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REFLEXÕES 15 Domingo 12 de Julho de 2020 A propósito da releitura do “Down the Second Avenue”, (Andando pela Segunda Avenida), ensaio autobiográfico de Ezekiel Mphalele (1919–2008), confesso que continuo a sentir-me arrebatado pela necessidade de cultivar o primeiro género literário, o ensaio – o “centauro dos géneros”, no dizer do mexicano Alfonso Reyes Luís Kandjimbo Tenho uma paixão antiga por esse género de discurso que vem dos tempos da adoles- cência. É como a paixão por certos objectos, lugares, valores e contemplações, isto é, os li- vros, as bibliotecas, a beleza, os bares ou cafés. Está-lhe es- pecialmente associado o fas- cínio pelos eternos encantos das mulheres. Não se trata de uma trivialidade. É que a ad- miração a tributar à mulher deve ser sempre singular. De- pende muito da atitude do su- jeito e da qualidade do fascínio suscitado perante uma virtude metafísica como a beleza. Re- conheço assim que a poesia da beleza feminina traz à me- ditação o elemento analógico, remetendo imediatamente para uma representação da ética do cuidado, quando se escreve um texto ensaístico. A perso- nagem da Tia Dora (Aunt Dora) criada por Ezekiel Mphalele, é um exemplo. Na verdade, em África o en- saio é o primeiro género lite- rário, se tivermos em atenção a predominância da “razão oral”, tal como lhe chamou o senagalês Mamoussé Diagne. O carácter fragmentário do provérbio e de outras formas breves de expressão oral traduz bem o lugar que o ensaio ocupa na hierarquia dos géneros da literatura oral em África. O exercício da memória exige a brevidade discursiva do pen- samento e o recurso a frases que valorizem imagens afo- rísticas. Por isso, a dimensão narrativa e lírica do discurso carrega sempre uma marca ar- gumentativa e interpretativa. Estava então a reler o ensaio autobiográfico de Ezekiel (Es’- kia) Mphalele, sul-africano, o primeiro decano dos críticos literários africanos. Lembrei- me de outros dois vultos oriun- dos de países africanos de língua inglesa, Eldred Durosimi Jo- nes(1925–2020) e Francis Abio- la Irele (1936–2017),ambos também já falecidos. Portanto, são três ensaístas com lugar cativo na história do pensamento, da filosofia e das literaturas do continente africano. Não conheci o velho Es’kia. Do segundo, falecido no passado mês de Março em Freetown, tenho memória. Ele já era cego quando, em 1989, o vi pessoalmente falar na ci- dade de Dakar, proferindo a conferência de abertura do congresso da Associação de Literaturas Africanas, a mais importante organização nor- te-americana de académicos, investigadores e críticos lite- rários que se dedicam ao estudo das literaturas africanas. Numa comitiva da União dos Escri- tores Angolanos, em compa- nhia de Manuel Rui e E. Bonavena, participei nesse evento científico com o qual se comemoravao vigésimo quinto aniversário dos dois primeiros colóquios sobre o ensino e crítica das literaturas africanas, realizados em Fourah Bay e Dakar, em 1963. Foi em Dakar que voltei a encontrar- me com o professor nigeriano Abiola Irele que eu tinha co- nhecido pessoalmente, em 1986, na cidade de Paris, no colóquio da Associação para o Estudo das Literaturas Afri- canas. Com ele conversei no autocarro, durante o regres- sopara o Novotel, onde nos en- contrávamos todos hospedados. Nesse ano, conheci outros in- telectuais africanos de peso. Um deles era o beninense Ola- biyi Yai, linguista e filósofo que, nos anos 70 do século XX, com Niamey Koffi, animou o grande debate que os opunha a Paulin Hountondji, outro fi- lósofo beninense. Já não me lembrava do livro a utografado para Olabiyi Yai. Foi ele que me deu conta disso, logo após a confirmação de que o meu primeiro livro de ensaio se en- contrava na sua biblioteca, em Cotonou. Em 2009, Abiola Irele foi convidado a vir a Angola, por ocasião da celebração do Dia de África, numa iniciativa do Ministério da Cultura. Com ele vieram Nkiru Nzegwu, nige- riana, filósofa e crítica de arte africana, e Simon Gikandi, queniano, ensaísta e crítico li- terário, dois nomes de uma outra geração de professores e pensadores africanos. Fui um dos seus anfitriões, tendo tido a responsabilidade de re- ceber a Nkiru Nzegwu em Ben- guela, minha cidade natal, onde já me encontrava a cum- prir uma obrigação familiar. Acompanhava-o Adriano Mixinge que moderaria o de- bate no primeiro dia útil da semana seguinte. Para conhecer os costumes da terra, levei a Nkiru Nzegwu, – e o Adriano Mixinge, é claro, – ao jantar que se seguiu ao casamento do sobrinho. Con- versAmos, mergulhámos no ambiente de festa, comemos, ouvimos música, contámos estórias, rimos, dançámos. Ela que vinha de Nova York, sen- tiu-se como se estivesse em casa, em Enugu ou em Lagos. É tudo a mesma coisa,dizia ela. Se tivesse que falar com o velho professor Ezekiel Mpha- lele, que não vi em Dakar, a respeito da leitura do seu ensaio autobiográfico, as minhas pa- lavras teriam o mesmo sentido das que a Nkiru Nzegwu tinha enunciado. A África é a nossa casa partilhada. Nela acontecem várias coisas comuns. É disso que durante décadas os velhos filósofos, John Mbiti (1931- 2019) do Quénia e Kwame Gyekye (1939-2019) do Ghana, defenderam até à morte. Isto é, a idiossincrasia africana e a sua diversidade, ou seja, a ontologia africana. PRETEXTO PARA DEFENDER O PRIMEIRO GÉNERO LITERÁRIO Ezekiel Mphalele e o ensaio autobiográfico Em “Down the Second Avenue” cuja primeira edição data de 1959, Ezekiel Mphalele relata, sequencial e cronologicamente, vários factos vividos na infância, passada nos bairros de Marabastad e Maupaneng, em Pretória, numa comunidade familiar em que se falava a língua Sotho, durante as décadas de 30 e 40 do sé- culo XX, período de institucionalização do re- gime do apartheid. São factos semelhantes há muito vividos em Angola, no período colonial. Por exemplo, o policiamento dos bairros peri- féricos das grandes cidades para o desmante- lamento da indústria de bebidas tradicionais fermentadas à base de malte de milho. Ou ainda as querelas de vizinhas que trocam acu- sações resultantes de aparecimentos miste- riosos de animais veneráveis como o cágado, em espaços domésticos ou quintais. Apesar de ter sido traduzido em onze lín- guas, não se conhece qualquer tradução em língua portuguesa. A progressão da leitura deste ensaio autobiográfico desvenda igual- mente um observador arguto vivendo na ci- dade de Johanesburgo, em plena fase da sua maturidade, após a obtenção da licenciatura, em 1949. Identificam-se virtudes e qualidades do escritor que é capaz de reter na memória o mais pequeno gesto, compreendendo-se a partir dele as mais profundas motivações do comportamento humano a que dá sentido. Por outro lado, os relatos sobre o engaja- mento político, a adesão ao “African Natio- nal Congress” (ANC), em 1955 e a integração na equipa editorial da revista “Drum” per- mitem traçar o perfil do escritor e intelec- tual sul-africano na sua época. A sua visão ecuménica levava-o a defender a unidade na luta contra o racismo do apartheid. Por isso, fazia apelos à união do ANC e do “All-African Convention” (AAC). Com o discurso autobiográfico de Ezekiel Mphalelesomos conduzidos pelos labirintos da luta em prol da dignidade humana. A dedi- cação ao estudo é prova disso. Logo no ano que se seguiu à sua adesão ao ANC, após a perda do emprego como professor e dividido entre o jornalismo e a literatura, a persona- gem que discorre sobre a sua própria vida abraça um novo desafio: concluir um outro ciclo da formação universitária, o Mestrado em Literatura. A dissertação tratava de um tema bastante expressivo: “A personagem não-europeia na ficção sul-africana em língua inglesa”. O que obrigava a aprofundar o seu conhecimento da literatura escrita por auto- res da minoria “branca” numa perspectiva comparada com outros autores europeus e norte-americanos. A celebração da conclusão do Mestrado em 1957, na sua casa situada no subúrbio de Or- lando, foi um momento de partilha com amigos de todas as origens, entre os quais jornalistas da revista “Drum”, destacando-se Bloke Modi- sane que também escreveria um ensaio auto- biográfico. Tomaria em seguida a decisão de abandonar a África do Sul. Para tal candidata- se a uma vaga de professor de língua inglesa na Nigéria. A muito custo, obtém o passaporte e fixa-se na cidade de Lagos, onde concluiu o seu ensaio “Down the Second Avenue”, e, depois, Ibadan. A vida itinerante de exiladoleva-o à França, Quénia, Zâmbia e Estados Unidos da América. Nos Estados Unidos da América, em pleno apogeu da carreira, em 1968, obtém o doutoramento em escrita criativa com o ro- mance “The Wanderers” (Andarilhos). Em 1976, regressa definitivamente à África do Sul, tendo publicado, em 1984, “Afrika My Music”, o seu se- gundo ensaio autobiográfico. A actividade do- cente foi a exclusiva ocupação, até à sua morte aos 88 anos de idade. “Andando pela Segunda Avenida” DR

