Carlos Ibáñez del Campo, candidato do Partido Agrario Laborista (PAL), apoiado pelo Partido Socialista Popular (PSP) e pelo Partido Femenino do Chile, acabou eleito com 46,8% dos votos. Apesar da pequena porcentagem de votos (5,75%), a aliança comunista-socialista, formada nessas elei-ções, ganhou fôlego. Com todas as dificuldades impostas, Allende conseguiu forjar uma unidade entre ambas as forças e fortalecer a convicção de que a participação no sistema político-institucional chileno poderia ser um caminho viável rumo à conquista do poder pela esquerda chilena.

Ao final da década de 1950, novas perspectivas se abriram no horizonte dessa frente. O PSP, que havia deixado o governo ibañista, indicou uma reaproximação com o Partido Socialista. Esses diálogos culminaram na reunificação dos socialistas em 1957, união muito comemorada pelos comunistas (ARAYA, 2010, p. 35). O Partido De-mocrático (1953) e o Partido del Trabajo (1954) também aderiram à Frente. Resultante disso, em 29 de fevereiro de 1956, foi criada a

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Frente de Acción Popular (Frap), que procurou responder à estraté-gia revolucionária dos comunistas:

A política a ser implementada para a concretização dessa estraté-gia passava, contudo, por uma reavaliação crítica e autocrítica do período da Frente Popular. No entanto, manteve-se da fase ante-rior, como elemento de programa, a intenção estratégica de aliança com a burguesia nacional, afirmando-se a concepção de que no Chile o caminho poderia ser pacífico. É a partir daí que, para os comunistas, a via chilena ao socialismo poderia ser construída por meios legais e não armados. O tema da luta armada, embora laten-te, permaneceu como um discurso que se reportava às dimensões da teoria e era considerado como uma alternativa de último recur-so. O que vai ser alterado significativamente na política dos comu-nistas chilenos, a partir dos anos 50, é a concepção da aliança com a burguesia nacional (AGGIO, 2002, p. 83).

Ademais, outro fator conjuntural de extrema importância foi a volta à legalidade do Partido Comunista Chileno, que muito traba-lhou na aglutinação de novos elementos para a Frap. Reunidas essas forças, o conglomerado da esquerda chilena, sob o lema “Um novo caminho para o Chile”, organizou uma convenção e decidiu lançar Allende como candidato presidencial nas eleições de 1958. Esse acordo ocorreu em um momento de crise política enfrentada pelo governo de Ibañes, o que veio a fortalecer tal iniciativa. O programa de 1958 apresentou-se como uma versão ainda mais radicalizada do movimento frente populista dos anos 1930, pois foi inspirado nas reivindicações das massas “proletárias”, sem necessitar da base de apoio do centro político (ARAYA, 2010, p. 39).

O resultado das eleições de 1958 foi surpreendente para todos, inclusive para Allende. Com 28,9% dos votos válidos, a coligação de esquerda por pouco não alcançou a vitória, que não veio, também, por razões fraudulentas no processo eleitoral (AGGIO, 2002, p. 107). Os setores que apoiaram Allende ficaram entusiasmados com o resultado e começaram a defender com mais vigor a “via sistêmica”. Jorge Ales-sandri, candidato apoiado pela direita chilena, saiu-se vitorioso com 31,6% dos votos. Outro elemento “novo” na arena política chilena foi a “aparição da Democracia Cristã como uma alternativa de poder, su-plantando a votação dos Radicais” (Ib., p. 91).

Na década seguinte, as diferentes visões e estratégias para a con-quista do poder voltaram à tona nos embates entre as diversas corren-tes da esquerda chilena. Um dos fatores primordiais dessas disputas foi a eclosão da Revolução Cubana em 1959, que respaldou as críticas de setores socialistas em relação à estratégia frapista (MOULIÁN,

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2005, p. 50). Iniciou-se um movimento de radicalização contrário à opção sistêmica e à legitimação das eleições como veículo de expres-são. Por outro lado, o PC e Allende mantiveram a estratégia de alian-ças e disputas através do pleito político-institucional, o que ficaria caracterizado como “via pacífica” ao socialismo (ARAYA, 2010, p. 58).

Apesar de essas divergências terem se acentuado na década de 1960, na prática, a esquerda, em sua maioria, manteve a opção sis-têmica nas conjunturas eleitorais. Nessa questão, a figura de Allende foi decisiva para o amortecimento das pretensões insurrecionais no campo socialista (AGGIO, 2002, p. 96). Todavia, as ações de Allende não foram capazes de aglutinar integralmente as diferentes estraté-gias políticas presentes no imaginário dessas esquerdas. As disputas retóricas da esquerda auxiliaram na derrota eleitoral de 1964, pois alimentaram a “campaña del terror” empreendida pela Democracia Cristã (DC), que relacionou a Frap ao regime de Fidel Castro. Finda a votação, o candidato Eduardo Frei conquistou o pleito com 55,88% dos votos, enquanto Allende recebeu 38,64%. Essa derrota, diferen-temente das outras, representou um duro golpe à esquerda chilena. As tendências à ruptura institucional se viram fortalecidas e daí em diante se configurou uma dinâmica de permanente conflito entre as correntes estratégicas, marcando um ponto de inflexão que se esten-deria por quase uma década (ARAYA, 2010, p. 121). A despeito des-sas fraturas (entre outros exemplos, podemos citar o surgimento do Movimiento de Izquierda Revolucionaria – MIR, fundado em 1965, com propostas mais radicais), a unidade frapista, na década de 1960, conseguiu assegurar a linha principal de manutenção da disputa político-institucional como estratégia rumo ao socialismo.

Mesmo com tantos descaminhos, a esquerda chilena conseguiu reestruturar-se e reorientar-se estrategicamente na perspectiva de disputar uma nova eleição em 1970 (Ib., p. 225). Por mais que as vertentes radicais do PS defendessem a ruptura institucional, tanto socialistas como comunistas mantiveram a unidade estratégica que havia pautado a trajetória da esquerda desde a década de 1950 (Ib., p. 140). Nessa conjuntura, mais uma vez, os comunistas jogaram um papel importante na formação das alianças, o que não significou o cumprimento total de suas exigências. Mas algumas mudanças fo-ram introduzidas com a inserção do Partido Radical nesses novos acordos, sem que os Radicais ocupassem, como entre 1938 e 1952, a liderança da coalizão. Além disso, tendo a Frap se desgastado com os diversos embates na década de 1960, uma nova coligação foi for-mada. Surgia, então, a Unidade Popular (UP), aliança de esquerda ampliada, que abrigou ainda parte do centro político chileno, incor-

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porando os Radicais. É sabido que os comunistas cogitavam incluir também a Democracia Cristã ou, pelo menos, alguns dos seus seto-res, mas essa iniciativa foi abortada.

Ao abarcar vozes tão destoantes, muitas concessões foram feitas, fomentando inevitáveis indefinições programáticas na UP. A própria escolha de Allende como candidato ficou marcada por uma série de críticas e resignações. Mesmo com tantas dificuldades, o mundo ve-ria uma inédita conquista eleitoral protagonizada por Allende, um marxista confesso. Sua restrita margem de vitória (cerca de 40 mil votos) gerou algumas tensões até ser considerado oficialmente presi-dente (ARAYA, 2010, p. 262).

Depois de quase duas décadas, Allende assume o Palácio de La Moneda. Trata-se de uma conquista eleitoral baseada em décadas de razoável estabilidade política, em que gerações acostumaram-se a de-cidir os desígnios de seu país por meio de um regime democrático-re-presentativo. Novamente, como comparação, em 1970, o Brasil sofria com o “auge” do regime militar e seu AI-5. Todavia, a histórica relação da esquerda chilena com a democracia esteve mais vinculada a um valor instrumental do que a um valor universal. Até mesmo para os comunistas, adeptos da ampliação das alianças, essa relação tinha seus limites. Ancorados em uma concepção leninista, entendiam o socialismo como expropriação dos meios de produção das mãos da burguesia e defendiam a ditadura do proletariado como uma etapa da história (MOULIAN, 2005, p. 54). Essa tensão explodiria no momento de crise política aguda enfrentada por Allende quando emergiu uma conjuntura radicalmente polarizada que lhe retiraria sustentação na opinião pública e legitimidade entre as forças políticas.

Imerso nesse mar revolto, o governo Allende procurou buscar um equilíbrio entre ruptura e estabilidade. Tratava-se de uma tarefa com-plexa: revolucionar uma sociedade sem interferir em sua estabilidade (ARAYA, 2010, p. 272). Ao se aproximar do centro e ancorar-se no pensamento de seu assessor político, Joan Garcés, Salvador Allende, mesmo não sistematizando teoricamente tais propostas, visualizou na democracia liberal uma oportunidade interessante para dar passagem e responder às reivindicações sociais (Ib., p. 274). Por outro lado, his-toricamente relacionado à tradicional esquerda chilena, Allende man-teve alguns elementos teóricos, táticos e retóricos em seu governo, gerando, de fato, uma inevitável contradição. Como já dito, sujeito a uma conjuntura polarizada e altamente tensionada, o governo de Allende não teve como enfrentar as agudas pressões e iniciativas de-sestabilizadoras de uma direita que tinha apoio dos EUA.

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Apesar de seu trágico desfecho, essa trajetória política da esquerda chilena, iniciada em fins da década de 1930 e golpeada em 1973, con-sensualmente, representou uma formidável experiência de participa-ção da esquerda em um regime democrático, numa época em que mui-tos partidos de esquerda rejeitavam tal concepção estratégica.

Referências

AGGIO, A. Democracia e socialismo: a experiência chilena. São Paulo: Annablume, 2002.

______ . Frente popular, radicalismo e revolução passiva no Chile. São Paulo: Annablume/Fapesp, 1999.

ARAYA, M. C. El alba de una revolución: la izquierda y el proceso de construcción estratégica de la “vía chilena al socialismo” (1956-1970). Santiago: LOM, 2010.

MOULIÁN, T. La vía chilena al socialismo: itinerario de la crisis de los discursos estratégicos de la Unidad Popular. In: VALLEJOS, J. P. (Org.) Cuando hicimos historia: La experiencia de la Unidad Popular. Santiago: LOM, 2005.

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Allende contemporâneo, Chile contingente1

Gonzalo Cáceres

Chilenos votando em Salvador Allende. A cena não procura evo-car as eleições presidenciais de 1952, 1958, 1964 ou 1970, nem tampouco propõe recordar as eleições parlamentares de

1937, 1944, 1953, 1961 ou 1969. A tensão provém de uma votação, mas, diferentemente de todas as anteriores, a eleição ocorre no mar-co de um programa de televisão exibido em 2008. Grandes chilenos, versão hispano-americana de uma produção inglesa, foi elaborado para a escolha do cidadão chileno mais destacado, incluindo-se o pe-ríodo anterior ao Chile enquanto nação independente. Qual o método para sua seleção? Inicialmente, buscou-se o parecer de duas dezenas de intelectuais que definiram 60 personalidades. Em uma segunda etapa, as preferências manifestadas por professores e alunos ajuda-ram a determinar uma lista com dez indivíduos. A seguir, graças a uma votação popular desprovida de quaisquer restrições de nacio-nalidade ou de localização, as preferências começaram a ser distri-buídas entre os candidatos. Como é comum a muitos programas de televisão, os interessados podiam votar quantas vezes quisessem, com a vantagem de saber qual nome recebia mais indicações.

Para além de suas diferenças com uma eleição ordinária, Grandes chilenos ratificou uma ideia difundida na América e na Europa: Sal-vador Allende sobressai-se entre os chilenos nascidos durante os sé-culos XVIII, XIX e XX. Não obstante, e a partir de outra perspectiva, a porcentagem de 38,81% que angariou parece ratificar a parcialidade de seu apoio. Quase como um déjà vu, a votação alcançada por Allen-de confirmaria a vigência dos três terços, simplificação que por déca-das exemplificou uma relativa divisão tripartite do eleitorado.

Diferentemente desta última interpretação, a votação de 2008 também pode ser considerada como um testemunho a mais da cres-cente “allendização” da cultura política local. Radicalizando esta ar-gumentação, afirmaremos que a existência de uma crescente identi-

1 Tradução de Marcos Alves de Souza, professor assistente doutor junto ao Departa-mento de História da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais – Unesp/Campus de Franca.

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9595Allende contemporâneo, Chile contingente

ficação com o legado de Allende permite-nos imaginar uma articulação entre a candidatura de Michelle Bachelet e alguns movimentos polí-tico-sociais que despontaram em 2011. Reforça este prognóstico o papel adquirido pelo Partido Comunista do Chile (PCCh). Ainda que Salvador Allende nunca tenha renunciado a sua militância socialis-ta, sustentaremos que o PCCh é o herdeiro popular de seu legado. Ademais, argumentaremos que a demanda por políticas universalis-tas, bandeira permanente dos movimentos sociais, também nos re-mete à Presidência de Salvador Allende, cujo governo tem adquirido uma crescente – ainda que debatida – revalorização.

Allende depois de Allende: a leitura comunista

Qual foi a relação que os comunistas estabeleceram com o legado de Allende? Diferentemente da fragmentação que experimentaria o Partido Socialista no exílio, os comunistas desterrados suportaram a década de setenta sem divisões que colocassem em dúvida sua iden-tidade partidária. Como era possível imaginar, Allende e seu governo pluripartidário foram objetos de uma louvada recordação.

Quando os comunistas decidiram adotar uma estratégia insurre-cional (1980-1987), eles utilizaram outra figura do panteão republi-cano como símbolo de sua insurgência. O advogado independentista Manuel Rodríguez foi o escolhido. Sua escolha buscou ressaltar ju-ventude, patriotismo e astúcia em uma só evocação. Para os comu-nistas, não teve qualquer importância ter sido o grupo ultradireitista “Patria y Libertad” a última força política a reivindicar para si o lega-do de Manuel Rodríguez.

Uma vez fracassada a militarização da política (1987), as divisões internas tornaram-se mais agudas entre “os filhos de Recabarren”. O colapso do socialismo autoritário acelerou o sangramento interno e acompanhou o isolamento comunista que se prolongaria para além do início do primeiro governo civil (1990). Ainda que tenham conseguido recuperar sua identidade partidária de maneira legal, os primeiros anos pós-ditadura, para os comunistas, foram de sobrevivência.

Oprimidos por um sistema eleitoral que beneficiava as coalizões, a cultura partidária comunista solidificou-se em torno das organizações de Direitos Humanos e de sua luta contra a impunidade. O affaire Pino-chet, entendido agora em toda sua extensão (1998-2006), renovou sua legitimidade. Também foi decisiva a aproximação comunista ao governo de Chávez na Venezuela. Ambas as operações, como era possível imagi-nar, tiveram a figura de Allende como um recurso essencial.

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É possível que a crise ética e política da Concertación tenha es-timulado o sustentado renascimento comunista. Não está claro que assim tenha sido. De qualquer maneira, sucessivas reformas e re-arranjos eleitorais permitiram-lhes, por sua vez, conquistar algu-mas prefeituras e disputar, com maiores probabilidades de êxito, alguns distritos parlamentares. Na metade da primeira década do novo século, a identidade comunista reapareceu entre os jovens universitários, mas também entre os professores e trabalhadores hiperflexibilizados.

Quando Michelle Bachelet se converteu em uma sólida aspirante presidencial, o mal-estar entre a classe política convencional já era evidente. Filha de um general constitucionalista, ela recebeu o apoio comunista durante o segundo turno (2006). Podia haver sido de ou-tra forma? Ninguém se surpreendeu quando, ao longo das celebra-ções de seu triunfo eleitoral (53,50%), apareceram emblemas exter-nos à Concertación. Inclusive, não é estranho pensar que Bachelet houvesse imaginado que haveria espaço para o PCCh em seu formato de governo cidadão. Valeria a pena voltar a pensar na presença co-munista em uma posição mais do que simbólica, em duas das Co-missões Presidenciais nomeadas durante sua administração.

O apoio eleitoral que a esquerda extraparlamentar deu a Bachelet seria a antessala de sucessivos pactos eleitorais. Ficavam para trás muitos desencontros e não poucas humilhações. Aliás, parece ser necessário voltar o olhar para a inauguração do monumento a Salva-dor Allende, em 2000. Erigido em plena Plaza de la Constitución, a estátua foi inaugurada em uma cerimônia semiprivada comandada pelo próprio presidente Lagos, poucos meses depois de iniciado seu governo. Contudo, ao invés de se ausentarem de um ato para o qual não haviam sido convidados, dirigentes e militantes comunistas se autoconvocaram, em uma clara demonstração de orgulho e fidelidade. A despeito da tentativa de administrar a comemoração, os comunistas se impuseram como os legatários populares da memória de Allende.

A “allendização”: uma ponte conveniente entre o passado e o futuro?

A descrição acima ajuda a entender porque Allende foi a persona-lidade mais votada quando Grandes chilenos foi transmitido em 2008. No entanto, o relato omite as mudanças verificadas no mundo não partidário, em especial se considerarmos a realidade estudantil. Tamanha omissão poderia anular a tese política que organiza a argu-mentação. Recordemos que, dada sua identidade allendista, o PCCh

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9797Allende contemporâneo, Chile contingente

agia como uma ponte de ligação entre a candidatura de Michelle Ba-chelet e os movimentos sociais.

Sem margem para dúvidas, o protagonismo que o PCCh vem exi-bindo desde 2011 tem permitido que uma nova geração se sensibilize a respeito do legado de Allende. Com certeza, não foi esta a única via de socialização. A Fundação Salvador Allende também teve seu pa-pel, o mesmo acontecendo com o próprio Museo de la Memoria y de los Derechos Humanos, aberto desde 2010. Importância ainda maior deve ser atribuída ao processo de recordação. Neste caso, referimo--nos tanto à lembrança das vítimas do terrorismo de Estado, como também à “despinochetização” em desenvolvimento e que, de tempos em tempos, registra novos marcos. O último deles, a renomeação da Avenida 11 de Setembro para Avenida Nova Providência.

Difíceis de apurar, as mobilizações estudantis de 2011 foram de-cisivas para multiplicar uma crítica ao modelo de crescimento. Mas, de maneira semelhante a uma deflagração, os estilhaços se espalha-ram em todas as direções. Menos comentados, os sustentáculos das mobilizações de 2011 também devem ser entendidos como uma crí-tica geracional a um tipo de sociedade que oficializa a exclusão. In-terpretadas as manifestações deste modo, é importante destacar que Allende foi o único “político” que sobreviveu à “adultofobia”.

Certamente, a leitura juvenil sobre o legado de Allende é benevo-lente. Combativo, anti-imperialista, loquaz, latino-americanista, comprometido e perseverante são alguns dos atributos mais mencio-nados quando as conversas sobre ele incluem aqueles com menos de trinta anos. Como outras interpretações semidevocionais, algumas contradições normalmente são desculpadas. Allende, firmemente identificado com a educação pública, aprovou que suas filhas estu-dassem, durante as décadas de 1950 e 1960, em estabelecimentos particulares de ensino.

É notório que Allende tenha sido convertido em uma figura refe-rencial para uma geração que nunca teve oportunidade de escutá-lo ou vê-lo. Como era possível imaginar, o olhar benevolente sobre Allende é aditivo, mas também seletivo. Ele se concentra em sua es-tatura pública, contornando a prepotência. Focaliza seu conhecido interesse por um Estado onipresente, mas omite o questionamento do financiamento das necessidades universais. Um Estado, o de Al-lende, integralmente diferente do modelo mínimo que o neoliberalis-mo tornou global em tantos países.

O que poderia parecer uma proposta anacrônica, não o é se con-templarmos o panorama latino-americano. Não deveríamos sufocar

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as vozes que propõem reestatizar serviços básicos ou recursos fun-damentais, tampouco as que, a partir de diferentes ângulos, não exi-gem a reestatização, mas advogam por novas regulações.

Sem aprofundar em ambas as perspectivas, parece óbvio que o resgate comunista do legado de Allende coincide com as demandas nascidas dos movimentos sociais, quando é possível inferir políti-cas públicas de suas reivindicações.

Deste modo, a sua herança, à semelhança de um aglutinador simbólico, fertiliza uma convergência possível. Alicerce de uma me-mória militante, a lembrança dele proporciona a dose de utopia que uns e outros pareciam procurar com tanta dedicação.

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A vida e a vida da revolução chilena

Sergio Augusto de Moraes

Toda grande revolução, mesmo que derrotada, deixa uma he-rança preciosa para as futuras gerações. Assim foi com a Co-muna de Paris, que durou somente setenta e dois dias. Karl

Marx, que anteriormente havia manifestado sua oposição à mesma, colocou-se decididamente a seu lado quando a insurreição se tornou um fato, e escreveu “Graças à Comuna de Paris, a luta da classe operária contra a classe dos capitalistas e contra o Estado que repre-senta os interesses desta última entra agora em uma nova fase. Seja qual for o desenlace imediato, conquistou-se dessa vez um ponto de partida novo de importância histórico-mundial”.1

Não somente os acertos mas os erros e carências dessas revolu-ções constituem um material precioso para aqueles que querem construir um mundo melhor. Lênin estudou minuciosamente a “Co-muna” e sempre destacou o enorme aporte que esse “assalto ao céu’ deu para o êxito da revolução de 1917 na Rússia.

É dessa maneira que homens e mulheres que pensam em um mundo pós-capitalista olham para a Revolução Chilena. Ela foi der-rotada em 11 de setembro de 1973, mas deixou ensinamentos que poderão abrir caminhos até então insuspeitados.

Uma das coisas que ainda hoje impactam aqueles que estudam esta Revolução é a audácia dos revolucionários chilenos. Primeira-mente, por elaborarem e tocarem um projeto que contrariava os inte-resses da grande burguesia chilena e das corporações norte-ameri-canas solidamente implantadas no país, sabendo que com isso teriam contra si as forças dos Estados Unidos, país mais poderoso do mun-do. Mas tem mais. Naquela época, início dos anos 70, a influência da Revolução Cubana na América Latina era muito grande. Em vários países, gente de esquerda implantava focos guerrilheiros à seme-lhança do acontecido em Cuba. Tentar um caminho para o socialis-mo pela chamada “via pacífica” era quase um sacrilégio.

1 Carta a L. Kugelman de 17/04/1871 – Marx e Engels, Obras Escolhidas, v. 3, Rio de Janeiro: Vitória, 1963.

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Entretanto, há que notar que a decisão de enfrentar tais obstácu-los não provinha da vontade de um líder carismático nem de fatores circunstanciais. Ela apoiava-se numa longa tradição de luta de mas-sas, em particular do proletariado chileno. E também na tradição de disputas políticas em amplas alianças, que permitiu a vitória de can-didatos de frentes populares nas eleições de 1938, 1942 e 1946. E uma derrota de Salvador Allende por somente 33 mil votos para Jorge Alessandri, nas eleições presidenciais de 1958.

No entanto, as eleições de 1970 eram diferentes, pois o programa da Unidade Popular apontava claramente para uma transição do ca-pitalismo ao socialismo pela via democrática. Era algo de novo, não só na América Latina, como no mundo. Era preciso audácia.

Outro aspecto da Revolução Chilena que chama atenção, mesmo hoje, depois da queda do Muro de Berlim e do fim da União Soviética é a chamada via democrática para o socialismo. Porque a tentativa de superar os males do capitalismo sem a destruição violenta do apa-relho de Estado existente é fato que se multiplica atualmente na América Latina e em outras partes do mundo. A insatisfação dos povos com a democracia plasmada sob a batuta do “Deus mercado” aumenta a cada dia e, de certa maneira, está presente nas manifes-tações de junho no Brasil. As grandes manifestações de massa que assistimos hoje “apontam para uma crise de legitimidade do atual sistema político, organizado na partidocracia, na política midiática e na dominação da política pelo dinheiro, legal e ilegalmente” como diz Manuel Castells.2

Não que tais manifestações apontem para o socialismo como ele era visto nos anos 70. Elas repudiam vários aspectos do capitalismo, mas ainda não está claro que regime querem botar em seu lugar. A superação do capitalismo, no mundo de hoje, será uma invenção de milhões, possivelmente ligados em rede.

No período 1970-1973, o povo chileno construiu uma democracia muito mais ampla e profunda que aquela conhecida até então que, no fundo, não diferia muito daquela que hoje está sendo questionada em muitos países. No governo de Salvador Allende, a proximidade, a interação permanente dos políticos com o povo, a participação dos trabalhadores na direção das empresas, a universalização do direito à saúde, à educação e ao lazer são marcas que ficaram não só na memória do povo chileno, elas se espalharam pelo mundo. E essas sementes germinam a cada primavera.

2 Entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, 09/07/13.

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Outro aspecto marcante do governo de Allende era seu compro-misso com a ética e com os valores republicanos. Mesmo no fragor da batalha que sacudiu o Chile, de 1970 a 1973, a Unidade Popular não deixou cair essa bandeira. O respeito à coisa pública, à palavra em-penhada, ao acordo político, eram qualidades que nem os adversá-rios podiam negar aos revolucionários chilenos.

