Redescoberta da Linguagem

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    Universidade de LisboaFaculdade de Letras

    Doutoramento em artes performativas e da imagem em movimento

    REDESCOBERTA DA LINGUAGEM

    COMO  POTÊNCIA

    Antonio de Souza Pinto Guedes52885

    DISCIPLINA:

    História do teatroProf. José Pedro Serra 

    Fevereiro de 2016

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    INDICE

    Introdução 3

    Tragédia 5

    O espaço poético, a palavra 9

    A CALMARIA:o conforto da clara separação entre a ficção e a realidade 12

    Entre ficção e realidade:o texto como sinônimo de teatro 15

    Ainda entre a ficção e a realidade,mas o teatro como uma linguagem mais complexa. 18

    A FALA E A ESCRITA; A ESCUTA E A LEITURA:duas dimensões na construção do sentido 22

    O PRINCÍPIO DE UMA DESCONSTRUÇÃO:ouvindo o canto das Sereias 25

    Retomando as questões 26

    DEPOIS DA CALMARIA, A TEMPESTADEDo conforto da clara separação entre ficção e realidade

    à incerteza da realidade do mundo30

    Pessoa, Mallarmé 31

    Meyerhold, Craig 32

    Por uma arte menor 36

    VALÈRE NOVARINAuma primeira experiência 38

    Falar não é comunicar 41

    O fim 43

    Bibliografia 44

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     Je suis un ignorant. Je me suis cru longtemps sûr du sens des mots, je me suis cru aussi jusqu’à uncertain point leur maître. Mais maintenant que je les ai quelque peu expérimentés , il m’échappe. 

    Pourquoi? Les mot valaient ce que je leur faisais dire, c’est -à-dire ce que je mettais dedans. Mais je n’ai

     jamais pu savoir au juste jusqu’à quel point j’avais raison. 1 

    A questão da linguagem está presente em toda a obra de Artaud; ela está no centro das

    suas preocupações. Para ele é necessário buscar a transformação do teatro e isso signi-

    fica abandonar a sujeição do teatro ao texto e reencontrar a noção de uma espécie de

    linguagem única, a meio caminho entre o gesto e o pensamento.2 Essa transformação

     passaria inevitavelmente por uma outra concepção da linguagem; um entendimento da

    linguagem que atravesse a experiência. O teatro, para Artaud, não estava na precisa co-

    municação de fábulas, mas na possibilidade de se experimentar uma dimensão outra davida, um lugar que está fora do universo cotidiano.

    Essa questão surge a partir da sua incapacidade de utilizar a linguagem articulada de

    forma natural, não pensada3. Ele não encontrava a palavra adequada, seu pensamento

    recusava-se a ser descrito. Mas o poeta nunca deixou, não sem sofrimento, de buscar a

    forma mais precisa para expressar o que se passava em sua cabeça e, na angústia do es-

    forço, ao longo de sua obra –  seja nas cartas, nas peças ou nos manifestos –  Artaud re-

    velava a palavra como um corpo estranho. Seu discurso tinha o aspecto da fala de umestrangeiro que se esforça por falar uma língua que conhece mal. Nessas circunstâncias,

    costumamos ouvir as palavras que dizemos; pensamos na construção da frase. A narra-

    tiva de Artaud parece desenvolver-se sem a naturalidade que faz com que a linguagem

     passe despercebida, quando a utilizamos como um instrumento que comunica significa-

    dos, um instrumento semelhante a uma chave de fenda que é apenas um meio de obter

    um parafuso apertado; como quando temos como foco, não as palavrasapalavras, mas o

    1Sou um ignorante. Durante muito tempo tive a certeza do sentido das palavras, também, até certo ponto,acreditei possuí-las. Mas agora que as experimentei, esse sentido me escapa. Por quê? As palavras va-liam pelo que eu as fazia dizer, ou seja, pelo que eu colocava dentro. Mas nunca pude saber exatamenteaté que ponto eu tinha razão. (Trad. minha) ARTAUD, Antonin. Nouveaux écrits de Rodez. Paris: Éditions Gallimard, 1977, p. 64.

    2 O teatro e seu duplo  – primeiro manifesto p. 94

    3 Je souffre d’une effroyable maladie de l’esprit. Ma pensée m’abandonne à tous les degrés. Depuis le faitsimple de la pensée jusqu’au fait extérieur de sa matérialisation dans les mots.  

    Sofro de uma terrível doença do espírito. Meu pensamento me abandona em todos os níveis. Desde osimples fato de pensar até a sua materialização nas palavras. (Trad. minha)

    ARTAUD, Antonin. Lettre à Jacques Rivière Du 5 juin 1923, in Correspondance avec Jacques Rivière,in L’Ombilic des Limbes, suivi de Le Pèse-nerfs et autres texts. Paris: NRF/Gallimard.

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    que queremos dizer. A palavra para Artaud é, principalmente, forma sonora, intensi-

    dade, ritmo, volume; a palavra, antes de querer dizer, afirma sua presença enquanto pos-

    sibilidade de dizer. Ela se abre para a percepção daquele que a ouve; ela assume sua an-

    tiga (mas sempre presente) força poética4. A palavra, nessa perspectiva, é trágica, por-

    que ela não é aquilo que nos possibilita o domínio do sentido, mas, justamente, a perda;

    não é o meio de apreendermos o pensamento, mas a garantia de que este pode ser lan-

    çado e voar, livremente.

    A epígrafe acima mostra o desejo de Artaud de descobrir o que está dentro, o que está

    no interior da palavra. Lança as perguntas: a palavra fala? A palavra conta? Ela conse-

    gue ter valor pelo sentido que, habitualmente, costumamos colocar dentro dela? Mas,

    ainda nessa epígrafe, Artaud diz que a dúvida quanto ao sentido das palavras surge de- pois que ele as experimenta. Ou seja: quando ele estabelece com as palavras uma rela-

    ção física ou, pelo menos, no presente –  a isso se chama uma experiência – , essas pala-

    vras passam a se mostrar vazias, ocas, buracos à espera de um sentido que as preencha.

    O que seria essa experiência que revela a palavra em sua potência de produção de senti-

    dos? Quando a Linguagem perdeu essa potência para tornar-se instrumento? Em que

    medida, enfim, podemos dizer que essa palavra é trágica?

    O teatro contemporâneo tem sido estudado a partir de uma linha de corte que se tornouindiscutível: a crise do drama na definição de Peter Szondi. Dado que o Drama Clássico

    tornou-se um gênero originário da dramaturgia moderna, é absolutamente compreensí-

    vel. Entretanto, considerando que procuro compreender o que seria uma palavra trágica,

    na medida em que identifico esta palavra na narrativa proposta por autores como Ber-

    nard-Marie Koltès, Samuel Beckett e Valère Novarina, não vejo como não ignorar, por

    um momento, aquela linha de corte e, rompendo-a, revisitar a Antiguidade sob a ótica

    estrutural de Vernant/Vidal-Naquet, principalmente considerando que o Drama Clássicoé um gênero que nasceu, involuntariamente, da tentativa de recuperar a tragédia grega.

    Depois, sob a luz da perspectiva renascentista e da ruptura promovida pelo Simbolismo,

    vou procurar compreender a força e o âmbito da palavra na cena contemporânea.

    4 Uso a palavra poética como uma derivação da palavra grega Poiesis (ποιέω) que significa produção, cri-ação, não necessariamente ligada à criação artística.

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    TRAGÉDIA

    Mesmo não havendo documentos que comprovem a sua existência, gosto muito de pen-

    sar na figura de Téspis como aquele que ‘inventa’ o teatro. Num momento em que as

    manifestações de louvor a Dioniso se davam através de ditirambos, cantos que tinham

    um caráter litúrgico e não artístico, conta-se que Téspis sai do coro e, destacando-se da

    massa homogênea, mostra-se, ao mesmo tempo, diferente –  porque distante –  e terrivel-

    mente semelhante a todos os que se mantiveram no grupo. Nesse afastamento do rito,

    Téspis inventou o personagem: imagem do homem que se distancia e questiona a ati-

    tude do grupo; de fora da imersão dionisíaca, questiona esta imersão; questiona o rito no

    seio do rito. Nasce a tragédia: o lugar onde o homem político (cidadão da polis) entraem tensão com sua dimensão transcendental; o lugar onde as forças dionisíacas, o devir,

    o acaso, o imponderável se veem em tensão com a ordem, com a justiça, com a respon-

    sabilidade, com a preservação da polis. E esse embate se dá no diálogo. Dá-se pela fala;

     pela escolha adequada de cada palavra.

    A tragédia grega trabalha com duas ideias fundamentais: o destino e a justiça. O destino

    é aquilo sobre o qual o homem não tem qualquer ingerência. É a trajetória que os deuses

    determinaram para o personagem. E a justiça, para um grego, é o equilíbrio entre a von-tade divina e a decisão humana. É no desequilíbrio dessa balança, quando tendemos

    mais para um lado ou para outro, que o destino trágico se revela. É sempre no erro que o

    destino se torna visível, porque antes do erro, a trajetória do personagem vem sendo de-

    senhada num ritmo progressivo, cadenciado. Na falha, no erro, a cadência do persona-

    gem é abalada. Ele decai.

    Tragédia é, portanto, o erro inevitável que já estava destinado a ser cometido.

    E todos os anos a cidade vai às Grandes Dionisíacas5 para ver, mais uma vez, o erro do

     personagem mítico. O interesse, portanto, não está nas histórias, pois estas são de co-

    nhecimento de todos. O interesse nas novas tragédias que irão concorrer a cada ano está

    na forma, na composição narrativa, que irá, mais uma vez, cantar o horror da impotência

    5 A cada primavera, realizava-se um concurso dramático do qual participavam apenas 3 poetas apresen-tando, cada um, uma trilogia (três tragédias) e um drama satírico. Durante as Grandes Dionisíacas, inter-rompia-se o trabalho cotidiano e toda a cidade vivia a experiência do teatro. Os concursos desta festa,além de serem encarados como atividade artística, eram considerados uma instituição social ao lado dosórgãos públicos e judiciários.

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    do homem frente à vida. Eis aqui o elemento que, por promover ambiguidades e revela-

    ções do sentido das palavras, vai para além do conteúdo das tragédias: sua estrutura.

