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MARGEM, SÃO PAULO, N O 15, P. 181-202, JUN. 2002 Reflexıes sobre a decadŒncia da vida pœblica LUIZ MIGUEL DO NASCIMENTO Resumo Este artigo tem como objetivo discutir a decadŒncia da vida pœblica, utilizando como apoio os textos de alguns autores que abordaram esse tema a partir de diferentes concepçıes. Chamamos a atençªo para o fato de que a tªo propalada decadŒncia da vida pœblica pode nªo passar da decadŒn- cia de um modelo de se fazer política, mas nªo da política de um modo geral. Outros- sim, levantamos a hipótese de que o desin- teresse do povo pela política nªo deixa de ser a contrapartida do desinteresse dos políticos pelo povo. Palavras-chave: decadŒncia da vida pœblica; política; mídia; modernidade; co- tidiano. Abstract The aim of this article is to discuss the decadence of public life supported by authors who approached this theme from different stances. Special attention is given to the fact that this widespread decadence of public life may only be the decadence of particular policy but not of politics in general. Furthermore, the hypothesis that the peoples lack of interest in politics constitutes the counterpart of the politicians lack of interest in the people also. Key-words: decadence of public life; policy; politics; mass media; modernity; daily. A discussªo sobre a decadŒncia da vida pœblica no mundo moderno e con- temporâneo vem sendo realizada jÆ hÆ algum tempo por pensadores de diver- sos matizes político-ideológicos. Tan- to no meio acadŒmico quanto na mídia Ø comum ouvir a afirmaçªo de que, na atualidade, esse fenômeno se caracte- riza por um profundo desinteresse, ma- nifestado pelo povo, em relaçªo à polí-

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REFLEXÕES SOBRE A DECADÊNCIA DA VIDA PÚBLICA

Reflexões sobre a decadênciada vida pública

LUIZ MIGUEL DO NASCIMENTO

Resumo

Este artigo tem como objetivo discutira decadência da vida pública, utilizandocomo apoio os textos de alguns autores queabordaram esse tema a partir de diferentesconcepções. Chamamos a atenção para ofato de que a tão propalada decadência davida pública pode não passar da decadên-cia de um modelo de se fazer política, masnão da política de um modo geral. Outros-sim, levantamos a hipótese de que o desin-teresse do povo pela política não deixa deser a contrapartida do desinteresse dospolíticos pelo povo.

Palavras-chave: decadência da vidapública; política; mídia; modernidade; co-tidiano.

Abstract

The aim of this article is to discuss thedecadence of public life supported by

authors who approached this theme fromdifferent stances. Special attention is givento the fact that this widespread decadenceof public life may only be the decadence ofparticular policy but not of politics ingeneral. Furthermore, the hypothesis thatthe people�s lack of interest in politicsconstitutes the counterpart of the politicians�lack of interest in the people also.

Key-words: decadence of public life;policy; politics; mass media; modernity; daily.

A discussão sobre a decadência davida pública no mundo moderno e con-temporâneo vem sendo realizada já háalgum tempo por pensadores de diver-sos matizes político-ideológicos. Tan-to no meio acadêmico quanto na mídiaé comum ouvir a afirmação de que, naatualidade, esse fenômeno se caracte-riza por um profundo desinteresse, ma-nifestado pelo povo, em relação à polí-

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tica. Ecoando o velho sonho iluminista,as explicações costumam apontar o bai-xo nível de escolaridade e a de-sinformação da população como osprincipais responsáveis por essa indi-ferença pela vida pública. Se tais asser-tivas não podem ser ignoradas na dis-cussão desse assunto, precisamostranscendê-las e situar a questão numcontexto mais amplo. Talvez, assim,possamos perceber que o desinteressedo povo pela política não deixa de sera contrapartida do desinteresse dos po-líticos pelo povo.

Não obstante, essa reflexão requeralgumas considerações sobre comotem sido pensada a esfera pública oua vida pública por alguns dos estu-diosos do tema. Para tanto, inicialmen-te, numa tentativa de enfocar esse pro-blema a partir de perspectivas dife-rentes, procuraremos contrapor aabordagem de Hannah Arendt à deHabermas. Como veremos, os doisautores discutiram essa temática de for-ma bastante distinta: enquanto Arendtviu as transformações econômicastrazidas pelo capitalismo na moderni-dade como responsáveis pela destrui-ção da vida pública, Habermas vê nes-se mesmo processo o surgimento deuma nova esfera pública, a esfera pú-blica burguesa. Da mesma forma, paratentarmos apreender outras nuançasdo tema, também procuraremos dis-cutir outros autores que, a despeitodas diferenças na avaliação do proble-ma, apresentam teses bastante suges-tivas sobre a chamada �apatia� daspessoas em relação aos assuntos quedizem respeito à vida pública.