Estes valores também não foram um produto das circunstâncias eleitorais que deram a vitória a Allende. Foram forjados ao longo das lutas dos trabalhadores durante decênios, muitas vezes sofrendo na própria pele as consequências do desrespeito aos mesmos por parte de seus adversários. Neste sentido, é emblemático o caso da eleição de Gabriel Gonzales Videla para a Presidência da República em 1946, com o apoio da Aliança Democrática, da qual fazia parte o Partido Comunista do Chile (PCCh).

Alguns meses depois, cedendo às pressões do governo estaduni-dense, Videla colocou o PCCh na ilegalidade e iniciou uma persegui-ção impiedosa aos comunistas, traindo os compromissos assumidos com um dos maiores responsáveis por sua eleição.

O povo não perdoou este ato abjeto. Depois de deixar a Presidên-cia, era difícil ao ex-presidente andar pelas ruas de Santiago e de outras cidades chilenas. Homens e mulheres, ao identificá-lo, cus-piam em sua direção. O grande poeta Pablo Neruda dedicou-lhe um poema “Gonzales Videla, el traidor de Chile”, do qual transcrevo aqui alguns versos:

Es Gonzales Videla la rata que sacude su pellambrera llena de estiércol y de sangre sobre la tierra mia que vendió. Cada dia saca de sus bolsillos las monedas robadas y piensa si mañana venderá território o sangre.3

Poema mais ácido faria o grande poeta se tivesse vivido para pre-senciar a obra do general Augusto Pinochet.

3 NERUDA, Pablo. Canto General. Buenos Aires: Debolsillo, 2003, p. 230-231.

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Quatro décadas depois, a lição política que se pode extrair do governo de Allende1

Joan del Alcàzar

Já se passaram quatro décadas desde aquela manhã de setem-bro em que as forças militares cercaram o Palácio La Moneda e exigiram a rendição incondicional do presidente da República,

que se encontrava em seu interior acompanhado apenas por algumas dezenas de homens armados. Era o ponto final de uma experiência política singular que afirmava querer superar o sistema capitalista e alcançar o socialismo sem violentar a estrutura institucional repu-blicana do país. Agora sabemos quantas contradições havia no seio do projeto da Unidade Popular, como também que existiam impor-tantes diferenças táticas e estratégicas entre seus impulsionadores. Sabemos, ademais, o quão complexo e assimétrico foi o cenário in-terno e hostil o internacional. Embora se saiba que a história não estava escrita e que o fatídico final da chamada Via Chilena poderia não ter acontecido, o fato é que, conforme os meses foram se pas-sando, o mapa político e partidário interno polarizava-se mais e mais e, a partir de cada um dos dois polos, ela foi tachada de maneiras opostas para, com afã, desacreditá-la e insultá-la, seja de fascista ou de comunista, sem que parecesse existir outra possibilidade de-sejável que a vitória completa de uns sobre os outros. Finalmente, aquela máxima de Engels de que a revolução poderia ser feita com ou sem Exército, mas nunca contra o Exército, tornou-se realidade e os carros de combate sitiaram o palácio presidencial que, como expres-são de uma brutalidade sem limites, foi bombardeado com caças de combate da Força Aérea.

Para os chilenos, finalizara-se o que, para muitos, era um sonho de liberdade e igualdade, enquanto que para outros – que não eram poucos – findara-se o pesadelo do desabastecimento, das desordens, da cubanização e das ameaças à propriedade privada. Um confronto ideológico com uma forte carga empírica, dado o alcance do nível de conflito vivido no país. Na fase final do enfrentamento, poucos se surpreenderam com a intervenção dos militares no papel de protago-

1 Tradução de Marcos Alves de Souza, prof. assistente doutor junto ao Departamento de História da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais – Unesp/Campus de Franca.

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103103Quatro décadas depois, a lição políticaque se pode extrair do governo de Allende

nistas extraordinários. Amplos setores contavam que eles fossem ca-pazes de instituir a ordem, acabar com o caos e reconduzir o país a uma situação que atendesse aos interesses de gregos e troianos. Mas não foi assim. A erupção dos militares foi uma grande cirurgia, e sem anestesia. Os tempos das ditaduras tradicionais já haviam acabado na América Latina. Nesta fase da Guerra Fria, o que o Departamento de Estado norte-americano propunha era o que chamamos de novo tipo de ditaduras, isto é, regimes militares que deveriam extirpar os órgãos infectados pelas células cancerígenas constituídas pelo inimi-go interno. Se o comunismo não era uma ideologia, e sim uma doen-ça, como havia dito tempos antes John Edgar Hoover, os militares seriam os médicos que haveriam de curar o enfermo.

Fora do Chile, a experiência de Allende e da Unidade Popular foi acompanhada com interesse, especialmente seu dramático e san-grento final.

O alcance e a violência do golpe militar chileno foi, para a União Soviética, uma surpresa de grandes dimensões, que não apenas obri-gou o Kremlin a uma reflexão doutrinária sobre as lutas de libertação na América Latina, como também provocou grandes inquietações tanto entre os que prontamente seriam chamados eurocomunistas, como entre os maoistas, os cubanos e, no geral, entre seus amigos e simpatizantes de todo o chamado Terceiro Mundo. Naquela que pode ser considerada a primeira reação soviética, o Pravda publicou, em 14 de setembro, que o golpe havia sido obra dos círculos reacioná-rios do Chile e das forças estrangeiras imperialistas (sem as identi-ficar). A URSS rompeu relações diplomáticas com o governo militar, esforçou-se para manter relações formais com o Partido Comunista Chileno (PCCh), com o Partido Socialista Chileno (PSCh) e com o Movimento de Ação Popular Unitária (Mapu) e, além disso, em con-junto com seus aliados europeus e com Cuba, recebeu milhares de exilados chilenos.

Passados os anos, podemos dizer que a chamada Via chilena ao Socialismo levou a consequências políticas de grande expressão em toda a esquerda ocidental. Produziram-se – podemos sintetizar – três tipos de resposta:

1) A que poderíamos chamar de esquerda revolucionária, partidá-ria da luta armada, convencida de que a dicotomia era revolução ou fascismo e de que nunca seria possível alcançar o socialismo da forma e da maneira como a Unidade Popular tentou durante anos no Chile;

2) A ortodoxa, de matriz soviética, que mesmo valorizando a possi-bilidade de que – ao menos teoricamente – se pudesse transitar pacifi-

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camente para o socialismo, entendia que deveria ser contemplada a utilização da força para a defesa das conquistas revolucionárias;

3) Aquela que nos parece mais inovadora, a que Achille Occhetto, em sintonia com seu predecessor, Enrico Berlinguer, denominaria, anos depois (já nos anos oitenta), reformismo forte:

(...) um reformismo que não se conforma com retoques de fachada, mas que intervém sobre as contradições profundas da sociedade com propostas realistas (...) uma alternativa democrática e refor-madora que tenha, como protagonistas, as forças do progresso.

Quarenta anos depois do fatídico final da Via chilena e 25 destas palavras do comunista italiano, sabemos que o mundo não somente não avançou em direção ao socialismo, como também que a grande superpotência soviética já não mais existe, e que a grande potência chinesa, oficialmente um país socialista, com o Partido Comunista como partido único, é um híbrido de algo que não se sabe realmente o que é, bem como seu modo e suas relações de produção. Deixando de lado a excepcionalidade coreana e o atípico Vietnã, somente Cuba segue se considerando um país socialista. Têm surgido sob sua luz, isso sim, alguns regimes, singularmente o venezuelano – ou boliva-riano – e outros que se encontram em sua vizinhança, que se ins-crevem em um chamado – e indefinido – socialismo do século XXI.

Há vinte anos, Eric Hobsbawm escreveu algumas palavras que aludem a uma patologia que teria afetado e ainda afeta a esquerda política realmente existente no Ocidente:

Para aqueles que consideram que seja não somente mais simples, como também melhor, manter hasteada a bandeira vermelha, en-quanto os covardes retrocedem e os traidores adotam uma atitude de desprezo, espreita-lhes o grave risco de confundir a convicção com a manutenção de um projeto político; o ativismo militante com a transformação social e a vitória com a “vitória moral” (que tradi-cionalmente tem sido o eufemismo com o qual se tem denominado a derrota); o ameaçar com o punho em riste o status quo com a desestabilização do mesmo ou (como se deu muitas vezes em 1968) o gesto com a ação.

É por isso que hoje, quatro décadas depois da morte de Salvador Allende e do início da ditadura que ensanguentou o Chile e que co-moveu o mundo, particularmente aqueles que se identificavam com os valores da esquerda política, torna-se interessante voltar a visitar aquele processo chileno.

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105105Quatro décadas depois, a lição políticaque se pode extrair do governo de Allende

Àqueles que há décadas afrontavam a desprezadamente chamada democracia burguesa, surpreendeu-lhes a crueldade insuportavel-mente ruptural da ditadura (certamente burguesa). Àqueles que há pouco menosprezavam os avanços do Estado de Bem-Estar Social, implementado nos países onde a esquerda reformista (mais ou me-nos) forte havia conseguido consolidar-se, surpreende-lhes agora a facilidade com a qual a crise econômica e financeira que estamos vivenciando nos países do sul da Europa está desmontando as con-quistas alcançadas. E, agora, valorizam-nas como nunca antes o fi-zeram, até convertê-las em bandeira própria.

Estamos em uma fase deprimida e deprimente no tocante às lu-tas políticas pelos direitos sociais, pela democratização radical de nossas sociedades. Isto já ocorreu antes. María José Orbegozo, jor-nalista especializada na política italiana, escrevia em 1981:

Quando, em outubro de 1973, frente à queda de Salvador Allende no Chile, Berlinguer propôs o compromisso histórico entre as for-ças majoritárias (democratas-cristãos, socialistas e comunistas), o secretário-geral abrigava em sua mente um projeto muito ambicio-so: modificar gradualmente as orientações de base de tais forças políticas e, muito particularmente, da Democracia Cristã, para impulsioná-las de encontro com os comunistas, evitando assim o risco de uma reação direitista que, inclusive, poderia ter o apoio das massas.

O processo italiano definitivamente não evoluiu pelo estreito ca-minho previsto pelos comunistas dos anos 70. No momento preciso em que escrevemos estas páginas, a situação política italiana é, qui-çá, mais convulsionada do que nunca. E o é, em boa medida, porque a atual esquerda italiana, como a europeia em seu conjunto, está tão fragmentada que apenas é capaz de oferecer algo mais que um dis-curso contraditório. Nada que se pareça com um programa político alternativo ao da centro-direita e que resulte crível e praticável. Cer-tamente, os tempos são outros e muito distintos, mas se pode afir-mar que a esquerda política europeia, em sua variedade, está muito longe da irresistível potência e capacidade políticas que detinha nos anos setenta e no começo dos anos oitenta.

Não se trata simplesmente de um problema partidário, orgânico ou institucional. Trata-se da perda de referências, de sustentações, do desmoronamento de um sistema de ideias e certezas – a derrubada de um novelo de doutrinas, nas palavras de Tony Judt – que afetou toda a esquerda europeia depois da queda do comunismo de Moscou. Há tempos aquela esquerda que liderou o Partido Comunista Italiano (PCI) de Berlinguer juntamente com seus irmãos eurocomunistas da

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Europa Meridional, ou a esquerda de orientação socialdemocrata, na qual se incluíam partidos governistas da Grã-Bretanha, França, Espa-nha ou Alemanha, anda desnorteada e perdendo eleições. Em certa medida, pode-se dizer que as respostas que oferece aos novos proble-mas são demasiadamente parecidas às que propuseram há décadas, em outro cenário geopolítico completamente distinto.

Por conseguinte, podemos concluir que a atual esquerda demo-crática – e não somente a europeia – deve se reinventar. Entendemos que a alternativa deve ser algo que se pareça com o reformismo forte do qual falara Occhetto. Em suma, o modelo chileno dos anos 70 de avançar ao socialismo já não mais serve. Foi uma proposta que so-mente pode ser compreendida em seu contexto e em sua época.

Não obstante, aquela experiência falida, truncada e de final dra-mático ainda nos pode ilustrar lições para o futuro. Talvez a mais importante consista em que, quatro décadas depois, parece pouco discutível que se imponha a necessidade de escapar, de qualquer maneira, da hiperpolarização política, da configuração de um mapa político binário e confrontado, da desqualificação inevitável e da deslegitimação dos adversários políticos. À luz daquele processo marcadamente doloroso, a opção mais razoável será gerar amplos consensos que, parafraseando Berlinguer, permitam construir e consolidar uma democracia da mais alta qualidade possível, que garanta o pleno exercício e o desenvolvimento de todas as liberda-des. De todas elas.

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III. observatório

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Autores

Ariosto HolandaDeputado federal (PSB/CE).

George Gurgel de OliveiraProfessor da Escola de Administração da Universidade Federal da Bahia. Doutorado pela Unicamp (1995) e pós-doutorado pela Usal (2011).

Gilvan Cavalcante Jornalista, criador e editor do blog Democracia Política e Novo Reformismo.

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Papa aponta a tarefa de reabilitar a política

Gilvan Cavalcante

O papa Francisco, no mais forte pronunciamento de toda a Jor-nada Mundial da Juventude, durante Encontro com a socie-dade civil, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, no dia 27

de julho, pediu às lideranças locais que apostem no “diálogo cons-trutivo” e afirmou que “o futuro exige a tarefa de reabilitar a políti-ca”. Apelou para que dirigentes e manifestantes “dialoguem de for-ma construtiva” para erguer uma sociedade mais justa. Alertou que não há como pensar uma nação democrática sem a contribuição das “energias morais” - uma referência direta à pressão das ruas.

“O futuro exige de nós uma visão mais humanista da economia e uma política que realize cada vez mais e melhor a participação das pessoas, evitando elitismos e erradicando a pobreza”, afirmou Fran-cisco. Em seu discurso, evitou endossar as políticas de combate à pobreza do governo, como Brasília esperava.

Ele insistiu em falar de ética aos políticos nacionais, pedindo “hu-mildade social”. Para o Vaticano, essa foi a forma diplomática que ele encontrou para tratar da corrupção, sem ter de citar a palavra. “So-mos responsáveis pela formação de novas gerações, capacitadas na economia e na política, e firmes nos valores éticos”, apontou. Ele ainda pediu um país que se desenvolva “no pleno respeito dos prin-cípios éticos fundados na dignidade transcendente da pessoa”.

O Pontífice ainda foi claro em relação ao momento de protesto que o Brasil vive, e defendeu o diálogo. “Entre a indiferença egoísta e o protesto violento, há uma opção sempre possível: o diálogo”, decla-rou, em uma referência às manifestações nas ruas, “o diálogo entre

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as gerações, o diálogo com o povo, a capacidade de dar e receber, permanecendo abertos à verdade”.

Sua simpatia em relação aos manifestantes também ficou clara no discurso. “É impossível imaginar um futuro para a sociedade sem uma vigorosa contribuição das energias morais numa democracia que evite o risco de ficar fechada na pura lógica da representação dos interesses constituídos”

Nos 14 minutos em que discursou para cerca de dois mil convi-dados, defendeu uma economia mais humana, que evite elitismos e erradique a pobreza. E defendeu ainda a importância do Estado lai-co, justamente em um momento em que a pressão religiosa avança sobre governantes e congressistas brasileiros.

O porta-voz do Vaticano, Federico Lombardi, afirmou, em uma coletiva, que o pronunciamento marcou de forma definitiva o início do Pontificado do primeiro jesuíta e do primeiro latino-americano. Para ele, “falar em reabilitar a política é uma fórmula muito forte e expressiva”, destacando outro ponto importante o de “ele falar em humildade social, de que não se deve falar de cima para baixo com as pessoas”.

Para a professora de Ciência Política da PUC-RJ, Maria Celina D’Araújo, sobre o fato de Francisco ter enfatizado a importância do diálogo frente aos protestos das ruas brasileiras, ela destacou que “o papa não pedia apenas conversas vazias, mas, sim, um discurso que aponte soluções reais”.

trechos do pronunciamento papal

(...) Todos aqueles que possuem um papel de responsabilidade, em uma nação, são chamados a enfrentar o futuro “com os olhos calmos de quem sabe ver a verdade”, como dizia o pensador brasileiro Alceu Amo-roso Lima [“Nosso tempo”, in: A vida sobrenatural e o mundo moderno. Rio de Janeiro, 1956, 106]. Queria considerar três aspectos deste olhar calmo, sereno e sábio: primeiro, a originalidade de uma tradição cultu-ral; segundo, a responsabilidade solidária para construir o futuro; e terceiro, o diálogo construtivo para encarar o presente.

1. É importante, antes de tudo, valorizar a originalidade dinâmica que caracteriza a cultura brasileira, com a sua extraordinária capaci-dade para integrar elementos diversos. O sentir comum de um povo, as bases do seu pensamento e da sua criatividade, os princípios fun-damentais da sua vida, os critérios de juízo sobre as prioridades, so-

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111111Papa aponta a tarefa de reabilitar a política

bre as normas de ação, assentam numa visão integral da pessoa hu-mana. (...) Mas a riqueza desta seiva deve ser plenamente valorizada! Ela pode fecundar um processo cultural fiel à identidade brasileira e construtor de um futuro melhor para todos. (...) Fazer que a humaniza-ção integral e a cultura do encontro e do relacionamento cresçam é o modo cristão de promover o bem comum, a felicidade de viver. (...)

2. O segundo elemento que queria tocar é a responsabilidade so-cial. Esta exige um certo tipo de paradigma cultural e, consequente-mente, de política. Somos responsáveis pela formação de novas gera-ções, capacitadas na economia e na política, e firmes nos valores éticos. O futuro exige de nós uma visão humanista da economia e uma política que realize cada vez mais e melhor a participação das pesso-as, evitando elitismos e erradicando a pobreza. Que ninguém fique privado do necessário, e que a todos sejam asseguradas dignidade, fraternidade e solidariedade: esta é a via a seguir. (...) Os gritos por justiça continuam ainda hoje.

Quem detém uma função de guia deve ter objetivos muito concre-tos, e buscar os meios específicos para consegui-los. Pode haver, po-rém, o perigo da desilusão, da amargura, da indiferença, quando as aspirações não se cumprem. A virtude dinâmica da esperança incenti-va a ir sempre mais longe, a empregar todas as energias e capacida-des a favor das pessoas para quem se trabalha, aceitando os resulta-dos e criando condições para descobrir novos caminhos, dando-se mesmo sem ver resultados, mas mantendo viva a esperança.

A liderança sabe escolher a mais justa entre as opções, após tê-las considerado, partindo da própria responsabilidade e do interesse pelo bem comum; esta é a forma para chegar ao centro dos males de uma sociedade e vencê-los com a ousadia de ações corajosas e livres. No exercício da nossa responsabilidade, sempre limitada, é importante abarcar o todo da realidade, observando, medindo, avaliando, para tomar decisões na hora presente, mas estendendo o olhar para o futu-ro, refletindo sobre as consequências de tais decisões. Quem atua res-ponsavelmente, submete a própria ação aos direitos dos outros (...). Este sentido ético aparece, nos nossos dias, como um desafio histórico sem precedentes. Além da racionalidade científica e técnica, na atual situação, impõe-se o vínculo moral com uma responsabilidade social e profundamente solidária.

3. Para completar o “olhar” que me propus, além do humanismo integral, que respeite a cultura original, e da responsabilidade solidá-ria, termino indicando o que tenho como fundamental para enfrentar o presente: o diálogo construtivo. Entre a indiferença egoísta e o protesto

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violento, há uma opção sempre possível: o diálogo. O diálogo entre as gerações, o diálogo com o povo, a capacidade de dar e receber, perma-necendo abertos à verdade. Um país cresce, quando dialogam de modo construtivo as suas diversas riquezas culturais: cultura popular, cultura universitária, cultura juvenil, cultura artística e tecnológica, cultura econômica e cultura familiar e cultura da mídia. É impossível imaginar um futuro para a sociedade, sem uma vigorosa contribuição das energias morais numa democracia que evite o risco de ficar fecha-da na pura lógica da representação dos interesses constituídos. Será fundamental a contribuição das grandes tradições religiosas, que de-sempenham um papel fecundo de fermento da vida social e de anima-ção da democracia. Favorável à pacífica convivência entre religiões diversas é a laicidade do Estado que, sem assumir como própria qual-quer posição confessional, respeita e valoriza a presença do fator reli-gioso na sociedade, favorecendo as suas expressões concretas.

Quando os líderes dos diferentes setores me pedem um conselho, a minha resposta é sempre a mesma: diálogo, diálogo, diálogo. A úni-ca maneira para uma pessoa, uma família, uma sociedade crescer, a única maneira para fazer avançar a vida dos povos é a cultura do encontro; uma cultura segundo a qual todos têm algo de bom para dar, e todos podem receber em troca algo de bom. O outro tem sempre algo para nos dar, desde que saibamos nos aproximar dele com uma atitu-de aberta e disponível, sem preconceitos. Só assim pode crescer o bom entendimento entre as culturas e as religiões, a estima de umas pelas outras livre de suposições gratuitas e no respeito pelos direitos de cada uma. Hoje, ou se aposta na cultura do encontro, ou todos per-dem; percorrer a estrada justa torna o caminho fecundo e seguro.

(...) A fraternidade entre os homens e a colaboração para construir uma sociedade mais justa não constituem uma utopia, mas são o re-sultado de um esforço harmônico de todos em favor do bem comum. Encorajo os senhores no seu empenho em favor do bem comum, que exige da parte de todos sabedoria, prudência e generosidade. (...)

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desenvolvimento e sustentabilidade. Quais os desafios?

George Gurgel de Oliveira

As razões da insustentabilidade

As opções dos indivíduos e de cada sociedade viabilizam um de-terminado modelo de desenvolvimento, expresso nas relações políti-cas, econômicas e sociais desta sociedade e da própria sociedade com a natureza, como processo histórico e cultural.

O desenvolvimento capitalista, desde a revolução industrial do século XVIII até a primeira metade do século XX, tinha como base para a sua reprodução a disponibilidade dos recursos naturais, con-siderada infinita. A capacidade de suporte do meio ambiente não era uma preocupação para o funcionamento do sistema. A variável am-biental era considerada uma externalidade ao processo de desenvolvimento.

Desde então, o aumento da concentração urbana e industrial, da população do planeta nos últimos 100 anos (de 1,5 bilhão para 7 bilhões de pessoas) e da escala de produção e consumo, aliados ao caráter excludente e de concentração de riqueza e as crises cíclicas inerentes ao próprio sistema capitalista, levaram a uma realidade econômica, social e ambiental insustentáveis.

A década de 60 é um período de radicalização e crítica aos mode-los hegemônicos de desenvolvimento existentes e a criação de movi-mentos políticos e sociais que irão influenciar e mudar o mundo.

O fortalecimento e o surgimento de organizações mundiais, con-tinentais e nacionais de luta pela paz e democracia, de afirmação dos direitos humanos, da juventude, das mulheres, as organizações dos trabalhadores na luta por seus direitos sociais e as chamadas “mino-rias” (movimento negro americano, comunidades indígenas, entre outros), ocupam um lugar de destaque no cenário político mundial. Posteriormente, na década de 70, com o nascimento do movimento ambientalista, as denúncias e o combate à poluição dos mares, dos rios e da atmosfera, dos impactos causados pela indústria nuclear, de petróleo e gás, pela mineração em geral e a construção de grandes hidrelétricas começam a fazer parte do cotidiano da humanidade.

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As insustentabilidades políticas, econômicas, sociais e ambientais identificadas tanto no capitalismo, quanto na própria experiência do socialismo real, já sinalizavam desde a década de 60 para a necessida-de de superação dos conflitos e contradições destes sistemas políticos, econômicos e sociais existentes no século passado, apresentados como alternativas de desenvolvimento para a humanidade.

O século XX é palco de acidentes e catástrofes ambientais gera-dos pela intervenção humana, refletidos negativamente na atmosfe-ra, mares, rios, aquíferos, florestas, em todos os ecossistemas do planeta. Tais são os casos do efeito estufa, mudanças climáticas, poluição, desertificação, extinção significativa de espécies animais e vegetais. Também a perda de vidas e da qualidade de vida de milhões de pessoas em diferentes regiões do planeta, afetadas com estes im-pactos, passou a ser parte do cotidiano da humanidade.

A urgência da questão ambiental colocou-se pelo grau e a velo-cidade de degradação em função da ação humana na natureza. Analisando apenas o que aconteceu no século XX, os impactos so-fridos pelos ecossistemas planetários de correntes da ação humana são sem precedentes. O nível de degradação do meio ambiente mundial coloca em risco a sobrevivência destes ecossistemas plane-tários e consequentemente, a disponibilidade de recursos naturais, inclusive o ar, a água e o território, necessários à sobrevivência da humanidade.

Portanto, a questão ambiental em si passa a ser preocupação de organizações governamentais e não governamentais nos níveis mun-dial, nacional e local. Os governos, meios de comunicação, mercado, comunidade científica e sociedade civil em geral passam a ter maior participação neste processo de conscientização em busca de uma sociedade sustentável.