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REFLEXÕES 15Domingo12 de Julho de 2020

A propósito da releitura do “Down the Second Avenue”, (Andando pelaSegunda Avenida), ensaio autobiográfico de Ezekiel Mphalele (1919–2008),

confesso que continuo a sentir-me arrebatado pela necessidade de cultivar oprimeiro género literário, o ensaio – o “centauro dos géneros”, no dizer do

mexicano Alfonso Reyes

Luís Kandjimbo

Tenho uma paixão antiga poresse género de discurso quevem dos tempos da adoles-cência. É como a paixão porcertos objectos, lugares, valorese contemplações, isto é, os li-vros, as bibliotecas, a beleza,os bares ou cafés. Está-lhe es-pecialmente associado o fas-cínio pelos eternos encantosdas mulheres. Não se trata deuma trivialidade. É que a ad-miração a tributar à mulherdeve ser sempre singular. De-pende muito da atitude do su-jeito e da qualidade do fascíniosuscitado perante uma virtudemetafísica como a beleza. Re-conheço assim que a poesiada beleza feminina traz à me-ditação o elemento analógico,remetendo imediatamente parauma representação da ética docuidado, quando se escreveum texto ensaístico. A perso-nagem da Tia Dora (Aunt Dora)criada por Ezekiel Mphalele,é um exemplo.

Na verdade, em África o en-saio é o primeiro género lite-rário, se tivermos em atençãoa predominância da “razãooral”, tal como lhe chamou osenagalês Mamoussé Diagne.O carácter fragmentário doprovérbio e de outras formasbreves de expressão oral traduzbem o lugar que o ensaio ocupana hierarquia dos géneros daliteratura oral em África. O

exercício da memória exige abrevidade discursiva do pen-samento e o recurso a frasesque valorizem imagens afo-rísticas. Por isso, a dimensãonarrativa e lírica do discursocarrega sempre uma marca ar-gumentativa e interpretativa.

Estava então a reler o ensaioautobiográfico de Ezekiel (Es’-kia) Mphalele, sul-africano, oprimeiro decano dos críticosliterários africanos. Lembrei-me de outros dois vultos oriun-dos de países africanos de línguainglesa, Eldred Durosimi Jo-nes(1925–2020) e Francis Abio-la Irele (1936–2017),ambostambém já falecidos.

Portanto, são três ensaístascom lugar cativo na históriado pensamento, da filosofia edas literaturas do continenteafricano. Não conheci o velhoEs’kia. Do segundo, falecidono passado mês de Março emFreetown, tenho memória. Elejá era cego quando, em 1989,o vi pessoalmente falar na ci-dade de Dakar, proferindo aconferência de abertura docongresso da Associação deLiteraturas Africanas, a maisimportante organização nor-te-americana de académicos,investigadores e críticos lite-rários que se dedicam ao estudodas literaturas africanas. Numacomitiva da União dos Escri-tores Angolanos, em compa-n h i a d e M a n u e l R u i e E .Bonavena, participei nesseevento científico com o qual

se comemoravao vigésimoquinto aniversário dos doisprimeiros colóquios sobre oensino e crítica das literaturasafricanas, realizados em FourahBay e Dakar, em 1963. Foi emDakar que voltei a encontrar-me com o professor nigerianoAbiola Irele que eu tinha co-nhecido pessoalmente, em1986, na cidade de Paris, nocolóquio da Associação parao Estudo das Literaturas Afri-canas. Com ele conversei noautocarro, durante o regres-sopara o Novotel, onde nos en-contrávamos todos hospedados.Nesse ano, conheci outros in-telectuais africanos de peso.Um deles era o beninense Ola-biyi Yai, linguista e filósofoque, nos anos 70 do século XX,com Niamey Koffi, animou ogrande debate que os opunhaa Paulin Hountondji, outro fi-lósofo beninense. Já não melembrava do livro a utografadopara Olabiyi Yai. Foi ele queme deu conta disso, logo apósa confirmação de que o meuprimeiro livro de ensaio se en-contrava na sua biblioteca,em Cotonou.

Em 2009, Abiola Irele foiconvidado a vir a Angola, porocasião da celebração do Diade África, numa iniciativa doMinistério da Cultura. Com elevieram Nkiru Nzegwu, nige-riana, filósofa e crítica de arteafricana, e Simon Gikandi,queniano, ensaísta e crítico li-terário, dois nomes de uma

outra geração de professorese pensadores africanos. Fuium dos seus anfitriões, tendotido a responsabilidade de re-ceber a Nkiru Nzegwu em Ben-guela, minha cidade natal,onde já me encontrava a cum-prir uma obrigação familiar.Acompanhava-o AdrianoMixinge que moderaria o de-bate no primeiro dia útil dasemana seguinte.

Para conhecer os costumesda terra, levei a Nkiru Nzegwu,– e o Adriano Mixinge, é claro,– ao jantar que se seguiu aocasamento do sobrinho. Con-versAmos, mergulhámos noambiente de festa, comemos,ouvimos música, contámosestórias, rimos, dançámos. Elaque vinha de Nova York, sen-tiu-se como se estivesse emcasa, em Enugu ou em Lagos.É tudo a mesma coisa,dizia ela.

Se tivesse que falar com ovelho professor Ezekiel Mpha-lele, que não vi em Dakar, arespeito da leitura do seu ensaioautobiográfico, as minhas pa-lavras teriam o mesmo sentidodas que a Nkiru Nzegwu tinhaenunciado. A África é a nossacasa partilhada. Nela acontecemvárias coisas comuns. É dissoque durante décadas os velhosfilósofos, John Mbiti (1931-2019) do Quénia e KwameGyekye (1939-2019) do Ghana,defenderam até à morte. Istoé, a idiossincrasia africana e asua diversidade, ou seja,a ontologia africana.

PRETEXTO PARA DEFENDER O PRIMEIRO GÉNERO LITERÁRIO

Ezekiel Mphalele e o ensaio autobiográfico

Em “Down the Second Avenue” cuja primeiraedição data de 1959, Ezekiel Mphalele relata,sequencial e cronologicamente, vários factosvividos na infância, passada nos bairros deMarabastad e Maupaneng, em Pretória, numacomunidade familiar em que se falava a línguaSotho, durante as décadas de 30 e 40 do sé-culo XX, período de institucionalização do re-gime do apartheid. São factos semelhantes hámuito vividos em Angola, no período colonial.Por exemplo, o policiamento dos bairros peri-féricos das grandes cidades para o desmante-lamento da indústria de bebidas tradicionaisfermentadas à base de malte de milho. Ouainda as querelas de vizinhas que trocam acu-sações resultantes de aparecimentos miste-riosos de animais veneráveis como o cágado,em espaços domésticos ou quintais.

Apesar de ter sido traduzido em onze lín-guas, não se conhece qualquer tradução emlíngua portuguesa. A progressão da leituradeste ensaio autobiográfico desvenda igual-mente um observador arguto vivendo na ci-dade de Johanesburgo, em plena fase da suamaturidade, após a obtenção da licenciatura,em 1949. Identificam-se virtudes e qualidadesdo escritor que é capaz de reter na memóriao mais pequeno gesto, compreendendo-se apartir dele as mais profundas motivações docomportamento humano a que dá sentido.Por outro lado, os relatos sobre o engaja-mento político, a adesão ao “African Natio-nal Congress” (ANC), em 1955 e a integraçãona equipa editorial da revista “Drum” per-mitem traçar o perfil do escritor e intelec-tual sul-africano na sua época. A sua visãoecuménica levava-o a defender a unidadena luta contra o racismo do apartheid. Porisso, fazia apelos à união do ANC e do“All-African Convention” (AAC).

Com o discurso autobiográfico de EzekielMphalelesomos conduzidos pelos labirintosda luta em prol da dignidade humana. A dedi-cação ao estudo é prova disso. Logo no anoque se seguiu à sua adesão ao ANC, após aperda do emprego como professor e divididoentre o jornalismo e a literatura, a persona-gem que discorre sobre a sua própria vidaabraça um novo desafio: concluir um outrociclo da formação universitária, o Mestradoem Literatura. A dissertação tratava de umtema bastante expressivo: “A personagemnão-europeia na ficção sul-africana em línguainglesa”. O que obrigava a aprofundar o seuconhecimento da literatura escrita por auto-res da minoria “branca” numa perspectivacomparada com outros autores europeus enorte-americanos.