    Como todos sabem, os trágicos compunham suas peças a partir do mito, da música e das

     palavras, numa articulação que dimensiona o personagem trágico num tempo que é, si-multaneamente o presente do acontecimento cênico e o passado mitológico. Entretanto,

    essa dimensão temporal mostra-se, em cena, de forma simultânea. Segundo a análise de

    Vernant e Vidal-Naquet6, temos de um lado, o coro, que é uma fala coletiva que repre-

    senta cidadãos e por outro, o personagem trágico, individualizado, que representa um

    herói mitológico. O que nos importa mais aqui é a maneira como é composta a fala de

    cada um destes naipes:

    É a língua do coro que, em suas partes cantadas, prolonga a tradição lírica de uma poesia quecelebra as virtudes exemplares do herói dos tempos antigos. Na fala dos protagonistas dodrama, a métrica das partes dialogadas está, ao contrário, próxima da prosa. No próprio mo-mento em que, pelo jogo cênico e pela máscara, a personagem trágica toma as dimensões deum desses seres excepcionais que a cidade cultua, a língua a aproxima dos homens.7 

    O coro, formado de cidadãos contemporâneos da plateia, canta o passado heroico do

     personagem que, por sua vez, evoca, em sua imagem, uma figura do passado, mas a

    construção da sua fala se assemelha à do cotidiano da plateia. Mais do que as histórias, é

    a estrutura da peça que, ao mesclar a fala e o canto, promovendo a mistura de um tempo

    mítico com o presente, realiza o efeito trágico. Para acentuar essa ambiguidade, estas fi-

    guras –  o coro e o personagem –  ocupavam espaços claramente demarcados no teatro:

    os personagens se limitavam à skene e o coro desenvolvia sua dança e seu canto na or-

    chestra. Ou seja: pela fala, vemos passado e presente em cada um desses espaços.

    Importante ressaltar que os versos gregos não têm rima. Como a fala é organizada a par-

    tir de sílabas longas e curtas, o resultado é uma composição musical. Ainda buscando

    compreender o uso da palavra na estrutura cênica da tragédia, é fundamental lembrar

    que no século V a.C., esta tensão entre o mundo mítico, regido pelos deuses e o mundo

     político, definido pelos homens precisa justamente construir um ponto de equilíbrio en-

    tre essas duas forças: a justiça.

    O vocabulário jurídico está em formação. As palavras ainda estão repletas de ambigui-

    dades, produzindo sentidos muitas vezes contraditórios. E os dramaturgos, apropriando-

     6 VERNANT, Jean-Pierre and VIDAL-NAQUET, Pierre. Mito e Tragédia na Grécia Antiga, Vol. 1. São

    Paulo: Brasiliense, 1972, p. 27.7 Idem. Ibidem, p. 28.

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    se desse fato, trabalhavam no sentido de extrair da imprecisão das palavras a falha trá-

    gica do personagem8. Essa ambiguidade está no cerne da produção do efeito trágico.

    Sem suspense –  pois todos já conheciam o final da história –  o público podia perceber o

    momento em que o personagem erra por sua própria fala. A tragédia brota de sua boca...

    e o público é cúmplice deste momento. Quando Édipo, logo no início da tragédia, anun-

    cia qual será a punição do assassino do rei, a plateia já sabe onde sua investigação che-

    gará. Agamêmnon, ao ceder ao oráculo e à opinião pública e permitir que sua filha Ifi-

    gênia seja sacrificada, torna inevitável seu assassinato por sua mulher, Clitemnestra.

    Creonte, ao decretar a lei que impedirá o sepultamento de Polinices, determina, a partir

    desse momento, seu destino. A palavra na tragédia, uma vez proferida, traz, nela

    mesma, a ação. A palavra não descreve o percurso trágico, ela própria é trágica. Mais do

    que se referirem a algo ausente, as palavras são o chamado, a evocação, elas trazem à

     presença. Ou seja, a linguagem na tragédia não é uma ferramenta de descrição de algo

    que está ausente, ela atravessa o homem. E essa palavra trágica atravessa o personagem

    à vista de todos, porque só o público tem consciência de todos os sentidos que as pala-

    vras colocam em jogo na cena; só ele percebe a partir da sonoridade das palavras, outros

    sentidos fora do alcance do personagem.

    O conceito de indivíduo deste momento grego é também bastante elucidativo e revela

    uma dimensão na construção das palavras e na relação dele com o mundo inteiramente

    diferente do nosso tempo. Não se pode ler a tragédia pelos olhos de um sujeito que

     busca justificativas psicológicas nas atitudes dos personagens. Para os gregos, seu des-

    tino é determinado pelos deuses e, portanto, o conceito de livre arbítrio não pertence ao

    seu universo. Esse conceito bastaria para estabelecer parâmetros muito específicos na

    compreensão do sujeito grego, entretanto, é preciso somar a ele o fato de o indivíduo

    não reconhecer seus desejos como força de sua interioridade. Um grego, ao dizer que

    8 “... os trágicos gostavam de usar termos técnicos do Direito. Mas, se utilizam esse vocabulário, é para jogar com suas incertezas, suas flutuações, sua falta de acabamento. [...] é também, para traduzir osconflitos entre os valores jurídicos e uma tradição religiosa antiga...” (Idem. Ibidem, p. 30)

    “As palavras trocadas no espaço cênico têm, portanto, menos a função de estabelecer a comunicação en-tre as diversas personagens que a de marcar os bloqueios, as barreiras, a impermeabilidade dos espíri-tos, a de discernir os pontos de conflito.” (Idem. Ibidem, p. 35)

    “Assim, para Antígona, nómos designa o contrário daquilo que Creonte, nas circunstâncias em que estácolocado, chama também de nómos [...] As palavras trocadas no espaço cênico, em vez de estabelecer acomunicação e o acordo entre as personagens, sublinham, ao contrário, a impermeabilidade dos espíri-tos”. (Idem. Ibidem, p. 104)

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    sente fome, constrói uma frase na qual é a fome que toma conta dele; ao se apaixonar,

    diz que é tomado por Eros; ao desejar vingança, é guiado por Nêmesis.

    A tragédia se faz na linguagem que o poeta constrói visando o acontecimento cênico.

    Visto como o erro trágico está ligado à linguagem, pode-se dizer que a tragédia é umfato linguístico, pois é determinada pela palavra. Uma palavra ambígua, imprecisa, cujo

    verdadeiro sentido só poderá ser conhecido no final de sua elocução. Tal como Artaud,

    se o personagem trágico considerava, no princípio, que era dono das palavras que ele

     proferia, ao final da tragédia, após ter experimentado a força da palavra que ele mesmo

     proferiu, percebe que o sentido escapa, ultrapassa sua capacidade de perceber, a priori,

    todas as possibilidades de sentido. E a palavra se volta contra ele e atravessa-o.

    Trata-se de uma concepção de linguagem que não conta, não relata; uma linguagem cuja potência comunicativa não se coloca, servilmente, em função da fábula; linguagem que

    atravessa aquele que fala e, sem se revelar plenamente, mostra-se como enigma, qual es-

    finge, destruída por Édipo, que se volta contra ele sob a ação destruidora de seu próprio

    nome: oi dipous.9 Palavra que, sem que Édipo perceba, transforma-o na resposta do

    enigma: o homem. Palavra que se torna destino quando, em seu primeiro discurso à ci-

    dade, pronuncia sua própria sentença, sem o saber: o desterro.

    Mas o público percebe todos esses sentidos,

    Artaud nos coloca, portanto, uma questão relativa à linguagem. E é sobre ela que a tra-

    gédia vai se debruçar, jogando com as palavras e suas sonoridades, revelando que o des-

    tino dos homens é delineado pela linguagem. Sob a máscara do acaso, a linguagem é

     poesia, potência de sentido; é possibilidade de existência do homem e do mundo.

    9 Em sua trajetória, Édipo vai da glória à desgraça. Fugindo da realização da profecia que o levaria a ma-tar seu pai e casar com sua mãe, Édipo depara-se com a Esfinge que, desafiando a cidade de Tebas, de-vora os cidadãos que não conseguem decifrar seu enigma: qual o ser que possui quatro pernas pela ma-nhã, duas à tarde e três à noite? Édipo desvenda o segredo: o homem, pois é quem engatinha quandocriança, sustenta-se sobre duas pernas na idade adulta e necessita do apoio de uma bengala na velhice.Mas as palavras já anunciam sua trajetória trágica. Em grego, a esfinge enumera as idades do homem:dípous, trípous, tetrapous... Em grego, Édipo transliterado para nosso caracteres torna-se Oidípous.Édipo, portanto, quase pode dar seu próprio nome como resposta ao enigma: Oi-dípous. ”. (Idem. Ibi-dem, p. 104 - 137)

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    O ESPAÇO POÉTICO, A PALAVRA

    “ A poesia é a linguagem segundo a qual deus escreveu o mundo. Disse o meu pai. Nós não somos mais do que a carne do poema. Terrível ou belo, o poema pensaem nós como palavras ensanguentadas. Somos palavras muito específicas, com aterna capacidade da tragédia. A tragédia para o poema, é apenas uma possibili-dade. Como o humor momentâneo. Eu perguntei: posso chamar a vida de poema.Ele respondeu: podes chamar a vida de poema.”10 

    Quando encenei O marinheiro, de Fernando Pessoa, duas questões me orientaram: a

    convivência entre a realidade e a ficção –  tema da peça –  e a potência da palavra en-

    quanto criadora de mundos. Na peça, ao velar uma jovem, três mulheres mergulham de

    tal maneira no universo ficcional que, ao fim, não conseguem saber se imaginam a exis-

    tência de um marinheiro que, para preencher sua solidão, inventa toda uma cidade, ou senão passam de invenção do marinheiro. As dimensões da realidade e da ficção, tão cla-

    ramente compreendidas como espaços que se excluem, tornam-se totalmente indissociá-

    veis pela palavra poética. Tal como na tragédia, que, pela composição da peça, instaura,

    no tempo do espetáculo, a coexistência do tempo mítico e o da Polis, em O marinheiro,

    a personagem que tem habilidade para contar histórias, escolhe tão bem as palavras que,

    tornando-se também independentes após serem ditas, envolvem não apenas aquelas que

    ouvem, mas também ela própria que as proferiu num mundo onde não há como distin-

    guir o sonho da vigília. A palavra instaura uma tal verdade, que as lança, fisicamente,

    nessa dimensão ambígua.