Hannah Arendt, em sua obra A con-dição humana, diz-nos que, entre os gre-gos antigos, na época da democraciaateniense, havia uma diferença muitoclara entre vida pública e vida priva-da. Ter uma propriedade significavaque o indivíduo possuía seu lugar emdeterminada parte do mundo e che-fiava uma das famílias que, no con-junto, constituía a esfera pública. Essaposse era a demonstração de que o in-divíduo dominava as próprias neces-sidades vitais e era potencialmenteuma pessoa livre para transcender asua própria existência e ingressar nomundo comum a todos. A proprieda-de era, portanto, a condição de ad-missão do homem na esfera pública,não porque � e isto é importante fri-sar � ele estivesse preocupado emampliá-la, mas porque garantia, comrazoável certeza, que não teria de tra-balhar para ganhar os meios de suasubsistência. No entanto, em que peseesse espaço da existência ser a basepara a política, ele era o local da re-produção biológica da vida e nele oser humano não se diferenciava dosoutros animais irracionais. Para umgrego, passar a vida restrito à esferaprivada significava viver numa zonade trevas e escuridão, sem merecernenhum reconhecimento da socieda-de. Caso um proprietário preferissecontinuar ampliando a sua proprieda-de em vez de utilizá-la como base paraa vida política, era como se ele sacrifi-casse espontaneamente a sua liberda-de e voluntariamente se tornasse aqui-lo que o escravo era contra a vontade,ou seja, um servo da necessidade.

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Assim, a política nessa sociedadenão visava à manutenção da vida e nemestava relacionada com a defesa de in-teresses privados. Nenhuma atividadeque estivesse relacionada com o pro-cesso de sobrevivência, processo vital,era digna de adentrar a esfera pública.Só a vitória sobre as necessidades davida em família, portanto, qualificavao homem para a boa vida, a vida polí-tica. Somente na esfera pública a exis-tência de um grego atingia o mais altosignificado; era, por assim dizer, arealização da sua segunda natureza.Nesse mundo, a capacidade humana deorganização política era totalmenteoposta à associação natural compostapela família. O surgimento da cidade-Estado mostrava que o homem, alémda sua vida privada, recebera uma es-pécie de segunda vida, o seu biospolitikos, e passara a pertencer a duasordens de existência. Todas as ativi-dades realizadas em público poderiamatingir uma excelência jamais igualadana intimidade. Tal excelência exigia apresença de outros, de um público for-mal, constituído pelos pares do indiví-duo, e não simplesmente pela presen-ça de seus familiares ou inferiores. Oshomens ingressavam na esfera públicapor desejarem que algo seu � no sen-tido de alguma qualidade, virtude �ou algo que tinham em comum com osoutros fosse mais permanente que suasvidas terrenas. A pólis era para os gre-gos não só um espaço garantido con-tra a futilidade da vida individual, mas,principalmente, o espaço reservado àrelativa permanência, à imortalidadedos mortais.

Como vemos, o texto de Arendtestabelece como modelo ideal de vidapública o da pólis grega. É possível per-ceber, subjacente nessa análise, um cer-to saudosismo passadista de um mun-do que há muito não existe mais. Mes-mo assim, essa comparação entre o quefoi a política na Antiguidade grega e oque ela veio a ser na Modernidade podeser muito instrutiva para a reflexão so-bre esse tema atualmente. A autora re-laciona a destruição da vida pública nomundo moderno com a ascensão da so-ciedade. Ela a define como o conjuntode famílias economicamente organiza-das de modo a constituírem uma únicafamília sobre-humana, cuja forma polí-tica de organização é a nação. Isso sig-nificou que a administração caseira,suas atividades, problemas e recursosorganizacionais passaram do sombriointerior do lar para a luz da esfera pú-blica. Tal processo destruiu não só adivisão entre o privado e o público,como também alterou o significado dosdois termos e sua importância para avida do indivíduo e do cidadão. ParaArendt, o próprio conceito de econo-mia política reflete essa mistura das es-feras privada e pública na atualidade.Em termos do pensamento dos antigos,ele seria contraditório, uma vez que oeconômico estava relacionado à vida doindivíduo e à sobrevivência da espécie.Não era assunto público. O fato, diz-nos ela, de a política passar a ser ape-nas uma função da sociedade, com aconseqüente transformação da ação, dodiscurso e do pensamento em mera su-perestrutura assentada no interesse so-cial, não foi simplesmente uma desco-

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berta de Marx, mas uma das premissasque ele recebeu, sem discutir, dos eco-nomistas políticos da era moderna.