A celebração da conclusão do Mestrado em1957, na sua casa situada no subúrbio de Or-lando, foi um momento de partilha com amigosde todas as origens, entre os quais jornalistasda revista “Drum”, destacando-se Bloke Modi-sane que também escreveria um ensaio auto-biográfico. Tomaria em seguida a decisão deabandonar a África do Sul. Para tal candidata-se a uma vaga de professor de língua inglesa naNigéria. A muito custo, obtém o passaporte efixa-se na cidade de Lagos, onde concluiu o seuensaio “Down the Second Avenue”, e, depois,Ibadan. A vida itinerante de exiladoleva-o àFrança, Quénia, Zâmbia e Estados Unidos daAmérica. Nos Estados Unidos da América, empleno apogeu da carreira, em 1968, obtém odoutoramento em escrita criativa com o ro-mance “The Wanderers” (Andarilhos). Em 1976,regressa definitivamente à África do Sul, tendopublicado, em 1984, “Afrika My Music”, o seu se-gundo ensaio autobiográfico. A actividade do-cente foi a exclusiva ocupação, até à sua morteaos 88 anos de idade.

“Andando pela Segunda Avenida”

DR

Page 2: REFLEXÕES 15 12 de Julho de 2020 - SAPO

TURISMO16 Domingo12 de Julho de 2020

Lourenço Bule| Menongue

A província é banhada pelosrios Cubango, Cuito, Cua-navale, Kwebe, Kwelei, Cu-chi, Cuhiriri, Cuando e Longa,só para citar alguns. Os riossão o pulmão da maior partedas áreas de lazer e propiciamuma fauna e uma flora de ti-rar o fôlego.

Enquanto se aguarda pe-los investimentos do go-verno, os munícipes vãofazendo a sua parte. Muitos,de acordo com as suas pos-sibilidades, procuram mon-tar um pequeno negócio naszonas de lazer, para atenderaos frequentadores e, assim,lucrar alguns kwanzas.

Actualmente, apesar daSituação de Calamidade edo frio, adultos, adolescen-tes e crianças parecem nãose importar e continuam afrequentar, regularmente,os lugares turísticos situadosao longo dos rios Kwebe,Kwelei, Luahuca, Luas-singua e Cambumbe, osmais próximos da cidadede Menongue.

A maioria das senhorasque exploravam as barracasde comes e bebes desisti-ram, porque esgotaram aspoupanças durante o Estado

de Emergência que vigoroude 27 de Março até 25 deMaio. Agora os mesmos es-paços foram invadidos porpequenos vendedores demicates, bolinhos, whiskyem pacote, refrigerantes,cerveja e ginguba. Por essarazão os mais avisados,quando se deslocam paraestes locais, levam consigoo farnel para evitar cons-trangimentos . I lha dosAmores, barragem de Cam-bumbe, Liapeca, Missomboe a ponte sobre o Kweleisão os locais mais frequen-tados pelos banhistas.

Antes da pandemia daCovid-19, essas zonas delazer fervilhavam com de-zenas de turistas prove-nientes de várias regiõesdo país, um movimentoque aos poucos foi baixan-do por falta de investi-m e n t o s , s o b r e t u d o aausência de restaurantes,hospedarias, sinal de te-lefonia móvel, energia eestradas em condições.

Outrora, à chegada aoslocais de lazer, os visitantesencontravam de tudo umpouco: churrasco de galinhaviva ou frango, feijão deóleo de palma, grelhadosde cacusso e sardinha acom-panhados com funji (de

massango, bombó ou milho)ou ainda batata-doce e ba-nana pão e farinha musseque,além de uma diversidadede bebidas alcoólicas ourefrigerantes.

Alguns destes lugares sãocaracterizados por uma ve-getação densa e outros poruma mistura de relva, pe-dras e árvores, que os tornamais apetecíveis, além daágua dos rios que se perdemno além. Os corações apai-xonados perdem-se na flo-resta, enquanto outrosficam à beira-rio a contarhistórias, quando não vãomesmo dar um mergulho.

As pessoas mais reser-vadas preferem os lugaresdistantes, como são os ca-sos de Luassingua e Caiun-do (Menongue), as quedasde Canquina ou as mon-tanhas de Maculungungo(Cuchi), que, em abonoda verdade, são verdadei-ras “obras de arte” da na-tureza, mas que precisamde investimentos.

Pesca fluvialO movimento começa àsseis horas da manhã. Osmeninos que lavam as via-turas dos turistas, sobretudona Ilha dos Amores e nabarragem de Cambumbe,

a menos de quatro quiló-metros da cidade de Me-nongue, são os primeirosa chegar. Munidos de bal-des e panos, disputam en-tre si o primeiro veículo achegar no local, sendo ne-cessário, às vezes, a inter-venção do proprietário daviatura, que seleccionaquem vai lavar o meio.

Existem também zonasfluviais identificadas comosendo de risco, por teremfortes correntezas e inú-meras rochas. Aí, quandochove, o caudal aumenta,causando afogamentos eataques de jacarés.

Quando o caudal estábaixo, dezenas de pessoas,de várias idades, com canasartesanais de pesca e mos-quiteiros, pescam cacussoe bagre, que vendem aosturistas, havendo, entre-tanto, quem prefira comer-cializar o peixe nas ruas dacidade de Menongue.

João Cambinda, 35 anos,pescador há mais de cincoanos, contou à reportagemdo Jornal de Angola que,na companhia de amigos,com canas artesanais depesca e mosquiteiros, pes-ca, diariamente, nos riosKwebe e Luahuca, 15 a 20quilos de peixe, que podem

render entre 10 mil e 15 milkwanzas. Cambinda disseacreditar que caso se or-ganizassem em coopera-tivas e recebessem o apoiodo governo muitas famíliassairiam da extrema po-breza em que vivem. Disseainda ser necessário queo governo potencialize ospescadores artesanais com

coletes, redes, baldes ebóias, entre outros mate-riais. Salientou que os riosque serpenteiam a cidadede Menongue são bastantericos em peixe e, com o de-vido apoio, seria possívelaumentar a captura do pes-cado com a garantia de che-gar em perfeitas condiçõesao consumidor final.

CIDADE DE MENONGUE

Zonas de lazer precisam de atençãoA província do Cuando Cubango possui inúmeras zonas paradisíacas que, por via do turismo, poderiam engordar

os cofres do Estado, mas, à falta de investimentos, grande parte destas áreas apresenta uma degradaçãoacentuada. Esta degradação também é fruto das más práticas do homem na utilização dos recursos naturais

LOURENÇO BULE | EDIÇÕES NOVEMBRO | MENONGUE

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TURISMO 17Domingo12 de Julho de 2020

O Jornal de Angola deslo-cou-se às margens do rioLuahuca, ao encontro do la-vador de carros João SimãoLingone, 20 anos, estudanteda 9ª classe no ComplexoEscolar da Missão Católica.Ele revelou que lava diaria-mente dois a três carros. “Co-mecei a trabalhar na placa(local de lavagem de carros)para suportar os estudos,depois de perder o meu pai,quando ainda frequentavaa 6ª classe. O dinheiro queganho diariamente serveainda para sustentar a minhamãe, os meus dois irmãos epara comprar roupas e cal-çados”, disse.

O chefe da placa da MissãoCatólica, Elias Daniel, “TiDany” para os seus amigos,expressou que o trabalho nolocal começa todos os dias àsseis horas e termina às 18.Mais de 30 jovens e adoles-centes prestam serviço de la-vagem de viaturas ligeiras epesadas. Salientou que cobram300 kwanzas para lavagemde motorizadas, mil para tu-rismos, 1.500 para os hiaces,2.000 para os autocarros eentre 3.000 e 4.000 para oscamiões. “Para conseguir‘bom cumbú’ (mais dinheiro)

tem que se partilhar o maiornúmero de carros possíveis,principalmente os de grandedimensão”, explicou.

Acrescentou que dois la-vadores podem ocupar doisou quatro carros simulta-neamente. Com um pacotede whisky “The Best” namão, “Ti Dany” disse que naplaca cada lavador de carrotem o seu “boss” (cliente).“E, quando este chega, nin-guém pode encostar, a nãoser o jovem que presta ser-viço na referida viatura. Todomundo deve respeitar esteparadigma, para que nãohaja conflitos. Caso alguémquiser se apoderar do bossalheio, é expulso”, afirmou.

Revelou que a placa é mui-to concorrida pelos hiaces,principalmente na época chu-vosa, mas actualmente, coma situação de pandemia e aépoca de frio, o movimentotem sido bastante reduzido.

O funcionário público Au-rélio Ndala Cativa disse queo trabalho dos lavadores naplaca do rio Luhaúca é bas-tante proveitoso, visto quechegam a lavar as viaturasmelhor que nas estações deserviço. “Como sabem queé o seu ganha-pão, os rapazes

dedicam-se a fundo, para,quando necessário, volta-rem a ser requisitados osseus serviços”.

Aurélio Cativa frequentao recinto de lavagem há maisde quatro anos e nunca ouviurelatos de roubos no interiordas viaturas, tudo porque“estes meninos levam a peitoo trabalho que exercem dia-riamente, para satisfação dosseus clientes”.

Apelou ao governo doCuando Cubango no sentidode ajudar os jovens lavadoresde viaturas com meios detrabalho e a criação de con-dições condignas para o exer-cício das suas actividades.