    É essa experiência física, concreta, que Artaud procurava na linguagem. E, atrás dela,

    foi ao México conhecer os Tarahumaras e participar do ritual do Peyote. Voltou de lá

    fascinado; disse ter experimentado um tempo originário; um tempo que só existe nos re-

    latos, uma experiência que só é possível nos sonhos. É preciso estar mergulhado em

    uma consciência-outra para viver essa experiência acordado.11

     

    10 MÃE, Valter Hugo. A desumanização. Porto: Porto editora, 2013, p. 70.

    11 “Num domingo de manhã é que o velho chefe índio me abriu a consciência com um golpe de gládio en-tre o baço e o coração: "Tem confiança, disse ele, não tenhas medo que não vou fazer-te nenhum mal" erecuou muito depressa três ou quatro passos e descreveu no ar um círculo com o gládio agarrado pelo

     punho e para trás, como se quisesse exterminar-me. Se a ponta do gládio me tocou a pele foi de raspão esó me fez deitar uma minúscula gota de sangue. Não senti nenhuma dor mas tive realmente a sensaçãode acordar a uma coisa para a qual eu estava até ali malnascido e orientado de forma errada, cheio deuma luz que eu nunca tinha possuído.”ARTAUD, Antonin. Os Tarahumaras. Lisboa: Relógio d’Água Editores, 2000, p. 12.

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    Muitos rituais têm essa mesma função: experimentar um tempo originário, um tempo

    imemorial, mas que, para além da fé, está num passado distante. As tragédias gregas

     promoviam uma experiência artística –  não era uma experiência litúrgica –  presentifica-

    vam o passado imemorial pelas palavras, pela sonoridade dos versos e pelo contraste

    com o canto. É como se pudéssemos dizer que no teatro, a realidade da plateia se con-

    funde com a realidade dos relatos míticos e, esta experiência ambígua, se produz não

     pela fábula, mas pela estruturação da linguagem. É a composição da tragédia que revela

    uma origem que atravessa o presente afirmando seu vigor. Duas dimensões temporais

    convivem... como em O marinheiro, duas dimensões da vida se encontram na realização

    da palavra.

    Esse tempo imemorial, mítico, confunde-se, hoje, com a ficção, pois a entendemoscomo irrealidade, como algo que não aconteceu realmente. Mitologia, é lenda. Em al-

    gum momento os ritos se tornaram apenas a lembrança de acontecimentos que só po-

    dem ser sustentados pela fé e não pela vivência. Artaud não era um Tarahumara, não

     pertencia àquela cultura, mas pôde vivenciar fisicamente, um tempo mítico. Para ele,

     portanto, há realidade nessa dimensão. O relato de sua visita ao México quer nos lem-

     brar que a dimensão originária, foi esquecida, foi colocada em um lugar seguro: fora da

    realidade.

    Essa tensão entre realidade e ficção, diz respeito muito intimamente à produção artística

    e, especialmente, à experiência teatral, visto que essa só é possível no instante, no pre-

    sente. Maurice Blanchot se refere à separação entre a ficção e a realidade fazendo um

     paralelo entre o canto das sereias e a astúcia de Ulisses:

    Houve sempre da parte dos homens um esforço pouco nobre para desacreditar as Sereias acu-sando-as grosseiramente de mentira: mentirosas quando cantavam, enganadoras quando suspi-ravam, fictícias quando se lhes tocava; completamente inexistentes, de uma inexistência puerilque o bom senso de Ulisses bastou para destruir 12.

    Enquanto as Sereias fossem figuras imaginárias que atraíam quem as ouvia para seus

    domínios, seu canto seria uma ameaça. Ulisses, então, experimenta o enigmático e irre-

    sistível canto: manda seus homens fecharem os ouvidos com cera e amarrá-lo firme-

    mente ao mastro. Assim, com sua tripulação protegida da ação das Sereias, Ulisses,

     preso ao mastro do navio, pode ouvir o canto sem correr risco e, assim, superar o poder

    12 BLANCHOT, Maurice. O Livro Por Vir . Lisboa: Relógio d’Água Editores, 1984, p. 12.

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    mágico das Sereias. Traindo-as astuciosamente ele não se perde seduzido por seu en-

    canto. Sofre, mas não sucumbe. A razão, pela astúcia, venceu.

    Este é o movimento que o Renascimento fez em relação à linguagem: dominá-la subme-

    tendo-a a uma função descritiva. E foi porque a linguagem tornou-se um instrumentoque visava ao domínio do conhecimento sobre o mundo, que Artaud se entregou à estra-

    nheza das palavras. Porque para ele, a palavra não era um mero instrumento de soma de

    conhecimentos e Ulisses não passava de um covarde astuto. Para ele a palavra era um

    enigma e a busca pela experiência da linguagem visava a reinstaurar um espaço poético

    que comportasse as duas dimensões... o sonho e a vigília. No caso do teatro, o espaço

     precisa ser ocupado por um canto entoado com palavras; tem de ser uma imersão, na-

    quilo que Blanchot chamou de encontro com o imaginário

    13

    . O espaço poético é um lu-gar que –  ao contrário do saber compreendido como soma de conhecimentos a partir da

    segura descrição –  mostra-se como o lugar da perda, o lugar da desorientação.

    Aquela leitura de Blanchot do episódio da Odisseia revela o empenho do homem em,

    através da técnica, dominar o que lhe é desconhecido. Pela técnica –  ou, em nosso caso,

     pela linguagem descritiva –  o homem procura dominar o desconhecido limitando a apre-

    ensão do mundo àquilo que é visível. Foi preciso, portanto, construir uma pedagogia do

    olhar para instaurar esta visibilidade do mundo.

    13 Idem. Ibidem, p. 11- 17.

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    A CALMARIA

    O conforto da clara separação entre ficção e realidade

     Nenhuma técnica preexiste à necessidade de seu uso. Em artes, há uma vertente que cos-

    tuma dar uma importância equivocada às técnicas. É que esquecem que elas são ferramen-

    tas e não o pensamento. É verdade que é possível depreender da técnica o conceito que a

    forjou, mas ela própria, por não ser um domínio particular, é algo que se pode ensinar com

    o objetivo de fazer (ou dizer) de uma determinada maneira. Ela torna um pensamento rea-

    lizável, representável, mas também limita esse pensamento àquela maneira de dizer  ou fa-

    zer. Se o Renascimento nos presenteou com a linguagem tornada ferramenta de comunica-

    ção, nos proveu também de um olhar com um foco em um ponto muito definido.

    Uma linguagem ordenada pressupõe uma pedagogia do discurso. Uma boa descrição do

    mundo, pressupõe uma pedagogia do olhar. Ao mesmo tempo que a linguagem escrita

    se tornou, pela elaboração das regras gramaticais, uma ferramenta que visava à descri-

    ção do pensamento, na pintura o caminho para a representação do mundo também foi

    elaborado. Toda época constrói uma forma simbólica de apreensão do espaço adequada

    a uma concepção do visível e do mundo e, atendendo à demanda de seu tempo, no sé-

    culo XV, os arquitetos, escultores e pintores Filippo Brunelleschi (1377-1446) e Leon

    Battista Alberti (1404-1472) sistematizaram e codificaram a técnica da perspectiva li-

    near que permite a representação de um espaço tridimensional numa superfície bidimen-

    sional.

    Levando-se em consideração que a principal marca do Renascimento era a percepção

    que o homem tinha de si próprio no centro de tudo, a perspectiva linear possibilitou que

    a pintura, o desenho e a gravura pudessem representar o mundo a partir da imitação de

    como ele era visualmente percebido. E, assim como aconteceu com a linguagem, a

    construção da imagem também foi submetida a uma unidade, construída a partir de um

    conjunto de regras. A matemática e a geometria exerceram grande influência na elabo-

    ração da perspectiva linear. Essas disciplinas tornaram-se a principal ferramenta para a

    representação pictórica que desejava construir uma imagem do mundo, isenta de “ruídos

    visuais” que não importassem para o tema representado. O ponto de fuga orientava o

    ajuste de foco para o olhar do espectador propiciando uma visão globalizante sobre o

    quadro. Assim, o observador podia apreender a totalidade da imagem, percebendo todos

    os elementos simultaneamente.

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    Para além da clareza, a técnica da perspectiva linear era um instrumento que proporcio-

    nava uma ilusão de profundidade numa superfície bidimensional; e era para o fundo da

     pintura que o observador era atraído, para dentro de uma dimensão que estava separada

    da realidade pela moldura. Sendo a imagem representada uma cópia do mundo, podia-se

    dizer que essa imagem ficcionada pelo pintor a partir de uma imitação, resultava numa

    cena que, mesmo não estando ali onde a víamos, mostrava-se como se lá estivesse real-

    mente. A moldura do quadro funcionava como uma espécie de janela através da qual se

     podia ver uma ilusão do mundo.

    Mas o entusiasmo produzido pela ilusão não se limitava ao domínio da técnica. A partir

    do Renascimento, a arte ocupou um lugar de reflexão sobre o mundo na medida em que

    deixava de ser mera reprodução. O status do artista se elevou na relação com a socie-dade. Se, antes, era visto como mero artesão que dominava um modo de produzir, a par-

    tir do século XVI ele passa a ser considerado um teórico, um pensador. Academias fo-

    ram criadas para garantir uma formação científica (geometria, anatomia e perspectiva) e

    humanística (história e filosofia) ao artista. Academias de Belas Artes.

    Sendo este um momento de resgate da Antiguidade, a orientação estética do Renasci-

    mento visava, a partir da leitura da Poética, de Aristóteles, à imitação da natureza. Para

    o filósofo grego, é próprio da tragédia apresentar, em cena, o homem idealizado, ouseja, melhor do que é na realidade. O herói deve ser apresentado num âmbito fora do co-

    tidiano do espectador.

    Se a tragédia é imitação de homens melhores que nós, importa seguir o exemplo dos bons re-tratistas, os quais, ao produzir a forma peculiar dos modelos, respeitando embora a semelhança,os embelezam. Assim também, imitando homens violentos ou fracos, ou com tais outros defei-tos de carácter, devem os poetas sublimá-los, sem que deixem de ser o que são.14 

     Neste enunciado está a origem do conceito das Belas Artes e a ideia de representar o ho-

    mem idealizado tanto em seu caráter bom quanto no mau, nos leva a pensar numa imita-ção da natureza que não está no mundo real, mas em algum lugar de um mundo ficcio-

    nal. As Belas Artes, portanto, procuravam a realização de um mundo ficcional que, de

    alguma forma, servisse de modelo e, ao mesmo tempo, apaziguasse os defeitos e desa-

     justes que víamos no mundo real e em nós mesmos. Um mundo inventado, com perso-

    nagens fictícios, mas com uma aparência de realidade.15 

    14 Aristóteles. Poética. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 2003, p. 124.15 

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    O Renascimento e seus desdobramentos até o fim do século XIX construíram um para-

    digma sustentado pela ideia de separação entre o espaço da realidade e o espaço da ou

    ficção. Essa separação foi o resultado do projeto de sujeito que, colocando o homem no

    centro do mundo, levou-o a perceber-se capaz de apreender tudo à sua volta. Ele passou

    a ter a primazia sobre o mundo, exatamente porque tinha, à sua disposição, a linguagem

    que que se tornou sinônimo de escrita. E o mundo é aquilo que se pode descrever.