A perspectiva sustentável

Neste processo de conscientização e crítica ao modelo de desen-volvimento atual, foram e estão sendo criadas as condições para a superação deste modelo, na perspectiva de construção de uma nova sociedade, que se quer sustentável.

Assim, o enfrentamento de fato destas questões em escala mun-dial, nacional e local, coloca em questão o próprio desenvolvimento capitalista e os seus valores, a lógica de produção e consumo e o consequente processo de urbanização e industrialização gerados por este sistema.

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115115Desenvolvimento e sustentabilidade. Quais os desafios?

A história do século XX mostrou a insuficiência dos mecanismos de mercado e do próprio Estado para a regulação das relações econô-micas e sociais, com a necessária preservação do meio ambiente.

A busca de alternativas para superação desta realidade coloca a necessidade de construção de uma nova agenda para pautar as ques-tões do desenvolvimento nos contextos mundial, nacional e local.

O trabalho desenvolvido pela ONU e outras organizações multila-terais, a luta pela paz, a afirmação da democracia e o imperativo das questões socioambientais e de uma nova economia passam a ser va-lores permanentes para a construção de novas formas da humanida-de se relacionar entre si e com a natureza.

Vive-se mundialmente um processo de construção de uma cons-ciência ambiental individual e coletiva. As iniciativas regionais, na-cionais e internacionais, desde a Conferência da Biosfera (ONU, Pa-ris, 1968) e a partir de 1972, na I Conferência Mundial de Meio Ambiente em Estocolmo, colocaram a necessidade de um novo de-senvolvimento, denominado de ecodesenvolvimento. No Rio de Janei-ro, 20 anos após Estocolmo, realizou-se a II Conferência Mundial sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento (ECO-92), quando o con-ceito de desenvolvimento sustentável é apresentado pela ONU como um desafio para a humanidade, compromisso das gerações atuais e futuras. Do Rio, em 1992, até Johannesburgo, em 2002, a maioria dos países construiu suas Agendas 21 nacionais, compromisso as-sumido naquele evento.

No Rio de Janeiro em 2012, constataram-se poucos avanços em relação às declarações da Rio 92, quando se analisaram os compro-missos declarados pela Agenda 21, Carta da Terra, Protocolo de Kio-to e Biodiversidade, originados naquela Conferência. Assim, traba-lha-se em uma velocidade que não é compatível com as demandas econômicas, sociais e ambientais da sociedade, muito menos com as disponibilidades atuais dos recursos naturais do planeta.

A construção política, econômica e social da sociedade futura, que se quer sustentável, é um desafio permanente colocado para a sociedade política, para toda a humanidade. Alguns valores devem fundamentar esta nova construção social. Entre outros, o reconheci-mento da democracia, criadora das condições para uma governabili-dade mundial, nacional e local, a necessidade da paz, do diálogo permanente entre os povos para superação dos atuais desafios polí-ticos, econômicos, sociais e ambientais.

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Nesta perspectiva, o modelo de desenvolvimento deve estar com-prometido com a equidade na distribuição da riqueza produzida cole-tivamente, preservando os valores ambientais, culturais e espirituais construídos historicamente pela humanidade com uma participação pró-ativa da cidadania.

A realidade brasileira

Os princípios relacionados ao conceito de Desenvolvimento Sus-tentável, em que pese sua importância como uma declaração pactua-da pela ONU (ECO-92), refletindo o atual processo de consciência mundial imbricada à questão ambiental, naturalmente, incorporam as contradições e os conflitos inerentes à sociedade contemporânea, daí não poderem ser realizados na sua plenitude.

O Brasil, em função da sua dimensão territorial, riquezas mine-rais, biodiversidade, condições edafo-climáticas (terra, sol e água) favoráveis à reprodução da vida, produção agrícola e pecuária não apenas para a população brasileira, como também para a população mundial, é um ator importante neste cenário político, econômico e social mundial.

Historicamente, a sociedade brasileira, no seu processo de desen-volvimento, gerou uma das sociedades mais concentradoras de ri-quezas e excludentes do planeta. Os conflitos sociais e ambientais inerentes a este desenvolvimento nos colocam desafios a serem supe-rados na perspectiva de construção de uma sociedade sustentável.

A percepção da questão ambiental como variável a ser considera-da está colocada de maneira distinta nas diferentes etapas do pro-cesso de desenvolvimento da sociedade brasileira.

No início da colonização, a carta de Pero Vaz de Caminha ao rei Dom Manuel, em 1º de maio de 1500, é o primeiro testemunho das riquezas naturais e potencialidades. Desde as expedições coloniza-doras, a primeira chega ao Brasil em 1530, chefiada por Martim Afonso de Souza, fomos e continuamos a ser exportadores de maté-rias primas para atender ao mercado mundial, o que tem ampliado os níveis de degradação ambiental dos ecossistemas brasileiros, co-locando desafios no sentido de preservação do território, das rique-zas naturais, particularmente da nossa biodiversidade, elemento es-tratégico para o futuro do país e da América Latina, particularmente em relação à Amazônia.

Ainda nos primórdios da colonização, D. João III, rei de Portugal, implantou o sistema de Governo Geral para melhor administrar as

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117117Desenvolvimento e sustentabilidade. Quais os desafios?

riquezas da Colônia. Em relação ao pau-brasil, legislou, através de cartas régias, alvarás e provisões, procurando de fato exercer o mo-nopólio de extração, “com o menor prejuízo da terra”. No século XVI, é aprovada uma lei em 12 de dezembro de 1605, considerada a pri-meira legislação florestal brasileira, que dava permissões especiais para o corte do pau-brasil, sinalizando uma preocupação de preser-vação das florestas, particularmente em relação à Mata Atlântica, que se estendia por todo o litoral brasileiro. Até o século XIX, ela esteve relativamente preservada. Mas, a partir de então, com a ocu-pação do litoral, aumentou consideravelmente a derrubada do pau Brasil e a devastação dela. A lógica do mercado se impôs, entrando pelo século XX. Atualmente, apenas 8% da área original da Mata Atlântica está preservada.

No período em que o Brasil ficou sob o domínio espanhol, em 1580, o rei Felipe II tomou iniciativas no sentido de “uma melhor exploração” das riquezas naturais brasileiras. Nessa época, Gabriel Soares de Souza escreveu a este respeito.

A chegada de D. João VI, em 1808, quando da transferência da Corte portuguesa para o Brasil, colocou a colônia em um novo mo-mento histórico em relação ao seu desenvolvimento e às relações com o mundo. Criar-se o Jardim Botânico, no Rio de Janeiro, demonstrou uma preocupação com o preservar a natureza brasileira.

No Império, a legislação das relações da sociedade brasileira com o seu meio ambiente se coloca em um novo patamar, refletindo o que acontecia na Europa e Estados Unidos, já preocupados com os im-pactos gerados pela vida urbana e industrial. O próprio Imperador D. Pedro II e José Bonifácio de Andrade e Silva, o Patriarca da Indepen-dência, entre outros, inquietavam-se com esta nova realidade. Já havia uma percepção da necessidade de implementação de políticas de governo para preservar nossas riquezas naturais.

Em 1799, por recomendação de José Bonifácio, foram aprovadas as primeiras instruções para se reflorestar a costa brasileira. Nesta época, a Mata Atlântica já estava com um nível de devastação avan-çado. Como se constata, ainda no Império avançamos no tocante à legislação do corte de madeira de lei, especificando as que não deve-riam ser cortadas (1827). Em relação à água, D. Pedro I, em 1828, deliberava nas chamadas “posturas municipais” sobre a limpeza e conservação de fontes, aquedutos e águas infectas, em benefício da sanidade da população.

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Os desafios históricos continuam atuais

Constata-se, portanto, a variável ambiental como uma das ques-tões centrais do nosso modelo de desenvolvimento. Desde o Brasil colônia, os recursos naturais são determinantes nos ciclos econômi-cos, iniciados com o pau-brasil, cana-de-açúcar, mineração, pecuá-ria e café até o Brasil de hoje, industrial e urbano, destacado como uma das principais economias do planeta.

No século XX, ainda nos anos 30, foram aprovados os Códigos Florestal, de Minas, de Energia e de Águas. Nos anos dos governos da ditadura (1964-1985), os militares participam deste processo de uma maneira contraditória, inclusive é conhecida a participação brasilei-ra na I Conferência Mundial sobre o Meio Ambiente, em Estocolmo (1972), quando a representação brasileira incentivou a vinda de in-dústrias poluidoras ao Brasil. Ainda, neste período, aprovaram o Es-tatuto da Terra e fundamentaram, de uma maneira autoritária, o que é hoje o Sistema Nacional de Meio Ambiente, destacando o papel do Estado no processo de construção de políticas voltadas para a pre-servação do patrimônio natural brasileiro e a segurança nacional.

Assim, tanto simbolicamente, quanto em função dos diferentes períodos históricos de desenvolvimento do Brasil, as relações entre a sociedade e a natureza iam se explicitando objetivamente, com impactos e reflexos diferenciados na realidade política, econômica e social.

A questão ambiental é, desta maneira, parte integrante do pro-cesso de afirmação da sociedade brasileira e suas relações com o mundo. Desenvolveu-se e desenvolve-se como um processo histórico, econômico, social e cultural, cuja síntese está refletida na atual Polí-tica Nacional de Meio Ambiente e na própria Constituição brasileira, de 1988, cujo capítulo VI – Do Meio Ambiente, no seu art. 225 decla-ra: “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”.

Esta visão sistêmica da questão ambiental colocada na Carta su-pera as visões anteriores de tratamento dessa questão. A atual polí-tica nacional de meio ambiente, aprovada pela Lei nº 6.938/81, in-corpora esta visão sistêmica e cria os mecanismos de sua implementação. Segundo a legislação atual, o objetivo maior da Polí-tica Nacional de Meio Ambiente é a preservação, melhoria e recupe-ração da qualidade ambiental, criando condições para o desenvolvi-mento econômico e social, protegendo a vida.

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119119Desenvolvimento e sustentabilidade. Quais os desafios?

O Sistema Nacional de Meio Ambiente, regulamentado pelo De-creto nº 99.274, de 6 de julho de 1980, responsável pela execução da Política Nacional de Meio Ambiente, está constituído pelos ór-gãos e entidades da União, dos estados, do Distrito Federal envolvi-dos nas questões ambientais. Dispõe sobre a política de meio am-biente, seus fins e mecanismos de formulação e aplicação. Além dos avanços institucionais, consolidados no Sisnama, a sustentabilida-de econômica, social e ambiental se coloca como uma necessidade de superação do atual modelo de desenvolvimento, historicamente e atualmente insustentáveis.

O desafio do desenvolvimento brasileiro é construir uma socie-dade cada vez mais democrática, ampliando os espaços de partici-pação e de decisão da cidadania, cuja economia tenha como funda-mento a preocupação com a inclusão social e a preservação da nossa biodiversidade, buscando realizar e aprofundar as reformas política, econômica e social, tão necessárias e ainda por fazer pela sociedade brasileira. Neste contexto, impõe-se a necessidade de um novo pacto político para a ampliação da democracia e realização destas reformas.

No Brasil, parte considerável da população ainda continua à mar-gem dos seus direitos constitucionais como educação, saúde, mora-dia, segurança pública e trabalho, fundamentais para a existência. Desta forma, a ampliação da democracia coloca o desafio de inclusão dos marginalizados, na busca da equidade social e preservação do meio ambiente, fundamentos de uma nova política de desenvolvi-mento para a superação dos problemas históricos e atuais da socie-dade brasileira.

A construção deste desenvolvimento coloca na agenda política a necessidade de investimentos em educação, ciência, tecnologia e ino-vação. O desempenho brasileiro no que se refere à ciência e tecnolo-gia ainda está muito aquém do necessário. Os investimentos realiza-dos pelo Estado, além de serem ainda insuficientes, não são devidamente avaliados nem quanto à sua aplicação, nem quanto aos resultados obtidos na qualificação acadêmica e profissional. O de-sempenho do país em educação, na formação da juventude e do tra-balhador em geral, embora tenha melhorado nos últimos 20 anos, fica muito a desejar, comparado internacionalmente.

A sustentabilidade deve ser trabalhada em função das potenciali-dades brasileiras, da sua biodiversidade, território, riqueza mineral, água, energias solar e eólica disponíveis. Os limites impostos à econo-mia baseada no carbono colocam o Brasil em uma situação singular,

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120120 George Gurgel de Oliveira

em relação à sua matriz energética, cujas vantagens comparativas podem ser primordiais nesta nova economia e, portanto, nesta pers-pectiva sustentável.

Nos últimos 25 anos de redemocratização da sociedade, o Brasil avançou em termos de inclusão social e redução das desigualdades. No entanto, ainda somos uma das sociedades mais desiguais do mundo, infelizmente, a primeira em concentração de riqueza a nível mundial. Ainda estamos longe da situação de equidade mínima ne-cessária, de acordo com os padrões da ONU. Esta parcela incluída da população ao mercado nos últimos anos não foi incorporada ao exer-cício pleno da cidadania, particularmente ao mundo do trabalho. As-sim, a redução destas desigualdades continua como um desafio a ser superado. A equidade social deve ser uma variável estratégica nesta nova perspectiva do desenvolvimento brasileiro.

Em relação à nova economia, a matriz energética brasileira é um instrumento fundamental na direção de uma menor dependência ao carbono. Uma cooperação científica e tecnológica com as principais economias mundiais e uma maior integração energética com a Amé-rica Latina são variáveis importantes neste processo. O Brasil detém vantagens excepcionais na área energética. Prioridade para a expan-são do uso de energias alternativas como o etanol, eólica, solar, bio-massa e as hidroelétricas de pequeno e médio porte, assim como uma política de conservação e economia de energia, com programas de aumento da eficiência na indústria, nas residências, no transpor-te e no uso da energia em geral.

A construção da sustentabilidade implica uma mudança radical e uma transição acelerada para uma nova matriz de transportes, com prioridade para a ferrovia e a hidrovia, em detrimento da rodo-via; para o transporte coletivo, em detrimento do individual. O nível de desenvolvimento científico, tecnológico, industrial e empresarial da nossa sociedade deve estar em sintonia com a construção da sus-tentabilidade. O aumento da produtividade deve estar relacionado com a preservação e a gestão adequada do meio ambiente. Destaque--se o nível alcançado pela agropecuária brasileira, em resultado do investimento público em ciência e tecnologia. Aumentar o investi-mento em pesquisa, com ênfase na sustentabilidade e foco especial na agricultura familiar são desafios imediatos a serem enfrentados na perspectiva desta sustentabilidade.

Nesse cenário, fica clara a centralidade de uma política de ciên-cia, tecnologia e inovação, assim como a necessidade de ampliação de investimentos na indústria, agricultura e pecuária para melhoria

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121121Desenvolvimento e sustentabilidade. Quais os desafios?

da produtividade, na busca de um pacto que venha atender as expec-tativas do Estado, do mercado e da sociedade em geral.

Em relação à questão urbana, os problemas sociais vão se acumu-lando nestas áreas de grande concentração populacional. As cidades concentram a população, a pobreza e as desigualdades. Os governos no Brasil continuam tratando a questão urbana separada das ques-tões sociais. O Estatuto das Cidades pode ser o instrumento (infeliz-mente não tem sido) de afirmação das políticas públicas de promoção social e da integração dessas políticas com a economia e a sustentabi-lidade regional, através de uma política nacional de apoio ao desenvol-vimento dos municípios, na perspectiva regional e nacional.

A reforma urbana coloca-se como um dos elementos estratégicos neste modelo de desenvolvimento que se quer sustentável. Proprie-dade do solo, a reorganização do espaço urbano, sistema de trans-portes, segurança, moradia, saúde, educação e a reestruturação da oferta de serviços públicos serão variáveis fundamentais a ser consi-deradas neste contexto. O fortalecimento do poder local, com o em-poderamento dos municípios e o estímulo à participação dos cida-dãos na formulação de políticas e na gestão do município será determinante neste processo.

Destaque-se ainda, a necessidade de uma política de desenvolvi-mento regional, com prioridade para a Amazônia e a região Nordeste, assim como a continuidade e aprofundamento das políticas de com-bate às desigualdades de gênero e raça, como estruturantes neste modelo de desenvolvimento que se quer sustentável para o Brasil.

Finalmente, a urgência de uma reforma política, condicionando-a à necessidade de uma maior participação da sociedade civil, neste novo modelo de gestão do Estado brasileiro. A discussão sobre forma de governo deve ter centralidade nesta perspectiva de sustentabilida-de. O parlamentarismo deve voltar à agenda política, como um dos instrumentos de avanço democrático. A partir desta reforma, criam--se as condições para a reforma democrática do Estado, a rediscus-são da sua estrutura, com definição dos limites de atuação de agên-cias reguladoras, conselhos e demais órgãos do Poder Executivo, com participação efetiva da sociedade civil.

Estes são alguns desafios a ser enfrentados pela sociedade brasi-leira na construção desse desenvolvimento que se quer sustentável. Avaliar como a questão do desenvolvimento sustentável está sendo tratada, formulada e incorporada nos atuais processos de desenvolvi-mento no Brasil, pelos diferentes atores políticos, econômicos e sociais a partir da análise das políticas públicas existentes, programas de

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122122 George Gurgel de Oliveira

governo, particularmente a política ambiental e a tradução desta polí-tica na Agenda 21, avaliando e reavaliando os respectivos instrumen-tos e condições de implementação, nível de transversalidade entre as políticas públicas e a participação efetiva da sociedade brasileira, deve ser uma estratégia permanente, rumo a esta sustentabilidade.

As contradições e conflitos atuais dos processos de desenvolvi-mento brasileiro e mundial devem ser explicitados, buscando alter-nativas a esta realidade, na perspectiva de construção da sustenta-bilidade econômica, social e ambiental.

Finalmente, deve-se compreender e trabalhar os conflitos sociais e ambientais como inerentes e parte integrante da história humana nas suas relações entre si e com a própria natureza, permitindo transcen-der os problemas que lhes deram origem na sociedade atual, no Brasil e no mundo, procurando soluções e, sobretudo, que expressem as di-ferenças e os reais interesses entre os diversos atores em questão, criando os fundamentos de novas relações políticas, econômicas e so-ciais para a sociedade futura que se quer sustentável.

Referências

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Seca – o homem como ponto de partida

Ariosto Holanda

Essa situação que aí está resultou da inadequação ou da insuficiência das políticas governamentais,

ou o fenômeno tem raízes mais profundas ou causas mais complexas, ante as quais a ação do governo

se revela impotente em termos de objetivos traçados ou insuficiente do ponto de vista dos

instrumentos ou recursos governamentais? (Nilson Holanda)

A seca é, antes de tudo, um fenômeno físico, natural, que atua com frequência e regularidade no Nordeste. Vale ressaltar que ela não é definida apenas pela falta, insuficiência ou interrupção de chuva, mas, também, pela irregularidade das precipitações no tempo e no espaço. Na observação de Arrojado Lisboa, a chuva na Região Nordes-te cai “irregularmente no correr dos anos; irregularmente no correr de uma mesma estação e irregularmente sobre a própria superfície”.

A história tem mostrado que a cada dez anos, no Nordeste, ape-nas quatro são de bom inverno, três apresentam perda de safra de 50 a 80%; e três anos com perda de 80 a 100%. Euclides da Cunha as-sim se expressou: o ciclo da seca há séculos se repete como “eterna e monótona novidade”.

A palavra seca para o nordestino tem a conotação de perda da plantação e está associada à miséria, ao nomadismo, às frentes de serviços e ao tráfego de caminhões pipas distribuindo água raciona-da às populações carentes.

Do ponto de vista econômico, ela repercute de forma diversa so-bre as diferentes classes sociais. A que mais sofre é a dos pequenos agricultores, que tem nas colheitas uma renda a mais. Essa situação hoje só não é mais grave porque o Programa Bolsa Família está dimi-nuindo as tensões sociais, que antes incitavam a população rural a invadir e saquear cidades.

Do ponto de vista dos estoques, isto é, do capital, os prejuízos são grandes, devido, sobretudo, à destruição de parcela dos plantéis de

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124124 Ariosto Holanda

animais e das lavouras permanentes. Apreciável parcela do PIB dos estados é perdida. Apela-se então, para as transferências federais que, na forma de fundos, programas ou projetos, são efetuadas via política assistencialista, que resulta em uso ineficiente e ineficaz dos recursos públicos.

Devemos ter a consciência de que o Nordeste, mesmo seco, é eco-nomicamente viável. Além de possuir áreas irrigáveis, em que, graças à insolação, é possível obter-se mais de uma colheita por ano, o seu espaço geográfico é constituído por áreas com características extre-mamente diferenciadas. Seria, portanto, incoerente pensar a região de forma genérica e uniforme. Entre as diferentes áreas que com-põem esse mosaico, e sem pretender descer ao detalhe, citaríamos:

• Zona da Mata, com características agroclimáticas bem defini-das ressaltando-se aí os altos níveis de pluviosidade;

• Agreste, uma zona de transição para o sertão;

• Serras, com os seus microclimas propícios ao cultivo de frutas e hortaliças;

• Cerrados, com sua configuração propícia à mecanização agrí-cola no cultivo de grãos;

• Baixadas, com peculiaridades próprias que as indicam como adequadas para a rizicultura;

• Sertões semiáridos, grandes áreas geográficas que se caracte-rizam pela extrema deficiência de recursos hídricos perenes, com seus vales estreitos onde predominam as planícies alu-viais e as caatingas;

• Chapadas, cujos solos são, em geral, aptos para a atividade agrícola, mas que, por força das suas deficiências hídricas, se constituem em vazios demográficos e econômicos.

Se tivermos um planejamento regional efetivo, essa diversidade irá favorecer a definição de diferentes alternativas de desenvolvimento.

Se precisamos reformar o Estado, reestruturar a sua máquina, rever conceitos e reformular projetos, precisamos também reinventar o planejamento.

É sob esta ótica que o Nordeste e as instituições de governo, que nele atuam, precisam ser repensados. Faz-se necessário remontar o sistema de planejamento, de modo a atender aos anseios da socie-dade. Algumas ações estruturantes como as da capacitação dos re-cursos humanos, do preenchimento dos vazios hídricos, da gestão

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125125Seca – o Homem como ponto de partida

da água e da realização da pesquisa e extensão precisam ser desen-cadeadas de imediato.

Se nos reportarmos à história das ações de combate às secas no Nordeste, vamos identificar aquelas mesmas ações governamentais privilegiando o aspecto emergencial e assistencialista.

As primeiras medidas remontam ao Império. Em 1877, foi criada uma Comissão de Engenheiros, com o objetivo de estudar medidas de abastecimento d’água para suprir as necessidades da população e do gado, e de irrigação para tornar possível o cultivo da terra. Dife-rentes sugestões de obras foram apresentadas, inclusive a da cons-trução de um canal ligando o São Francisco ao Jaguaribe.

Em 1904, já na República, foram formadas três comissões:

• açudes e irrigação;

• estudos e obras contra os efeitos das secas;

• perfuração de poços.

Em 1919, foi criada a Inspetoria Federal de Obras Contra as Se-cas (Ifocs) que realizou as famosas Obras do Nordeste do governo Epitácio Pessoa, como portos, rodovias, ferrovias, redes elétricas e de comunicação, açudes e outras de cunho social e assistencial.

Nessa época, o Nordeste semiárido foi transformado num grande canteiro de obras. Em 1945, o cearense José Linhares, ao assumir a Presidência da República transforma o Ifocs em Dnocs Em 1959, já no governo JK, o Dnocs foi fortalecido com a retomada do Programa de Açudagem Pública, iniciado por Epitácio Pessoa e foi criada a Su-perintendência de Desenvolvimento do Nordeste (Sudene), com a res-ponsabilidade de aumentar a produtividade do semiárido nordestino. Infelizmente, com a saída de Celso Furtado, a prioridade da Sudene passou a ser a de investimentos na capital deixando o interior espe-rando chuva para praticar uma agricultura de subsistência. Isso pro-vocou êxodo rural para as capitais, dando origem às mazelas sociais que existem nas principais cidades do Nordeste.

Com o advento dos governos militares, o Dnocs é encarregado de promover a implantação de perímetros públicos de irrigação.

Na década de 70, para resolver o problema da seca, vários progra-mas foram implantados:

• Proterra (1971)

• Polonordeste ( 1974)

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126126 Ariosto Holanda

• Projeto Sertanejo (1976)

• Prohidro (1979)

Com recursos insuficientes ou mal administrados esses projetos resultaram em fracasso, sendo sucedidos pelo Projeto Nordeste – o Nordestão, que tinha como objetivo maior repensar a política de desenvolvimento rural da região. Sua concepção envolvia a execu-ção de seis programas, sendo três de natureza produtiva e três de natureza social:

• Programa de Apoio ao Pequeno Produtor Rural (Papp)

• Programa de Apoio aos Pequenos Negócios Não Agrícolas

• Programa de Irrigação

• Programa de Ações Básicas de Saúde no Meio Rural

• Programa de Educação no Meio Rural

• Programa de Saneamento Rural

Desses programas, apenas o Papp chegou a ser viabilizado, sob o aspecto de planejamento e de financiamento.