Sem medo da Covid-19Ana Capanguila, carinho-samente tratada por “MãeAna”, comercializa refeiçõesa 100 e 200 kwanzas para osjovens lavadores da placa daMissão Católica. Grávida desete meses, “Mãe Ana” nãomede esforços. Acompa-nhada da filha de 13 anos,transporta as refeições, queconfecciona em casa, emdois baldes de 20 quilos.

Ângela Mbaca, 16 anos,vende bebidas alcoólicas,refrigerantes e petiscos numa

barraca improvisada. Ela estána placa todos os dias, das8 às 18 horas. “O negóciorende mais nos finais de se-mana, podendo até vendermais de quatro grades decerveja ou gasosa. Nos diasnormais, vendo apenas qua-tro a cinco bebidas”, disse.

Na placa da Missão Cató-lica, na Ilha dos Amores, nabarragem de Cambumbe, enoutros lugares de lazer emMenongue, as pessoas pro-curam afogar as mágoas pro-vocadas pelo surgimento dapandemia do novo coronavírus. Apesar da volatilidade,

em termos de contágio, aspessoas parecem não se im-portar muito com as medidasde segurança, a julgar pelaforma como se posicionamnos referidos locais, não obe-decendo às normas do dis-tanciamento e nem usandomáscaras faciais.

Lavagem de carros à beira do rioLOURENÇO BULE | EDIÇÕES NOVEMBRO | MENONGUE

DR

PROPRIETÁRIOS DE ESTAÇÕES DE SERVIÇO E OFICINAS-AUTO EM LUANDA

Antigos lavadores de rua agora são patrõesAntigos lavadores de carros nas ruas de Luanda são, actualmente, proprietários de estações de serviço. Algunsevoluíram mesmo para a prestação de serviços de mecânica, pintura, chaparia e venda de acessórios de viaturas

Paulo Mulaza

Jesus Manuel Viegas, mais co-nhecido por “Moda”, 34 anos, eOsvaldo Faria, 30 anos, actualmentesócios, começaram a lavar carrosem 2014 na Chicala e na Mutamba.Ao longo do tempo, juntaram di-nheiro e adquiriram máquinas delavagem de viaturas, a saber, com-pressor de ar, pistola de parafinare máquina de aspiração... Hojetêm a sua própria estação de ser-viço. A água para a lavagem é com-prada nos camiões cisternas.

A ideia da criação da estaçãode serviço surgiu em 2016, no sen-tido de aproveitarem um espaçodeixado vago pela demolição deresidências no bairro da Chicala.A razão das demolições era a cons-trução de um moderno projectohabitacional, que, entretanto, nãofoi concretizada. “Aproveitamosentão o espaço para lavar algumasviaturas. Até que adquirimos omaterial adequado” para a estaçãode serviço.

De acordo com Jesus Ma-nuel Viegas, “muitos clientestêm aparec ido com as suasviaturas, em função dos preçosque são acessíveis”.

Alex Gaspar, cliente, disse aoJornal de Angola que gosta dotrabalho da estação de serviço.“É de louvar a iniciativa destesjovens empreendedores, queprecisam ser apoiados pelo Go-verno”, frisou.

Jesus Manuel Viegasdeu a co-

nhecer que, brevemente, ele eo sócio vão abrir uma oficina-auto, que abarcará os serviçosde mecânica, bate-chapa e pin-tura. O jovem empresário nãoquis revelar o valor dos lucrosque arrecada anualmente.

Oficina-auto “Alegroupz”Sérgio Alexandre, 34 anos, é o donoe administrador da oficina-autoe estação de serviço “Alegroupz”.Ele não chegou a ser lavador decarros na rua. O seu empreendi-mento começou por ser unicamenteestação de serviço, há seis anos,e alguns dos seus primeiros fun-cionários lavavam carros na rua.“Comecei com a prestação de ser-viços de lavagem de viaturas. Emfunção do desafio que se impunha,iniciei, dois anos depois, a activi-dade de assistência técnica aosautomóveis, porque foram apare-cendo clientes que traziam os ma-teriais para a revisão das suasviaturas”, disse.

Segundo contou, Ségio Alexan-dre recrutou os técnicos, uns comexperiência trazida de outras ofi-cinas e outros novatos, aos quaispropiciou formação e só entãoabriu a oficina. Assim, o estabele-cimento, além da lavagem, passoua fazer as revisões periódicas doscinco mil quilómetros.

“Fomos crescendo cada vezmais e, depois, incluímos os serviçosde mecânica, chaparia, pintura evenda de acessórios. De acordocom a procura, fomos chamando

a atenção de pessoas ligadas a vá-rias instituições credíveis, quemostraram interesse nos nossosserviços”, informou.

O jovem deu a conhecer que,hoje, a sua oficina presta serviçosde assistência técnica ao Ministériodas Relações Exteriores, ao Go-verno Provincial do Zaire e a váriasseguradoras reputadas no mer-cado. Mas não quis dizer quantoganha anualmente.

No dizer de Sérgio Alexandre,isso obriga-o a capacitar maisos técnicos, incluindo nas novastecnologia de informação, “por-que as viaturas trazem sistemasinformatizados”.

“Adquirimos um aparelho in-formático para diagnosticar o es-tado técnico das viaturas. E temosdois elevadores que dão acesso àparte da cave. A cave é o espaçoadequado para a pintura de viaturasem estufa”, frisou, revelando quea oficina emprega, actualmente,37 pessoas. Disse que era sua in-tenção ampliar as instalações eempregar mais jovens. Mas a pan-demia da Covid-19 criou-lhe en-traves. Optou pela redução dopessoal em 50 por cento.

“Estamos a seguir todas as orien-tações de biossegurança dadaspelas autoridades sanitárias, comoo uso de máscaras. Temos, também,a obrigação do uso de álcool-gel.Temos, na recepção, uma torneirapara a lavagem das mãos, para ostrabalhadores e clientes”, garantiuSérgio Alexandre.

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MÚSICA18 Domingo12 de Julho de 2020

MITO GASPAR E GABRIEL TCHIEMA

Quando a tradiçãoé moderna

Foi ao ritmo do madurme, diembe, dibuanga, txianda emakopo, sonoridades que animavam os momentos dosunguilar nos antigos reinos do Ndongo e da Matamba e no Império Lunda-Tchokwe, que a dupla Mito Gaspar e

Gabriel Tchiema levantaram o ânimo de muitos angolanos confinados em casa. O concerto da dupla decircunstância esteve inserido em mais uma edição do Live no Kubico, uma parceria entre a TPA e a Platinaline

Analtino Santos

Apesar de nãoconstituírem,formalmente, uma dupla,ambos os músicos partilhammuita coisa, pelo que a suapresença conjunta em palconão surpreendeu ninguém:os dois são antigos militaresdas ex-FAPLA, foram ven-cedores de concursos de tro-va, ganharam o PrémioNacional de Cultura e Artes,são antigos directores daCultura nas respectivas pro-víncias natais (Malanje eLunda-Sul) e, curiosamente,deram-se a conhecer comoartistas fora delas: Mito Gas-par na Huíla e Gabriel Tchie-ma em Cabinda.

A presença dos dois nummesmo palco mostrou a ricadiversidade rítmica de An-gola, provando que outrosgéneros musicais, além dosemba, podem servir de ban-deira para o país. Outro as-pecto que caracteriza acarreira dos músicos é o factode terem como marca a pes-quisa e modernização da tra-dição, facilmente visível noeclectismo e hibridismo dasrespectivas criações artisticas.Depois do furacão “3G doSemba”, que na semana an-terior pôs em palco Bonga,Paulo Flores e Yuri da Cunha,e não beneficiando, nem de

longe, do marketing do liveque juntou o trio, o concertode Mito Gaspar e GabrielTchiema também prendeuos angolanos e até mexeucom o “inquilino” do PalácioPresidencial. João Lourençofoi ao Twitter e felicitou osorganizadores dos lives e osmúsicos intervenientes.

Muitas foram as residên-cias e outros espaços de(re)união onde a plateia nãoficou presa apenas aos imó-veis. O Jornal de Angola teveconhecimento que na Lun-da-Sul, Lunda-Norte, Ma-lanje, Huíla, Luanda e noutrasprovíncias muitos telespec-tadores tiraram a mulala efizeram o adorno para rebolarao som da txianda. Dias antesdo concerto, a cantora Ary,em declarações ao programada TPA Janela Aberta, já aler-tara que o espectáculo seriauma aula que ela própria nãoiria perder. “Estes são doisgrandes senhores da nossamúsica. Pena que muitosnão lhes dão a merecidaatenção. Quando venci, pelaprimeira vez, o Top dos MaisQueridos, em Malanje, o Mitofoi o homenageado e vi oquanto ele é grande. O Ga-briel Tchiema tem aquelecantar em que o cokwe atéparece inglês, gosto daquelejeito dele dançar meio fino”,declarou então a diva Ary.