    Retomo aqui uma frase da citação de Artaud no início desta narrativa: “ Durante muito tempo

    tive a certeza do sentido das palavras, também, até certo ponto, acreditei possuí-las. Essa

    frase diz respeito justamente a este momento em que o homem se via capaz de apreender

    tudo porque, tendo a linguagem como instrumento, podia descrever tudo o que vê. O pensa-

    mento, transformado em um discurso científico, adquiria total independência sobre o mundo,que passava a ser medido a partir do visível e, portanto, descritível. Assim, a escrita revelou

    uma interpretação do mundo e, junto com ela, a perspectiva linear, na pintura, protagonizou,

    ao longo dos próximos séculos, para além do Renascimento, a representação do olhar sobre

    tudo. Um olhar que cria uma cópia do mundo que está separada do mundo real pela moldura

    do quadro, moldura que se torna uma fronteira entre o real e o imaginário.

    Está instaurada a separação entre ficção e realidade.

    ***

    O Renascimento promoveu uma revolução na produção e veiculação do conhecimento

    humano e a técnica da perspectiva proporcionou uma nova era na representação da visu-

    alidade do mundo. Entretanto, como Francastel reitera sempre,

    ... não deve pensar-se, como é hábito fazer-se, que as invenções, a partir do momento em quesurgem, vão transformar imediatamente o mundo. Não se pode dizer que quando os artistas co-meçaram a utilizar a perspectiva linear, a arte tenha mudado. Ou que isso tenha sido um pro-gresso inquestionável. Tal ideia é completamente falsa. Em primeiro lugar, foram precisas

    Em 1650, o Papa Inocêncio X,quando viu terminado o seuretrato pintado por Velásquezexclamou, um tanto desconcertado:Troppo vero! 

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    cinco ou seis gerações para que os artistas aderissem à fórmula da perspectiva, e depois, pode-mos constatar que, ao fim de um certo tempo, a fórmula atingiu seu esgotamento.16 

    Buscando dar a dimensão desta revolução –  não se constrói uma nova visualidade em

     pouco tempo –  ao pensarmos sobre esse período a partir dos dias de hoje, é impossível

    não perceber que vivemos um momento de ruptura tão importante quanto aquele, seja

    sob o aspecto da difusão do conhecimento, seja do ponto de vista da visualidade. Se o

    século XVI apresentou ao mundo a imprensa, criando a possibilidade de difundir e ar-

    mazenar conhecimento, possibilitando, para além dos textos, o estudo sobre mapas, es-

    quemas, gravuras de botânica e inúmeras possibilidades para a difusão científica, hoje,

    vivemos a virtualidade da técnica digital, dos veículos de comunicação que possibilita

    as buscas e as transferência de informações em tempo real. E esta velocidade se estende

    também para uma maior possibilidade de pontos de vista simultâneos, produzindo umanova visualidade.

    Se a perspectiva linear produziu na pintura, com grande precisão, a separação entre a re-

    alidade e a ficção determinando o modo de representar ao longo de vários séculos, ao

    trazer essa reflexão para minhas preocupações, penso sobre o ponto de vista da cena

    contemporânea: qual seria a estrutura narrativa atual que refletiria a visualidade e o

    acontecimento cênico nos nossos dias?

    Adio a resposta –  se é que a encontrarei –  para mais adiante. Por agora, preocupo-me

    em recuperar o reflexo dessa revolução na estrutura dramatúrgica e perceber as transfor-

    mações que foram promovidas no acontecimento teatral.

    Entre ficção e realidade, o texto como sinônimo de teatro

     Na dramaturgia, o projeto de retomada da leitura e consequente interpretação da Poética 

    de Aristóteles seguiu o mesmo curso.17 O objetivo era sistematizar a recriação das tragé-

    dias gregas.

    16 FRANCASTEL, Pierre. O espaço teatral na sociedade moderna. In Imagem, visão e imaginação. Lis- boa: Edições 70, 1998, p. 148.

    17 Na Inglaterra, Shakespeare irá produzir sua obra no Renascimento inglês alheio a toda essa discussão.Muitos atores, especialmente na Itália, seguem desenvolvendo uma dramaturgia própria, ligada ao im-

     proviso, e apresentam, em toda a Europa, seus espetáculos de Commedia dell’ arte. Entretanto, procureiconcentrar minha linha narrativa na trajetória do teatro francês, principalmente porque o mote destetexto parte de Artaud para chegar em Novarina, ambos franceses que têm sua obra identificada com aquestão da linguagem em cena.

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    As teorias teatrais do século XVII apresentam uma estranha singularidade: não pretendem in-ventar um sistema novo, fundar uma estética original (mesmo que, na prática, fosse exatamenteaí que se chegasse). Seu projeto comum é analisar e compreender a Poética de Aristóteles eajudar os dramaturgos a colocá-la em prática.18 

    A leitura que os estudiosos franceses fizeram da Poética estava completamente conta-

    minada pelo espírito humanista. E, da mesma forma que a pintura, o teatro foi buscar a

    criação da ilusão baseada na cópia de uma realidade idealizada. Entretanto o teatro apre-

    senta uma particularidade que torna mais complexa essa operação: ele não é uma ima-

    gem estática. Ele acontece no espaço, ao vivo e com atores em movimento. E, para criar

    em cena a ilusão de realidade, para criar aquela dimensão ficcional que a pintura reali-

    zava para além da moldura, era preciso que o público se esquecesse que o que estava no

     palco, para além do arco de proscênio, era uma representação. A técnica da perspectiva

    linear era resultado de um novo e revolucionário conceito, mas esta técnica, que teria

     pleno uso na elaboração dos telões de fundo, não seria suficiente para construir, em

    cena, esta nova representação do mundo. Para buscar alguma veracidade, era preciso di-

    mensionar o novo conceito na composição do texto a ser dito pelos atores; foi necessá-

    rio repensar a estrutura dramática buscando dar aos personagens em cena, uma impres-

    são de que estavam agindo no presente, sem permitir que o público percebesse que ha-

    via uma narrativa que precedia à cena e que construía a fábula.

     Na busca da retomada da estrutura grega, uma nova narrativa começava a se construir.

    Todo componente épico –  como o coro, por exemplo – , por sugerir uma voz exterior à

    ação, foi eliminado em função da criação da ilusão de que a cena se desenrolava no ins-

    tante em que era vista. A voz do autor deveria ser diluída nos diálogos que, inclusive,

    seriam a única forma de apresentação, seja dos antecedentes da trama, seja do seu de-

    senrolar. Todas as ações e informações eram reveladas a partir de uma relação inter-hu-

    mana –  o que nos lembra um modo renascentista de estar no mundo.

    De certa forma, a técnica narrativa que desenvolvia a ação através do diálogo encon-

    trava paralelo com o ponto de fuga no desenho e na pintura. Ambos os procedimentos

    visavam à criação de uma ilusão da realidade. Se na pintura, a técnica da perspectiva li-

    near focava o olhar do espectador no fundo da imagem, criando proporções e diferentes

     planos idênticos à visão do homem sobre a natureza, a técnica do diálogo focava a aten-

    ção do público numa relação inter-humana, favorecendo o esquecimento de que havia,

    18 ROUBINE, Jean-Jacques. Introdução às grandes teorias do teatro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores,2003, p. 14.

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    em cena, atores a serviço de um texto. O diálogo levava o público a focar no jogo entre

    os personagens, no centro da ação ficcional. Ainda que os atores se utilizassem da con-

    venção teatral para relacionar sua própria imagem com a do personagem, a técnica dia-

    lógica, que excluía o elemento narrativo, tornava-se instrumento eficaz para construir,

    em cena, a ilusão de um embate real.

    Uma série de regras foram elaboradas visando à aplicação cênica da ilusão da realidade.

    Retirada da Poética, a unidade de Ação, para conferir coerência à cena, terminava por

    exigir a criação das unidades de Tempo e Lugar.19 Em nome da coerência, outro princí-

     pio que nasceu da leitura da Poética e foi determinante: a verossimilhança. A atenção à

    verossimilhança era muito importante porque buscava não permitir que o público des-

    confiasse da veracidade dos acontecimentos. Assim, à cena importava, não o real, mas o possível, o crível. Chapelain dirá que

    O poeta tem o direito de preferir a verossimilhança à verdade, e de trabalhar antes sobre umassunto fictício e razoável do que sobre um verídico que não se conforme à razão. Se for obri-gado a tratar um material histórico dessa natureza, deve então reduzi-lo aos termos da boa apre-sentação, desvinculá-lo da verdade.20 

    Este debate coloca um argumento que precisa ser sublinhado: o verossímil se sobrepunha

    à verdade. A cópia do mundo não ia além do seu aspecto exterior e dos costumes habitu-

    ais. Entretanto, a idealização da ilusão ia muito além da realidade, não apenas melho-

    rando-a, mas tornando-a crível, mesmo que o resultado final fosse uma mentira. É nesse

     ponto que a criação da ilusão se mostrava mais potente: podia-se contar uma mentira para

    que parecesse verdade.

    Se a escrita, a partir do Renascimento, tornou-se o lugar da revelação da verdade e as

    Belas Artes instauraram a separação entre ficção e realidade, no teatro, os acadêmicos

    instituíram o texto, resultado das regras da correta dramaturgia, como sinônimo de tea-

     19 Unidade de ação - A peça é a representação de uma fábula, que deve servir de fio condutor. Podem

    existir numerosos acontecimentos paralelamente a este fio condutor, mas todos devem convergir para odesfecho do fio narrativo.

    Unidade de tempo –  a cena é uma sucessão de presentes. Qualquer referência ao passado é para situar o presente e deve ser apresentado ao público através do diálogo, nunca uma narração ou um flashback. O princípio da elaboração das cenas é o progressivo. Também não se deve fazer o tempo saltar porqueisso revelaria a estrutura narrativa.