O que se observa nesses registros históricos, é que, apesar da realização de muitas obras do tipo barragens, adutoras, canais, po-ços e outros, o governo se esqueceu do agente mais importante do desenvolvimento: o homem. O homem com o seu meio e cultura deve ser o ponto de partida para a solução dos problemas do Nordeste. E o caminho da educação passa a ser vital; é preciso lembrar que o Nordeste tem os piores indicadores educacionais do país. Enquanto a média de analfabetos do Brasil é 7%, a do Nordeste é 17%. Dos 50 milhões de analfabetos funcionais do país, 50% estão no Nordeste. Como também é preocupante a alta mortalidade de suas micro e pe-quenas empresas. Essa situação de analfabetismo funcional e tecno-lógico tem acarretado prejuízos enormes para nossos recursos hídri-cos. A falta de controle adequado em muitas bacias e sub-bacias traz como consequência enormes desperdícios de água. Por sua vez, a extensão rural, que deveria levar conhecimento para a população rural, encontra-se fragilizada.

Ainda não massificamos o ensino técnico e tecnológico que discuta os problemas de solo, água, flora e fauna, e que leve em conta as pe-culiaridades do meio. Observa-se apenas progresso no campo da me-teorologia com a previsão do fenômeno tempo e clima feita pelo Inpe.

Diante desse contexto, estudos e reflexões devem ser feitos para que possamos responder às seguintes indagações:

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127127Seca – o Homem como ponto de partida

• Por que as secas no Nordeste se transformam em crise social grave?

• Por que as políticas públicas não encontram medidas estrutu-rantes de convivência com a seca?

• Existem outras regiões semiáridas no mundo onde a ocorrên-cia da seca não acarreta crise social grave?

Apresento para apreciação do leitor manifestações de estudiosos do assunto. São elas:

1. Os que falam que as questões de natureza climática e meteorológi-ca, limitações hidrológicas e irregularidade pluviométrica estariam na raiz do problema. Essa razão que predominou por muitos anos deu origem à política hidráulica. Se o problema era disponibilidade de água, a solução estaria na acumulação da água. Surgiram as-sim as barragens e açudes. Essa política praticamente favoreceu os pecuaristas, influindo muito pouco na atividade agrícola desen-volvida por grande número de pequenos produtores, que se con-centravam numa agricultura de sequeiro ou como parceiros dos grandes produtores.

2. Aqueles que abordam a questão demográfica: nenhuma região se-miárida no mundo tem a densidade de ocupação humana como a do semiárido do Nordeste brasileiro. Segundo Celso Furtado, a for-ma como se deu o desenvolvimento econômico e as altas taxas de natalidade que predominaram por muitas décadas no interior con-tribuíram para agravar o quadro social.

3. Já Otamar de Carvalho destaca que os efeitos negativos de natureza econômica e social acarretados pela seca não são devidos a ques-tões climáticas, mas, “à fragilidade da estrutura econômica im-plantada na região”. A seca, como fenômeno físico, continuará a aparecer, mas suas repercussões econômicas e sociais só desapa-recerão quando os sistemas produtivos e sociais forem modifica-dos. Por exemplo, reforma agrária e irrigação seriam um bom ca-minho. É crucial também o preenchimento dos “vazios hídricos” pela construção de novas barragens ou de adutoras.

4. Por sua vez, Gustavo Maia Gomes alerta: a agricultura tradicional continua se expandindo. Mais terras e mais famílias se dedicam ao cultivo de produtos cujo rendimento econômico é continuamente decrescente. Não seria fácil encontrar uma receita mais eficiente do que essa para aprofundar a pobreza dos nordestinos do campo. A agricultura no semiárido dependente das condições climáticas não é a mais indicada. As atividades econômicas ali desenvolvidas têm

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que ser eficientes e sustentáveis. Não se pode mais pensar em sub-sistência. A agricultura irrigada, diz ele, é a mais indicada, porém os perímetros devem ser abastecidos por fontes perenes de água.

5. Há os que apontam a crise do algodão como a que mais afetou os pequenos produtores, que tinham nesse produto a garantia a sua sobrevivência até o próximo inverno. Hoje, resta ao pequeno produtor vender o seu pequeno excedente alimentar da agricul-tura de sequeiro (milho, feijão e mandioca).

6. Na década de 50, o professor Guimarães Duque afirmava: “novos sistemas de produção, a partir da capacitação do homem e da pesquisa se fazem necessários, para que, à luz das condições ambientais, ele possa utilizar melhor o solo, gerenciar seus re-cursos hídricos e aplicar com eficiência os insumos adequados”;

7. A Comissão Especial Mista do Congresso Nacional que estudou a problemática do Desequilíbrio Interregional Brasileiro, em seu re-latório, de dezembro de 1993, revelou o altíssimo grau de desigual-dade entre as regiões, e alertava que “a questão de maior impor-tância não mais reside na busca de explicação para o fenômeno da seca, mas na intervenção deliberada que permita corrigir ou mini-mizar os efeitos das profundas diferenças”.

Qual deve ser a atitude do Estado frente ao problema regional, após anos de intervenção e quando há indicações de esclerosamento de algumas formas tradicionais de atuação?

E, finalmente, há os que defendem a tese de que o problema do Nordeste é estrutural e situa-se também, nos anos de bom inverno. Nesses anos, o pequeno produtor, o rendeiro e o parceiro produzem, mas, não conseguem acumular. São expropriados por vários mecanis-mos. Descapitalizados, ao final de cada ciclo produtivo, são incapazes de enfrentar um ano seco. Por isso é que a seca hídrica se transforma em crise social. A ação previdenciária cobrindo parte da população sertaneja idosa, assegurando-lhe uma renda mínima, e o programa Bolsa Família tem diminuído, de forma assistencialista, a gravidade do problema.

Se a seca é uma regra, e não uma exceção, que ações deveriam ser contempladas de modo a reduzir os impactos econômicos, sociais e ambientais? À luz das considerações apresentadas, as seguintes ações estratégicas merecem ser consideradas:

1. Como a terra seca não é homogênea, com grande diversidade entre as regiões, não existe solução geral. Há que respeitar as especifi-cidades. Programa de Reflorestamento – com essências nativas e

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129129Seca – o Homem como ponto de partida

de preservação da fauna/flora das áreas mais degradadas – deve ser contemplado. A partir do zoneamento agrícola e de nova com-binação de fatores de produção, deve-se promover a moderniza-ção da agricultura de sequeiro para produzir alimentos e fibras, de conformidade com as condições climáticas.

2. Na história das ações de combate à seca observa-se, claramente, que nunca houve um compromisso maior com a capacitação do homem; o índice de analfabetismo a os sistemas de produção, tec-nologicamente, são atrasados; as técnicas modernas de gestão dos recursos hídricos são desconhecidas. Não existem programas efe-tivos que garantam assistência técnica, gerencial, financeira e mercadológica ao homem do campo. Torna-se, pois, imprescindí-vel, um amplo programa de qualificação profissional voltado para a geração de trabalho e implantação de micro e pequenas empre-sas, na área de serviços e de processos produtivos. São prioritárias ações educacionais e de treinamento para conscientizar a popula-ção sobre a seca, a economia de água, o manejo do meio ambiente e outras. Segundo Guimarães Duque, “Já era tempo das escolas primárias, secundárias e superiores terem os seus programas cal-cados no clima da região, na aridez, no açude, na água subterrâ-nea, nas plantas resistentes à seca, na irrigação, na conserva dos alimentos e das forragens, nos minérios da região, na piscicultura dos lagos internos (...)”. Os Centros de Pesquisa regionais devem ser fortalecidos e direcionados para os problemas regionais.

3. Vazios hídricos ainda predominam na região do semiárido. Por isso, torna-se urgente a ampliação da infraestrutura hídrica, por meio da construção de adutoras e de açudes médios e grandes nos vazios hídricos do semiárido, e da perfuração e recarga de poços profundos com equipamentos de dessalinização implanta-dos. Faz-se necessário a construção de grandes açudes nos cur-sos d’água de 1ª e 2ª ordem hidrológica, e de médios nas bacias dos rios de 3ª e 4ª ordem hidrológica, incluindo as adutoras re-gionais para solucionar em definitivo o problema do abastecimen-to das vilas e cidades, que ainda são atendidas por carros pipas.

4. Os métodos de cálculo de oferta e demanda de água devem ser re-vistos. Com relação à oferta, comprova-se que a parcela das poten-cialidades hídricas oriundas de barragens, poços, cacimbas e aguadas não são suficientes para resolver o problema do semiárido nordestino. Com respeito à demanda, esta deve ser calculada para atender as necessidades da região; para isso, deve-se levar em con-ta a demanda, em quantidade e qualidade, para o saneamento bá-sico da maioria da população nordestina, para as descargas ecoló-

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gicas ambientais, para as atividades sociais, como saúde, educação, lazer, e para as atividades de produção dos diferentes setores da economia. Tal demanda deve ser garantida no tempo e no espaço, e sem as características de níveis de subsistência. Estima-se que o volume de água necessário para reverter esse quadro do semiárido nordestino, nos próximos 20 anos, envolve uma somatória de va-zões, com risco de déficit de 5%, da ordem de 1.000 m3/s. Segundo a Codevasf, essa demanda poderá ser atendida com a implantação do projeto por ela elaborado conhecido como Sistema de Abasteci-mento Hídrico para Uso Múltiplo.

5. Temos que priorizar e implantar novos perímetros de irrigação. A ampliação da área irrigável do Nordeste, sempre que possível, combinada com agroindústria, é uma contribuição importante para o desenvolvimento da região, tanto sob a ótica do emprego como da produção.

6. Existe um potencial de 2.400.000 ha de terras irrigáveis: sendo 800.000 ha nas margens do São Francisco e seus tributários e 1.600.000 ha no semiárido. Atualmente, só existem implantados cerca de 500.000 ha de terras irrigáveis no semiárido. A grande limitação é a falta de garantia de fornecimento de água em níveis aceitáveis para uma economia rentável e de capacitação de recur-sos humanos. Torna-se assim urgente a implantação de centros vocacionais tecnológicos nos 45 perímetros de irrigação implan-tados no Nordeste para treinamento dos irrigantes e realização de análises laboratoriais necessárias para o controle de qualidade e aumento de produtividade de cada perímetro.

7. Existem solos férteis, com água, mas que estão sem uso. Nesses, deve ser priorizada a reforma agrária que conjugue a redistribui-ção da terra com novos métodos e processos de trabalho, que contemple uma agricultura e pecuária modernas.

8. A região do semiárido deve ser estudada e pesquisada em todos os seus aspectos relacionados com clima, solo, vegetação, recursos hídricos, recursos naturais, piscicultura, silvicultura, engenharia genética e outros. Para isso, as universidades federais e estaduais do Nordeste devem ser acionadas para realizar estudos no semiá-rido que apontem para o seu desenvolvimento sustentável e competitivo.

9. Com vistas a maximizar o aproveitamento das precipitações plu-viométricas, cada estado do Nordeste deve implantar o seu Siste-ma de Gestão de Recursos Hídricos. Será a maior contribuição que a técnica e a ciência da hidrologia poderão dar à solução do

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problema hídrico. O mecanismo para uso desse bem de forma ordenada, em seu mais amplo aproveitamento, é o gerenciamento integrado dos recursos hídricos, admitindo a bacia hidrográfica como unidade básica de gestão e contemplando não somente os usos, mas todas as atividades que possam resultar em degrada-ção para os mananciais. A atividade de gestão deve envolver orga-nismos de atuação em níveis federal, estadual e municipal e to-das as intervenções setoriais devem tomar por referencial o planejamento de uso integrado.

Em síntese, a solução do problema de convivência com a seca im-plica na implantação de um conjunto de projetos a ser desencadeados a um só tempo, e que devem assumir um caráter econômico, social, cultural e ecológico, preparando o homem para a realidade em que vive, dando-lhe condições de acesso à terra, à água, à educação, à saúde, à nutrição, ao saneamento básico, ao emprego e à renda.

Resumiria a nossa proposta dizendo que, em curto prazo, a região Nordeste deverá ser contemplada com o desenvolvimento dos seguin-tes programas e projetos:

Na Área de Recursos Hídricos:

• Obras hídricas para preenchimento dos vazios existentes: bar-ragens, adutoras, poços, passagem molhada, recarga de poço;

• Projetos de irrigação com foco na fruticultura, forragem e no milho.

Na Área da Capacitação Tecnológica da População

• Sistemas de informação tendo como base as infovias

• Centros Vocacionais Tecnológicos nos perímetros de irrigação

Na Área de Estudos e Pesquisas

• Estudo das Bacias Hidrográficas

• Centro de Estudos e Pesquisas do semiárido

Na Área de Novas Fontes de Água

• Transposição do Rio São Francisco

Dada a natureza dos projetos, entendo que seria oportuno resga-tar e dar condições ao Dnocs para desempenhar essa missão porque, na minha visão, esse órgão se devidamente estruturado teria condi-ções de implantar e operar esses projetos.

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IV. batalha das Ideias

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Autores

José Arthur GiannottiFilósofo, professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, e autor de livros da qualidade de Origens da dialética do trabalho e Marx: além do marxismo.

Laécio Noronha XavierAdvogado, doutor em Direito Público (UFPE), mestre em Direito Constitucional (UFC), es-pecialista em Economia Política (UECE), professor de Direito Internacional Público da Uni-versidade de Fortaleza (Unifor), pesquisador do Núcleo de Estudos Internacionais (NEI/Unifor-Funag) e conselheiro da OAB/CE.

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Crítica a um modo de produzir riqueza

José Arthur Giannotti

O primeiro volume d’O Capital – Crítica da Economia Política foi publicado em 1867, na Alemanha. Embora seu autor, Karl Marx, já tivesse emigrado para Londres em 1850, ele conti-

nuava a manter profundas relações com os alemães e os líderes dos movimentos operários que participavam das políticas revolucioná-rias espalhadas por toda a Europa.

O Capital não foi escrito com intenções meramente teóricas, não pretendia elaborar uma nova visão dos acontecimentos econômicos nem aspirava a ser mais uma notável publicação do mercado edito-rial: o que a obra pretendia era criticar um modo de produção da ri-queza essencialmente ancorado no mercado, isto é, na troca de pro-dutos sob a forma mercantil. Como é possível que uma troca que equalize produtos possa sistematicamente produzir excedente eco-nômico? Criar tanto riqueza como pobreza? Em sua análise, Marx pretende mostrar que esse excedente provém da diferença entre o valor da força de trabalho e o valor que o trabalhador cria ao pô-la em movimento. Espera, assim, provar cientificamente a especificida-de da exploração do trabalho pelo capital, inserida num modo de produção que leva ao extremo o tradicional conflito de classes que marca toda a história. No limite, esse conflito não teria condições de ser superado?

No entanto, se o livro desde logo é arma política, não é por isso que foge dos padrões mais rigorosos que regem as publicações uni-versitárias. O fato de nem sempre ter sido bem acolhido pelos pensa-dores acadêmicos não quer dizer que sua composição e seus passos

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analíticos deixem de seguir uma metodologia rigorosa e cuidadosa-mente traçada, buscando uma nova interpretação que pudesse pôr em xeque o pensamento estabelecido.

Essa intenção crítica já se evidencia no subtítulo da obra. A eco-nomia política foi o primeiro esboço daquela ciência que hoje conhe-cemos sob o nome de economia. Como veremos, haverá uma ruptu-ra de paradigma entre essa forma antiga e a nova, que a disciplina assume no século 20. Tal ciência nasce estudando como se constrói e se mantém a riqueza das nações, como se desenvolvem o comércio, o crédito, o juro, o sistema bancário, o imposto, o Estado e assim por diante. Lembremos que o Estado, como formação política sepa-rada da totalidade da polis, somente se configura de modo pleno no Ocidente a partir do Renascimento. De certo modo, a economia po-lítica é a primeira forma de pensar as relações de produção, o meta-bolismo do homem com a natureza – retomando a linguagem favori-ta do jovem Marx – que as desliga de intervenções políticas diretas. Note-se que o Estado sempre esteve presente no desenvolvimento capitalista, mas o mercado, principalmente na sua fase adulta, re-cusa essa interferência acreditando ser mais eficaz do que qualquer intervenção pública.

Nos meados do século 19, observa o próprio Marx, a nova ciência se apresentava como um bom raciocínio formal: “A produção é a uni-versalidade, a distribuição e a troca, a particularidade, e o consumo, a singularidade na qual o todo se unifica”. Encadeamento superfi-cial, porque deixa de lado a história. Esse comentário aparece numa famosa introdução de 1857, que acompanharia o livro Contribuição à Crítica da Economia Política, o qual pretendia estudar à parte o méto-do da nova ciência inspirando-se na lógica hegeliana, cujo debate estava aceso entre os alemães, mas deixou de ser publicado por cau-sa de sua complexidade. Paradoxalmente, porém, se tornou um dos textos clássicos da dialética materialista. Somente veio à luz, de for-ma definitiva, na coletânea de escritos inéditos conhecida como Grundrisse der Kritik der Politischen Ökonomie (Esboços da Crítica da Economia Política). Ao lê-lo, desde logo percebemos que Marx critica seus pares não apenas porque desenvolvem teorias incompatíveis com os dados empíricos, mas sobretudo porque aceitam uma visão errônea da natureza do próprio fenômeno econômico, tomando como real o que não passa de ilusão criada pelo próprio capital.

Vamos tentar mostrar os primeiros passos dessa crítica de natu-reza lógica e ontológica, que, por ser a mais radical, muitas vezes tem sido deixada de lado. Por sua complexidade, por certo exigirá do lei-tor um esforço suplementar.

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O estudo da produção, distribuição, troca e consumo segue em geral as linhas de um raciocínio correto, mas deixa de lado a íntima conexão das atividades elencadas. Em particular ignora o lado histó-rico da produção, cuja forma varia ao longo do tempo conforme se moldam seus meios. Além do mais, se a estrutura das atividades econômicas depende de seu tempo, não é por isso que elas seguem uma evolução linear. Depois da quebra do comunismo primitivo, os sistemas produtivos se articularam em modos conforme se configu-rou a propriedade dos meios de produção. Somente no capitalismo todos os seus fatores assumem a forma de mercadoria, o que logo desafia o pensamento: como um sistema nessas condições, quando as partes são trocadas por seus valores, pode gerar um excedente econômico? A mercadoria não se confunde com um objeto de troca tribal, situação em que, por exemplo, um saco de alimentos não pode ser trocado por uma canoa, embora esta possa ser trocada por uma mulher. Nem se confunde com o escambo. Suas primeiras formas se encontram nas trocas regulares e por dinheiro entre comunidades separadas. Uma análise dos fenômenos econômicos deve capturar as diferentes formas dessas trocas de um ponto de vista histórico.

Ao dotar os conceitos de historicidade, Marx atenta para as dife-rentes vias de suas particularizações, assim como para as diversas maneiras pelas quais o universal e o particular se relacionam. “Se não há produção em geral, também não há igualmente produção universal. A produção é sempre um ramo particular da produção – por exemplo, agricultura, pecuária, manufatura etc. – ou uma totali-dade. Mas a economia política não é tecnologia.” Essa observação é muito importante para compreender o sentido da totalidade tal como é pensada por Marx. Já lembramos que uma das origens de seu pen-samento foi a dialética do idealismo absoluto. É sintomático que du-rante a redação do primeiro volume d’O Capital ele tenha relido a Ciência da Lógica de Hegel. O vocabulário e a inspiração desse livro, que funde lógica e ontologia, provocam nos comentadores de Marx as maiores dores de cabeça e os maiores desatinos.

Para Hegel, um conceito geral, como mesa, não é apenas o que um olhar captura como propriedades comuns de várias mesas. Tam-bém não se particulariza somando determinações, propriedades pre-dicáveis (mesa de escrever, mesa de comer...). O conceito fruta, por exemplo, não é o conjunto das propriedades inscritas em geral nas frutas. O conceito hegeliano já traz em si o princípio de sua diferen-ciação. Nada tem a ver com o freguês que, ao comprar frutas, recusa laranjas, peras e figos, porque não encontra em cada coisa a univer-salidade que as engloba.

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Este exemplo – a relação entre o gênero da fruta e suas espécies – se assemelha à relação da produção em geral e suas particulariza-ções. Os gêneros vivos passam a existir mobilizando duas forças con-trapostas, o masculino e o feminino, que geram indivíduos igualmen-te polarizados. Não acontece o mesmo com a produção que se realiza na agricultura, na pecuária, na indústria, cada uma negando a outra de tal modo que se separam na medida em que conformam a unidade geral? Um modo de produção como um todo (produção, distribuição, troca e consumo) não tem suas partes ligadas por essa mesma nega-tividade produtora? E o mesmo não acontece com os diversos atos de produzir que se diferenciam desde que possam ser igualizados por um padrão tecnológico comum que se expressa no valor? Por sua vez, não forma uma estrutura dotada de temporalidade própria?

Mas se, ao criticar a economia política positiva, tal como se con-figurava até o século 19, Marx se inspira na dialética hegeliana, não é por isso que aceita mergulhar nos mares do idealismo. Seria muito estranho que um materialista pudesse acreditar que tudo o que é venha ser manifestação do Espírito Absoluto. Marx, que tinha forma-ção de jurista, também passara pela crítica que os neo-hegelianos de esquerda haviam feito a seu mestre. O desafio era dar peso ao real quando a dialética tudo reduz ao discurso do Espírito.

No posfácio dos Grundrisse, Marx explicita sua concepção de con-creto, o qual, insiste, seria a síntese de várias determinações, isto é, de propriedades atribuídas a algo posto como sujeito de predicações. Não é por isso que o real resultaria do pensamento como se brotasse do cérebro, mas é o pensar, por meio de suas representações, que isola na totalidade do real aspectos que essa própria totalidade dife-renciou. O conceito deve, pois, nascer do próprio jogo do real acom-panhado pelo olhar do cientista. A mais simples categoria econômi-ca, o valor de troca, pressupõe a população, uma população produzindo em determinadas condições, e também certos tipos de famílias, comunidades ou Estados. O erro dos lógicos formais e dos economistas é duplo. Primeiro, fazer do valor de troca uma proprie-dade de um objeto trocável em qualquer situação histórica, deixando de diferenciar a troca de presentes entre certas etnias indígenas, a troca de indivíduos por dinheiro num mercado de escravos e assim por diante. Aqui cabe investigar como o valor de troca de cada um desses produtos está ligado ao todo do processo produtivo. É preciso, em contrapartida, sublinhar que somente no modo capitalista de produção todos os seus insumos estão sob a forma de mercadoria. Mas isso somente se torna possível, do ponto de vista da formação histórica, quando aparece no mercado uma força de trabalho desli-

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gada de qualquer outro vínculo social. No entanto, do ponto de vista formal, cada objeto conformado para ser mercadoria é posto em com-paração com qualquer outro que venha ao mercado em busca de uma medida interna de trocabilidade. Numa situação de mercado, os valores de um escravo trazido de Angola e de outro trazido da China podem ser traduzidos na mesma moeda, mas todo o processo de capturá-los e transportá-los pressiona para que eles tenham medi-das diferentes. Não é o que tende a acontecer num modo de produção em que todos os insumos provenham da forma da mercadoria.

Nesse sistema o valor de uso do produto fica bloqueado enquanto estiver no circuito das trocas, e seu valor de troca passa a ser expres-so nos termos de qualquer outro produto que costuma aparecer no mercado. O valor de uso de um pé de alface que produzo para a ven-da precisa se exprimir numa certa quantidade de valor correspon-dente a cada um dos objetos que comparecem ao mercado. Todos os produtos se tornam, assim, comparáveis. Note-se que essa abstração que captura a determinação valor de troca é feita pelo próprio pro-cesso de troca – o pensamento apenas recolhe a distinção feita. Além do mais, esse valor, assim constituído, contradiz a existência do va-lor de uso no qual se assenta. O valor de troca depende do valor de uso, mas o nega, bloqueia seu exercício, coloca-o entre parênteses. Para chegar até o consumo, a fruta deixa de ser comida para se con-sumir como objeto de troca, objeto cuja produção foi financiada em vista de sua comercialização.

Para Marx, embora o concreto, o real oposto ao pensamento hu-mano, se apresente como síntese de determinações, estas não são aspectos que os observadores encontrariam na realidade sensível para serem, em seguida, alinhavados numa coisa pensada. Por todos os lados assistimos a relações de troca, mas o cientista precisa levar em conta que essa relação depende de produtores que vivem e ope-ram segundo certos costumes, nos quais os indivíduos, sempre so-cializados, estão ligados a famílias e a outras unidades sociais. Sabe-mos que antigamente as relações de troca mercantil apareciam entre as comunidades, quando essas relações sociais deixavam de operar. Somente no capitalismo é que elas fazem parte do sistema como um todo e se dão em sua pureza formal.