PLATINALINE

Mergulho na ancestralidadeNão polemizandomas sendorealista, os dois são artistas

deste (nosso) tempo,que têm o méritode transportarpara a moder-nidade o que

absorveram datradição. Mito Gaspar conse-gue transportar para as suasmúsicas os ensinamentos dasnoites de batuque e sunguilare Gabriel Tchiema o que cap-tou em rituais como a mu-kanda, ambos com muitaclasse, o que facilitou e tornouainda mais agradável a tardedo encontro que teve muitodo sunguilar do Ndongo e damukanda da Lunda.

Gabriel Tchiema fez-seacompanhar pelo seu inse-parável companheiro Roberto“Bebucho”, nos tambores.Bebucho, além de tocar a

txianda e o makopo como nascelebrações das mais recôn-ditas aldeias do Leste, trazao palco a dança animada daterra e, com isso, faz um showà parte. Bevin, na bateria,completou a cozinha percus-siva, enquanto as harmoniassaíam dos teclados de Kevin.O solos e os ritmos foramexecutados pelo dedilharguitarrístico de Melo e a mar-cação dos sucessos de Tchie-ma foi da responsabilidadede Diego, o baixista. Todosforam absolutamente deter-minantes no acompanha-mento dos temas.

Já Mito Gaspar, que saiudo seu exílio voluntário daKangandala, optou pelo re-forço de alguns colegas e ami-gos da Banda Maravilha, bemcomo do “Bakongo da Nguim-bi” Teddy Nsingui - que de-

dilhou solos que viriam a sermuito bem comentados nasredes sociais - Mias Glahetasno baixo, assim como ChicoMadne e Mimi nos teclados,todos bastante conhecedoresda música de Mito Gaspar.E, como o momento era mes-mo de cumplicidade e par-tilha, Bevin, Bebucho e acorista Sandra Samanta re-forçaram as hostes do ilustredescendente dos Ngola. Dja-nira Mercedes, a filha de Mito,também esteve em palco.Ela, no final, afirmou: “Foiuma experiência agradável,como sempre. Não é a pri-meira vez que isso acontece,mas olha que cada show éespecial e fica sempre o apren-dizado diferente do anterior,sem falar da emoção”.

Gabriel Tchiema e MitoGaspar raramente deixaram

de lado o violão, de tal modoque este instrumento quaseparecia o prolongamento dosseus corpos. Aliás, não é de-mais repetir, ambos são filhosda escola da trova, géneroque os notabilizou no inícioda carreira.

Gabriel Tchiema foi o pri-meiro a apresentar-se com“Makume” e depois, em mo-mentos intercalados, com“Mulekeleke”, “Ndako Pi”,“Chique-Chique”, “Mbimba”,“Makoke”, “Itela” e “Azulula”.Já Mito Gaspar entrou com“Man Polé” e também emvários momentos desfiloucanções como “Kassexi”,“Eme”, “Kikuka Kia Mona”,“Palanhe Ngo”, “Mana Minga”e fez duetos com a filha Dja-nira Mercedes em “Mahezu”e com Marília em “KikukaKia Mona”.

PLATINALINE

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MÚSICA 19Domingo12 de Julho de 2020

Há um pensamentopresenteem momentos de animaçãona Mukanda, que é o seguinte:“Lunga kamuzangila kwassambola chuta golo” (“Gosta-se de um homem que joga abola e marca golo”). Essa afir-mação pode ser adaptada aocontexto da música e passaa ser: “Gosta-se de uma mú-sica quando ela atinge-nos,ou seja, é sucesso para nós,eles marcam golos”.

A dupla destaca-se tam-bém pela preservação daslínguas nacionais.São poucosos temas seus cantados emportuguês, o que não retiraa popularidade e o alcancedas obras de ambos longedos espaços rurais. Pelo con-trário, eles são dos músicosmais apreciados e consu-midos nos meios urbanos,beneficiando, talvez, daemergência de um certo re-vivalismode raiz tradicional.Este é um campo aberto apesquisas de sociologia e deantropologia musical.

Em “Amor Divino” Ga-briel Tchiema, um românticoassumido, faz-se entendersem problema e vai na mes-ma linha em“Azulula”, umperfeito hino ao amor, emque pede à amada que lheabra o seu coração. MitoGaspar, num dos raros mo-mentos em que canta nalíngua de Camões,em “Oque será”,transmite umamensagem de amor à pá-tria, inspirada no pós-con-flito armado.

Os dois aceitaram o de-safio de explicar alguns dostemas que interpretaram.Gabriel Tchiema optou porfazer a tradução de algunsdos seus versos, alertando,contudo, que isso nem sem-pre é fácil.Eis o que colhemosdesse exercício: Mulekeleke–“O olhar i luminava ochão/Quando ouvi do outrolado belas canções /Fui comos meus amigos e dançamoso Makopa até a alvorada/Quando volteià casa a mi-nha esposa estava triste/On-de passou a noite homem /Nãoouvi o movimento do teu passoque é forte/ Aye ye iye... Oque era casamento hoje virouproblema /Mulher… como ex-plicar/Mulekeleke”.

Mbima–É feita a introdu-ção com uma canção da mu-kanda que é independentedo conteúdo principal, quediz: “Minha irmã deixa-mecantar/ Pois o marido temrespeito porque na morte danossa mãe foi ao adivinho edescobriu o feiticeiro/ Maso amante não tem respeito,pois na morte da nossa mãefugiu e ficou bem distante/Amulher merece ser mimadaenxugar as suas lagrimas econfortá-la no colo/ Não adesprezes nem a olhes comdesdém, porque isto de can-tar é antigo /Por isso limpeas lágrimas e dê mimos”.

Itela –“O meu coração in-quieta-se quando não te vejominha Itela/ Quando fostea lavra, deram-me de comernão comi/ Os meus amigosconvidaram-me para verAngola jogar não liguei/ Atémesmo o hidromel que tantogosto não bebi /Os meusolhos preguei no caminhopara ver-te chegar/ Eo meucoração acalmar”.

Makumi –“O meu amorpor ti é verdadeiro/ Sintotristeza no meu peito se atéchegar a noite não te ver/Sei que falam da minha po-breza/ Mas, mesmo assimquero-te infinitamente/Minha gente, do laço de ou-trem não se tira a raposa/Falam sobre mim e fazemcoisas como se fosse vossoinimigo/ Que vergonhoso/Quando não te vejo quandonão te bebo/ Quando nãoouço a tua voz/ Quando nãovejo o teu corpo/ Fico febrile tenho tremores”.

Makoke –“Ser família eracomo sal antigamente/ O teusofrimento também era meu/A minha alegria tambémeratua/ Os irmãos e os tios eramos nossos pilares /Mas hojepassaram os anos/ E a de-savença enteou a sanzala/O teu sorriso esconde mal-dade/ A tua arbitragem temsempre um lado / Na tuaboca tem mentiras/ Mentirasde morte”.

Já o antigo jornalista daRádio Huíla, Mito Gaspar,optou por sintetizar algunstemas. Começou por explicarque “Eme” é uma traduçãonão literal do poema ”Re-

Perceba o que eles cantaram

núncia Impossível”,de Agos-tinho Neto, e Hadia Vutukauma adaptação do famos-síssimo poema “Havemosde Voltar”, também de Agos-tinho Neto. Já “Kikuka KyaMona“ é uma homenagemaos ancestrais dos vários rei-nos que existiram no actualterritório de Angola,que re-sistiram à penetração e do-minação colonial , comenfoque ao Reino do Ndongoe da Matamba. A músicatambém enaltece as vítimasdo Massacre da Baixa de Kas-sanje, um marco no percursoda Luta pela Independência.“Apesar das sevícias do co-lonialismo, um dia seremoslivres e donos do nossodestino, qual mel com osabor mais adocicado queexiste”:assim cantavam mui-tos angolanos na Baixa deKassanje.

“Phalahi Ngó”referenciaa inveja, o egoísmo, a faltade humanismo, etc., comoimperfeiçõesinatas dos ho-mens, apesar de Deus, emtoda a Sua sabedoria,terconcebido o Homem à Suasemelhança, ou seja, naperfeição. “Kassexi” é umaparábola proverbial queevoca as assimetrias so-ciais que criamos paranós mesmos, em que ascompetências e o méritosão ofuscados.

“Mahezu” é uma saudaçãocom respeito e “Mana Minga”uma canção popular origi-nariamente recolhida pe-los“Ndengues do KotaKuduro”. “Man Pole” é aconhecida história do ho-mem que vai a um óbito ecomeça a conquistar umamulher casada.

A publicação defelicita-ções de João Lourenço noTwitter, depois do concertoque vincou a diversidaderítmica e cultural do país,mostrou que o Presidenteda República está atento àsiniciativas da sociedade civile, particularmente, ao con-tributo dos artistas. MitoGaspar agradeceu ao gesto,mas deixou um recadomuito forte, afirmando quea classe dos músicos sem-pre deu o seu melhor aoserviço da pátria.