Para confirmar a sua tese, Arendtafirma que a ascensão do social coinci-diu historicamente com a transforma-ção da preocupação individual com apropriedade privada em preocupaçãopública.

Logo que passou à esfera pública, asociedade assumiu o disfarce de umaorganização de proprietários que, aoinvés de se arrogarem acesso à esferapública em virtude de sua riqueza, exi-giram dela proteção para o acúmulode mais riqueza.

Como a riqueza comum não é igual aomundo comum, mas estritamente pri-vada,

comum era somente o governo, nomea-do para proteger uns dos outros os pro-prietários privados na luta competiti-va por mais riqueza.1

A percepção dessa invasão da es-fera pública pelos interesses privadosdos produtores de mercadorias (os ca-pitalistas) no mundo moderno consti-tui, a nosso ver, a contribuição maisoriginal de Hannah Arendt para o de-bate sobre a decadência da vida públi-ca. Não é difícil concordar com a idéiade que a vida pública deixa de ter im-portância num mundo onde nada alémdos interesses privados desperte aatenção. O problema com a tese de

Arendt é que ela discute a vida públicaem termos do pensamento político clás-sico, no qual a política era vista como avida em comum ou o bem comum. De-vemos a Aristóteles a idéia de que ohomem é um animal político porquedotado de um logos, da palavra capazde manifestar o útil e o nocivo, o justoe o injusto. É o único animal que pos-sui o sentimento do bem e do mal, dojusto e do injusto, e é a comunidadedessas coisas que faz a família e a pólis.Aqui está implícita a premissa de que aatividade na pólis se desenvolve de for-ma harmônica entre homens que seentendem por palavras e atos. Essaidéia fundadora do pensamento polí-tico influenciou e continua a influen-ciar as reflexões sobre esse tema. Noentanto, não existe mais consenso emtorno desse legado. Concordamos comRancière, quando afirma que nessa for-ma de pensar se omite o fato de a polí-tica ser primeiramente um conflito emtorno da existência de uma cena co-mum, existência e qualidade daquelesque estão ali. Não é porque os homens,pelo privilégio da palavra, põem seusinteresses em comum que existe a polí-tica. Ela existe porque aqueles que nãotêm direito à palavra obtêm essa con-quista e instituem uma comunidade aocolocar em comum o dano, que nadamais é do que o enfrentamento, a con-tradição de dois mundos alojados emum só. É essa averiguação da igualda-de que institui um litígio na comunida-de, a qual existe apenas pela divisão.2

1. ARENDT, H. (1997), A condição humana. 8ª ed.,Rio de Janeiro, Forense Universitária, pp. 15-88.

2. RANCIÈRI, J. (1996), O desentendimento: políti-ca e filosofia. São Paulo, Editora 34, pp. 40-44.

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A política, portanto, não pode servista como uma atividade harmônica,em que todos se entendem. Ao contrá-rio, é o desentendimento entre os ho-mens, tanto no que se refere ao objetoda linguagem, como em relação às suasposses e qualidades que produz a po-lítica. Ela é, podemos dizer, a mani-festação mesma de um conflito, de umlitígio. Ocorre quando irrompe na or-dem natural das dominações uma par-cela dos sem-parcelas � os pobres �que, em nome da igualdade, subjeti-vam-se como sujeitos que procuram co-locar em prática essa igualdade, de-monstrando, com isso, a contingênciade toda sociedade que não se fundaem nenhuma ordem natural. Nessesentido, talvez não seja mais possívelsustentar o conceito de política com no-ções de bem comum, como faz o pen-samento arendtiano, inspirado emAristóteles. Entretanto, ao que nos pa-rece, o núcleo de sua tese continuamuito atual e indispensável para a dis-cussão sobre a decadência da vida pú-blica, como veremos.