Ao introduzir a categoria de modo de produção, Marx rompe defi-nitivamente com o paradigma seguido pelos economistas de sua épo-ca. Se a economia política pretendia estudar como se gera a riqueza social, acreditava-se que ela deveria começar estudando o ato produ-tivo mais simples, o ato de trabalho. Mas o homem é um ser eminen-temente histórico e social, cada totalidade produtiva situa o ato de

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trabalho num lugar muito determinado. Esse é um princípio de que Marx não abre mão. Desse modo, imaginar que o processo produtivo pudesse se fundar no ato individual de trabalho equivale a conside-rar a atividade de Robinson Crusoé, isolado na sua ilha, como a ma-triz da produção de riqueza social. Mas o próprio Crusoé não traba-lha segundo moldes que ele aprendeu na Inglaterra de seu tempo?

Não podemos, pois, perder de vista que o ato de trabalho se inte-gra na totalidade do processo produtivo segundo a trama das outras determinações primárias: distribuição, troca e consumo. A trama ca-tegorial define a totalidade do processo. Ademais, nem todo ato de trabalho numa empresa vem a ser socialmente produtivo do ponto de vista da criação de valor.

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o proibicionismo das drogas e a politização do crime no brasil

Laécio Noronha Xavier

Introdução

Somente a partir do Plano Real, na primeira metade da década de 1990, o Brasil ingressou pela via democrática na “maioridade econô-mica”. O mais bem sucedido plano econômico da história nacional posicionou o Brasil no mundo globalizado, assumiu uma faceta ma-croeconômica ortodoxa, reformou as instituições econômicas, au-mentou o Produto Interno Bruto (PIB) em escala e representa um programa de longo prazo para a nação. Desde então, o país vem di-minuindo a pobreza, buscando a universalização da educação, am-pliação da expectativa de vida ao nascer, redução da taxa de desem-prego e melhoria na distribuição da renda nacional. O programa macroeconômico levado a cabo por FHC e Lula refletiu com maior intensidade, na década passada, a inclusão socioeconômica de seg-mentos historicamente relegados da sociedade brasileira.

Entretanto, não se constata resultados similares no que concerne aos indicadores da violência urbana. No geral, as taxas de homicí-dios ascenderam ao longo da década passada, consolidando o Brasil como um dos países mais violentos do mundo, com média de quase 50 mil homicídios ao ano. O medo da violência e a sensação de inse-gurança disseminaram-se de forma difusa em todos os estratos po-pulacionais das grandes cidades, e concentradamente entre as “víti-mas preferenciais”: os jovens de sexo masculino, negros, pobres e moradores das periferias urbanas.

É aparentemente paradoxal uma sociedade ampliar a inclusão socioeconômica e, simultaneamente, a violência. Nesse sentido, constata-se que outros fatores concorrem para explicar a elevada taxa brasileira dos homicídios, como as políticas públicas ineficazes, a persistente impunidade da justiça criminal, a gestão ineficiente da Segurança Pública e o fracasso da concepção proibicionista de com-bate às drogas ilícitas.

A politização do crime foi especialmente reforçada pelo tráfico de drogas através de grupos criminosos organizados que profissionali-

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zaram suas atividades utilizando células autônomas. Tais grupos tornaram o tráfico de drogas um empreendimento lucrativo e ramifi-caram suas operações num leque de crimes conexos, como tráfico de armas, sequestros, pirataria e contrabando, ocupando territorial-mente várias áreas urbanas e contrapondo-se violentamente a ou-tros grupos criminosos, policiais e usuários inadimplentes. Soma-se diretamente ao fato a crise de representatividade da atividade políti-ca brasileira, que vem perdendo paulatinamente sua credibilidade ao ser percebida de forma criminalizada por segmentos da população e da mídia enquanto sinônimo de escândalo, demagogia ou cinismo.

A Política de Segurança Pública brasileira carece de sistematiza-ção entre entes federados, sendo marcada pela improvisação, débil planejamento, gastos ineficientes e programas não monitorados. As intervenções governamentais são meramente reativas e direcionadas para a solução imediata das crises de ordem pública, com a mídia definindo sua pauta de atuação institucional e o modelo das refor-mas legais. Ademais, sua concepção proibicionista acerca das drogas implicou na criminalização dos consumidores de drogas, tornando--os mais vulneráveis à violência urbana e ao crime organizado.

Nossa pretensão é demonstrar que, no Brasil, apresenta-se como inadiável uma corajosa reflexão acerca da descriminalização de algumas drogas e da adoção de medidas de redução de danos aos seus usuários.

Inclusão socioeconômica e aumento da violência urbana

Nos anos 1970, o Brasil com seu programa nacional-desenvolvi-mentista abraçou a equivocada ideia da reserva de mercado e se fe-chou ao comércio internacional. Tal política comercial protecionista legou uma economia ineficiente com altos percentuais de inflação e endividamento público, crescimento insustentável e incapaz de con-correr externamente. Sob o dirigismo estatal, mesmo com o fim da ditadura militar (1985), o Brasil emergiu na década de 1980 como uma nação mais injusta, desigual e violenta. Somente após a pro-mulgação da Constituição Federal (1988) e a partir do Plano Real (1994), o Brasil conquistou sua “maioridade econômica” e possibili-tou aos governos posteriores conjugar crescimento do PIB com inclu-são socioeconômica.

Na década de 2000, o Brasil alçou posição entre as dez maiores economias mundiais e vivencia uma fase alongada de estabilidade. Isso não significa desconhecer o baixo crescimento econômico, a es-

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tagnação do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) no quadro geral de nações, os gargalos na infraestrutura que acirram o “custo Brasil”, a leniência das reformas do Estado, tributária, previdenciá-ria e política e os abismos sociais que ainda persistem no país.

Entre 2000 a 2010, a expansão econômica se refletiu diretamente no PIB per capita que passou de 10 mil para 12 mil dólares, na redu-ção da taxa de desemprego para 7% da População Economicamente Ativa (PEA) e na diminuição da informalidade, com a situação do total de trabalhadores sem carteira ou por conta própria tendo caído de 56% para 48%. Da mesma forma, ampliou-se a renda mensal média dos trabalhadores, diminuiu a proporção de brasileiros com renda do-miciliar per capita abaixo da linha de pobreza de 35% para 21% e de brasileiros em extrema pobreza de 16 % para 8 %. (IPEADATA, 2011).

Se a sociedade brasileira realizou também uma gama de conquis-tas sociais, era de se esperar que os níveis de criminalidade seguis-sem caminho contrário e sofressem redução. Mas não foi o que acon-teceu. Ou seja, a “década inclusiva” também pode ser considerada como a “década violenta”, com a violência podendo ser conceituada como o uso excessivo da força via comportamento agressivo, trans-gressor, intolerante e que causa danos às pessoas.

De acordo com estudos de 2011, do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC), e abrangendo 207 nações, o Brasil ocupava o 26º lugar mundial e o 3° na América Latina em número de homicídios por 100 mil habitantes. O Brasil obteve média de 22,7 crimes, enquanto países oficialmente em guerra contra insurgentes ou narcotraficantes registraram índices de homicídios mais baixos, como Afeganistão (22), Iraque (20) e México (18,1). O levantamento aponta que nações com baixos níveis de desenvolvimento humano e altos níveis de desigualdade socioeconômica são quatro vezes mais sujeitas a ter taxas maiores de mortes violentas do que sociedades mais igualitárias.

O estudo do UNODC revela que o Brasil, em números absolutos, liderou o ranking global de homicídios com 43.909 registros. No mundo, 468 mil pessoas foram assassinadas em 2010, e 42% dos homicídios envolveram armas de fogo. O Brasil é o país que mais gasta com Segurança Pública na América Latina, com cerca de R$ 60 bilhões/ano sendo investidos nos sistemas policial, judicial e prisio-nal, representando 1,3% do PIB (UNODC, 2011, p. 23-25).

Considere-se que a violência urbana é determinada não apenas por falhas na Política de Segurança Pública adotada nas diferentes cidades. Sua agudeza é multicausal, também podendo ser explicada

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pelas desigualdades econômicas e a divisão étnica entre os vários estratos populacionais, deturpados valores morais e problemas de desordem urbana e segregação espacial. Tal junção de fatores serve para entender o mau funcionamento dos mecanismos de controle social, político e jurídico que geram o desrespeito às normas legais, a ruptura da noção de cidadania, a admissão passiva de agressões dos agentes policiais contra cidadãos de segmentos menos abastados e a aceitação da impunidade judicial face aos desmandos político-admi-nistrativos das autoridades públicas.

Um aspecto reinante das grandes cidades brasileiras é a “violên-cia difusa”, expressão referente às diversas possibilidades sociais em que todos podem ser vítimas de práticas agressivas, com o de-saparecimento de lugares “seguros” nas cidades. O senso comum é perspicaz quando propala o lado “democrático” da violência que não discrimina classe social, gênero ou faixa etária. Difusa, ainda, é a “sensação de impunidade”, a percepção disseminada pela socieda-de de que os sistemas policiais e de justiça atêm-se mais aos estra-tos pobres, contribuindo para o clima de insegurança e levando muitas vezes o cidadão a realizar a “justiça pelas próprias mãos”. Tampouco se pode desprezar o papel da mídia, principalmente a televisiva que, em busca de audiência, prima pelo sensacionalismo em seus programas policiais e reverbera a “cultura do medo” nos passivos espectadores.

Por ter inúmeras causas, torna-se mais difícil combater a violên-cia urbana somente com os aparatos estatais. Qualquer programa de Segurança Pública que insista apenas nos métodos tradicionais de repressão dificilmente obterá êxito, uma vez que o nível de resolução dos problemas vem ao longo do tempo mostrando-se insatisfatório. Tornou-se essencial (conceitual e operacionalmente) entender a ori-gem das formas de violência visando planejar, implantar e monitorar programas eficazes que unam combate às causas dos problemas so-ciais com repressão qualificada de seus efeitos externos. Nada mais propício ao desenvolvimento de “ambientes criminógenos”, “zonas de conflito” ou “áreas de exclusão” nas grandes cidades do que a preo-cupação da Segurança Pública por resultados imediatos. Ou seja, tentar conter rapidamente os desvios de comportamento social, a ineficácia dos sistemas estatais e as contradições socioeconômicas e urbanas sem adoção de medidas preventivas, corretivas e educacio-nais enquanto conquistas processuais de longa duração.

As formas de violência se apresentam de forma socialmente equitativa nos variados espaços urbanos e atingem todos os seg-mentos sociais de uma cidade. Enquanto os crimes contra o patri-

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mônio, incluindo sequestros, atingem preferencialmente os estratos sociais médios e superiores, os crimes contra a pessoa e o tráfico de drogas repercutem com maior intensidade nas camadas periféricas mais pobres, sobretudo entre os jovens negros. O caráter difuso da violência confirma o fracasso brasileiro da Política de Segurança Pública praticada nas últimas décadas. Isso não significa desco-nhecer que pobreza e violência estão relacionadas na dimensão de certos espaços urbanos.

O crescimento da violência urbana brasileira na década passada está intimamente associado aos jovens entre 15 e 24 anos de idade, as principais vítimas e autores dos homicídios, superando o patamar de 60 homicídios por 100 mil habitantes e com 08 de cada 10 homi-cídios sendo cometidos com armas de fogo. E algumas das razões para que alguns jovens de sexo masculino, negros e pobres das peri-ferias urbanas sejam mais violentos quando comparados aos seus antepassados da mesma faixa etária de décadas anteriores têm evi-dências empíricas na consolidação do tráfico de drogas, com desta-que para o crack, fato que viabilizou a inserção crescente destes jo-vens no ciclo da criminalidade e da violência. Essa modalidade de ação criminosa é organizada segundo os princípios do mercado, com os lucros sendo gerados pela ilegalidade do próprio empreendimento e as disputas sendo resolvidas pelo recurso à força física.

A participação no varejo do tráfico de drogas tem oferecido aos jovens da periferia ganhos monetários, com sua organização em gru-pos criminosos compartilhando não apenas interesses econômicos, mas valores, crenças, regras, compromissos de lealdade, identidades sociais, formas de lazer e paixões futebolísticas. O ingresso no tráfico de drogas pode significar para o jovem tanto a realização de seus sonhos de consumo, quanto o alcance do respeito, proteção, autoes-tima e visibilidade perante o grupo, outras gangues e a comunidade. A arma de fogo exerce significado simbólico sobre os jovens do tráfi-co, uma vez que sua posse e ostentação perante os outros demonstra força, virilidade, poder e status quo, permitindo momentaneamente superar as angústias atreladas ao preconceito social e à desigualda-de econômica do jovem negro e pobre da favela (ZALUAR, 2012).

As desigualdades socioeconômicas geram a falta de acesso à cida-dania e às oportunidades de ascensão social e são mais vivenciadas pelos jovens de sexo masculino, pobres e negros das periferias urba-nas, tornando-os mais vulneráveis aos procedimentos violentos para as conquistas econômicas, em especial, advindas do mercado ilegal de drogas. Outra razão (também evidenciada empiricamente) para a cres-cente violência urbana é a fragilidade do sistema de justiça criminal

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brasileiro, responsável por manter a ordem pública e impor penas aos que incorrem na criminalidade. O contexto de oportunidades da ação criminosa permaneceu favorável em face das limitações deste sistema em impor limites e custos aos atores do crime. Os altos ní-veis de impunidade do sistema são traduzidos pelo baixo grau de certeza da punição (e não pela baixa severidade da punição) em face das diferenças entre o número de crimes cometidos nas pesquisas de vitimização e o número de crimes cujos autores são condenados a uma pena privativa de liberdade (SAPORI, 2013).

Portanto, é vital o “senso de urgência” por parte das autorida-des públicas e da sociedade civil visando construir um novo mode-lo de Segurança Pública para enfrentamento dos problemas gera-dos pela violência difusa e, em especial, concentrada nas áreas urbanas degradadas e com mais desigualdades socioeconômicas das cidades brasileiras.

Politização do crime e criminalização da política

A politização do crime no Brasil foi iniciada no Instituto Penal Cândido Mendes, o presídio de Ilha Grande, no Rio de Janeiro, na década de 1970, quando presos comuns foram mantidos juntos a presos políticos, gerando tal proximidade o conhecimento das técni-cas organizacionais e estratégias políticas de grupos revolucionários, com nítida repercussão em décadas posteriores através da atuação nacional do Comando Vermelho (CV).

Um grau mais avançado de politização do crime se revelou quan-do o Primeiro Comando da Capital (PCC), no Dia das Mães de 2006, sitiou a cidade de São Paulo com ataques a delegacias de polícia, shoppings, metrô, ônibus e aeroportos enquanto forma de reação à transferência de centenas de presos de alta periculosidade para pre-sídios de segurança máxima no interior de São Paulo pelos governos federal e estadual.

A criminalização da política se manifesta também quando a Se-cretaria de Segurança Pública do Rio de Janeiro reestrutura o Bata-lhão de Operações Especiais (Bope), aumentando seu efetivo e mo-dernizando seus equipamentos para auxiliar no combate ao tráfico de drogas, e, ao contrário do planejado, não contribuiu para a dimi-nuição da corrupção na polícia e na política, fazendo surgir uma nova organização criminosa (as “milícias”) que combate o traficante não para a polícia deixar de receber a propina ou pacificar as favelas, mas objetivando controlar diretamente as comunidades através de

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práticas econômicas ilegais. Ou seja, ao eliminar o intermediário (traficante), os policiais milicianos têm rendimentos econômicos maiores, a mídia sensacionalista amplia sua audiência e os políticos criam novos núcleos eleitorais, com o aval demagógico quase geral das instituições executivas e parlamentares.

De fato, há algum tempo, a política brasileira para significativos segmentos da população e setores da mídia é vista como sinônimo de escândalo ou cinismo, tendo perdido substancialmente sua credibili-dade. A criminalização da política no Brasil efetiva-se pelas recorren-tes denúncias de esquemas de corrupção, conluios com empresas privadas, aumentos dos gastos e da ineficiência da gestão pública, impunidade do sistema de justiça criminal e arraigamento demagó-gico com a concepção proibicionista das drogas. O modelo atual de repressão às drogas está firmemente enraizado em preconceitos, te-mores e visões ideológicas, tendo o tema se transformado em tabu ao inibir o debate público pela identificação do tema com o crime, blo-quear as informações fundamentadas e confinar os consumidores de drogas em círculos fechados, tornando-os ainda mais vulneráveis às ações do crime organizado.

Assistiu-se pacientemente nas últimas décadas a criminalização da política brasileira, com: a) controle de mercados e territórios por grupos narcotraficantes; b) crescimento da violência urbana afetan-do o conjunto da sociedade e, em particular, os jovens pobres e ne-gros das periferias; c) corrupção no sistema judiciário, classe política e forças coercitivas; d) proliferação de vínculos entre a politização do crime e a criminalização da política, refletindo a infiltração do crime organizado nas instituições democráticas.

O crime organizado e o aumento da violência associados ao tráfi-co de drogas ilícitas constituem um dos problemas mais graves do Brasil e da América Latina, com altíssimos custos humanos e amea-ças às instituições democráticas. Para a Comissão Latino-Americana sobre Drogas e Democracia (2009, p. 4) é imperativo retificar a estra-tégia de “guerra às drogas” aplicada nas últimas décadas na região. As políticas proibicionistas da produção, comércio e consumo de dro-gas não produziram os resultados esperados, deixando as nações latinas distantes do objetivo de erradicarem as drogas. A América Latina continua sendo o maior exportador mundial de cocaína e ma-conha, converteu-se em crescente produtora de ópio e heroína e se inicia na produção de drogas sintéticas.

As políticas repressivas de combate às drogas aliam-se à falta de estrutura pública capaz de oportunizar tratamento de saúde aos de-

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pendentes. Por isso, reconhecer os fracassos das políticas vigentes e suas consequências é uma precondição para a discussão de um novo paradigma de políticas eficientes e humanas. Isso não significa des-conhecer a necessidade de combater os traficantes, condenar as po-líticas que custaram enormes recursos econômicos e sacrificaram vidas humanas na luta contra o tráfico de drogas. Os governos fede-ral e estaduais devem reconhecer a insuficiência dos resultados e abrir o debate sobre estratégias alternativas, com a participação de setores da sociedade que se mantiveram à margem do problema por considerar que a solução cabia tão somente às autoridades da Segu-rança Pública.

O Brasil é o maior consumidor de cocaína da América do Sul, com cerca de 900 mil usuários da droga. Já os dependentes de crack são estimados pelo governo federal em 600 mil pessoas (UNODC, 2011, p. 27). A maior parte da cocaína que entra no Brasil vem da Bolívia, con-siderado atualmente o terceiro maior produtor mundial da droga. A ONU e os governos dos dois países avaliam que 60% do volume produ-zido em território boliviano (110 toneladas) tenham saída pela região fronteiriça com o Brasil, considerado uma rota de escoamento interna-cional da cocaína. A ampla extensão territorial fronteiriça do Brasil com outras nações sul-americanas corresponde ao tamanho dos seus problemas estruturais, com os embaraços gerados pelo tráfico de dro-gas vinculando-se ao tráfico de armas e contrabando de produtos.

Para a Comissão Latino-Americana sobre Drogas e Democracia (2009, p. 25) as principais consequências da “guerra às drogas” na América Latina são: desenvolvimento de poderes paralelos nos espa-ços vulneráveis, como os bairros pobres das grandes cidades, regiões interioranas distantes e regiões fronteiriças; criminalização dos con-flitos políticos; corrupção na estrutura policial, na Justiça e no siste-ma penitenciário; alienação da juventude, sobretudo a pobre e peri-férica; deslocamento de camponeses e o estigma sobre o cultivo de culturas tradicionais como a coca (Bolívia, Peru, Colômbia) e a ma-conha (Paraguai e Brasil).

Tal modelo de atuação ineficiente decorre do impreciso debate político sobre o recente fenômeno da violência urbana; da falta de uma agenda de reformas institucionais e de avanços na gestão ope-racional de Segurança Pública dos governos democráticos que suce-deram os governos militares; do retorno das forças armadas aos limi-tes de sua competência constitucional sem paradigma de atuação alternativa; e da ausência de uma racionalidade gerencial sistemáti-ca para os três níveis federados, em especial, os municípios, no âm-bito das políticas públicas de segurança.

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149149O proibicionismo das drogas e a politização do crime no Brasil

O Brasil foi historicamente influenciado por diferentes modelos jurídico-políticos internacionais de combate ao tráfico e uso de dro-gas. Na atualidade, percebe-se que a influência da concepção proibi-cionista americana e com poucos resultados positivos vem sendo substituída pela concepção reducionista europeia e seus bons resul-tados, com as autoridades públicas brasileiras debatendo com a so-ciedade acerca dos níveis de repressão e de como ajudar o usuário a sair da dependência da droga.

Com o Código Penal de 1940, o tráfico de todas as drogas ilícitas foi criminalizado e o consumo teve criminalização atenuada, pois a dependência era considerada doença e gerava a internação obrigató-ria do usuário. Mas, o Golpe Militar de 1964 e a Lei de Segurança Nacional alteraram o foco da política de combate às drogas. Os trafi-cantes eram considerados os inimigos internos do regime e o consu-mo devia ser combatido em face de sua associação com as manifes-tações democráticas, os movimentos contestatórios e a contracultura. Em 1976, a Lei nº 6.368 separou a figura do traficante do usuário, mas manteve a criminalização do uso. A Constituição de 1988 defi-niu o tráfico de drogas como crime inafiançável e sem possibilidade de anistia, e a Lei dos Crimes Hediondos (Lei nº 8.072/90) ampliou as penas para o traficante de drogas.

Com a Lei de Drogas (Lei nº 11.343/06), foi ampliada a pena mí-nima do tráfico de drogas para 05 anos e eliminada a pena privativa de liberdade para o usuário, cabendo-lhe a advertência, a prestação de serviços à comunidade ou a medida educativa. Ocorre que o indi-víduo flagrado portando ou consumindo drogas ainda pode ser trata-do como criminoso, assim como quem planta para consumo próprio, uma vez que a Lei de Drogas não especifica o quantum de droga que separa as figuras do usuário e do traficante. A descriminalização no Brasil retirou o usuário da esfera criminal, mas toda produção e co-mercialização das drogas continuam com os traficantes. Todavia, a Comissão de Juristas do Senado, criada para reformular o Código Penal brasileiro, anunciou que pretende descriminalizar a posse de drogas para uso pessoal. Ou seja, plantar, comprar e portar drogas para uso próprio deixará de ser crime quando a quantidade não ul-trapassar o suficiente para cinco dias de consumo, fato que desligará o Brasil definitivamente do proibicionismo.

Escolher o modelo institucional ideal de combate às drogas para cada nação é uma questão de isenção analítica, vontade política e pragmatismo institucional da Segurança Pública. Para a Comissão de Segurança Humana da ONU, a Segurança Pública aparece como terminologia de natureza política, administrativa e social que deve

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conjugar mais do que a ausência de conflitos violentos em uma dada nação. A Segurança Pública é a própria política pela segurança hu-mana, evocando as dimensões dos direitos fundamentais, da gover-nança pela paz e democracia.

As autoridades públicas e a sociedade brasileira em sua luta con-tra o tráfico de drogas devem abandonar o modelo do gerenciamento da crise policial e penitenciária e acolher os ensinamentos da Comis-são Latino-Americana sobre Drogas e Democracia (2009, p.11), quando propõe um novo paradigma sustentado em três grandes di-retrizes: a) tratar o consumo de drogas como questão de saúde públi-ca; b) reduzir o consumo via ações de informação e prevenção; c) fo-calizar a repressão sobre o crime organizado.

A solução de longo prazo para o problema das drogas ilícitas pas-sa pela redução da demanda nos principais países consumidores, sem buscar culpados. É necessário afirmar que os EUA e a União Europeia são corresponsáveis pelos problemas enfrentados pela América Latina, pois seus mercados são os maiores consumidores das drogas produzidas nestes países regionais, sendo desejável que apliquem políticas que efetivamente diminuam o nível de consumo e as proporções deste negócio criminoso, focalizando a ação repressiva em dois pontos: a diminuição da produção e o desmantelamento das redes de traficantes.

Considerações finais

As drogas durante grande parte da história eram conhecidas e consumidas pelo homem sem qualquer tipo de previsão legal de crime. De uso religioso, recreacional ou médico, as drogas até o início do sé-culo XX compunham o comércio internacional como qualquer merca-doria. Todavia, em período recente, a “guerra às drogas”, a concepção proibicionista difundida por Richard Nixon, a partir de 1971, e im-plantada por uma gama de países nas últimas décadas, entre os quais, o Brasil, padronizou a repressão à produção e ao comércio de drogas ilícitas, levando os usuários a serem tratados criminalmente.

No Brasil, a Lei n° 11.343/06 tem seus avanços doutrinários com respeito ao usuário e alternativas punitivas ao julgador, mas tam-bém trouxe reação nociva dada à subjetividade legal da falta de um quantum diferenciador entre traficante e usuário, implicando no au-mento de traficantes de pequena periculosidade nos presídios nacio-nais. Uma política brasileira antidrogas deve conter a definição de planos factíveis, com a doutrina focada em políticas públicas de pre-

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151151O proibicionismo das drogas e a politização do crime no Brasil

venção e recuperação da saúde dos usuários (redução de danos), flexibilização legal do uso de algumas substâncias (descriminaliza-ção) e antecipação aos fatos criminógenos (repressão qualificada) ad-vindos do tráfico de drogas e crimes conexos.