PLATINALINEPLATINALINE

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HOMENAGEM20 Domingo12 de Julho de 2020

Horácio Lara faleceu a 23 de Junho último na cidadede Benguela, aos 90 anos de idade. O antigo jogadordo Portugal de Benguela, hoje Nacional de Benguela,foi o último dos filhos de Ernesto Lara a falecer.Segundo o lobitanga Arlindo Leitão, treinador defutebol na reforma, os irmãos Lara eram muitoconhecidos nos meios desportivos de Benguela.Quatro deles eram exímios futebolistas, sendo quetrês dos quais se tornaram campeões de Angola. O mais velho Bernardo Lara foi campeão de Angola,em 1943, pelo Benfica de Benguela; na década de1960, António Lara e Horácio Lara tambémganharam vários campeonatos de Angola, no célebreSport Club de Portugal de Benguela, segundo ArlindoLeitão, “com uma equipa fabulosíssima” ondepontificavam nomes como Valongo, Miau, Pila,Amaral o Botija, os Malta da Silva, JanuárioKandengandenga, Luz, Silva Martins, Quim, Neto etantos outros. Jaime Lara era um bom avançado doBenfica de Benguela. Ernesto Lara Filho, o inventorda crónica à mwangolé e kassule da família, uma vezconfessou ao amigo Arlindo Leitão: “Só eu era aexcepção, jogava muito pouco, os meus manos erammuito bons futebolistas, eram craques”. Convémainda mencionar que os Lara aqui referidos eramirmãos da poetisa Alda Lara e primos do grandenacionalista Lúcio Lara. Publicamos o texto deFernando Fonseca Santos, de homenagem a HorácioLara, bastante rico em evocações que, certamente,calarão fundo na memória dos elementos da suageração e ecoarão nas mentes dos mais novos

Fernando Fonseca Santos

Ao Meu muito queridoHo-rácio Lara.O meu maior Amigo reen-viou-me, por Whatsaap, anotícia da tua morte, assinadapor Arlindo Leitão.

A notícia dizia, em co-medidas, mas certeiras pa-lavras, tudo aquilo que deviadizer, dispensando-se deoutras palavras que não sãonecessárias para que, ao sa-bermos da tua morte, tivesse,de imediato, sucedido, naalma daqueles em que con-tinuarás a viver, esse algo,tão especial, tão raro e tãoprofundo que nos terá feitochorar, com dor verdadeira.Tudo isto, Horácio, como tusabes, implica amizade, ad-miração e respeito, mas, ain-da, aquele mais, que seexpressa nas recolhidas ati-tudes que são só possíveisno íntimo daqueles que sa-bem das razões que nos le-vam a c u r va rmo -no sperante a tua memória.

Em mim, nas horas se-guintes e, com certeza, tam-bém, adiante, encontrei acerteza que me sussurrouque continuarás a viver en-quanto eu viver e for capazde, lucidamente, continuara pensar. Foi essa certezaque me ajudou a começar amoldar a angústia que, nanossa Terra, tendo o sentidopleno normalmente inerenteà sua semântica, tem tam-bém esse algo tão original e

tão caracteristicamente an-golano que talvez só caibaem asingwe (sic). Foi comasingwe que eu deixei, queas memórias que, então,como a onda mais alta damaior das calemas, alagan-do-me, atingissem aquiloque fica para lá do limiteque talvez só haja e só caibaem ongeva (sic).

E acredita que, nesse mo-mento, de sentida, profundae dolorosa emoção, pensandoem ti, pensei também no teuIrmão António.

Sei que o fiz porque tinhade me procurar defender.Sei que foi assim porque foiaquilo que a minha humanacondição então entendeuque se haveria de impor co-mo lenitivo. Foi também as-sim porque essas memóriascontinuam a ser, realmente,importantes. E lembrei-meque com o teu Irmão vivi,quando tinha nove anos,dois momentos que me mar-caram para a vida. Ter comele ajudado o Abrantes –esse mesmo, que era um ho-mem de bem e de esquerda,uma esquerda que Benguelasempre acarinhou –, a ar-rancar, ainda não eram seteda manhã, os poucos cartazesda campanha presidencialde Humberto Delgado quehaviam sido colados sobredois cartazes da campanhade Arlindo Vicente. Isto su-cedeu dias antes deste últimoter desistido da sua candi-datura presidencial a favordo primeiro. Insólita essa

minha primeira acção polí-tica, em que me limitei a se-gurar um balde com águaque facilitou a dita tarefa.Para me ter disposto a fazê-lo necessariamente contouter pensado que bondade te-ria mesmo de assistir no ar-rancar daqueles cartazes dopilar de um prédio situadona Avenida que então se cha-mava 5 de Outubro. Na ver-dade, quem o estava a fazereram dois homens, que eubem conhecia e que o meuPai muito prezava.

E importa aqui relembrarque, dias depois, Benguelafoi a única cidade de Angola,capital de Distrito, em queHumberto Delgado ganhou,porque civicamente houvepessoas mais do que sufi-cientes para se imporem,com a devida coragem cívica,aos servidores do regime sa-lazarista, assim, evitandoque, ao menos, em Ombaka,não se concretizasse a tra-dicional chapelada.

“Por seres quem és”Mas o que guardei e aindaguardo dessa manhã – e queacho que te devo contar –,foi aquilo que teu Irmão An-tónio, terminada a tarefa,disse ao Abrantes – “Aju-dei-te por seres quem és.Para mim pouco contam es-tas querelas das políticas dePortugal! Os cartazes de queinteressa encher a cidadesão outros.”

E olhou para mim e sor-riu-me.

O que o António disse fi-cou em mim como algo queachava que teria de tirar mes-mo a limpo. Dias depois, en-contrei-o na praia. Hesitei,hesitei, ganhei mais balançoe, com isso, a coragem deme levou a perguntar-lhe –“Que cartazes é que tu achasque devia haver na cidade?”

Lembro-me, ainda hoje,talvez já não do sorriso queterá tornado mais expressivoo seu rosto, mas daquele quena minha memória se foitornando uma expressão,bem marcada, que ainda re-tenho, e ouvi-o dizer – “Car-tazes dos Filhos da Terra...Cartazes que exigem a In-dependência de Angola...”

O António, como tu, exis-tindo, vivendo, e, então, ain-da tão novos, faziam já partede um alargado conjunto degrandes jogadores de futebol,que tinham, pelo menos, emmim, a dimensão mítica ne-cessária à construção daquiloque, por facilidade, referimospor fermento das lendas. E,desde que me lembro, issoera assim, e era independentedas minhas simpatias clu-bísticas.

O futebol para mim tevesempre, reconheço, impor-tância demais.

A ligação clubística tam-bém.

Mas felizmente – talvezporque nunca fui capaz deconviver com fanatismos,sejam eles quais forem –, seidolatrei alguns que jogaramno meu clube –, tive sempre

– felizmente fui capaz disso– admiração verdadeira e,por vezes, rendida, pelo ta-lento e, sobretudo, pelo géniode muitos que jogaram ouainda jogam em Clubes quenão são o meu.

Vê lá, Horácio, mesmoque esses clubes tenham sidoou sejam clubes rivais.Por isso, não era apenas oNeto, que chegou de Cabinda,e, depois, o Valongo, que co-meçou no F. C. do Lobito, oNeves, a quem chamávamosZé Bala, nome que surgiu deuma lenda, que hoje se diriaurbana, que lhe imputou afaçanha de ter morto umCatxinjonjo (beija-flor) comuma lamesga, o Alberto, oRui Amaral dos Santos, aquem os mais próximos cha-mavam Botija, enorme defesacentral, o Lage, o Cruz, aquem todos chamávamosPila, o Edelfride Palhares daCosta, nome de baptismodaquele que foi, pese o seumenor talento futebolístico,o grande Miau, o Fausto Luz,cujo talento compensava delonge a baixa estatura, eleque foi e, depois, quando eradifícil, demonstrou ser omaior amigo do Daniel Xi-penda, e aqueles sete avan-çados de sonho, o AntónioMalta da Silva, tu, o teu IrmãoAntónio, o Jonas Silva Mar-tins, o Januário, o Quim, e,depois de vós, ou ainda coe-xistindo futebolisticamenteconvosco, o Amândio Maltada Silva, que, depois, duranteanos, foi defesa direito de

um grande Benfica treinadopor Jimmy Hagan, a tal equi-pa que ganhou um Campeo-nato Nacional Português semderrotas, o Emílio Peiroteu,o Jota Jota, o Quim dos San-tos, que jogou mais tempo,mas ao mesmo nível que oseu Pai, Joaquim dos Santos,jogara, anos antes, o seu Tiomaterno, Victor Hugo, que

Adeus a um ilustre filho de Benguela

Tu foste umjogador fabuloso.

Não tinhasapenas talento.Tinhas génio.Foste sempre

discreto,correctíssimo e

elegante dentro efora do campo.