Habermas, em sua obra Mudançaestrutural da esfera pública, discute essatemática numa perspectiva diferente.Ele constrói o seu conceito de esferapública fundamentalmente estruturadona classe burguesa e no Estado que sur-gem na modernidade. Após a Antigui-dade, somente com o surgimento doEstado moderno passa a existir umaesfera pública como uma esfera da so-ciedade civil dele separada. Trata-se doespaço constituído pela sociedade bur-guesa. Durante toda a Idade Média nãoexistia uma esfera pública separada da

esfera privada. Somente com o surgi-mento da burocracia, do exército e dajustiça objetivaram-se instituições dopoder público perante a esfera cada vezmais privada da corte. Finalmente, dastransformações dos estamentos surgi-ram os parlamentos, e das corporaçõesprofissionais surgiu o setor da socie-dade burguesa que passou a se contra-por ao Estado como genuíno espaço daautonomia privada. Embora Habermasse proponha a discutir apenas a cate-goria burguesa, a nosso ver, o autortranscende esses limites e realiza umestudo que permite discutir a vida pú-blica em geral.

O conceito de esfera pública bur-guesa com o qual Habermas trabalhapode ser entendido como a esfera daspessoas privadas (burgueses/pro-prietários) reunidas em um público queprocura discutir com as autoridades asleis gerais das trocas de âmbito da vidaprivada e que são publicamente rele-vantes: as leis do intercâmbio de mer-cadorias e do trabalho social. Nessequadro, a esfera pública burguesa setornou uma instância antagônica emrelação ao poder público estatal. Talesfera estava, portanto, dissociada des-se poder, como um fórum para ondese dirigiam as pessoas privadas com oobjetivo de obrigar o poder público ase legitimar perante uma opinião pú-blica crítica. Aliás, nessa perspectiva,só se pode falar em público quando eleexerce uma função crítica em relaçãoaos atos do governo. Na verdade, atéo século XVIII, tratava-se de uma lutade emancipação da burguesia, ou daesfera pública burguesa, em relação às

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regulamentações mercantilistas e aoregime absolutista. O próprio Haber-mas acredita que a função política daesfera pública burguesa só pode serentendida quando o intercâmbio demercadorias e trabalho social se eman-cipam de diretivas estatais.

Para discutir essa questão, ele es-tuda o papel desempenhado pela im-prensa nesse processo. Inicialmente, elafoi utilizada pelo Estado para dar aconhecer os seus decretos e portarias(publicidade). Posteriormente, passoua ser utilizada pelos burgueses escla-recidos que debatiam publicamente assuas opiniões. Com isso, o alvo do po-der público tornou-se automaticamen-te um público. As autoridades dirigiama sua comunicação ao público, em prin-cípio, todos os seus súditos, mas atin-giam, se muito, as camadas cultas for-madas, em grande parte, pela burgue-sia que, juntamente com o modernoaparelho de Estado, assume uma posi-ção central no público. O seu cerne eraconstituído por funcionários da admi-nistração feudal, médicos, pastores,oficiais, professores, os �homens cul-tos�, os �capitalistas�, comerciantes,banqueiros, editores e donos de ma-nufaturas. Essa camada burguesa erao autêntico sustentáculo do público,que, desde o início, era aquele que lia.Além desse princípio de publicidade,ou debate público de idéias na impren-sa, a leitura de livros era uma outraforma fundamental para a formação deuma opinião pública esclarecida da bur-guesia dessa época. Salões, cafés, asso-ciações, clubes de leituras e comunida-des de comensais se tornaram locais pri-

vilegiados dessas discussões, que for-mavam uma opinião pública verdadei-ra. Nesse público que pensava a cultu-ra, a esfera pública literária, condiçãoindispensável para a formação do racio-cínio público, brotou do solo íntimo dafamília burguesa ou do próprio cerneda esfera privada.3

Para Habermas a decadência daesfera pública, restrita aos proprietá-rios, inicia-se quando a sua base é es-tendida a setores mais amplos da so-ciedade, perdendo, assim, a sua fun-ção política de submeter os fatos tor-nados públicos ao controle de um pú-blico crítico. Esse processo tem início apartir do último quarto do século XIX,com uma espécie de �refeudalização�da sociedade, na qual as próprias for-ças sociais conquistam competências deautoridades públicas. Ao intervencio-nismo estatal na esfera social corres-ponde a transferência de competênciaspúblicas para entidades privadas. Essadialética destrói a base da esfera pú-blica burguesa: a separação entre Es-tado e sociedade. Entre ambos surgeuma esfera social repolitizada, que es-capa à distinção entre público e priva-do. Na segunda metade do século XIX,a livre concorrência já não podia aten-der à sua promessa de igualdade dechances, em que todos se tornariamproprietários, aptos a ingressar na es-fera pública. Em vez disso, esse princí-pio foi utilizado como base para a in-

3. HABERMAS, J. (1984), Mudança estrutural daesfera pública: investigações quanto a uma categoria dasociedade burguesa. Rio de Janeiro, Tempo Brasilei-ro, pp. 37-49.