Além disso, deve envolver campanhas específicas de conscienti-zação dos malefícios das drogas ilícitas, controle de fronteiras, des-mantelamento dos crimes conexos e recursos para programas de re-abilitação da saúde de dependentes, realizando-se sempre um comparativo das teorias, legislações, ações e resultados com as polí-ticas adotadas por vários países que vivenciam os mesmos proble-mas. Para o alcance de experiências exitosas de combate às drogas ilícitas requer-se a constatação que as autoridades policiais sem par-cerias com a sociedade civil, iniciativa privada e mídia não consegui-rão obter resultados expressivos. Devemos discutir seriamente a des-criminalização de algumas drogas e a redução de danos, tendo como exemplo as nações onde o usuário é tratado como enfermo e não como criminoso. As drogas afetam a vida das pessoas que as usam, mas também se relaciona com os familiares, a violência nas cidades e a democracia.

A procura de alternativas não deve excluir a priori a possibilidade do aproveitamento lícito das drogas. Pesquisas científicas podem va-lorizar o uso da maconha (e da coca) como ingredientes para aplica-ções medicinais, uso culinário, goma de mascar, produção de fibras têxteis para vestuário, bebidas, produtos de higiene, biocombustíveis e plásticos vegetais. O bem comum exige um debate aberto que am-pare novas e corajosas soluções na questão das drogas ilícitas. Tra-ta-se de um tema complexo que exige a mobilização de diversas áreas de conhecimento e da ação coordenada das várias instituições públi-cas, da sociedade civil.

Os avanços em inclusão socioeconômica na última década não foram suficientes para construir uma cultura de paz na sociedade brasileira. Se tais avanços socioeconômicos fossem acompanhados nacionalmente das experiências ocorridas em São Paulo, Minas Ge-rais, Rio de Janeiro e Pernambuco, a trajetória histórica brasileira seria outra. A reversão do quadro exige que a sociedade brasileira transforme a Segurança Pública em verdadeira prioridade política. Não se trata apenas de alocação de mais recursos públicos para o setor, mas de reformar o arranjo institucional da Segurança Pública previsto na Constituição de 1988, que se mostra anacrônico diante da realidade atual. Necessitamos de um esforço coletivo similar àque-le empreendido para o controle da inflação em meados da década de 1990, com o Plano Real.

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Referências

COMISSÃO LATINO-AMERICANA SOBRE DROGAS E DEMOCRACIA. Drogas e democracia: rumo a uma mudança de paradigma. Documentos da Iniciativa Latino-Americana sobre Drogas e Democracia, Rio de Janeiro, 2009.

SAPORI, Luis Flávio. Avanço no socioeconômico, retrocesso na segurança pública: paradoxo brasileiro. Rio de Janeiro: PUC, 2013.

UNITED NATIONS OFFICE ON DRUGS AND CRIME. World drug report. New York: Commissions UN, 2011.

XAVIER, Laécio Noronha. Políticas públicas de segurança. Fortaleza: LCR, 2012.

ZALUAR, Alba. Juventude violenta: processos, retrocessos e novos desafios. Dados, v. 55, n. 2, 2012. p. 327-365.

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V. Questões do estado e do Cidadão

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Autor

Carlos Alberto Batista da Silva JúniorAcadêmico de Direito na Faculdade de Direito Processus, de Brasília, e assessor parla-mentar na Câmara dos Deputados. E-mail: [email protected].

Luciano RezendeMédico, prefeito de Vitória/ES, ex-deputado estadual e ex-secretário estadual do Espírito Santo.

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nada sobre nós, sem nós

Luciano Resende

A frase do título foi o lema da Organização das Nações Unidas (ONU) nas discussões sobre as pessoas com deficiência, em 2004. A afirmação de que nada discutido valeria se os inte-

grantes daquele segmento não tivessem sido ouvidos cabe perfeita-mente na análise do fato histórico que estamos vivenciando no Bra-sil. O gigante acordou, foi para a rua, está falando muitas coisas e precisa ser compreendido.

Que ninguém se iluda. Este movimento questiona todo o sistema! O alvo principal é o meio político, mas, também, o modelo construído no mundo tendo por base unicamente a economia. Como disse um assessor de um presidente dos Estados Unidos, para explicar o porque do seu assessorado se dar bem na política “É a economia, estúpido”.

Para interpretar o que acontece hoje, a frase precisa ser mudada para “é a felicidade das pessoas, estúpido”. As pessoas querem viver mais felizes. No Brasil, milhões passaram a consumir, nos últimos vinte anos, mais iogurte, eletrodomésticos e outros produtos, mas também entraram nas universidades, aumentaram seu grau de esco-laridade, ampliaram o senso crítico e não aceitam mais ficar três horas dentro de um ônibus lotado todos os dias para ir e voltar ao trabalho, assistir cenas de hospitais cheios de pessoas sendo atendi-das pelo corredor ou escolas com baixo nível de instrução e em mau estado de conservação, entre outras deficiências.

O que está por trás desse movimento é a insatisfação geral. No Brasil, teve como ponto de partida a crise na mobilidade urbana, que é grave, causando queda na qualidade de vida das pessoas. O movi-

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156156 Luciano Resende

mento se potencializou com a Copa das Confederações, que aumen-tou o sentimento nacionalista, detonado pelo aumento no preço das passagens de ônibus em São Paulo.

Tem relação com todas as grandes manifestações ocorridas no mundo (fóruns de Davos, Ocupe Wall Street, Primavera Árabe, mani-festações recentes na Espanha e Turquia): sempre tem um elemento detonador da insatisfação popular, massificada via Internet.

É preciso sensibilidade e humildade para mudar, estimular o diá-logo, a interação permanente para governar em rede. Um governo burocrata e frio é também coisa do passado, esse é um caminho sem volta. Corrupção, então, nem pensar!

Não há alternativa a não ser governar de forma coletiva, horizon-tal, conectado com as pessoas, com uma gestão compartilhada. Nes-se cenário, o lema da ONU vale mais do que nunca para todo mundo. Ou seja: nada mais deve ser discutido para a população, sem a par-ticipação dos cidadãos que vivem numa determinada cidade.

gestão compartilhada e voltada para o cidadão

Nesse sentido é que estamos desenvolvendo uma forma de de-mocratizar a gestão pública, procurando introduzir um modelo no qual as ações do poder público historicamente adotadas de formas isoladas e autoritárias cedam lugar a uma participação mais efetiva dos moradores. Este é o caminho que estamos trilhando na atual administração da capital capixaba, como pode ser constatado nos primeiros 200 dias de nossa gestão. Ao reorientarmos as políticas públicas, levando-as à discussão de cada cidadão por meio dos ga-binetes itinerantes, ampliamos o nível de análise e geramos maiores possibilidades de acertos, considerando que as intervenções nos di-versos setores passam pelo debate nas comunidades antes de se-rem concretizadas.

Avançamos em muitas frentes, apesar das dificuldades financei-ras decorrentes da mudança no Fundap e da unificação do ICMS, entre outros empecilhos responsáveis por uma redução de receitas de mais de 100 milhões, neste primeiro ano. Somente no primeiro trimestre, a redução da arrecadação municipal foi de 44 milhões, caindo de 389,4 milhões, em 2012, para 345,4 milhões, o que nos levou a reduzir o custeio para enfrentar a fase difícil.

Mesmo assim, a máquina pública se manteve em plena atividade, com melhoria dos serviços oferecidos à população e agregação de ou-

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157157Nada sobre nós, sem nós

tros, além da valorização do servidor, mediante a reposição de parte da perda salarial medida pela inflação (3,1%) e o atendimento a uma rei-vindicação de décadas: o fornecimento do tíquete alimentação.

Destacamos ainda o acolhimento de moradores de ruas e de usuários de drogas, funcionamento 24 horas da guarda municipal, a ocupação da cidade, de forma pacífica.

Essas ações fazem parte das definições estabelecidas pelo grupo criado para debater a segurança pública e definir projetos que resul-tem em maior proteção aos moradores. Diferentemente de governos burocráticos, iluministas e autoritários, as decisões são comparti-lhadas com o cidadão.

O mais importante para nossa gestão é voltar-se para o mora-dor, a quem convidamos para exercer o papel de prefeito e prefeita, dentro de um conceito em que o ser humano é o elo mais valioso e deve estar no centro das decisões. É por essa trilha que tudo fare-mos para que cada cidadão, seja homem seja mulher, torne-se co-gestor da nossa cidade.

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transparência pública

Carlos Alberto Batista da Silva Júnior

Eles começaram perseguindo os comunistas e eu não protestei porque não era comunista.

Depois, vieram buscar os judeus, e eu não protestei, porque não era judeu. Depois, ainda, vieram buscar

os sindicalistas e eu não protestei porque não era sindicalista. Depois vieram me buscar. E já não

havia ninguém para protestar. E não sobrou ninguém (Martin Niemöller)

Nos últimos tempos, ouve-se muito o desejo do combate à cor-rupção acometida contra o Estado, que afronta gravemente a devida aplicação dos recursos públicos, os quais deveriam

financiar serviços de qualidade, ao menor preço. Com o intuito de prevenir e combater tais fraudes, a criação de mecanismos por lei fez-se indispensável, a exemplo das ferramentas de transparência, que dão destaque ao auxílio da sociedade no Controle da Adminis-tração Pública.

Na Constituição Federal, estão presentes o direito e o democráti-co, legitimando a cidadania como o poder supremo, conforme o pará-grafo único do art. 1º, segundo o qual “Todo o poder emana do povo”, tão logo a República Federativa do Brasil se constitui num Estado Democrático de Direito. Essa legitimação faz com que grupos sociais organizados juridicamente, ou indivíduos isolados, possam conhecer da execução, pelos governantes, de seus interesses, considerando, dessa maneira, o Controle da Gestão Pública uma relação político--administrativa, objetivando a concretização e efetivação de direitos sociais e individuais. Dessa maneira, temos o primeiro sujeito con-trolador do processo de transparência pública – a sociedade, exer-cendo o chamado controle social. A prestação de contas torna-se um dever fundamental no sistema republicano, haja vista que na Repú-blica os recursos públicos pertencem ao povo, sendo este o verdadei-ro proprietário, restando aos gestores públicos a função apenas de administrar, cuidar da “coisa pública”. Desta feita, o direito de “sa-

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159159Transparência pública

ber o que é seu” é legítimo, assegurando ao cidadão, o real financia-dor, a fiscalização de como são investidos os recursos públicos.

Os atos administrativos referentes às receitas e despesas públi-cas também estão sujeitos ao controle do próprio Estado.

O poder de fiscalização e correção que sob ela exercem os órgãos dos poderes Judiciário, Legislativo e Executivo objetiva garantir a conformidade de sua atuação com os princípios que lhe são impostos pelo ordenamento jurídico.

Nessa situação, há duas formas: o Controle Interno e o Externo.

Interno: Quando o agente controlador integra o próprio órgão, o qual é objeto de controle. Conforme o art. 74 da Constituição Federal:

Art. 74. Os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário manterão, de forma integrada, sistema de controle interno com a finalidade de:

I – avaliar o cumprimento das metas previstas no plano plurianual, a execução dos programas de governo e dos orçamentos da União;

II – comprovar a legalidade e avaliar os resultados, quanto à eficácia e eficiência, da gestão orçamentária, financeira e patrimonial nos ór-gãos e entidades da administração federal, bem como da aplicação de recursos públicos por entidades de direito privado;

III – exercer o controle das operações de crédito, avais e garantias, bem como dos direitos e haveres da União;

IV – apoiar o controle externo no exercício de sua missão institucional.

2 – Externo: Quando o Controlador não compõe o quadro do órgão controlado, mas pertence ao Estado. Este pode ser subdividido em três espécies: Jurisdicional, Político e Técnico.

2.1 – Jurisdicional – Este, exclusivo do Poder Judiciário, tem como principal atribuição a fiscalização da legalidade dos atos administra-tivos;

2.2 – Político – O Poder Legislativo encarrega-se de fiscalizar as contas, assim como os atos do Poder Executivo, conforme previsto no inciso X do art. 49 da Constituição Federal:

Art. 49. É da competência exclusiva do Congresso Nacional:

X – fiscalizar e controlar, diretamente, ou por qualquer de suas Casas, os atos do Poder Executivo, incluídos os da administração indireta.

2.3 – Técnico – é aquele exercido pelos órgãos de controle externo, criados com essa finalidade, em auxílio aos órgãos legislativos, nas

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160160 Carlos Alberto Batista da Silva Júnior

três instâncias de governo e pelos órgãos do sistema de controle inter-no, previsto no art. 71 da Carta Magna.

Com a finalidade de operacionalizar a fiscalização, instrumentos jurídicos foram criados, podendo-se destacar:

1 – Lei Complementar nº 131/2009 – criada a partir da Lei de Res-ponsabilidade Fiscal (Lei Complementar nº 101/2000), visa à dispo-nibilização, em tempo real, de informações pormenorizadas sobre a execução orçamentária e financeira da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, ainda incentiva a participação popular na elaboração dos planos, e leis de diretrizes orçamentárias.

2 – Lei nº 12.527/2011 – conhecida como Lei de Acesso à Informação, a qual regula o inciso XXXIII do art. 5º da Constituição Federal:

XXXIII – todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado;

3 – Lei nº 8.429/92 – conhecida como a Lei da Improbidade Admi-nistrativa, dispõe sobre as sanções aplicáveis aos agentes públicos nos casos de enriquecimento ilícito no exercício de mandato, cargo, emprego ou função na administração pública direta, indireta ou fun-dacional e dá outras providências.

Um marco importante relativo ao tema transparência pública foi a Declaração de Atlanta, documento extraído da conferência realiza-da em fevereiro de 2008, em Atlanta, no Estado da Geórgia, promo-vida pela Carter Center, organização criada pelo ex-presidente dos Estados Unidos Jimmy Carter (Prêmio Nobel da Paz de 2002). Parti-ciparam da redação do documento, 125 Especialistas em Direito a Informações Públicas de 40 países. Da Declaração, podemos dar ên-fase ao item 5:

O direito de acesso à informação se aplica a atores não estatais que: recebem fundos públicos ou benefícios (diretos ou indiretos); que desempenham funções públicas, incluindo o fornecimento de servi-ços públicos; que exploram recursos públicos, incluindo recursos naturais. O direito de acesso à informação se estende apenas ao uso daqueles fundos ou benefícios, atividades ou recursos. Além disso, todos devem ter o direito de acesso à informação em poder de corpo-rações de alta lucratividade quando essa informação for requerida

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161161Transparência pública

para o exercício da proteção de qualquer direito humano como reco-nhecido na Declaração Universal de Direitos Humanos.

Como se verifica, não só estariam obrigados a prestar contas os entes estatais, mas também os que são contratados pelo Estado para prestarem serviços públicos, como os concessionários ou os que ex-ploram recursos naturais. Problemas como transporte público se-riam sabidos pela comunidade que utiliza os serviços naquela locali-dade, ou questões ambientais relativas à exploração irregular de recursos naturais seriam conhecidas pelos moradores daquela re-gião. Nesse caso, a questão da Transparência é muito mais ampla, abrangendo o público, quando o privado (na condição de concessionário).

A transparência pública permite verificar diversos problemas na aplicação dos recursos públicos, porém o que tem mais merecido destaque é seu papel no combate à corrupção. As manifestações po-pulares têm protagonizado a derrubada de diversos governos, não só no Brasil, como se pode ver nas manchetes trazidas abaixo:

Canadá

“O prefeito de Montreal, Michael Applebaum, 50, anunciou sua re-núncia oito meses após ser eleito, devido ao processo judicial aber-to contra ele.”

Itália

“Membro da Cúria romana detido por suspeitas de corrupção – Um alto funcionário da Cúria romana, um membro dos serviços secre-tos italianos e um corretor financeiro foram detidos, no âmbito de investigações da justiça italiana ao Instituto para as Obras Religio-sas (IOR) – o banco do Vaticano.”

Paraguai

“Manifestação contra a corrupção no Paraguai reúne 3 mil em As-sunção – Cerca de três mil pessoas percorreram as ruas do centro de Assunção, a capital do Paraguai, depois de se reunirem em fren-te ao Congresso para denunciar a corrupção e criticar a classe po-lítica do país.”

Brasil

“STF determina prisão imediata de deputado Natan Donadon – O Supremo Tribunal Federal (STF) determinou a imediata prisão do deputado Natan Donadon (PMDB-RO), condenado pelo tribunal à pena de reclusão de 13 anos, 4 meses e 10 dias, em regime inicial-mente fechado, pelos crimes de formação de quadrilha e peculato.

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162162 Carlos Alberto Batista da Silva Júnior

O parlamentar foi acusado de envolvimento em desvios de recursos da Assembleia Legislativa de Rondônia.”

China

“Ex-ministro chinês pode ser condenado à morte por corrupção – Liu Zhijun é acusado de ter recebido R$ 22,5 milhões em propina. Ele foi ministro de Ferrovias entre 1986 e 2011.”

As recentes manifestações populares que têm tomado as ruas de todo o país (junho de 2013) já provocaram algumas mudanças acla-madas. A última providência tomada pelo governo brasileiro partiu do Senado Federal, com a aprovação do Projeto de Lei nº 204/2011, que classifica delitos contra a Administração Pública como crimes hediondos, aumentando suas penas e dificultando a concessão de benefícios para os condenados. O projeto seguiu para a Câmara dos Deputados para apreciação.

Todavia, não é suficiente apenas prender os corruptos, porque outros surgem e os substituem. Faz-se necessário o fortalecimento de uma estrutura, que conte inclusive com cooperações internacio-nais, dentre as quais pontos como sigilo bancário, extradição, inter-câmbio de provas e recuperação dos produtos de atos de corrupção. Não faz sentido algum corruptos desviarem milhões do erário e te-rem como pena somente a reclusão. Com o endurecimento das me-didas punitivas, a devida observância das ferramentas de transpa-rência fará com que os índices desse tipo de criminalidade diminuam de forma consistente.

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VI. ensaio

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Autor

Brasilio Sallum Jr.Professor do Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, da Universidade de São Paulo, e autor de uma das mais completas interpre-tações da transição para a democracia no Brasil, em Labirintos (Hucitec, 1996).

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marxismo, sistema e ação transformadora

Brasilio Sallum Jr.

No começo dos anos 1970, quando o marxismo estava convul-sionado pelo surgimento do estruturalismo althusseriano, Al-vin Gouldner – sociólogo da tradição crítica norte-americana

– publicou um pequeno artigo denominado “Dois marxismos” em que sublinha a necessidade, óbvia mas poucas vezes atendida, de pensar o marxismo de uma perspectiva marxista (GOULDNER, 1975).

Ele esclarece: haveria que tratar o marxismo não apenas como meio de conhecer ou de transformar a história, mas também como produto social e histórico. Diz mais: seria necessário pensar o mar-xismo como movimento que se desdobra na história de forma contra-ditória, quer dizer, como unidade tensa entre diferenças.

A primeira das duas recomendações contém o que me parece ser o espírito com que hoje devemos tratar os textos de Marx e Engels, de seus intérpretes e seguidores: não como artigos de fé, mas como meios excepcionais mas limitados, humana e historicamente limita-dos, de conhecer e transformar o mundo. E precisamente por serem limitados eles não demandam apenas interpretação, mas também um trabalho de reelaboração teórica. Uma reelaboração que dê maior consistência ao legado teórico de Marx e Engels e o renove para ajus-tá-lo aos problemas do presente. Estas tarefas construtivas impõem uma ruptura necessária com o dogmatismo. Mais: elas implicam não só dialogar, mas também dispor-se a aprender com as ciências so-ciais não marxistas.

No que diz respeito ao caráter dialeticamente contraditório do marxismo, Gouldner constrói dois tipos de interpretação da teoria

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que, segundo ele, vêm polarizando sua história, o marxismo científi-co e o crítico. A construção é habilidosa e, embora alguns autores e atores ofereçam certa dificuldade de classificação, os tipos mencio-nados são úteis para pensar os problemas da teoria marxista, inclu-sive os suscitados pelo tema que nos ocupa hoje. Gouldner mostra, com efeito, que o marxismo se polariza a propósito de vários temas, o que mencionarei de forma breve e incompleta, apenas para ser bem entendido. Em relação à ciência, por exemplo, a vertente científica do marxismo entende que a realidade é governada por leis naturais in-dependentemente da vontade dos homens; ao invés, tais leis a determi nam. A ciência marxista seria definível mais como uma cons-trução teórica que por referência empírica, embora haja pouca preci-são tanto sobre o método como sobre o seu produto. No polo oposto, a vertente crítica do marxismo entenderia como problemáticos quais-quer sistemas de pensamento e a própria ciência. O marxismo visa-ria desmistificá-los. Qualquer teoria, inclusive o marxismo, envolve-ria sempre uma mirada perspectiva sobre os processos. E os ângulos diversos de mirá-los e interpretá-los decorreriam dos diferentes vín-culos entre as teorias e a sociedade.

Fica claro, pois, que para Gouldner os marxistas científicos en-tendem haver um fosso intransponível entre ciência e ideologia, ao passo que os críticos percebem as duas como socialmente ancora-das, havendo conhecimento verdadeiro também na ideologia, conhe-cimento esse a ser desentranhado pela ciência.

Em relação ao papel da capacidade dos homens intervirem ativa-mente no processo histórico, o marxismo crítico enfatizaria que os homens fazem a história, ao passo que o científico sublinharia que a fazem, sim, mas dentro de condições determinadas, independentes de sua vontade. Coerentemente, o marxismo científico daria ênfase ao valor da resistência e da paciência políticas, à proteção dos qua-dros revolucionários até a chegada da “hora certa”, e teria confiança nas oportunidades objetivas que as contradições possam vir a criar. No polo oposto, a vertente crítica se recusaria a se submeter “ao que existe”, valorizando a coragem, atribuindo ao elã revolucionário ca-pacidade de compensar o déficit das “condições objetivas”. Não me alongarei mais neste sumário. São reconhecíveis, facilmente, nos po-los científico e político, autores, atores e obras: de uma parte Althus-ser, de outra o jovem Lukács; em um polo Kautsky, em outro Thomp-son; o Marx de O Capital versus o do Dezoito Brumário de Luís Bonaparte; e assim por diante.

Entre os temas em que Gouldner identifica polarizações entre científicos e críticos, para nós interessa um em particular, aquele

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que diz respeito ao modo de produção da história. Em relação a isso haveria os que concebem a história principalmente como fruto das contradições entre forças produtivas e relações de produção; ou, ao invés, os que acreditam que ela resulte da luta de classes. Trata-se, é claro, não de opções exclusivas, mas de diferentes ênfases. Na rea-lidade autores representativos de ambos os polos esforçaram-se para demonstrar que não “esqueceram” o seu oposto. Quem não se lem-bra dos malabarismos intelectuais e linguísticos de Poulantzas, em As classes sociais no capitalismo de hoje, para “demonstrar” que as estruturas econômicas, políticas e ideológicas são, a um só tempo, “lutas de classe”? Não faltarão exemplos como este, de um ou de ou-tro lado da trincheira.

Esta polarização entre contradições sistêmicas e conflito de clas-ses, embora sirva bem ao argumento de Gouldner, perde um elemen-to-chave que nos pode levar para além das antinomias. Com efeito, não importa o polo que adotemos no combate: se o da ênfase nas con-tradições entre relações de produção e forças produtivas ou o da ênfa-se nas lutas de classe. O que é mais problemático no marxismo não é a escolha do lado a enfatizar; o problema central está na relação entre sistema contraditório e lutas de classes, entre estrutura e história.

Sobre isso há um quase silêncio teórico. E esta é a questão cen-tral que pretendemos discutir neste artigo.

Sublinho, desde logo, a centralidade não só teórica, mas também política desta relação. É da conexão entre as contradições sistêmicas do capitalismo e o conflito de classes que depende tanto a revolução como o conformismo do sujeito revolucionário.

Recorde-se que para Marx o núcleo das contradições do capitalis-mo está na contraposição entre a socialização cada vez maior da produção capitalista e a apropriação privada do excedente produzi-do. Esta contradição fundamental é inerente ao processo de reprodu-ção ampliada do capital e não depende das crises econômicas que atingem periodicamente o sistema. Pelo contrário, para Marx as cri-ses são apenas soluções violentas e momentâneas para as contradi-ções existentes (K, III, p. 262) que restabelecem passageiramente o equilíbrio do sistema.

O mais importante é que a contradição fundamental do capitalis-mo gera contradições secundárias entre, de um lado, a estrutura de classes produzida no processo de reprodução do capital e, de outro, as relações mantidas pelos agentes sociais nas principais esferas econômicas por meio das quais ocorre a própria reprodução. Ao pas-so que entre as classes sociais se tecem fios invisíveis que mantêm o

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proletariado escravizado à burguesia, no plano da circulação de mer-cadorias regem relações de liberdade entre os agentes-proprietários de mercadorias, não importa serem tais mercadorias a força de tra-balho ou os objetos de consumo de operários ou capitalistas. Cada um deles compra ou vende suas mercadorias livremente, conforme sua conveniência. Na medida em que os seus salários, porém, são transformados em bens de consumo e, por fim, consumidos, os tra-balhadores veem-se obrigados a manter-se no emprego ou a vender novamente sua força de trabalho aos capitalistas, não importa qual deles. Fecha-se assim o círculo que escraviza socialmente o proleta-riado à burguesia.