Mas tinhastambém uma

maneira de serque limitava a tua

ambição comofutebolista e talassentava numapensada e muito

séria opçãoque fizeste

DR

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HOMENAGEM 21Domingo12 de Julho de 2020

só jogava bem quando lheapetecia e era um temívelrematador, o meu grandeamigo Hermínio Sardinha,tantos outros, mas também,falando de jogadores de ou-tros clubes e apenas de ver-dadeira classe futebolística,o Santiago, o Couceiro, o ZéManel, o Yaúka, o Jordão, oParis I e o Paris II, o CunhaVelho, os talentosíssimosRui Walter de Menezes Cohendos Santos, o Fernando Bar-roso, o Lagartixa, o NandoSardinha, de quem, eu quesou filho único, sempre mesenti e sinto Irmão, o Gregórioe o seu potentíssimo remate,o Malagueta, que quandoveio para o Porto, ganhou olugar ao Nóbrega e, depoisse deslumbrou, desperdi-çando verdadeiro génio, osmanos Jordão, sobretudo oRui, que foi tão longe e po-deria ter ido ainda mais longe,muito mais longe, o que tal-vez tivesse contado para,anos antes de morrer, terdeixado de falar e de se in-teressar por futebol.

Jogador fabulosoDigo-te isto, meu QueridoHorácio, para te poder di-zer, com verdade, since-ridade e respeito, ainda oseguinte:Tu foste um jogador fa-buloso.

Não tinhas apenas talento.Tinhas génio.

Foste sempre discreto,correctíssimo e elegante den-tro e fora do campo.

Mas tinhas também umamaneira de ser que limitavaa tua ambição como fute-bolista e tal assentava numapensada e muito séria opçãoque fizeste.

Querias viver e ser feliz.Querias isso, mais do quequalquer outra coisa. E serfeliz, para ti, implicava vi-veres em Benguela.

Se me permitires, a tuamaneira de ser, esteve sem-pre espelhada na tua maneirade jogar futebol.

Eras tecnicamente umportento. Não parecendo, ti-nhas a necessária capacidademuscular que permitia ar-ranques súbitos e poderosos.Tinhas o dom da finta de cor-po, sempre feita em pro-gressão, com utilidade e cominteligência. Mais do quevisão de jogo, tinhas a per-cepção necessária para an-tecipares, não apenas o quedeverias fazer em cada jo-gada, mas para antecipareso que os teus opositores iriamfazer. Tinhas uma capacidadede drible verdadeiramentenotável, mas que sempre su-bordinaste ao que mais in-teressava à equipa. Foste umjogador da qualidade daque-les que permitem a afirma-çãode que, o futebol, jogadoao nível mais alto, é inteli-gência em movimento. Etendo a necessária potênciade remate e, mais do queisso, colocação de remate,a verdade, Horácio, é quenão rematavas. Os melho-res golos que te vi marcarforam golos em que en-traste com a bola dominadapela baliza adentro.

Eras assim, foste assim,escolheste conscientementeser assim.

E acredita. Isso foi algoque como jogador e como

homem muito pesou na ad-miração que tenho por ti.

Umas últimas notas muitopessoais. Não sei já, com acerteza devida – se foi a mi-nha Mãe ou o meu Pai quete ensinaram a ler, a escrevere a contar. Sei, no entanto,da amizade que tiveste poreles. Não sei se sabes tambémque foi o teu Pai que chamoua minha atenção e depoisarranjou maneira de eu ler,uma edição clandestina emque, sob o título “Os Sub-terrâneos da Liberdade” es-tava agrupada essa Trilogiade Jorge Amado, na qual,sem ser personagem, a maiore devida importância do Au-tor foi reservadaa Luís CarlosPrestes. E isso, como se dizna nossa Terra, sendo nessaaltura “um enorme favor,não é susceptível de retri-buição”, e, mais, nem o maisreconhecido agradecimentoequilibra os pratos dessa ba-lança. Só resta, então, nuncaesquecer esse gesto e a purezada sua intenção.

Repousa em paz, Horácio. Que omwenho, o teu ven-

to de vida, tenha o descanso,que, realmente, merece entreas folhas das árvores queainda cercam, a oeste, o cam-po de futebol do nosso Clube,embalado por um sortilégiodo Sékulo Guilherme.

Sabes que viverás semprena minha alma, como An-golano, que sempre quisestee soubeste ser e,antes demais, por isso mesmo.

Tive pena de não ter po-dido estar em Benguela.Acompanhar-te ao Kalundo,para melhor te chorar e, de-pois, com amizade e respeito,colocar, sobre a tua sepulturaum torrão de terra, da Terraque tanto amamos. À saída,voltado para a vala que hojeguarda o Curinge, teria lido,mais uma vez, no memorial,que guarda o túmulo da nossaquerida Alda Lara, os versosmais impressivos de“Re-gresso” o Poema, que talvezseja muito mais vivo e ple-no, e ganhe, então, verda-deiro sentido, em pessoasque ainda são como nós –“Quando eu voltar/que sealongue sobre o Mar/o meucanto ao Criador (...)”

Eu sei, assim, que tu tensa certeza de que continuarása viver na memória, na alma,no coração e no pensamento,não só de quem foi teu ami-go, mas também de quemteve o privilégio de te verjogar futebol e sabe, sen-tindo, de tudo isto que mesenti compelido a dizer-te.

Primeiro doutoramentopor videoconferência

Arão Martins | Lubango

A defesa da dissertação in-titulada “Competências deLiteracia Académica Bilingue(Português/Inglês) dos Gra-duados em Ensino de LínguaInglesa em Angola” foi in-serida no programa de coo-peração existente entre oISCED-Huíla e o Institutode Letras e Ciências Huma-nas da Universidade do Mi-nho, Portugal. O júri foipresidido pela professoracatedrática Isabel CristinaCosta Alves Ermida, do De-partamento de Estudos In-gleses e Norte-Americanosdo Instituto de Letras e Ciên-cias Humanas da Universi-dade do Minho.Até ao momento do início

da sessão, a expectativa dospresentes na sala do ISCED-Huíla, seleccionados à risca,era ver até onde ia a opera-cionalidade das comunica-ções entre o candidato adoutor que se encontrava noLubango e o corpo de jurados,constituído por seis elemen-tos, que se encontravam emdiferentes localidades dePortugal. Os que receavama quebra do sinal engana-ram-se, pois a dissertação ea defesa foram feitos mesmoem tempo real. Duas horase trinta minutos foi o temposuficiente para o candidatoao título de Doutor responderao conjunto de perguntasvindas de Portugal por vi-

deoconferência. O júri atri-buiu, no final, a nota “Muitobom”, para o aplauso dospresentes e o natural regozijodo novo Doutor.Joaquim Castilho Cacum-

ba disse ao Jornal de Angolaque o texto da sua disserta-ção de doutoramento temum total de 554 páginas edeve orgulhar a Huíla, emparticular, e o país em geral.“Agradecer a Deus, o meuGeneral, pelo dom da vida,pela minha saúde, pelaconsumação da minha fé,pelas variadíssimas bên-çãos e por entregar o meudestino nas mãos de pes-soas maravilhosas, dedi-cadas e tão espec ia i s”,afirmou ao Jornal de Angola,cheio de contentamento.O académico estendeu

os agradecimentos à sua fa-mília. “A família é sempreum pilar. É preciso ter alguémque cuide das nossas trasei-ras. A minha esposa e osmeus filhos jogaram um pa-pel muito grande. Foram sa-crificados, sim, mas hojeganhamos todos”.Relativamente à relevân-

cia do tema do estudo, Joa-quim Castilho Cacumba disseque se a educação é crucialpara o desenvolvimento deuma sociedade, a língua éo veículo desta educação.“Não é possível formarmostécnicos ou profissionais nasáreas técnicas enquanto nãorecorrermos à língua desteensino”, frisou.

“O que trouxemos aqui éuma chamada de atençãode que, estando cada vezmais globalizados e digita-lizados, para nos impormosa nível da SADC, da CPLP eno Mundo, é preciso que nãoolhemos só para a compe-tência monolíngue, ou me-lhor, dizer que domino alíngua inglesa ou a portu-guesa. Precisamos cada vezmais nos consciencializarda necessidade da inter-compreensão com os outrospovos”, sublinhou, acrescen-tando ser importante olharpara o bilinguismo “não sóporque está na moda”, mascomo uma “necessidade doensino, da leitura, da escritae de outras competências daliteracia académica”.O evento foi testemunha-

do no Lubango pelo direc-tor-geral do ISCED-Huíla, oprofessor catedrático JoséLuís Alexandre.

Marco académicoA defesa da dissertação de-doutoramento do professorJoaquim Sapalo Castilho Ca-cumba, por videoconferência,é um marco nos 40 anos dehistória do ISCED-Huíla. Oprofessor catedrático JoséLuís Alexandre, director-geraldesta instituição, disse quea sintonia directa com o Ins-tituto de Letras e CiênciasHumanas da Universidadedo Minho amadureceu ascompetências do ISCED-Huílano uso das tecnologias de

informação e comunicação.Destacou que, por causada Covid-19, o docente Joa-quim Castilho Cacumba nãopôde viajar para Portugale lá defender o seu douto-ramento. “Então, criamostodas as condições técnicase tecnológicas para o efeito”,disse. “Tivemos os nossosdocentes a assistir. Issopara nós foi muito impor-tante. É uma grande alegria.Quer dizer que podemosfazer as coisas usando asnovas tecnologias de infor-mação e comunicação”.O director-geral do ISCED-

Huíla afirmou que o docenteJoaquim Castilho Cacumba-saiu-se muito bem. “Mos-trou-se muito calmo, serenoe, sobretudo, mostrou queconhece o trabalho realizado.Terminou o seu doutoramen-to em três anos, tempo esteconsiderado record. Isso de-monstra que temos especia-listas de alta qualidade nestainstituição, que vem forman-do docentes de alta qualidadeneste país e para este país”.A defesa da tese de dou-

toramento pelo ProfessorCacumba, segundo o respon-sável máximo do ISCED-Huíla,é uma prova de que a Covid-19 não pode fazer parar tudo.“Como biólogo que sou, sem-pre soube que o novo coro-navírus veio para ficar. Temosque nos adaptar e lutar contraele. Conviver com ele. Nãopodemos ficar parados semfazer nada”, defendeu.