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clusão dos trabalhadores, dos sem pro-priedade, exatamente através da am-pliação da igualdade dos direitos polí-ticos. A ampliação do público e não maiso princípio da publicidade, como noséculo XVIII. Nessa época, os pobresprocuram compensar, por meios polí-ticos, a igualdade de oportunidade queera violada no setor econômico. É as-sim que Habermas vê a atuação dossindicatos, dos partidos socialistas e aintervenção do Estado para atender àspressões vindas das camadas popula-res. As massas traduziam antagonis-mos econômicos em conflitos políticos.Tais conflitos, que estavam contidos naesfera privada, adentram o espaço pú-blico. As necessidades grupais não po-diam mais ser satisfeitas por um mer-cado auto-regulador e passaram a serreguladas pelo Estado; a esfera públi-ca tornou-se um campo de concorrên-cia de interesses nas formas mais bru-talizadas da discussão violenta.4

É interessante constatar que mes-mo não desconhecendo as críticas deMarx ao capitalismo, em que a opiniãopública, a esfera pública burguesa e oEstado de direito são vistos como me-ras ideologias, Habermas mantém-sefiel ao seu conceito burguês de esferapública, que no plano ideal mantinhaos interesses privados separados dasquestões públicas. Somente quando osgrupos que não dispunham de pro-priedade, os trabalhadores, ascendemao debate político é que o seu modelode esfera pública é destruído. Aqui ficaexplícito que são as necessidades dos

pobres que destroem a esfera públicaburguesa. Ou seja, quando os despos-suídos trazem a público as suas rei-vindicações, só então, passa a existiruma mistura de interesses públicos eprivados, como se antes isso não ocor-resse. É verdade que, como dissemos,do ponto de vista do pensamento po-lítico antigo, interesses econômicosnão podem se misturar com a política.Mas o que provoca estranhamento naobra de Habermas é que ele só perce-be esse processo quando os pobrespassam a ocupar o espaço público. Doséculo XVIII à primeira metade do sé-culo XIX parece-lhe que tal fenômenonão ocorria.

Outro traço da decadência da esfe-ra pública burguesa é evidenciado nadiscussão da cultura e consumo demassa. Para discutir essa questão, Ha-bermas afirma que a esfera pública li-terária, que se desenvolvera a partirdo próprio cerne da vida privada, efora fundamental para a vida públicaburguesa (no século XVIII), hoje avan-ça no âmbito do consumo. Em seu lu-gar surge o setor pseudopúblico ouaparentemente privado do consumismocultural. A esfera íntima que era fun-dada na subjetividade correlata ao pú-blico, base da esfera pública literária,hoje se tornou uma porta aberta poronde entram �as forças sociais susten-tadas pela esfera pública do consu-mismo cultural dos meios de comuni-cação de massa�, que invadem a inti-midade familiar. Mesmo a vida fora doserviço se torna apolítica porque passaa estar inserida no ciclo da produção edo consumo, deixando de constituir um4. Ibid., pp. 158-174.

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mundo capaz de se emancipar do quelhe é imediatamente necessário à vida.Quando as leis do mercado penetrama esfera reservada às pessoas privadasenquanto público,

o raciocínio tende a se converter emconsumo e o contexto da comunicaçãopública se dissolve nos atos estereoti-pados da recepção isolada. (...) A inti-midade com a cultura exercita o espí-rito, enquanto que o consumo da cul-tura de massas não deixa rastros: eletransmite uma espécie de experiênciaque não acumula, mas faz regredir.

A cultura consumista de massa destróia esfera pública.5 Evidentemente, essapassividade dos receptores ante asmensagens dos mídias não é mais acei-ta atualmente. As discussões sobre arecepção têm enfatizado que as men-sagens são recebidas e reelaboradas deacordo com códigos culturais. Em ou-tras palavras, são lidas em conformida-de com a visão de mundo do grupo.Mesmo assim, essa discussão deHabermas merece consideração, porquea questão da influência da mídia, ouda cultura de massa, a nosso ver, aindanão foi suficientemente discutida.