    Unidade de lugar –  O espaço é único. Qualquer mudança de espaço na ação em cena pode causar estra-nheza e revelar a teatralidade do palco. Os dramaturgos irão preferir construir a ação sempre em praça

     pública por ser um local plausível de ser habitado tanto por nobres quanto pelo povo.

    20 ROUBINE, Jean-Jacques. Introdução às grandes teorias do teatro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores,2003, p. 34.

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    tro. Um teatro baseado na racionalidade do encadeamento das falas e dos acontecimen-

    tos verossímeis em detrimento dos acontecimentos verdadeiros. Pouca atenção foi dada

    aos demais elementos da cena, pois a construção da ilusão, desde o século XVII, se con-

    centrou na escrita.

    Se na pintura a moldura do quadro tornou-se uma janela que separa o mundo real do

    mundo ficcional, no teatro, o público manteve-se no conforto seguro do mundo real, se-

     parado do palco pelo arco de proscênio, como se este mantivesse as Sereias sob controle

    em seu devido lugar no mundo ficcional. 

    Ainda entre a ficção e a realidade, mas o teatro como uma lin-guagem mais complexa.

    O Classicismo francês, assumindo a tarefa de retomar a tragédia grega e, a partir da

    Poética, copiar o modelo da Antiguidade sem levar em consideração que o homem

    grego compreendia sua relação com o mundo de maneira muito diversa, criou uma nar-

    rativa própria de sua época que se constituiu, ao longo do tempo, como nossa tradição

    dramatúrgica: o drama clássico.

    Essa concepção dramatúrgica foi aprimorada e discutida até a segunda metade do século

    XIX, apesar da dificuldade de assimilação técnica da nova visão do mundo, como

    exemplifica Francastel:

     Não oferece dúvida que, durante os séculos XVI e XVII, se representaram em cenários incom- pletos as peças que, para nós, parecem exigir um teatro como aquele que só veio a ser conhe-cido no século XIX.21 

    E o Realismo, que surgiu na segunda metade do século XIX, foi ao mesmo tempo o

    auge e o ponto de esgotamento do projeto renascentista. Claro, um projeto que se trans-

    formou muito ao longo do tempo. Se, no século XVII, a imitação do homem e do

    mundo tinha como referência um modelo idealizado, o século XIX repudiou esta artifi-

    cialidade para eleger, como modelo, o homem comum e suas relações com a sociedade:

    o trabalhador em seu ambiente de trabalho, problemas e costumes da sociedade em ge-

    ral22. Henrik Ibsen, em sua fase realista, construiu histórias que promoveram verdadei-

    ros debates sobre questões sociais, escrevendo, em seguida, novas peças em resposta às

    21 Idem. Ibidem, p. 19322 

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    críticas recebidas. Em sua obra, ele abriu o debate sobre ética, como em Um inimigo do

     povo ou sobre a hipocrisia social quando a mulher abandona o lar em Casa de bonecas.

    Do aspecto estrutural, a técnica do ponto de fuga continuou sendo a alma da construção

    realista, pois persistia o desejo de criar uma ilusão da realidade, que, nesse momento,

    compreendia a cena como a construção de um “pedaço de vida”, ou seja, uma imitação

    tão perfeita que parecia estar acontecendo, realmente, à revelida do espectador, colo-

    cando-o na posição de intruso em relação à cena pintada ou ao acontecimento cênico.

    Entretanto, o texto não era mais suficiente para sustentar a ilusão de realidade. Na me-

    dida em que novas tecnologias surgiam, como a luz elétrica, por exemplo, maior é a exi-

    gência de perfeição na criação da ilusão e maior a complexidade pois, era possível imi-

    tar, em cena, atmosferas e tonalidades com enorme precisão no uso da iluminação. Ostelões de fundo começaram a incomodar na medida em que as proporções pintadas exi-

    giam que os atores se mantivessem a certa distância, impedindo, com isso, o uso da to-

    talidade da área do palco; portanto, a cena precisou se fechar em gabinetes totalmente

    construídos com mobiliário verdadeiro. A partir desse momento, para que a ilusão de re-

    alidade se tornasse possível, era necessário aplicá-la, para além do texto, em toda a

    composição cênica: atores, cenário, figurinos, luz. A linguagem da cena tornou-se ex-

    tremamente complexa e, não por acaso, foi neste período que surgiu uma nova função

    no teatro: o encenador.23 Sua tarefa equivalia à função de um maestro que coordena a

    equipe de criação que trabalha no sentido de dar à cena uma unidade formal que obe-

    deça ao conceito geral, ou seja, o encenador, naquele momento, trabalhava para que to-

    dos os elementos da cena fossem compostos com o objetivo de construir, de ilustrar, em

    cena, uma ilusão da realidade ou, se preferirem, uma ‘fatia da vida’.

    Escola de Atenas, 1509-11Rafael Sanzio Coletoras de Espigas, 1848Jean-Francois Millet 23 NOTA SOBRE OS PRIMÓRDIOS DA ENCENAÇÃO A PARTIR DO SÉCULO XVIII

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    Com a nova função, vimos a ideia de linguagem da cena se expandir para além das pala-

    vras e ocupar o espaço, a visualidade e a sonoridade do palco tornando-se uma com-

     plexa estrutura de produção de sentidos que envolve o olhar, a escuta e a experiência

     proporcionada pela presença física dos atores que passaram a construir, em seus corpos,

    a ilusão de que não representavam, mas eram os próprios personagens. Todos os ele-

    mentos, portanto, colaboraram na construção da ilusão de que o acontecimento, no

     palco, deveria se confundir com uma ‘fatia da vida’. E, com esse procedimento de ilus-

    trar lugares e situações à imagem destes mesmos lugares no mundo, fora do palco, evi-

    denciou-se o que hoje nos parece óbvio: a linguagem da cena é uma construção.

    ***

     No Renascimento, a linguagem começou a ser organizada gramaticalmente e, ao longodos séculos, fomos nos esquecendo que ela se tratava de uma construção, passando a

    considera-la –  assim como a configuração teatral –  como uma organização “natural” a

     partir da qual, uma vez aprendida, tornava-se um eficaz instrumento de representação do

     pensamento. Na segunda metade do século XIX, por ocasião do auge/esgotamento do

     projeto renascentista, evidenciaram-se duas novas noções: a primeira dizia respeito à

     forma, visto que, a linguagem era uma construção de sentidos que atendia a um modo

    de ver o mundo e este modo estava fundado na cópia, na imitação de um modelo. Issonão significava que, quando se forjava a criação do drama a partir da leitura de Aristóte-

    les, a dramaturgia não se reconhecesse como forma, ao contrário, significava que a es-

    trutura narrativa deste período buscava desaparecer  em função da fábula; a segunda

    noção trabalhava o teatro como uma linguagem que não se limita às palavras. Portanto,

    uma importante contribuição do naturalismo para a questão que viria a seguir está exata-

    mente na afirmação de que o texto era apenas um dos elementos que constituíam a lin-

    guagem do teatro.

    Se a linguagem da cena se expandiu para além das palavras, é preciso pontuar que, no

     Naturalismo, ainda era o texto que determinava o fio narrativo que conduz a criação dos

    demais elementos do espetáculo. Artaud, mais tarde, retomou essa importante constitui-

    ção múltipla da linguagem do teatro, mas derramou toda a sua ira sobre o fato de o

    texto, em pleno século XX, ter continuado hegemônico na relação com os demais ele-

    mentos da cena. Sua queixa se reportava à concepção, constituída no Renascimento e

    que persistia ainda no Naturalismo, na qual a linguagem era um instrumento de comuni-

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    cação e tinha como tarefa descrever ou imitar a realidade. E, se no Naturalismo, a lin-

    guagem da cena trabalhava no sentido da ilustração, na medida em que todos os elemen-

    tos estavam a serviço do texto, Artaud reivindicava uma construção em cena que traba-

    lhasse no sentido de estabelecer, com o espectador, um jogo que possibilitasse seu mer-

    gulho numa dimensão ficcional como se este mergulho fosse uma experiência real, uma

    realidade teatral. Enfim, uma experiência de linguagem.

    Para Artaud era preciso retomar o sentido da linguagem na tragédia grega.

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    A FALA E A ESCUTA; A ESCRITA E A LEITURA: DUASDIMENSÕES NA CONSTRUÇÃO DO SENTIDO

    Retomando alguns parágrafos atrás, vimos que no tempo das tragédias, os poetas com- punham os versos explorando as ambiguidades das palavras. Entretanto essas ambigui-

    dades não se limitavam ao sentido; a sonoridade produzida pelas frases, o ritmo e a se-

    melhança de certos vocábulos ao serem proferidos eram também recursos para produzir

    o efeito trágico. A composição do verso grego a partir da organização de sílabas longas

    e breves produzia, no poema, uma sonoridade e um ritmo característicos e é essa musi-

    calidade que importa ao poeta, é através da fala (e, portanto, da escuta) que ele promo-

    via o efeito trágico.

    Levando em consideração que a escrita não estava difundida na sociedade grega –  só o

    seria muito mais tarde, após o declínio da Grécia Antiga, com o crescimento das cida-

    des, do comércio e com o aparecimento da imprensa no século XVI – , e que a cultura

    era transmitida oralmente de geração a geração, é preciso atentar para uma particulari-

    dade da linguagem falada: o sentido produzido pelas palavras, pelo som, pela textura,

     pelo volume e pelo ritmo, era formado no instante da audição, não podia ser verificado.

    O som captado no instante da fala era decodificado.

    Seria correto afirmar que a apreensão das palavras proferidas pelo ator no instante da re-

     presentação é própria do teatro em qualquer tempo, mas sobre isto falaremos mais adi-

    ante, quando verificarmos que essa é uma particularidade apropriada por Valère Nova-

    rina, potencializando sua escrita. Vamos, por ora, atentar para o fato de que a tragédia

    foi composta como linguagem falada, ou seja, o poeta visava uma recepção auditiva do

    seu texto que não poderia ser confrontada com um texto escrito.

    A escrita determina o registro: a palavra não pode mais mudar; a escuta está ligada à

    memória: está sujeita à percepção e à sucessão de acontecimentos organizada pela lem-

     brança. Ao ler uma história, organizamos o sentido a partir de uma orquestração lógica

    entre os diversos sinais que formam as frases, e estes sinais estão ali, ao alcance dos

    olhos, fixados no papel, em estado de permanência. As palavras faladas envolvem, res-

    soam dentro da cabeça, não exigem que sejam vistas... são como música na qual mergu-

    lhamos e cuja conservação está entregue à memória do ouvinte. Memória que, ao ser re-

    visitada, retorna como realidade experimentada, como lembrança de uma experiência,

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    de uma presença que se tornou passado. Se na relação do leitor com o texto escrito há

    sempre dois, ou seja, há a exigência da interpretação que possibilite a identificação com

    o outro, na experiência da fala, a voz, o ouvir, supõe uma presença, um acontecimento.