ISCED-HUÍLA

O docente universitário Joaquim Sapalo Castilho Cacumba é o primeiroquadro, na história do Instituto Superior de Ciências da Educação (ISCED) na

Huíla, a defender a tese de doutoramento por videoconferência

Que cartazesé que tu achas quedevia haver na

cidade?”ouvi-o dizer –

“Cartazes dos Filhosda Terra... Cartazes

que exigem aIndependênciade Angola...

DR

Page 8: REFLEXÕES 15 12 de Julho de 2020 - SAPO

CRÓNICA22 Domingo12 de Julho de 2020

Seu semblante fechado revelava um coração lacrimejante, trancando o espontâneo sorriso que o rosto desenhava. Diluídosnos voos distantes dos pensamentos, permaneceu estático, com os olhos cravados no tecto de zinco da exígua sala. A

insegurança de Ferraz Kapindissa denunciava uma alma engolida pela amarga notícia, caída como bomba

Bendinho Freitas

Os ditos mujimbos das bocassoltas no ar, se confirmaram.Afinal de contas, era a maiscristalina verdade! Seu quar-teirão estava agora cercadopor um cordão de segurança.A polícia em prontidão, ron-dava o bairro. Foram mo-bilizadas ambulâncias,equipas médicas e profis-sionais de saúde.

Quase ninguém cumpriracom as medidas de preven-ção, no bairro Kafrique eagora estavam mergulhadosem inúteis lamúrias. sentiamna pele o preço do desleixo.O peso de consciência deKapindissa tornou-se maiorque as velhas feridas gravadasna memória dum percursosinuoso de vida, que o temponão apagou.

A notícia recebida há al-gumas semanas deixara obairro em alvoroço. Tudocomeçou quando Janguelito– o Janguilson – filho doMan-Firmino, vizinho deKapindissa e um rapaz darua 18, foram diagnosticadoscom a Covid-19. Desde aque-la data, os dias pareciam in-termináveis. Kapindissa jánão pregou olho.

Sentado na sua velha pol-trona de napa, carcomidapela adrenalina do tempo,baixou a cabeça e olhou con-centrado para o relógio: Pa-

recia que as horas teimavamem não avançar. “Ai, se pu-desse empurrar o tempo”.Pensou ele.

Reunidos em família,se aprestavam a receberos resultados dos testes daCovid-19. Estavam todosapreensivos. Era necessárioe n c a r a r a r e a l i d a d ede frente.

Vivia-se um dia de ca-cimbo, mas o impiedososuor escorria na pele sulcadapelas rugas de expressão deKapindissa, ensopando orosto, que as suas mãos ner-vosas, ingloriamente, in-sistiam em limpar. Contudo,o teimoso suor tomara contado corpo.

Lá fora, as sirenes das am-bulâncias quebravam a gélidatranquilidade, que dominavao local: As luzes das vozesalegres das crianças do bairroKafrique se apagaram. Asvozes fervorosas da moci-dade, entrelaçadas aos sonsde músicas despreocupadas,que sacudiam as tardes etrespassavam noites adentro,até morrerem cansadas detanta farra nos pés, se es-friaram. O “Copo Cheio”,bar do senhor Moreira, guar-dava atrás das portas, agorafechadas, as músicas que in-vadiam as casas vizinhas,sem pedir licença e as ter-túlias boémias do burgo: Erao santuário onde cruzavaamalta boa, que pintava de

cores quentes, os serões doKafrique. Até os livres chil-rear dos pássaros desabro-chando nas alegres manhãsfugiram, levando consigoo doce respirar da liberda-de. Kapindissa agora mas-tigava a dor dos pássarosnas gaiolas.

Como telegramas, suaslembranças recuaram aosprimórdios da cerca sanitária.Paralelamente, as insistentesrecordações empurraram-no ao cerco apertado, ao qualhaviam sido submetidos, láno seu longínquo kimbo, nosduros tempos da kitota.

Com os nervos em fran-galhos, Kapindissa intem-pestivamente cravejou deculpas sua esposa, dona Min-gota e Chinguito, o primo-génito. Em voz alta, algodesgovernada, derrubou acompostura, que sempre foia sua marca, acusando Min-gota de negligência, porque,em tempo de confinamento,antes do inesperado ter su-cedido, deixara os filhos me-nores – os jingongos Dadãoe Kapriquito – saírem à rua,para jogar a bola com o Be-bucho, um dos meninos, queagora se soube que tambémestava infectado.

Dona Mingota, senhorapolida na base da educaçãocristã, sempre respeitou o ma-rido, todavia, desta vez, in-jectada de tensão, fartou-sedo ímpeto das acusações e

saltou-lhe a tampa da paciên-cia, retorquindo com rispidez:

“E o senhor, que há trêssemanas esteve em con-vívio com o Man-Firmino,o papá do Janguelito, no Co-po Cheio?”

Kapindissa, sem respon-der Mingota, continuou,agora virando-se para oChinguito, que ouviu calado,a chuva de ralhetes do pai.Antes da bomba da cercasanitária explodir no bairroKafrique, Manchingas, comotambém era conhecido, tor-nara-se um inveterado fu-rador de quarentena. Era umassíduo frequentador daspedonais da avenida prin-cipal, onde fazia ginástica,em promíscuos ajuntamen-tos, com a turba do bairro.Justamente agora, na fasedo coronavírus, e, sem o usoda máscara facial, nem aobservância do distancia-mento social.

Dona Mingota, envolvidanos pensamentos, imagina-va, o que seria dela, caso lhefosse diagnosticado a Co-vid-19. Como seria recebida,quando regressasse ao mer-cado do Sarabulho, ondevendia peixe fresco? Seriacrucificada com estigmasda ignorância? Deixou es-capar umas lágrimas. Seuspensamentos continuarama passear: imaginou-se en-tubada no ventilador! “Xé,está amarrado!” Exclamou,

espantando os pensamentos.Tentava fugir à dramáticarealidade, mas as imagensdesfilavam cruéis, marte-lando-lhe a cabeça. Deci-diu então entregar tudo aDeus: rezar à nossa Senhorada Muxima.

No instante seguinte, seescutou o roncar de um carro,que cortou o dilúvio de me-ditações que inundavam detormentos a família Kapin-dissa. O carro estacionou emfrente ao portão do quintal.Um silêncio gelado dominoua casa. A seguir, ouviram-se batimentos no portão.

Como mola impulsora,Kapindissa levantou-sebruscamente da poltrona eapressado dirigiu-se à portapara abri-la.

Sua alma rangeu, trepan-dona emoção, quando viudo outro lado do portão, afuncionária dos serviços desaúde, acompanhada de doisagentes da polícia. Entre-tanto, fios da brisa do ca-cimbo matinal bateram-lhelevemente no rosto, arrefe-cendo todo o stress, de queestava acometido.

A senhora sisuda, de rostoredondo, era forte; vinhaforrada naquele uniformeque fazia lembrar uma alie-nígena. Cumprimentou, numtom solícito:

“Bom dia senhor”. Econtinuou: “Por favor, podeinformar-me onde é a casa

19, pretendemos fazer umaentrega”.

Kapindissa um tanto ali-viado, mas também desi-ludido, franziu o cenho emeneou a cabeça, em sinalafirmativo, levantando oindicador, para apontar olocal, dizendo:

“É a terceira, após virarema esquerda”.

A senhora agradeceu,com um sorriso, inclinan-do levemente a cabeça eacrescentou:

“Também, gostávamosde informar que, por razõesde ordens técnicas, as en-tregas dos resultados dostestes, previstas para hoje,foram canceladas. Preve-mos fazê-las amanhã amesma hora”.

Acto contínuo, acenou,em jeito de despedida, e vi-rou as costas, apressando-se a subir no carro, que sedirigiu à casa n.º 19.

Em casa dos Kapindissas,a informação não foi bemrecebida: gerou mistos denervosismo e apreensão. Eracomo se vários afluentes de-saguassem num rio de an-gústia, em direcção a ummar de ansiedade, que seprolongaria, por novas vin-te-e-quatro penosas horas.

Naquele momento, Ka-pindissa começou a fazerjus ao nome do bairro ondeviviam: estavam mesmono kafrique!

AS PERIPÉCIAS DE FERRAZ KAPINDISSA

O cerco do tormento

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