A mudança de função da imprensaé outra manifestação desse mesmo fe-nômeno: de uma instituição basilar daesfera pública burguesa, ela foi invadi-da pela lógica do consumismo. Paraatrair um número maior de leitores, agrande imprensa se despolitizou e setornou sensacionalista. A notícia se

transformou num entretenimento, umamercadoria para consumo, desprovidada intermediação literária. Os progra-mas que os novos mídias emitem cor-tam, de modo peculiar, a reação dosreceptores.

Eles cativam o público enquanto ou-vinte e espectador, mas ao mesmo tem-po tiram-lhe a distância da �emanci-pação�, ou seja, a chance de poder di-zer e contradizer.

O público não tem como dialogar, res-ponder aos programas. Até a primeirametade do século XIX, a imprensa, de-senvolvida a partir da politização doespaço público, continuava a ser umainstituição desse mesmo público e nãoum instrumento da cultura consumista.Com a consolidação do Estado burgu-ês de direito, na Inglaterra, França eEstados Unidos, por volta de 1830, aimprensa politizante se transformounuma imprensa comercial.

O jornal assume o caráter de um em-preendimento que produz espaço paraanúncios como uma mercadoria quese torna vendável através da parte re-servada à redação.

A partir desse momento ele se trans-formou numa empresa privada, desti-nada a gerar lucros e, conseqüentemen-te, a política empresarial passou a sesubordinar a pontos de vista da eco-nomia de mercado. Os grandes jornaisda segunda metade do século XIX setornaram manipuláveis à medida quese comercializavam. O movimento deconcentração da imprensa após essa5. Ibid., pp. 189-197.

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época se acentuou com o rádio, cinemae a televisão e, no século XX, provocoua intervenção do Estado nesse setor.Tal processo levou à formação de umenorme complexo econômico dosmídias com grande poder social emmãos privadas e destruiu as funçõescríticas do jornalismo. Dessa forma,com a comercialização da imprensa, aesfera pública se tornou um meio depropaganda.6

Ainda ligada à mídia, a mudançade função da publicidade também de-nuncia a decadência da esfera públicaburguesa. Na mesma época em que,por intermédio da publicidade, os in-teresses dos donos de mercadoriasadentraram o espaço público, os fun-damentos do capitalismo concorrencialcontaminaram a luta dos partidos e aconcorrência vertical dos interesses declasse também ingressou no âmbito daesfera pública. É por essa razão que arepresentação pública de interessesprivados consegue um caráter políti-co. Nas práticas dos public relations, osanúncios comerciais tomam consciên-cia do seu caráter político e a nova pu-blicidade procura fabricar a opiniãopública. A propaganda empresta a seuobjeto a autoridade de um interessegeral, a respeito do qual o público daspessoas privadas forma a sua opinião.A tarefa central é engendrar o consen-so, para que seja possível promoverjunto ao público a aceitação de umapessoa, um produto, uma organizaçãoou uma idéia. A crítica esclarecida em

relação às questões públicas cede lu-gar a um mudo conformismo para compessoas ou personificações públicas;consent coincide com o good will provo-cado pela publicity.

Outrora, �publicidade� significava adesmistificação da dominação políti-ca perante o tribunal da utilização pú-blica da razão; publicity subsume asreações de um assentimento descom-promissado.

O Estado é submetido a essa integraçãode diversão de massa e publicidade.

Já que as empresas privadas sugerema seus clientes, nas decisões de consu-mo, a consciência de cidadãos do Es-tado, o Estado precisa �voltar-se� aseus cidadãos como consumidores.

Desse modo, também o poder público,os partidos e as organizações apelampara a publicity. Nesse universo, a pu-blicidade vai além da influência dosconsumidores e exerce uma pressão po-lítica que mobiliza uma predisposiçãoà concordância. Com as mudanças defunção do Parlamento, ela passa de umprincípio de crítica (exercida pelo pú-blico) a um princípio de integração for-çada (por parte das instâncias demonstra-tivas � da administração e das associ-ações, sobretudo dos partidos). A publi-cidade (o tornar público) perdeu o seuprincípio crítico.7

Embora a crítica de Habermas aoconsumo de massa, à publicidade e à

6. Ibid., pp. 199-221. 7. Ibid., pp. 225-241.

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mercantilização da mídia seja indiscu-tível, no essencial, ele se contrapõe àsargumentações de Hannah Arendt. En-quanto a autora está preocupada emdemonstrar que, no mundo moderno,a destruição da vida pública se deve àascensão dos interesses da proprieda-de privada à condição de assunto pú-blico, Habermas diz textualmente que

as atividades e relações de dependên-cia que, até então, estavam confinadasao âmbito da economia doméstica,passam o limiar do orçamento domés-tico e surgem à luz da esfera pública.