    Um envolvimento.

    “...a voz não é especular; a voz não tem espelho. Narciso se vê na fonte. Se ele ouve sua voz,isso não é absolutamente um reflexo, mas a própria realidade”.24 

    A audição, por falta de registro comum, é uma forma precária de comunicação; é uma

    forma que incorpora o equívoco, as crenças, a cultura, a dispersão e, portanto, a falha.

    Ao ouvir, o ruído, a textura e o ritmo das palavras levam os ouvintes a diferentes luga-

    res que não podem ser garantidos pelo sentido das palavras, pois estas estão diluídas em

    múltiplas sonoridades.

    Esta falha, esta abertura para a produção de ambiguidades na comunicação, utilizada

    como recurso na tragédia, foi precisamente a matéria de aperfeiçoamento da linguagem

    a partir do Renascimento. Momento, como vimos, em que o humanismo era o principal

    valor a ser cultivado, aventureiros alargavam os horizontes do mundo empreendendo as

    grandes navegações e descobrindo novos mundos, uma atmosfera otimista abria cami-

    nho para a pesquisa científica e para a revelação de um nobre destino para o homem que

    construía uma boa imagem de si próprio. Se o homem estava no centro de tudo o que

    existe, este era o momento para construir uma ideia de mundo e de poder dizer quem é o

    homem  –  ironicamente, a pergunta-síntese da tragédia grega.

    Impedindo lacunas e ambiguidades na descrição do pensamento, a retomada dos escritos

    da Antiguidade exigiu o estabelecimento de regras para o uso da linguagem como um

    instrumento de organização e difusão das pesquisas. Motivados pelo racionalismo cres-

    cente, pensadores da época concentraram-se em estudos sobre a linguagem enquanto re-

     presentação do pensamento, procurando demonstrar que as línguas obedeciam a princí-

     pios lógicos. Ler, portanto, se tornou uma forma lógica de apreender um pensamento ou

    uma fábula. Ainda que com alguma instabilidade, a linguagem, entendida como veículo

    de um saber racional, se tornou, cada vez mais, um privilégio da escrita. E, não por

    acaso, o século XVI nos legou a técnica da impressão. “ Doravante, a linguagem tem

     por natureza primeira ser escrita”.25 

    24

     ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção, leitura. São Paulo: Cosac Naify, 2014, p. 81. 25 FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes Editora, 1987, p. 54. 

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    A partir do Renascimento, a linguagem foi se tornando cada vez mais um instrumento

    de comunicação; um meio de difundir o pensamento. Foi se afastando daquela origem

    oral e precária para, a partir de regras bem definidas para a construção das narrativas,

    adquirir mais precisão na transmissão de informações. A recepção das palavras deixa de

    ser uma experiência para se tornar o resultado da interpretação do texto escrito. A des-

    crição do mundo, o comentário ou a interpretação se sobrepõe à experiência, seja ela

    mística ou não.

    O que Deus depositou no mundo são palavras escritas; quando Adão impôs os primeiros nomesaos animais, não fez mais que ler essas marcas visíveis e silenciosas; a Lei foi confiada a Tá-

     buas, não à memória dos homens; e a verdadeira Palavra, é num livro que a devemos encontrar.[...]

    O esoterismo do século XVI é um fenômeno de escrita, não de fala. Esta, em todo o caso, édespojada de seus poderes; ela só é (...) a parte fêmea da linguagem, como seu intelecto pas-sivo, já a Escrita é o intelecto agente, o “princípio macho” da linguagem. Somente ela detém averdade.26 

    Com o fim do Renascimento, a partir do século XVII, a tensão entre a fala e a escrita

    desaparecerá completamente.

    As coisas e as palavras vão separar-se. O olho será destinado a ver e somente a ver; o ouvidosomente a ouvir. O discurso terá realmente por tarefa dizer o que é, mas não será nada mais queo que ele diz.27 

    A linguagem escrita passa e ser entendida como um instr umento “natural” da definição

    e descrição de tudo –  o mundo, o homem, suas histórias. Pela escrita, pode-se definir e

    difundir a realidade. A verdade só se revela pela escrita.

    26

     Idem. Ibidem, p. 54-55.27 Idem. Ibidem, p. 59.

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    O PRINCÍPIO DE UMA DESCONSTRUÇÃO: OUVINDO OCANTO DAS SEREIAS

    Ou somos capazes de voltar por meios modernos e atuais a essa ideia superior de poesia e de po-esia pelo teatro que está por trás dos Mitos narrados pelos grandes trágicos antigos [...] ou, en-tão, nada nos resta senão nos entregarmos imediatamente e sem reação, reconhecendo que sóservimos para a desordem, a fome, o sangue, a guerra e as epidemias. 28 

    Artaud desejava retomar uma ideia, segundo ele “superior ”, contida na tragédia grega.

     Não apenas buscar repeti-la, mas retomá-la “ por meios modernos”, ou seja, sob uma

     perspectiva atual. Porque ele via, na tragédia, o princípio da crueldade, tão caro ao seu

     projeto teatral. Ele via na tragédia uma função social voltada à contenção dos desejos

    mais primitivos. Via, através da linguagem, o homem ser devorado por sua palavra, via

    uma certa ideia de poesia que estaria por trás do relato dos mitos e de sua relação com o

    tempo presente. Percebia um certo modo de uso da linguagem bem diferente do que es-

    tamos habituados, mas que precisaríamos redescobrir e não repetir. Artaud queria reto-

    mar algo que havia se perdido na tragédia ao longo do tempo, mas enterrado de vez

    quando os teatrólogos, ao revisitarem a Antiguidade, passaram a considerar o teatro

    como sinônimo de texto. Considerava a mera fruição de uma história uma traição ao

     princípio daquele acontecimento cênico grego no qual o destino do homem se colocava

    em questão. Pela linguagem. Mas não uma linguagem domesticada, subserviente ao ho-

    mem. Artaud se referia a uma linguagem cruel, surpreendente, trágica que, à revelia do

    homem que pronunciava as palavras, voltava-se contra ele obrigando-o a reconhecer sua

    fragilidade e sua impossibilidade de conhecer-se.

    Aquela linguagem sob o domínio do homem elaborada a partir do Renascimento come-

    çou a ser questionada no final do século XIX. Mas, antes de seguirmos com a ruptura de

    um conceito desenvolvido por tanto tempo, cabe uma parada estratégica para juntarmos

    os fios desenovelados até agora.

    28 ARTAUD, Antonin. Tradução, seleção e notas de Cláudio Willer. Acabar com as obra-primas. In Escri-tos de Antonin Artaud . Rio Grande do Sul: L&PE Editores, 1983, p. 73.

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    RETOMANDO AS QUESTÕES

    Tenho, até aqui, levantado muitas questões. Talvez em uma profusão demasiada. Cabe

    agora, uma pausa para agrupá-las antes de seguir com esta narrativa. Se começo estetexto com a fala de Artaud29, é porque há nela o horizonte, o ponto de fuga, se preferi-

    rem, desta reflexão: o que significa experimentar  a linguagem em oposição à utilização 

    da linguagem?

    Procurei, com o auxílio de Jean-Pierre Vernant e Pierre Vidal-Naquet30, a partir de um

    recorte estrutural, entender como poderíamos compreender a palavra trágica na Antigui-

    dade e observei que a falha, a imprecisão, o engano, faziam da palavra um agente ambí-

    guo que determinava o destino do herói. Uma palavra que, escolhida pelo poeta para in-tegrar uma composição, valia tanto pelo seu significado quanto pela sua sonoridade,

    visto que o texto tinha como objetivo ser captado pelos ouvidos. A racionalidade está

     presente em todo momento na composição da tragédia e isso apontava para um traço de-

    terminante na cultura ocidental. E, justamente, é esse traço que se torna mais evidente

    no Renascimento, quando vimos a linguagem ser unificada em seu uso gramatical e di-

    fundida na sociedade. Aquela palavra destinada apenas à escuta (a escrita era um privi-

    légio de poucos), regulamentada e organizada, foi se tornando cada vez mais precisa, perdendo aquela trágica e mágica ambiguidade e, cada vez mais, vai assemelhando-se a

    um instrumento que visa à precisa descrição do mundo. Num período que inaugura o in-

    teresse científico sobre tudo, a linguagem torna-se o meio pelo qual as descobertas po-

    dem ser claramente difundidas.

    É preciso lembrar que o Renascimento é um momento de retomada dos valores clássi-

    cos. Entretanto, diferentemente do desejo de Artaud ao reivindicar essa retomada no sé-

    culo XX intencionalmente “ por meios modernos e atuais”, a operação de leitura da anti-guidade, foi feita involuntariamente partir de uma perspectiva contemporânea. Impor-

    tantes características do homem grego que se perderam no tempo, foram ignoradas: se,

    29 Sou um ignorante. Durante muito tempo tive a certeza do sentido das palavras, também, até certo ponto, acreditei possuí-las. Mas agora que as experimentei , esse sentido me escapa. Por quê? As pala-vras valiam pelo que eu as fazia dizer, ou seja, pelo que eu colocava dentro. Mas nunca pude saberexatamente até que ponto eu tinha razão. 

    30 VERNANT, Jean-Pierre and VIDAL-NAQUET, Pierre. Mito e Tragédia na Grécia Antiga, Vol. 1. SãoPaulo: Brasiliense, 1972.

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     para o grego, por exemplo, o mundo mítico estava intensamente presente no mundo da

    cidade, ou seja, se a realidade era povoada tanto pelo tempo dos mitos quanto pelas de-

    mandas políticas do presente, para o homem do Renascimento e, cada vez mais até o

    início do século XIX, estas dimensões temporais –  passado e presente –  vão sendo deli-

    mitadas e se excluindo. Na pintura e no teatro, o desejo de ilustrar o pensamento levou à

    clara (e espacial) separação entre as dimensões ficcional e real. A invenção da técnica

    da perspectiva linear e sua progressiva utilização foi determinando e formatando uma

    maneira de ver e de representar o mundo que, por sua vez, torna-se o modelo de toda re-

     presentação.