Ademais, embora no plano da circulação, as mercadorias sejam rotineiramente trocadas pelo seu valor, sendo a igualdade de seus valores a condição para a troca e a troca um fator de igualação en-tre os proprietários de mercadorias, tudo muda de figura no proces-so de reprodução ampliada do capital. Nesta reprodução, a burgue-sia – ainda que possa ter iniciado o processo de produção com base em dinheiro obtido com o próprio trabalho – extrai constantemente dos trabalhadores contratados mais valor que o que paga por sua força de trabalho. Ao reinvestir o resultado no processo de produ-ção, transforma a mais-valia extraída em capital e, depois de umas tantas voltas, o seu capital inicial nada terá de trabalho próprio, transformando-se o capital em mais-valia acumulada, em massa de trabalho alheio, expropriado e acumulado, que segue sugando tra-balho vivo. Portanto, ao passo que há igualdade entre os mercado-res, existe desigualdade entre as classes. Concluindo: o fundamen-to da igualdade e da liberdade entre os agentes na esfera da circulação é a escravidão e a desigualdade entre as classes no pro-cesso de reprodução.

Como tais contradições se traduzem em lutas de classe? Por que tais contradições não têm até hoje se transformado em luta revolu-cionária que supere o capitalismo? Quais os obstáculos que blo-queiam a ação revolucionária?

Estranhamente, os marxistas avançaram mais, ainda que de modo muito insuficiente, na explicação para a falta de impulso revo-lucionário do que no exame das condições de contestação da ordem burguesa pelas classes subalternas.

A tradição marxista tem atribuído, de forma geral, à ideologia do-minante a frustração das expectativas de que a experiência da explo-ração fabril, do empobrecimento relativo da classe operária e das próprias lutas operárias se convertesse na formação de uma classe

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capaz de lutar não apenas por objetivos imediatos, mas também con-tra o sistema, em favor de uma nova sociedade.

A ideologia dominante tem sido concebida, porém, de modos mui-to distintos no interior do marxismo. Como sugeriu Lockwood (1992), é possível distinguir no marxismo três concepções de ideologia e, com isso, três explicações para a debilidade da luta revolucionária nos países capitalistas avançados.

Uma dessas concepções deriva de A ideologia alemã e tem seu com-plemento em O que fazer, de Lenin. As classes são portadores das ideo-logias. Entretanto, como os operários são oprimidos, econômica e tam-bém ideologicamente, as classes dominantes monopolizam tanto os meios de produção material como grande parte dos meios de produção intelectual. Escrevem Marx e Engels em A ideologia alemã: “os indivídu-os que compõem a classe dominante [...] regulam a produção e a distri-buição das ideias de sua época”. Assim, é a desigualdade de meios de produzir e distribuir ideias que dificultaria ao operariado experimentar sua experiência como “exploração” e convertê-la em alavanca para a constituição de uma classe revolucionária. Por isso é que, para Lenin, os operários – dominados pela ideologia burguesa – não conseguiriam por si sós ultrapassar uma consciência sindicalista. Para irem além, necessitariam da intervenção de uma vanguarda revolucionária.

A segunda concepção não vincula a ideologia às classes nem en-tende ser a subordinação da consciência operária o fruto da sua dou-trinação pela burguesia. Ao invés, entende ser a ideologia – cujo nú-cleo é o fetichismo da mercadoria – o resultado não intencional da dominação do sistema mercantil de produção. Os agentes deste ima-ginam serem as relações que mantêm entre si relações entre coisas, mercadorias, cujos valores de troca parecem derivar de sua nature-za; inversamente, imaginam que as relações entre os objetos – as mercadorias – têm virtudes sociais. O fetichismo não se fixa só nas mercadorias, mas no conjunto das relações capitalistas: na forma--salário, na forma-lucro, na forma-juro etc. Em todos estes casos, produz-se a inversão. A sociedade mercantil se naturaliza e veda aos agentes a percepção de que ela resulta da exploração entre as clas-ses. Por ela o salário parece ser o valor do trabalho e não da força de trabalho; o lucro e o juro parecem ser, respectivamente, a remunera-ção do trabalho do empresário e do dinheiro emprestado, e não quo-tas-parte do trabalho excedente gerado pela exploração capitalista. Entendendo-se desta forma a ideologia inerente ao capitalismo, tor-na-se difícil entender até como os operários superam o seu individu-alismo e se organizam como atores coletivos para reivindicar e pro-testar. De qualquer maneira, como no caso anterior, as associações

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operárias submetidas ao fetichismo mercantil tenderiam a limitar suas demandas aos salários e às condições de trabalho.

Estas duas concepções de ideologia, além de oferecerem explica-ção para as dificuldades da ação revolucionária, têm a característi-ca comum de focalizarem sua atenção nos obstáculos cognitivos para o surgimento de uma consciência revolucionária no proletaria-do (LOCKWOOD, 1992, p. 321). Tais obstáculos, se supõe, poderiam ser ultrapassados por um entendimento correto, científico, do fun-cionamento do sistema.

A terceira concepção de dominação ideológica, a da hegemonia, tem características bem diferentes das anteriores. Ela refere-se a um sistema cultural dominante que cimenta a dominação de uma coali-zão de classes sobre o conjunto da sociedade, constituindo um “bloco intelectual e moral”. Trata-se de um sistema de valores e crenças cuja autoridade se deve principalmente ao seu estabelecimento es-pontâneo como ideias dominantes. A hegemonia não se refere, pois, apenas a um sistema cognitivo. Trata-se de crenças não-racionais (note-se não-racionais mas, de forma alguma, irracionais), valores, compromissos morais dificilmente “corrigíveis” pelo conhecimento científico. A hegemonia envolve tornar dominante certo modo de vi-ver e de pensar, difundindo uma concepção de realidade através da sociedade em todas as suas manifestações institucionais e privadas, conformando com seu espírito todo o gosto, moralidade, costumes, religião e princípios políticos, e todas as relações sociais (WILLIAMS, 1960). Internalizada pelas massas, a hegemonia se torna parte do “senso comum”.

Esta concepção de hegemonia, muito próxima à noção de “cons-ciência coletiva” de Durkheim – como já notaram Anderson (1976) e Pizzorno (1972) – tem tido larga difusão entre os marxistas. Ela con-tém grande apelo porque, de um lado, dá mais complexidade à noção de ideologia de classe presente na Ideologia alemã e, de outro, dá mais profundidade sociológica à teoria do fetichismo, enriquecendo a ideia de que a ideologia está incorporada às práticas cotidianas.

Ocorre que, pensada deste modo genérico, a noção de hegemonia apresenta, como bem aponta Lockwood, uma fraqueza fundamental. Ela tem sido incorporada em termos tão pouco específicos que as explicações da ação de classe feitas com sua ajuda tendem a se tor-nar uma forma de determinismo cultural. Assim, “o conceito grams-ciano de hegemonia tem possibilitado a muitos teóricos marxistas, preocupados em explicar a ausência de revolução proletária, adota-rem (...) uma visão hiperintegrada de sociedade e uma visão hiperso-

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cializada dos indivíduos” (LOCKWOOD, 1992, p. 337), numa inter-pretação mais-do-que-parsoniana de Durkheim.

Contra esta tendência, haveria que ressaltar e explorar sociologi-camente a referência do próprio Gramsci à consciência contraditória do homem ativo de massa. Diz ele:

O homem ativo de massa tem uma atividade prática, mas não tem consciência teórica da sua atividade prática; esta, não obstante, envolve um entendimento do mundo no processo mesmo de trans-formação. Sua consciência teórica pode mesmo estar historica-mente em oposição à sua atividade prática. Podemos quase dizer que ele tem duas consciências teóricas (ou uma consciência con-traditória): uma está implícita na sua atividade e em realidade o une a seus companheiros-trabalhadores na transformação prática do mundo real; e outra, superficialmente explícita ou verbal, que ele herdou do passado e absorveu de forma acrítica. Mas essa con-cepção verbal não é sem consequências. Ela mantém unido o gru-po social, influencia a conduta moral e a direção da vontade com eficácia variável, muitas vezes de forma poderosa, a ponto de pro-duzir uma consciência tão contraditória que impede qualquer ação, qualquer decisão ou escolha, gerando uma condição de passivida-de moral e política (GRAMSCI, 2004, p. 103).

O ponto a sublinhar nesse passo é que a consciência dominante – superficialmente explicita ou verbal – tem eficácia variável para influenciar a ação e dirigir a vontade das massas.

Sublinhe-se, de passagem, que do ponto de vista histórico é óbvio que a hegemonia não é plenamente eficaz. Com efeito, se a eficácia fosse tão grande, como explicar a atividade dos movimen-tos sociais nos períodos de exercício de hegemonia? Como explicar as rebeliões?

Ainda assim, teoricamente é muito importante o reconhecimento do caráter variável desta eficácia. No entanto, é insuficiente identifi-car, como Gramsci, o caráter meramente “superficial” e “passivo” do assentimento das massas à hegemonia e a eventual conversão deste consentimento em adesão a um outro princípio hegemônico, sempre latente. Isso não é o bastante para uma ciência social que pretenda identificar não só as condições de persistência, mas também de mu-dança das formações sociais. Deste ângulo, o reconhecimento de que a hegemonia tem eficácia variável é fundamental apenas porque ser-ve de estímulo para pesquisar o princípio desta variação e, mais ain-da, as condições em que os agentes abandonam sua passividade e se engajam no protesto coletivo.

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Voltamos, pois, renovados, ao nosso ponto de partida: como, sob quais condições, as contradições sistêmicas se traduzem em confli-tos de classe? Em que circunstâncias e por quais meios as contradi-ções sistêmicas conseguem se traduzir em conflitos de classe? Em que situações ocorrem rebeliões? Em quais revoluções?

Seguramente, o estudo dos textos dos teóricos marxistas pode cumprir um papel importante na investigação do problema. No entanto, creio que se perderia muito, caso não fossem aprovei-tados os estudos não marxistas contemporâneos sobre o modo de vida das classes populares e as suas formas de mobilização e protesto coletivo.

Creio que uma parte da literatura sociológica não marxista con-tém elementos muito importantes para uma investigação do tipo que mencionamos. Refiro-me, especialmente, a alguns conceitos e análi-ses contidos, por uma parte, na obra de Pierre Bourdieu e seus cola-boradores e, por outra, nos trabalhos sobre movimentos sociais es-tudados na perspectiva do “processo político”.

Em relação à obra de Bourdieu e seus discípulos, há dois elemen-tos importantes a assimilar, um metodológico e outro conceitual. Embora a teoria marxista do direito, desenvolvida por Pashukanis, e o conceito de fetichismo mercantil envolvam a imbricação entre prá-ticas sociais e significação, a ênfase dada por Bourdieu no caráter relacional, prático e simbólico das relações entre classes sociais de-verá ser incorporada em uma teoria que procure articular estrutura e práticas. De forma complementar, conviria, como já sublinhei em outra oportunidade, incorporar de Bourdieu o conceito de habitus.

A noção de habitus de classe permite, melhor que de outros mo-dos, superar a ideia, presente no marxismo, de “classe em si” (e sua correlata “para si”), sublinhando a relevância da perspectiva dos ex-plorados e dominados, ainda que ela não seja elaborada reflexiva-mente e que eles não estejam revolucionando o sistema. No registro histórico-político, a noção de habitus permite captar os códigos in-ternalizados de forma pré-reflexiva que conformam grande parte das práticas sociais, inclusive as das classes subalternas. Tais práticas podem ser politicamente relevantes, mesmo quando não põem em questão as modalidades vigentes de reprodução social. O melhor exemplo disso encontra-se na análise que o próprio Marx faz da par-ticipação dos camponeses no processo histórico que levou à ascen-são de Luís Napoleão ao poder de Estado na França em meados do século XIX. Naquele episódio, sem associação nacional ou organiza-ção política própria que permitisse a participação autônoma dos

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camponeses na vida política francesa, a atuação política unitária dessa classe passa a depender dela encontrar para si um represen-tante “externo”.1 Foi a tradição histórico-cultural internalizada pelo campesinato francês – o seu habitus, diria Bourdieu – que lhe permi-tiu encontrar na figura e nas ideias de Luís Napoleão a possibilidade de realização – ilusória, é verdade – de suas aspirações. Foi isso que fez de Luís Bonaparte o depositário da votação massiva do campesi-nato no plebiscito que legitimou o golpe de dezembro de 1851. O caso reconstituído por Marx em O dezoito brumário de Luís Bonaparte diz respeito a uma classe em declínio que, majoritária e ilusoriamente, vê na consolidação do poder de Luís Napoleão Bonaparte a possibili-dade de restaurar suas condições anteriores de vida.

Não há dúvida que, para Marx, a busca da restauração da ordem anterior, vigente na época do primeiro Napoleão, não era a única prática camponesa possível. O seu relato enfatiza a possibilidade não realizada de uma prática camponesa revolucionária e menciona, como indícios disso, uma série de irrupções coletivas contra as mu-danças adversas ocorridas nas condições camponesas de vida.

O esquema teórico construído por Bourdieu também contempla a existência de certa gama de disposições de conduta dentro de uma classe ou fração de classe, o que veda interpretar de forma muito mecânica o habitus enquanto dispositivo conservador. De fato, ele é um conjunto de disposições que permitem múltiplas orientações de conduta dentro de uma classe ou fração de classe. Quais os funda-mentos estruturais disso? Para Bourdieu, são as diferentes origens e trajetórias de indivíduos que ocupam posições similares no espaço social (por exemplo, parte do operariado urbano provém da baixa classe média, outra parte é constituída por ex-trabalhadores rurais etc.) o que favorece o surgimento de diferenças de perspectiva e de opinião entre os agentes sociais. Ainda assim, para ele, tudo “parece indicar que [isso ocorre] dentro dos limites dos efeitos de classe; des-ta forma, as disposições ético-políticas dos membros de uma mesma classe aparecem como formas transformadas da disposição que ca-racteriza fundamentalmente a classe como um todo” (BOURDIEU, 1984, p. 456).2 Esta percepção de que os limites de classe tendem a

1 O termo é de Marx. Luís Bonaparte tornou-se seu representante “externo” na medi-da em que não era camponês nem foi instituído como representante pela atividade política autônoma dos camponeses. No entanto, ele só pôde tornar-se representante de classe pela atividade “interna” do habitus camponês, conformado pela grande revolução francesa que os libertara da semisservidão e os transformara em proprie-tários livres, condição garantida depois por Napoleão I, no começo do século XIX.

2 Quer dizer, para ele, a gama das disposições deriva da confluência entre a multipli-cidade das trajetórias dos indivíduos (e suas famílias) e a trajetória/posição de clas-

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se impor à diversidade das interpretações presentes em cada classe se traduz no visível ceticismo de Bourdieu em relação à relevância política das “diferenças de opinião” existentes entre as classes subal-ternas: para ele, sua capacidade de contestação parece estar sempre na dependência de sua associação com a fração intelectual (domina-da) da classe dominante.

Esta digressão permite sublinhar, como já o fizemos em outra parte, a importância de articular os conceitos de habitus e de contra-dição. Na medida em que explorarmos esta articulação, as variações nas disposições de conduta inerentes a cada classe não ficariam, como em Bourdieu, dependentes apenas das posições e trajetórias das classes e dos atores; a própria experiência social de cada classe – e especialmente a dos dominados – poderia talvez explicar tais va-riações nas disposições de conduta – em virtude do fato de essa ex-periência ser ambígua e dinâmica, porque o sistema capitalista de classes é contraditório e cíclico.

Trata-se, é bom que se sublinhe, de uma sugestão cuja perti-nência deve ser examinada tanto teoricamente como em investiga-ções empíricas.

No que diz respeito às teorias da ação coletiva, a investigação do problema da relação entre contradições sistêmicas e conflitos de classes poderia absorver um grande conjunto de conceitos que elas têm produzido e que são, creio eu, bastante ajustáveis a uma pers-pectiva marxista renovada (TILLY, 1987; TARROW, 1998). Digo ajus-táveis, porque as teorias dos movimentos sociais – que hoje procu-ram fundir-se com os estudos sobre rebeliões e revoluções em uma teoria ampliada do “confronto político” (contentious politics) – não trabalham usualmente com o conceito de classe (MCADAM; TAR-ROW; TILLY, 1996). No entanto, tais teorias sempre enfatizam a rele-vância das redes de relações sociais para a mobilização coletiva. Ora, as classes sociais se constroem não apenas por oposição às outras, mas também por adensamento das relações entre seus próprios membros. São tais relações verticais e horizontais que conformam os habitus de classe, assim como estes são os fundamentos de seus modos próprios de vida. Desta forma, à primeira vista parece ser possível trabalhar no sentido de “ajustar” conceitos e resultados das investigações efetuadas pelos teóricos dos movimentos sociais. Con-ceitos como “estrutura de mobilização”, “oportunidade política”, “re-

se. Isso significa que quanto menor a mobilidade social (ascendente ou descendente) menores são as chances de heterogeneidade dos habitus. E vice-versa. Quanto aos limites de classe não serem ultrapassados, trata-se de hipótese razoável enunciada em A distinção, que exige cuidadosa demonstração.

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pertório de ação coletiva”, “quadro interpretativo” etc. seriam extra-ordinariamente úteis para ajudar os investigadores de inspiração marxista a superar a fase defensiva, de encolhimento, em que se encontram. Tenho a convicção de que, como tudo, uma grande teoria só tem condição de se preservar renovando-se. Minha esperança é que será este o caminho que seguirá o marxismo.

Referências

ANDERSON, Perry. The Antinomies of Antonio Gramsci. New Left Review, v. 100, 1976.

BOURDIEU, Pierre. Distinction – A Social Critique of the Judgement of Taste. Cambridge-USA: Harvard University Press, 1984

GOULDNER, Alvin. Two Marxisms. In: Id. For Sociology – Renewal and Critique in Sociology Today. England: Penguin Books, 1975.

GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, v. 1, 2004.

LOCKWOOD, David. Solidarity and Schism – ‘The Problem of Disorder’ in Durkheimian and Marxist Sociology. Oxford-UK: Clarendon Press, 1992.

MCADAM, Doug; TARROW, Sidney; TILLY, Charles. To Map Contentious Politics. Mobilization, v. 1, n. 1, 1996.

PIZZORNO, Alessandro. Sobre el método de Gramsci. In: Pizzorno et al. Gramsci y las ciencias sociales. 2. ed. ampliada. Córdoba: Pasado y Presente, 1972.

SALLUM Jr., Brasílio. Classes, cultura e ação coletiva. Lua Nova, n. 65, 2005.

TARROW, Sidney. Power in Movement – Social Movements and Contentious Politics. 2. ed. New York: Cambridge University Press, 1998.

TILLY, Charles. From Mobilization to Revolution. New York: MacGraw-Hill, 1987.

WILLIAMS, G. A. The Concept of ‘Egemonia’ in the Thought of Antonio Gramsci: Some Notes and Interpretations. Journal of History of Ideas, v. 21, n. 4, 1960.

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VII. mundo

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Autores

Paulo DelgadoSociólogo, formado em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Juiz de Fora e mes-tre em Ciências Políticas pela Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail: [email protected]

Verônica de Jesus GomesMestra em História Social pela Universidade Federal Fluminense, campus de Niterói.

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touro sentado

Paulo Delgado

São muitos os vícios e suas origens. Um muito comum é querer ver o mundo pela magia que pode existir nas coisas mais do que por processos reguladores e determinados. Outro é ima-

ginar que condutas de aversão são virtudes e contribuem para dimi-nuir a superfície da Terra. Explicações pelo hábito, combinadas com hipocrisia e manipulação, têm sido a forma cotidiana como governos pensam manifestar poder diante de fatos internacionais.

Os últimos dias foram espetaculares em sagas e aventuras conta-das de maneira a nos fazer crer que minorias tecnologicamente atra-sadas são, por isso, moralmente superiores. E, assim, são, por mal-dade, confrontadas e subjugadas continuamente pelo apetite incontrolável dos imperialistas. É como se as vítimas continuassem sem poder fazer outra coisa senão reclamar e sucumbir. No fundo, parecem querer se misturar à bela e melancólica história de Siouxs e Cheyennes retirada do pungente relato de Dee Brown sobre a des-truição dos índios da América do Norte, em Enterrem meu coração na curva do rio.

Um espião americano arrependido, de posse de alguns laptops surrupiados da Agência de Segurança Nacional dos EUA, foge para os portões da China e aparece vagando num aeroporto em Moscou. No mesmo momento, um presidente sul-americano decola de lá e tem seu avião desviado para Viena porque a França proíbe o Falcon 900 EX, de fabricação francesa, de sobrevoar seu território, no que é acompanhada por demais países europeus. Motivo: a possibilida-de de, dentro dele, de carona ou resgatado, estar o intrépido espião

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foragido que descortinou “segredos” que forçaram os mandatários a expressar “indignação”. O segredo, nesse caso, é a revelação do se-gredo, e a indignação é protocolar, como até o Vaticano sabe.

De matar foi a ambígua posição do presidente da Rússia, ele mes-mo um ex-espião, de conceder um meio asilo ao seu colega de profis-são, abandonando-o em um aeroporto de Moscou sem permitir que fixasse residência no país, muito menos continuasse suas atividades contraconspirativas em território russo. O que se seguiu foi eletri-zante. A nação mais poderosa da Terra, acusada de espionar todas as pessoas, em todos os países do mundo, em ações clandestinas e ilegais, não foi capaz de identificar em um avião de 12 lugares o pe-rigoso desafeto, transformando tudo em discursos emocionantes e emoções à flor da pele. Até o Brasil – que adora grampear, ouvir e vazar conversa alheia, e fez disso um esporte judicial ilegal, em vez de preferir ser espirituoso e informado – fez-se intimidador. E simpá-tico ao incoerente presidente boliviano, que viu violação de soberania na limitação do voo de seu avião. O mesmo que, no ano passado, praticando sua diplomacia ativa para cima do vizinho agradável, mandou cães farejadores entrarem no avião do nosso ministro da Defesa para procurar o senador oposicionista que o Brasil concedeu asilo, mas deixa apodrecer na embaixada em La Paz, para ser con-descendente com um presidente que não aceita asilo para inimigos.

Países que confundiram democracia com atraso tecnológico terão que se contentar em entrar no debate sobre segurança mundial de-pois da engenharia montada. Até lá, terão que conviver com a onipo-tência virtuosa de um Google que tem como orgulhoso lema um naïf “Não seja mau”. É a versão da pretensão americana de ser o bom xerife do mundo, disposto a encolher o espaço que separa as áreas integradas das que não são. Como explicitado, entre outras vezes, em 2003, por Thomas Barnett, então no Colégio de Guerra Naval americano, com seu “Novo Mapa do Pentágono”. A integração que traz a segurança acontece por meio de cada vez maiores fluxos de comércio, de finanças, de ideias, mas, primariamente, por interco-nectividade de informações. É nisso que acredita quem quer ter in-fluência e é nisso que se investe.

Da internet ao GPS, mexeu ali, mexeu nos EUA. Empresas, do-mínios, servidores são, praticamente, todos norte-americanos. E a mistura de agentes do mercado com políticas públicas de defesa é total, direta ou indiretamente. São crias do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), de Stanford, da Agência de Projetos de Pes-quisa Avançada de Defesa (Darpa) etc. Sem as universidades de pes-quisa americanas e as agências ligadas ao Pentágono, seriam incon-

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cebíveis o impulso inicial e o desenho teórico que protegeu e nutriu os projetos que um dia viriam a pulular na internet.

Somente a Rússia, a China, a Europa e a Índia têm alternativas operacionais ao GPS americano. Se o Google Earth mostra gratuita-mente o mundo com precisão e iPhones sabem com precisão cirúrgica onde você está, não é preciso muita imaginação deduzir o que está dis-ponível para uso militar ou corporativo. Até agora, desnudar o analfa-betismo cibernético da América Latina é o maior feito do espião.

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Para quem são os direitos humanos? Crianças e jovens curdos são abusados nas prisões turcas

Veronica de Jesus Gomes

Ainda que apenas recentemente o caso dessa prisão tenha vin-do à tona, tais acontecimentos têm sido testemunhados e so-fridos por crianças, que, apesar de tudo, evitam contar suas

experiências. Mas embora arrisquemos nossas vidas, sempre mante-mos as cabeças erguidas e jamais nos rendemos ao nosso inimigo1.

(T.T., 20 anos, uma vítima de diferentes tipos de abusos enquan-to esteve encarcerado nas prisões de Pozanti e Kürkçüler E-Type – Turquia).