Afirma também que as atividadeseconômicas privatizadas, exercidasdentro de um horizonte mais amplo,que deveriam ser controladas publica-mente, não só estavam fora dos limi-tes da casa, mas pela primeira vez pas-saram a ser do interesse geral. Nas suaspalavras,

com o surgimento de uma esfera dosocial, cuja regulamentação a opiniãopública disputa com o poder público,o tema da esfera pública moderna, emcomparação com a antiga, deslocou-se das tarefas propriamente políticasde uma comunidade de cidadãos agin-do em conjunto (...) para as tarefas maispropriamente civis de uma sociedadeque debate publicamente (para garan-tir a troca de mercadorias). A tarefapolítica da esfera pública burguesa é aregulamentação da sociedade civil (poroposição à res publica).8

Nesse sentido, parece-nos queHannah Arendt compreendeu melhordo que Habermas que o surgimento daesfera do social na modernidade, ouseja, o processo pelo qual a proprieda-de privada virou assunto de interessepúblico, significou, ainda que a longoprazo, a destruição dos pressupostosque orientaram a vida pública na Anti-guidade, que era a separação entre inte-resses públicos e privados. Arendt per-cebeu, com rara intuição, que tais prin-cípios são fundamentais para a existên-cia de uma vida pública saudável. Cer-tamente, a dimensão que a proprieda-de e a riqueza vieram a assumir com oprocesso de acumulação trazido pelosistema capitalista tornou impossívelconfiná-las aos limites da economiadoméstica como na Antiguidade. Queessa riqueza, agora ampliada ao infini-to, extrapolasse as estreitas fronteirasdo lar e constituísse uma esfera maisampla, é compreensível. Mas se, porpúblico, entendermos algo que trans-cenda os interesses pessoais, então éevidente que não se trata de uma esfe-ra pública, pois nela o que se vê sãointeresses particulares sendo defendi-dos em público. Talvez tenha sido a per-cepção dessa questão que levou Marxa dizer que o Parlamento não passavade um comitê de negócios da burgue-sia. O próprio Habermas diz que o temada esfera pública moderna se transfor-mou nas tarefas mais propriamente ci-vis de uma sociedade que debate pu-blicamente para garantir a troca demercadorias. Ora, é evidente que astrocas de mercadorias são muito im-portantes e precisam ser discutidas pu-8. Ibid., pp. 33-69.

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blicamente, mas nunca poderão cons-tituir a base para o estabelecimento davida pública. Como muito bem perce-beu Hannah Arendt, comum mesmo,nesse caso, são somente os governantesnomeados para proteger os proprietá-rios uns dos outros na luta competiti-va por mais riqueza.

A bem da verdade, Habermas ain-da tenta comparar a esfera pública bur-guesa com a grega. Para ele a culturaburguesa não era mera ideologia. Oraciocínio das pessoas privadas nossalões, clubes e associações de leituranão estava subordinado somente ao ci-clo da produção e do consumo. Existiauma emancipação das necessidadesexistenciais básicas que possuía muitomais um caráter �político�, em sua for-ma literária. É em função disso que secristalizou a idéia de humanidade, pos-teriormente degradada, a mera ideo-logia. A identificação do proprietáriocom a pessoa natural, o homem, pres-supunha, dentro do setor privado, umaseparação entre interesses pessoais eaquela sociabilidade que ligava as pes-soas privadas enquanto público. So-mente quando a esfera pública literáriaavançou no âmbito do consumo é queessa fronteira foi apagada.9 O difícil éacreditar que burguesia algum dia te-nha tido outro interesse que não aque-le ligado à acumulação de riqueza.