    A linguagem encontrou sua realidade na escrita que, pela sua importância instrumental,

     passou a ser considerada o lugar da revelação da verdade. E a perspectiva linear instau-rou um foco tão claro na representação do olhar sobre o mundo que se mostrou como

    uma verdadeira conquista da técnica e da ciência, construindo uma ilusão de verdade in-

    questionável. Ao longo de três séculos, esta descrição do mundo a partir de um único e

    mesmo ponto de vista tornou-se “natural” e, no desejo de criar uma ilusão de realidade,

    se esquece que este mesmo mundo poderia ser percebido a partir de outras perspectivas

     –  ou por outros modos de olhar. Como lembra Merleau-Ponty, “ A perspectiva da Renas-

    cença não é um “artifício” infalível: não passa de um caso particular, uma data, um

    momento de uma informação poética do mundo que continua depois dela.”31 

    Mas o esquecimento desse fato foi lembrado, na pintura, pelos impressionistas, que co-

    meçaram a duvidar da veracidade do ponto de fuga, começaram a questionar aquela ilu-

    são. Sem abrir mão da técnica da perspectiva linear, Monet experimentou os vários as-

     pectos que a Catedral de Rouen poderia adquirir a partir de diferentes pontos de vista

    em diversos horários do dia, buscando captar as diferentes tonalidades e intensidades de

    luz sobre a construção.32 Ao atentar para um importante agente real –  a luz –  o Impressi-

    onismo encontrou a imperfeição do modelo e a impossibilidade de fixá-lo em uma ima-

    gem... é sempre outra luz que torna a torre, também outra, sempre.

    31 MERLEAU-PONTY, Maurice. O olho e o espírito. Lisboa: Nova Veja, 2015, p. 43.32 

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    O Impressionismo na pintura veio, portanto, romper com a ilusão da realidade, trazendo

     para a tela, ao invés de uma garantia do aspecto exterior do mundo, a subjetivação do

    olhar, a dúvida sobre o que se vê e a pergunta sobre como, afinal, seria realmente a

    torre. A construção de Monet não buscava a ilusão; buscava mostrar-se como tal: é pin-

    tura, composição pictural. O pintor, ao invés de pensar a moldura como uma fronteira

    que separa a ficção da pintura e a realidade de quem olha, considerou-a como o ele-

    mento que traz a pintura para o mundo, denunciando-a como pintura real e não como

    ilusão de realidade. O impressionismo recolocou a relação entre o público e a arte numa

    dimensão que é da ordem da experiência. O observador compromete-se com o que vê.

    Isso significa que esta relação se dá no instante, no presente, na vida.

    A partir do Impressionismo, o ponto de vista único já não se mostrava suficiente paradar conta da realidade. Mais que insuficiente, ele se mostrou falso, ilusório, enganador.

    A clara e confortável separação entre o universo ficcional e o real entraram, aqui, em

    crise e começaram a revelar que o limite entre eles –  a moldura no quadro ou o arco de

     proscênio no teatro –  era uma invenção. E, se a realidade, segundo a experiência das Ca-

    tedrais de Monet, só pode ser captada no instante, é na experiência do instante que se

    encontra a realidade.

    O mundo visível começou a não ser mais o modelo e outras percepções, não apenas avisual, começaram a ser levadas em consideração. A concepção espacial já era outra e

     percebia-se que o mundo era inapreensível em sua totalidade. O mundo

    é um espaço calculado a partir de mim como ponto ou grau zero da espacialidade. Eu não vejode acordo com o seu invólucro exterior, vivo-o de dentro, estou nele englobado. Seja como for,o mundo está à minha volta, não à minha frente.33 

    TEMPO CINZENTO  MANHà COM NEBLINA  MANHà À TARDE  À TARDE 

    33 Idem. Ibidem, p. 48.

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    Aquela perspectiva linear criada no Renascimento e desenvolvida e aprimorada ao

    longo dos séculos resultando no Realismo está rompida. Uma nova perspectiva se ofe-

    rece para o espectador –  um modo de olhar que o coloca numa posição ativa na relação

    com a obra; uma perspectiva criativa na medida em que o resultado de sua experiência

    com a obra é individual e intransferível. Se houve o tempo de uma pedagogia do olhar

    que fizesse a leitura a partir de um modelo universal, agora, uma nova pedagogia se

    mostra necessária. Uma pedagogia que atenda à necessidade de se fazer uma leitura sub-

     jetiva, particular, única. Uma pedagogia dos sentidos.

     Nos aproximamos daquela estranheza, do espanto de Artaud ao entender que não pos-

    suía as palavras e que, ao experimentá-las, percebia que o sentido lhe escapava... porque

    este não estava dentro das palavras, mas na relação que elas estabeleciam com ele.Ao mesmo tempo em que o Impressionismo buscou uma retomada da experiência do

    instante e traduzi-la para a pintura, o Simbolismo, na literatura e no teatro, mergulhou

    na tentativa de resgatar o poder mágico das sereias e o sentimento da perda de Eurídice.

    O Simbolismo foi buscar uma linguagem que, de alguma forma, recuperasse um enten-

    dimento da realidade como uma experiência enigmática, inexplicável, mágica. E essa

     busca, necessariamente, modificou o olhar que mimetizava o mundo; buscou revelar

     justamente aquilo que estava além (ou aquém) da visibilidade do mundo. O Simbolismo percorreu a dimensão do mundo que não se oferecia à descrição; repudiou os ardilosos

    recursos de Ulisses que permitiam que se ouvisse, sem risco, ao canto enigmático das

    sereias e, ao contrário, trabalhou para mergulhar no mar e seguir, perdendo-se, ao en-

    contro das sereias.

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    DEPOIS DA CALMARIA, A TEMPESTADE

    Do conforto da clara separação entre ficção e realidadeà incerteza da realidade do mundo

    O Simbolismo, movimento mais expressivamente literário que impôs uma ruptura com o

    Realismo –  e por extensão, com a tradição renascentista –  procurou retomar a experiência da

    audição: “ De La Musique avant toute chose!”34 A poesia tomou conta da fala que, a partir

    das figuras de linguagem, buscavam ampliar o espectro de sentidos e criar sonoridades que

    recuperassem a audição como elemento de compreensão do mundo à volta.

    O desejo de deter uma ideia do mundo e, a partir dela, construir um indivíduo forte, ide-

    alizado, encontrou no final do século XIX, um homem cada vez mais frágil e cruel cuja

    única certeza era a consciência do fracasso do projeto renascentista. Em função da cres-

    cente industrialização e do uso de máquinas, temos o indivíduo cada vez mais inefici-

    ente e desnecessário para a produção de riquezas. A velocidade que o mundo imprime,

    deixava claro que o homem não tinha condições de impor o ritmo. Sua condição, ao

    contrário do período do Renascimento, era de decadência. O sentimento, era o de perda.

    De ideais, de domínio, de conquista. 

    Se o Naturalismo se preocupava com questões do cotidiano a partir da ação do indiví-

    duo, o Simbolismo, ao contrário teve, como preocupação, temas que atravessavam a

    existência de todos: o mistério da vida e da morte; a dimensão da realidade e o mundo

     para além da vida. Sua temática se volta para assuntos transcendentais ou místicos; a

    morte e o silêncio estão no horizonte de todos. Na escrita, a narrativa procura seguir o

    mesmo caminho temático das artes visuais.35 

    34 VERLAINE, Paul. Paris Moderne –  Revue Littéraire et Artistique. Paris: Léon Vanier Editeur, 1882-1883, p. 144.

    35 

    Carlos Schwabe

     A morte do escavador1890

    Franz von Stuck

    O pecado1893

    Gustav Kllimt

     Judith1901

    Gustav. Klint

    O beijo1907-1908

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    O Simbolismo pretendia promover uma ruptura com aquela tradição. E essa ruptura exigia

    uma nova concepção de linguagem e uma nova postura do artista em relação à obra. O so-

    nho, o mistério e os mitos, para o simbolista, deviam voltar a habitar a representação do

    mundo e a linguagem não podia ser compreendida de forma objetiva. O sentido da obra de-

     pendia, muito intensamente, da subjetividade do leitor. A linguagem, torna-se, aqui, um

     jogo entre a organização das palavras e aquele que ouve ou lê. Se o Renascimento nos fez

    crer na linguagem, compreendida como um bem, um domínio do homem; se, para a tradi-

    ção renascentista a linguagem tornou-se um instrumento de apreensão de tudo; o Simbo-

    lismo vem operar, como sua ruptura. Vai trabalhar a palavra como revelação de que as cer-

    tezas sobre o mundo não passam de enigmas revelados pela operação poética.

    Peter Szondi, em Teoria do drama moderno

    36

    vai apontar, em detalhes, as fraturas que adramaturgia simbolista irá infringir à estrutura clássica do drama, fazendo surgir das re-

    lações inter-humanas, forças invisíveis ou ideias abstratas que moveriam os persona-

    gens, como em A dama do mar , de Ibsen, onde só a liberdade permite que Élida Wangel

    escolha entre a solidez de uma relação e a liberdade representada pelo Estrangeiro. Ou

     personagens estruturados como figuras ausentes, cuja efetiva existência está no passado,

    fazendo com que a passagem do tempo emerja como protagonista, como em sua última

     peça, Quando nós, os mortos, despertarmos.

    O fundamental é perceber que a linguagem, a estrutura dramática, mais do que desapa-

    recer em função da fábula, começa a mostrar-se como parte da fábula. E essa é a princi-

     pal fratura na estrutura dramática tradicional e que se assemelha à imagem das pinturas

    impressionistas. Para além dos significados, as palavras revelam importantes imagens

    que se sobrepõem à visibilidade das relações.