Essas palavras de uma testemunha descrevem muito bem o que muitas crianças e adolescentes vêm sofrendo nas prisões turcas há um longo tempo. De acordo com Selahattin Güvenç, presidente da Mersin Association of Help and Solidarity with Immigrants (Göç-Der), essas práticas não são novidade, uma vez que acontecem desde o es-tabelecimento da República da Turquia. Ele lembra os abusos sexuais perpetrados contra muitas meninas após o massacre de Dersim, em 1938. Güvenç afirma ainda que a política governamental determinava que essas jovens fossem levadas, subjugadas e assediadas. Ele com-para o passado à situação presente: “O que acontecia há 74 anos, quando as meninas eram forçadas a ir ao encontro dos soldados, se repete hoje nas prisões”. Um dos maiores especialistas da questão curda, professor Martin van Bruinessen, da Universidade de Utrecht, afirma, em seu importante artigo “Genocide of Kurds”,2 que Reşat Halli, historiador oficial das campanhas militares turcas, fez questão de relatar a brutal violência exercida contra crianças em Dersim.

O art. 25, § 2, da Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada e proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, em Paris, em 10 de dezembro de 1948, é claro e assinala que “A mater-nidade e a infância têm direito a cuidados e assistência especiais.

1 Journalist tell of violence suffered by children, Firat News Agency, 17 de março, 2012, disponível em: <http://en.firatnews.com/index.php?rupel=article&nuceID=4296>.

2 BRUINESSEN, Martin van, Genocide of Kurds. In: Israel W. Charney (ed.), The Widening Circle of Genocide [= Genocide: A Critical Bibliographic Review, v. 3]. New Brunswick, NY: Transaction Publishers, p. 165-191.

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183183Para quem são os direitos humanos?

Todas as crianças nascidas dentro ou fora do matrimônio gozarão da mesma proteção social”.3 Mas a Turquia, que é um dos membros fundadores das Nações Unidas, tem violado os direitos humanos das crianças curdas.

Muitas delas vêm sendo encarceradas sob a acusação de envolvi-mento com atividades políticas e sofrem diferentes tipos de abusos, incluindo os sexuais, perpetrados tanto pelas autoridades carcerá-rias, quanto pelos presos comuns, com quem dividem as mesmas celas, não obstante a Convenção das Nações Unidas sobre os Direi-tos das Crianças, declarar no art. 37 que “toda criança privada de sua liberdade ficará separada dos adultos”.4 Por sua vez, o de núme-ro 34 enfatiza que o Governo deve defendê-las de toda e qualquer exploração e abuso sexual.

Ainda que o governo turco não esteja se importando com os direi-tos humanos dos jovens curdos, o primeiro-ministro Recep Tayyip Erdoğan enviou mensagens de solidariedade aos participantes de um congresso internacional,5 organizado pelo Parlamento e pela Polícia Nacional Turca, que contou com o apoio da Unicef e ocorrido em abril/2009, em Ancara. O evento, intitulado “As crianças em conflito com a Lei”, discutiu a vulnerável situação das crianças, que precisam de proteção. É absolutamente curioso notar que um dos pontos deba-tidos foi exatamente as causas que as colocam em perigo naquele país!

Outros ministros turcos também enviaram mensagens de apoio à organização do congresso e Köksal Toptan, presidente da Assembleia Nacional Turca, afirmou que o assunto é um dos problemas sociais mais importantes, cuja solução já está sendo buscada. No entanto, as autoridades turcas parecem esquecer que o próprio Estado é o responsável por diferentes tipos de violência contra suas crianças, já que várias foram mutiladas, torturadas e estupradas nas prisões. Outras foram mortas pelo exército e pela polícia turca, casos de Ceylan Önkol e Uğur Kaymaz,6 ambos com 12 anos à época de suas mortes. Todo esse contexto nos faz perguntar: quem são as crianças que os ministros turcos apoiam e defendem? Obviamente não são as

3 Declaração Universal dos Direitos Humanos. Disponível em: <http://portal.mj.gov.br/sedh/ct/legis_intern/ddh_bib_inter_universal.htm>. Acesso em: 15/12/2012, [grifo meu].:

4 Convenção das Nações Unidas sobre o Direito das Crianças. Disponível em: <http://www.unicef.org/brazil/pt/resources_10127.htm>. Acesso em: 15/12/2012.

5 Un simposio internacional sobre los niños en conflicto con el derecho, Unicef, 11 de Mayo de 2009. Disponível em <http://www.unicef.org/spanish/infobycountry/Turkey_49636.html>.

6 As idades dessas crianças são desencontradas. Algumas fontes falam em 12, 13 ou até 14 anos.

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184184 Veronica de Jesus Gomes

curdas. Para quem são os direitos humanos? Infelizmente não são para todos os cidadãos daquele país, como bem sublinhou o tio de Kaymaz: “Nós não somos cidadãos deste país? É nosso pecado ser-mos curdos? Queremos justiça, mas aqui a justiça é apenas para algumas pessoas”.7

É uma grande contradição porque a Turquia é membro da Unicef,8 uma organização que tem como meta proteger as crianças. Mas, in-felizmente, o Estado turco não “tolera as crianças curdas. Todos os dias muitas são presas, ainda que sejam inocentes”, disse uma tes-temunha. O que é ainda mais trágico é que todos esses atos de vio-lência não recebem muita atenção por parte da mídia internacional.

A primeira vez que soube que havia um grande número de crian-ças e jovens curdos nos cárceres turcos foi em 2010. Recordo bem o quanto fiquei impressionada quando vi muitas de suas fotos. Não sabia muito sobre os curdos e sua realidade. Aprendi um pouco por minha própria iniciativa e, mais tarde, estudei algo na universidade. Mas nada pode se comparar à experiência que tive com meus amigos na internet. Um deles, Ronay, tinha apenas 23 anos quando começa-mos a conversar sobre a questão curda, mas costumava dizer que queria mudar o mundo.

Esse jovem me apresentou à violação dos direitos humanos dos curdos pelo regime turco e ao preconceito dos diferentes membros daquela sociedade. A despeito do art. 30 da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito das Crianças determinar que as de diferentes etnias, religião e grupos linguísticos têm o direito de se expressar em seus próprios idiomas e praticar suas religiões, muitas enfrentam problemas por causa disso. Ele também denunciou a violência psico-lógica cometida por alguns professores contra as crianças e o silên-cio da mídia sobre o assunto.

Estas são as palavras do jovem Ronay: “Todas as associações estão contra nós. Os jornais, os policiais, os soldados, as escolas, (...). Sempre apoiam quem tem poder. A imprensa está ao lado dos fascistas. Eles nos caracterizam como terroristas, mas nós não somos terroristas. Queremos viver como as outras pessoas. Mas muitos curdos inocentes têm sido mortos e a imprensa costuma esconder toda a verdade”. Além

7 RAINSFORD, Sarah. Turkish Kurdish demands justice, BBC News. June, 14th, 2007. Disponível em: <http://news.bbc.co.uk/2/hi/europe/6751527.stm>. Sobre sentenças arbitrárias recebidas por curdos que protestam, dentre outras acusações, vale conferir.

8 Unicef Newsline. Disponível em: <http://www.unicef.org/infobycountry/Turkey.html>.

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185185Para quem são os direitos humanos?

disso, continua, “os jornais estão ao lado dos soldados. Então eles per-suadem todas as pessoas”. Ainda segundo o curdo, a mídia turca con-trola a sociedade, mascara a realidade curda, levando à crença de que os curdos são terroristas e que não merecem atenção.

Como já assinalado, grande parte dessas crianças e jovens estão encarcerados porque foram incriminados de atividades políticas con-tra o sistema. Em outras palavras, sobre elas recaem acusações de serem membros de organizações terroristas e de fazerem propaganda para elas. Além disso, T.T., uma testemunha de todas essas atroci-dades, afirmou que foi forçado a se tornar um informante da polícia. Como não aceitou, “fui informado de que ficaria preso por 15 anos.9 Não acreditei até que, após um julgamento, fui sentenciado e enviado para a prisão de Kürkçüler E-Type”, em Adana. Lá, foi abusado sexual-mente e torturado pelos policiais. Mas a situação se agravou depois de sua transferência para Pozanti, onde ele e outras crianças e ado-lescentes sofreram diversos tipos de torturas físicas e psicológicas.

Os prisioneiros comuns foram mandados para as mesmas alas para torturarem os chamados “presos políticos”: “Sabíamos que as crianças das alas A-5, B-1 e C-2 estavam sendo estupradas” por eles. De qualquer forma, durante o encarceramento, sempre pensei em Mazlum Doğan e Kemal Pir,10 que nunca se resignaram, ainda que estivessem sob pressão durante a greve de fome que fizeram. Tentei ser tão forte quanto eles foram. Nunca nos acovardamos. Nós nunca vamos desistir”, disse T.T.

Infelizmente esses estupros, dentre outros atos violentos, não acabaram e muitos jovens curdos continuam recebendo esse mesmo tipo de tratamento inumano nos cárceres turcos. A mídia internacio-nal se mantém em silêncio, as autoridades se fazem de cegas e a maior parte deles não se importa com a questão. Como muito bem sublinhou meu amigo Ronay: “Tudo o que precisamos é de amor; tudo o que temos é guerra e lágrimas”.

9 CHOMSKY, Noam. Chomsky Lecture at Istanbul Conference on Freedom of Speech. In: Infoshop News, 27 de out. de 2010. Disponível em: <http://news.infoshop.org/article.php?story=20101027044615383>.

10 Ambos foram membros do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK). Mazlum Doğan (1955, Elazig – 1982, Diyarbakir) foi um dos fundadores do partido. Suici-dou-se na famigerada prisão de Diyarbakir, ateando fogo na cela durante um pro-testo contra as péssimas condições carcerárias. Kemal Pir, por sua vez, era um turco internacionalista, revolucionário, que nasceu em 1952, em Gumushane, e morreu na mesma prisão, em 1982. Para maiores informações: Hunger strike and protest after golpe remembered. Disponível em: <http://en.firatnews.com/index.php?rupel=article&nuceID=567>.

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VIII. memória

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Autor

Claudio de OliveiraJornalista e cartunista.

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Com Antônio granja em Praga

Claudio de Oliveira

No início de 1990, recebi um telefonema de Antônio Ribeiro Granja, dirigente da velha guarda do PCB e representante brasileiro na Revista Internacional, cuja sede era em Praga.

O periódico que congregava os PCs de todo o mundo era editado no Brasil com o título Problemas da Paz e do Socialismo.

Convidava-me ele para uma cerimônia de despedida na sede da re-vista. O prédio onde funcionava a redação havia sido um seminário da Igreja Católica, uma construção do século 19, estilo neoclássico e, se bem me lembro, tinha cinco andares. O imóvel foi confiscado após a II Guerra Mundial. A alta hierarquia católica havia sido acusada de cola-borar com os nazistas, principalmente na Eslováquia. Mas, com o fim do comunismo em 1989, o clero pedira o prédio de volta. O movimento comunista internacional estava, então, sob ameaça de despejo.

Granja foi um dos fundadores da Contag, a Confederação dos Trabalhadores na Agricultura, que buscava organizar os trabalhado-res rurais em sindicatos no pré-64. Com o golpe, exilou-se em Mos-cou. Voltou ao Brasil com Anistia de 1979. Fazia um ano que estava na então Tchecoslováquia. Se virava com o idioma russo, mas, por isso mesmo, muitas vezes não era muito bem tratado pelos tchecos.

Eu era estudante na Escola Superior de Artes Industriais de Pra-ga. Outro brasileiro que lá chegara, Marcelo Paim, se preparava para prestar exames na Academia de Artes Dramáticas. Militantes do Par-tidão, assim que chegamos ao país fizemos contato com Granja, que sempre nos recebeu com simpatia. Morava com a mulher e uma fi-lha, num pequeno apartamento no subúrbio de Praga.

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190190 Claudio de Oliveira

Durante o evento na Revista Internacional, houve uma cerimônia de despedida de dois representantes, o do PC brasileiro e do PC fin-landês, que estavam de volta aos seus países. Antes do coquetel e das despedidas propriamente, houve uma reunião do conselho edito-rial da revista, da qual participei ao lado de Granja, como convidado. No comando da reunião, o representante do Partido Comunista da União Soviética. Com fones de ouvidos para tradução simultânea, sintonizamos no canal em espanhol.

A pauta era a continuidade ou não da revista, uma vez que, segun-do o soviético, o “nosso movimento vem mudando suas característi-cas”. Dizia que alguns partidos ali haviam deixado de ser comunistas para se tornarem socialistas, dando o exemplo da Bulgária, cujo PC passou a se chamar Partido Socialista. E também da Polônia.

Ao que me pareceu, na intervenção inicial do representante da URSS, os soviéticos intentavam fechar aquela publicação e fazer uma nova revista, politicamente mais ampla, que, além dos PCs, nela também participassem outras correntes socialistas. Lembrei-me da revista que havia comprado, na sede do PCB no Rio de Janeiro, antes de viajar para Praga, em 1989, cujo título era “O socialismo do futu-ro”. Nela escreviam expoentes de diferentes correntes socialistas e social-democratas do mundo.

Textos do presidente da Internacional Socialista, Willy Brandt, do presidente francês François Mitterrand, do espanhol Felipe Gonzá-les, de diversos italianos, entre eles, o então secretário-geral do PCI, Alessandro Nata, do soviético Mikhail Gorbatchev e do sociólogo ale-mão Ernest Mandel, representante trotsquista. O Brasil estava na revista com um artigo do sociólogo e então senador do PSDB Fernan-do Henrique Cardoso.

Na reunião do conselho da Revista Internacional, o primeiro a co-mentar a extinção do periódico foi o representante do PC cubano, que se opôs tenazmente à proposta dos soviéticos. Lembro-me perfei-tamente de suas palavras:

– ¡Compañeros, ahora más que nunca, hay que sostener la bande-ra de la revolución!

O representante de Cuba defendia a continuação da revista so-mente com os revolucionários, como se definiam os PCs, excluindo dela as correntes socialistas reformistas. Para ele, com a crise do socialismo real, era preciso uma tribuna para defendê-lo.

Naquela reunião, Granja assistia ao debate desolado. O PCB apoiava a política de abertura de Gorbatchev, mas era minoria entre

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191191Com Antônio Granja em Praga

os PCs, especialmente da América Latina. Na comissão latino-ameri-cana da revista, disse-me Granja, suas posições que expressavam a política democrática do Partidão eram tidas como “revisionistas” e pouco consideradas.

Ele era um dos poucos a defender uma solução política e negocia-da para a guerra civil em El Salvador, que se arrastava há anos. Muitos dos outros PCs da região eram favoráveis a uma solução mi-litar, isto é, à continuidade da inviável luta armada dos guerrilheiros da Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional. Felizmente, pre-valeceu a primeira solução no pobre país da América Central.

Lembro-me de que outras poucas intervenções se seguiram na reunião do conselho editorial. Mas, não houve um debate acalorado, afinal eram os soviéticos que mantinham a revista e se eles não esta-vam dispostos a continuar com ela e nem havia quem a bancasse, a probabilidade era de que a revista fechasse. Comentei essa impres-são com Granja.

– É por isso que já estou indo embora. Isto aqui não tem mais futuro, segredou o calejado dirigente do PCB.

Aquela foi talvez uma das últimas reuniões da Revista Internacio-nal. Ao terminar o breve debate, tive a sensação de que assistia ao momento final daquilo que foi um dia a Internacional Comunista, instituição fundada em 1919 pelos líderes da revolução russa de 1917, entre eles Vladimir Lênin, com o objetivo de unir a ação dos PCs em termos mundiais.

A Internacional Comunista, também chamada de Komintern, na abreviatura em russo, foi fechada em 1943 por Josef Stálin, num de-monstração de boa vontade com os aliados na II Guerra Mundial - Es-tados Unidos e Reino Unido. Em seu lugar, foi criado, em 1947, o Kominform, um comitê de troca de informações entre os PCs com sede em Belgrado e depois Bucareste. Seu representante brasileiro foi, por muito tempo, o jornalista Osvaldo Peralva, que, coincidentemente, eu viria a conhecer em Praga, em 1991, como correspondente do jornal Folha de S. Paulo. O Kominform foi fechado, em 1956. Tempos depois, foi criada a Revista Internacional, de debates entre os PCs.

Deixamos o prédio da revista após o coquetel de despedida. Granja voltou ao Brasil em 1990 e eu retornaria em 1992. Nesse ano, a União Soviética se extinguiria, os PCs na Europa e no mundo entrariam em declínio. Granja continuou no Partidão, agora denominado Partido Po-pular Socialista, o PPS. E nunca mais tive notícias da revista.

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Acho que Granja – que, no dia 30 de julho de 2013, completa 100 anos de existência, mas ainda lúcido e dando continuidade a seus 79 anos de militância – estava certo na sua avaliação quanto ao futuro de uma revista sectária. Mas talvez uma que reunisse diferentes for-ças democráticas e social-reformistas do mundo fosse útil para dis-cutir saídas da atual crise de civilização. Fica uma experiência histó-rica merecedora de reflexão.

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Ix. Resenha

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Autor

Antonio Fausto do NascimentoAdministrador de empresas, foi dirigente sindical, ativista político e secretário do governo Miguel Arraes, em Pernambuco (1963-1964).

Paulo Freire MelloEngenheiro agrônomo e doutor em Desenvolvimento Rural.

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o instigante marxismo político de Armênio guedes

Paulo Freire de Mello

Recém-lançado pela Fundação Astrojildo Pereira e a Editora Contraponto, organizado e prefaciado por Raimundo Santos, este livro traz à luz as ideias de Armênio Guedes, um influente

quadro político do PCB, o Partidão.

De que nos seria útil revisitar textos de um pecebista, escritos entre as décadas de 1950 e 1980, nesta quadra da história?

Neste comentário, não tenho a intenção de resumir a complexida-de e a diversidade de temas desta seleção dos textos de Guedes, e sim, instigado por alguns dos insights que retive em minha leitura do volume, fazer umas poucas referências ao momento político-partidá-rio que vivemos.

Sempre alicerçado na realidade brasileira (evitando, com isso, as amarras de uma possível metateoria marxista), na década de 1950, Guedes propunha a ideia de uma frente única como forma de luta de médio prazo por um tipo de governo democrático-reformista, de coa-lizão e anti-imperialista.

A realpolitik de Guedes avançou aos textos da década de 1970 na denúncia da fascistização do Brasil e na exploração das possibilida-des de retomada da democracia com base numa análise detalhada dos conflitos internos e das fissuras do regime de 1964. Diante da ditadura, a estratégia de resistência que ele defendia, naquele tempo difícil de grande repressão, diferenciava-se da visão de outras verten-tes da oposição, que davam como consumado o fechamento do siste-ma político. Guedes propunha o combate à ditadura por meio da

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política, inclusive pela participação nas eleições, um caminho asse-melhável ao da tese gramsciana da “guerra de posições”, como diria ele próprio, depois da anistia, em 1979.

Este livro permite várias reflexões e analogias. A minha vai no se-guinte sentido: estamos há mais de uma década sob um governo que se autointitula de esquerda. Ocorreram alguns avanços, sem dúvida. Mas não foi muito pouco? O que aconteceu com todas aquelas ideias radicais (no bom sentido)? Ao que consta, o Estado brasileiro ainda é (mesmo que nos tempos de Guedes isto não se apresentasse como uma questão central) um monumento ao clientelismo, ao patrimonia-lismo e à corrupção (aliás, aqui está um bom motivo para aliar à teoria marxista o aporte de Weber) e, consequentemente, à ineficiência.

Discursos à parte, isto pouco parece importar diante das infindá-veis articulações eleitoreiras, incluindo a viabilização de importantes (mas limitadas) políticas sociais, demonstrando cabalmente a su-cumbência do PT ao pragmatismo. De outro lado, temos pequenos partidos ideológicos (o que é salutar), porém também alheios à com-plexidade que o Brasil representa no mundo atual, com o agravante do apego a metateorias sem raiz na realidade, ou mesmo a nenhuma teoria, quer dizer, submersos no ativismo, gerando posturas do tipo “a luta por um Estado eficiente é neoliberal”.

Devo registrar que esta situação gerou em muitos militantes de esquerda, entre os quais me incluo, certo sentimento de desencanto político. Sei que este sentimento não nos leva adiante, espero que seja passageiro e que o quadro partidário das esquerdas mude em breve.

O livro que comento é um “puxão de orelha”, pois, quando o le-mos, constatamos a persistência e o otimismo (realista) de um autor situado no período dos anos de chumbo da ditadura. Por isso, ali-menta a esperança de que surja algum partido ou campo de esquer-da que, apoiado em uma boa teoria fundada no conhecimento do país (como no seu tempo o fez Guedes, mesmo utilizando os paradig-mas marxistas-leninistas da época), consiga propor, sem sectarismo e sem fisiologismo, uma “revolução democrática” adequada aos dias atuais. Um movimento de transformações que passa (mas não se li-mita a) pela busca de referenciais republicanos (no bom sentido...), assentados firmemente nos princípios e processos democráticos.

Sobre a obra: O marxismo político de Armênio Guedes. Raimundo Santos (Org.). Brasília: Fundação Astrojildo Pereira; Rio de Janeiro: Contraponto, 2012. 207p.

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gabeira e os caminhos da história

Antonio Fausto de Nascimento

O novo livro de Fernando Gabeira, no estilo de reportagem au-tobiográfica, é um repositório de informações políticas e re-lato histórico dos grupos armados que resistiram à ditadura

militar, iniciada em 1964.

Trata-se de um bom roteiro, até mesmo cinematográfico, a quem se proponha a investigar a formação social brasileira do último meio século, em que pesem outras importantes obras, já existentes. Espe-cificamente sobre as organizações guerrilheiras, vale destacar a ex-celente pesquisa do professor Marcelo Ridenti O Fantasma da Revo-lução Brasileira (Editora Unesp), com extensa referência bibliográfica, entrevistas, nomes e siglas dos cerca de quarenta grupos armados participantes da luta contra a ditadura.

Fernando Gabeira – jornalista, escritor, deputado federal, hones-to, atuante e destemido por quatro legislaturas, ex-candidato a pre-sidente da República, a governador e prefeito do Rio de Janeiro – é um personagem fascinante e carismático, de grande empatia com grupos sociais discriminados de mulheres, jovens, transsexuais, ne-gros, índios, favelados e outras minorias de humilhados e ofendidos. Foi fundador do Partido Verde. É talvez a personalidade pública bra-sileira mais conhecida no exterior, nos meios e fóruns ligados à defe-sa do meio ambiente.

Escritor de talento, recém-chegado do exílio e banimento pela di-tadura, escreveu Que é isso, companheiro? (Editora Codecri), uma crítica dos erros da esquerda, que chegou a vender cerca de trezentos mil exemplares, um sucesso editorial inédito da obra de um ex-guer-rilheiro e preso político. Por toda a década de 1980, lançou uma mé-dia de um livro por ano, além de entrevistas e artigos para jornais e revistas, todos identificados com os anseios das minorias, das mu-lheres e dos jovens.

Em termos ideológicos, chegou à luta social pelo existencialismo, corrente filosófica fundada pelo escritor francês Jean Paul Sartre (1905-1980), que influenciou a esquerda nos anos 1950/1970, par-

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198198 Antonio Fausto de Nascimento

ticularmente a juventude, propunha-se a uma revisão do marxismo clássico, propagou as ideias do “maoismo” e de outras vertentes po-líticas radicais. Em que pese continuar como uma referência cultural importante, o Existencialismo saiu de moda e perdeu a maioria de seus adeptos.

Como em quase toda autobiografia, o autor também comete equívocos. São vagas e imprecisas suas críticas ao socialismo, cuja teoria confessa nunca ter dominado. Também ao antigo PCB, que não aderiu à luta armada, condenou a interferência de Cuba nos assuntos internos do Brasil e veio a expulsar vários quadros, até mesmo da direção nacional, com longos anos de militância, que optaram pelo confronto.

Fundado em 1922, o velho PCB defendeu e praticou a resistência possível nas condições concretas da sociedade brasileira de então, na forma de pleitos salariais e da cidadania, greves, eleições e acor-dos políticos que resultaram na anistia e no fim da ditadura. Tam-bém pagou seu tributo de sangue. Além de presos e torturados, entre os mortos e desaparecidos figuram doze antigos dirigentes, cujos res-tos mortais poderão vir a ser localizados pela Comissão da Verdade. Não quer dizer que não tenha cometido erros, no período que antece-deu 1964, como ter conciliado com o radicalismo de fundo esquerdis-ta e o projeto continuísta do governo federal, ao arrepio da Constitui-ção e das leis em vigor.

No início de seu livro, ora comentado, Gabeira declara: “No mo-mento em que escrevo, ainda estou vivo. Quero dizer que não esgotei meus papéis históricos. Cinquenta anos de vida pública. Não preten-do concluir, apenas fechar um ciclo”. Sábias e doces palavras que nos alegram a todos, seus amigos, familiares e eleitores. Vida longa a Fernando Gabeira e sucesso em seus projetos profissionais e no muito que ainda poderá fazer pela democracia, a justiça social e a regeneração dos costumes políticos em nosso país.

Sobre a obra: Onde está tudo aquilo agora? Minha Vida na Políti-ca, de Fernando Gabeira. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2012. 200p.

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