    Pessoa, Mallarmé

    Chamo teatro estático àquele cujo enredo dramático não constitui ação –  isto é, onde as figurasnão só não agem, porque nem se deslocam nem dialogam sobre deslocarem-se, mas nem se-quer têm sentidos capazes de produzir uma ação; onde não há conflito nem perfeito enredo.Dir-se-á que isto não é teatro. Creio que o é porque creio que o teatro tende a teatro meramentelírico e que o enredo do teatro é, não a ação nem a progressão e consequência da ação –  mas,mais abrangentemente, a revelação das almas através das palavras trocadas e a criação desituações (...) Pode haver revelação de almas sem ação, e pode haver criação de situações deinércia, momentos de alma sem janelas ou portas para a realidade.37 

    36 SZONDI, Peter. Teoria do drama moderno.37 PESSOA, Fernando. Páginas de Estética e de Teoria Literárias. Lisboa: Ática, 1966, p. 113. Grifo meu

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    Pessoa pretendia que a cena revelasse o espírito das histórias e seu movimento apenas através

    do texto. Uma cena que prescindisse das imagens, para que estas fossem produzidas na intimi-

    dade de cada indivíduo. Um texto poético e não um texto descritivo; um texto que incitasse à

    imaginação. O Simbolismo, portanto, longe de entender a cena como o lugar da descrição da

    realidade, rompeu com o antigo modelo para afirmar que a realidade não está na visibilidade

    do mundo, mas, bem ao contrário, está precisamente onde não nos é permitido ver. As gran-

    des questões que envolvem a vida estão no mistério, estão ali, onde não podemos explicar. E

    as palavras, longe de poderem descrever o indescritível, têm como tarefa evocá-lo, sugerir,

     produzir uma possibilidade de trazê-lo à luz. Nas palavras de Mallarmé:

     Nommer un objet, c’est supprimer les trois quarts de la jouissance du poème qui est faite du bonheur de deviner peu à peu ; le suggérer voilà le rêve. C’est le parfait usage de ce mystère

    qui constitue le symbole : évoquer petit à petit un objet pour montrer un état d’âme, ou,inversement, choisir un objet, et en dégager un état d’âme par une série de déchiffrements.38 

     Na luta contra as Belas Artes, os simbolistas contrapunham à descrição, o silêncio. Es-

     paços vazios que seriam preenchidos (ou decifrados) por quem olha ou lê. Contra a ilu-

    sória beleza produzida pelas Belas Letras, “criar uma escrita branca, livre de qualquer

    sujeição a uma ordem fixa da Linguagem.”39 

    A plena realização do Naturalismo revelou que a linguagem estava reduzida a um instru-

    mento de descrição, revelou que a palavra, tinha sua potência encoberta e era compreendida

    como mera ferramenta. O Simbolismo tornou-se uma força de reação àquele mergulho, cada

    vez mais fundo na ilusão de uma realidade. E o mote deste movimento estava na rejeição à

    ideia de que a linguagem é um domínio e que a arte é a reprodução de um modelo.

    Meyerhold, Craig

    Maurice Maeterlinck (1862 –  1949), autor belga, prioriza um diálogo todo construído so-

     bre silêncios. “O silêncio é a voz da alma e, por isso, está mais próximo da verdade.”40.

    Dessa forma, ele reitera a reflexão de Mallarmé e de Pessoa no drama estático.

    38 Nomear um objeto é suprimir três quartos do prazer do poema que é feito da alegria de adivinhar poucoa pouco; sugerir o objeto, eis o sonho. É a perfeita aplicação deste mistério que constitui o símbolo:evocar pouco a pouco um objeto para mostrar um estado de alma, ou, ao contrário, escolher um objetoe depreender dele um estado de alma através de uma série de deciframentos. (Tradução minha)HURET, Jules. Enquête sur L'évolution Littéraire. L’Echo de Paris, 1891, p. 1. 

    39 BARTHES, Roland. O Grau Zero da Escrita. Lisboa: Edições 70, 2006, p. 69.40 MOLER, Lara Biasoli. Maurice Maeterlinck e a ressurreição do ator . São Paulo: Sala Preta/USP, p. 73.

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    O ator, que graças a Stanislavski conquistou espaço na cena naturalista como criador, foi

    vivamente questionado principalmente por ser um elemento cuja imagem jamais poderia

    representar um símbolo. Em cena, ele representa sempre, inevitavelmente, um indivíduo

    e, portanto, um sujeito psicológico. Para Maeterlink, a presença do ator se torna uma in-

    terdição ao mergulho no espaço desconhecido do ser humano. O ator, movido pelas emo-

    ções que tornam o resultado de sua obra uma série de gestos e elocuções acidentais e pró-

    ximas da imitação de alguém que vive as circunstâncias do drama, precisa ser substituído

     pela marionete que, em sua impessoalidade, é capaz de representar uma ideia de humani-

    dade descolada do indivíduo. Esta é também a preocupação de Edward Gordon Craig

    (1872 –  1966), encenador inglês, contemporâneo de Maeterlinck. Para ele,

    In the modern theatre, owing to the use of the bodies of men and women as their material, allwhich is presented there is of an accidental nature. The actions of the actor's body, the expres-sion of his face, the sounds of his voice, all are at the mercy of the winds of his emotions. […]Art, as we have said, can admit of no accidents. That, then, which the actor gives us, is not awork of art ; it is a series of accidental confessions. 41 

    Craig reivindicava para a cena, um espaço abstrato, ou seja, ao invés de cenários que

    descrevessem o lugar da ação, um espaço que sugerisse o lugar da ação, associado ao

    uso da iluminação que teria a função de criar atmosferas. Um espaço construído total-

    mente a partir de uma reflexão plástica sobre as questões trabalhadas na encenação –  o

    que coincide perfeitamente com o desejo dos simbolistas de buscar uma elaboração for-mal baseada na sugestão ao invés de basear-se na imitação. Para Craig, a arte não ad-

    mite o acidente pois, rejeitando a imitação, uma obra é o resultado de uma construção

    absolutamente única e de inteira responsabilidade do artista. Nesse sentido, caminha ao

    encontro de Maeterlinck ao reivindicar para o teatro, a morte dos atores e o advento da

    supermarionete capaz de realizar, em cena, uma partitura passível de ser repetida e sem

    exteriorizar qualquer atmosfera de individualidade.

     Nesse contexto, não poderia deixar de surgir, também na Rússia, aquele que iria se con-trapor a Stanislavski (1863 –  1938). Discípulo dele, Vsevolod Meyerhold (1874 –  1940)

    não chegou a se filiar ao movimento simbolista, mas desenvolveu uma trajetória que, na

    contramão da criação de uma ilusão de realidade, buscou uma cena construída em cada

    41 “No teatro moderno, devido ao fato de os atores e atrizes usarem seus corpos como material de sua arte,tudo o que se apresenta ali é de natureza acidental. Os gestos do ator, a expressão do seu rosto, o som dasua voz, tudo isso está à mercê das emoções. [...] A arte, como dissemos não pode admitir o acidente. Se

     bem que aquilo que o ator apresenta não seja uma obra de arte, mas uma série de confissões involuntá-

    rias.” (Tradução minha)Craig, Gordon. The actor and the Über-marionette, in On the art of de theatre. London: HeinemannEducational Books Ltd. 1980, p. 56-58.

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    detalhe, procurando exacerbar o que há de teatral no espetáculo. Ele retoma um antigo re-

    curso do teatro que o desejo de criar uma ilusão de realidade havia banido: a convenção.

    Com Meyerhold, as convenções adquiriram um caráter de jogo, um elemento que, mais

    do que ajudar na história, tornava mais teatral a apresentação das informações em cena.

    E, na busca de um ator que fosse tão (ou mais) eficiente quanto a supermarionete de

    Craig, criou um treinamento que possibilitasse que o ator adquirisse completo domínio de

    sua criação em cena. Este treinamento, que ele chamou de Biomecânica, se baseava no

    total conhecimento, por parte do ator, de cada articulação do corpo, no desenvolvimento

    de diversas técnicas físicas (danças, lutas, circo, Commedia dell’arte), associando-as a rit-

    mos para que se tornasse possível a elaboração de uma precisa partitura de movimentos.

     Num período orientado pelo Construtivismo

    42

    , Meyerhold engendra uma cena na qualtodos os elementos são elaborados a partir de decisões dos artistas de cada área (cenário,

    figurino, atuação, música, iluminação, encenação), sempre fugindo à imitação da reali-

    dade. O empreendimento de todos se volta para a criação de uma realidade teatral.

    Esta realidade teatral pensava os elementos da cena de forma não ilustrativa, ou seja,

    cada elemento tinha um papel específico na encenação contribuindo, assim, para formar

    uma teia de sentidos que se sobrepunham. Essa sobreposição proporcionava a participa-

    ção do público na leitura do espetáculo.a técnica convencional supõe, no teatro, depois do autor, o encenador e o ator, um quarto cria-dor: o espectador . O teatro da convenção elabora encenações em que a imaginação do especta-dor deve completar, de modo criativo, o desenho das alusões dadas em cena.43 

    E Meyerhold completa: “ por mais imóvel que seja, [o teatro de convenção] sugere mil ve-

     zes mais o movimento que o teatro naturalista.” O encenador russo, aqui, além de concor-

    dar com Pessoa e com Maeterlinck no que diz respeito ao movimento contido na imobili-

    dade, retoma o verbo usado por Mallarmé –  “le suggérer voilà le rêve“ – , que propõe que

    o espectador decifre o mundo à sua frente. Se, tanto a obra como o mundo devem ser en-

    tregues à decifração, é porque são enigma. A obra é a presentificação deste enigma. E a

    42 O Construtivismo Russo foi um movimento estético-político iniciado na Rússia em 1919. O termo arteconstrutivista foi introduzido pela primeira vez por Malevich Malevich  para descrever o trabalho de Ro-dchenko 1917. 

    43

     MEYERHOLD, Vsevolod. “Meyerhold: escritos sobre teatro (textos de 1907, 1912 e 1922”, in BO-RIE, Monique and de ROUGEMENT, Martine and SCHERER, Jacques (orgs.). Estética teatral: tex-tos de Platão a Brecht . Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian: 395 –  408, 1996. Grifos do autor.

    http://pt.wikipedia.org/wiki/Kasimir_Malevichhttp://pt.wikipedia.org/wiki/Kasimir_Malevichhttp://pt.wikipedia.org/wiki/Kasimir_Malevichhttp://pt.wikipedia.org/wiki/1917http://pt.wikipedia.org/wiki/1917http://pt.wikipedia.org/wiki/1917http://pt.wikipedia.org/wiki/1917http://pt.wikipedia.org/wiki/Kasimir_Malevich

  • 8/18/2019 Redescoberta da Linguagem

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    linguagem da cena tem como tarefa buscar, não a descrição do que é visível, mas, através

    da poesia ou de uma elaboração formal, uma aproximação com o mistério da vida.

     Nesta passagem do século XIX para o XX, percebe-se em diversas partes do mundo, nas

    diferentes formas artísticas, o desejo de encontrar uma nova concepção de linguagemque revele uma realidade autêntica para além da imitação do mundo e do homem. Na

    música, no início do século XX, muitos compositores, identificando um certo esgota-

    mento da