A nosso ver, Habermas não perce-be, ou pelo menos não explicita clara-mente, que a coincidência da decadên-cia da esfera pública burguesa justamen-

te após meados do século XIX, épocada expansão do capitalismo, é uma pro-va mesma dos limites do seu conceitode esfera pública, que pressupunha umaburguesia como uma camada socialexercendo uma função crítica em rela-ção aos atos dos governos. Talvez nes-sa época já estivesse completada, comodisse Marx, a fusão dos interesses par-ticulares da burguesia com os assuntospúblicos. Em outras palavras, o Estadonão era mais, se é que algum dia o foi,uma instância antagônica à classe bur-guesa, mas sim um instrumento de de-fesa dos seus interesses. Acreditamosque só seja lícito falar da burguesiacomo um público exercendo uma fun-ção crítica em relação ao Estado du-rante a época clássica das monarquiasabsolutistas. Mas a partir do momentoem que ela assume direta ou indireta-mente o controle do Estado (o queocorreu na Inglaterra já no final do sé-culo XVII), não é mais possível falar emseparação rígida de interesses. A pró-pria mudança de função da mídia e dapublicidade, tão bem analisadas peloautor, evidencia essa questão. Após asegunda metade do século XIX e, prin-cipalmente no século XX, os mass mediaforam inteiramente dominados pelosinteresses econômicos e passaram acontribuir para a manipulação da opi-nião pública, em vez de continuaremsendo a base de uma esfera pública crí-tica. Tal prática continuamente adota-da pelos governantes e empresários émais uma prova desse processo.

Richard Sennett, ao discutir essetemas, em sua obra O declínio do homempúblico, baseia-se em outro viés expli-9. Ibid., p. 190.

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cativo que, embora bastante discutível,não deixa de ser interessante. ParaSennett, passamos a viver numa socie-dade intimista, voltada para dentro desi mesma, guiada pelo código do narci-sismo, que faz com que as pessoas sepreocupem mais com a descoberta doseu próprio eu do que com qualqueroutra coisa. Nessa sociedade, não te-mos mais interesse na vida pública por-que as relações impessoais não nos dãoprazer. O mundo público só desperta-ria a nossa atenção se pudesse ofere-cer alguma gratificação psicológica.Como isso não é possível, então ele setorna desagradável e tedioso.

O narcisismo, que o autor definecomo um distúrbio patológico, faz comque os indivíduos percam a capacida-de de diferenciar o eu do mundo, ouseja, das outras pessoas e coisas que osrodeiam, provocando uma extremapreocupação consigo mesmo, que se tra-duz num interesse obsessivo com rela-ções pessoais e íntimas. Tudo se pare-ce com um estado em que as nossasações se guiariam por uma busca fre-nética de nós mesmos nos outros. Poressa razão, na tentativa de descobriraquilo que uma pessoa ou acontecimen-to significa para o eu, as pessoas pas-sam a dar muito mais importância à vi-da particular dos seus semelhantes doque à vida pública. Esse comportamen-to, transposto para o campo político,faz com que o eleitor esteja muito maisinteressado na vida privada do políti-co do que na sua ideologia, seus pro-gramas e suas propostas de governo.

Esse é o resultado do que Sennettchama de superposição do imaginário

privado ao imaginário público. Comoconseqüência, ao observarmos alguémem público, concentramo-nos em suasintenções e em sua personalidade, detal modo que a verdade daquilo queele diz parece depender do tipo de pes-soa de que se trata. Nesse sentido, qual-quer proposta, ou programa que apre-sente uma determinada visão dos ma-les sociais, ou a visão de uma socieda-de melhor, não pode significar em si epor si mesma, nem tampouco motivaruma ação se sua credibilidade depen-de do quanto um auditório simpatizecom a personalidade do homem quedefende essa causa. Nessas condições,diz o autor, o sistema de expressão pú-blica se tornou um sistema de represen-tação pessoal. Uma figura pública apre-senta a outros aquilo que sente, e é essarepresentação do seu sentimento quesuscita crença.10

É verdade que na sociedade em quevivemos parece existir uma tendênciaa que as pessoas se voltem para dentrode si mesmas, apresentando caracterís-ticas intimistas, cujo interesse pela vidaparticular assume uma importância ex-cessiva. Certamente esse comporta-mento não é o único, existem outros.Entretanto, a questão é saber se os con-ceitos de narcisismo e secularidadeimanente com os quais o autor traba-lha dão conta de explicar a decadênciada vida pública. Talvez o individualis-mo apontado por Sennett possa ter cau-sas muito mais sólidas, cujas raízes de-

10. SENNETT, R. (1988), O declínio do homem pú-blico: as tiranias da intimidade. São Paulo, Cia. DasLetras, pp. 15-409.

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vam ser buscadas no âmago da con-cepção burguesa de sociedade, bem co-mo em outros movimentos no pensa-mento e na cultura ocidental ao longoda modernidade. Na verdade, ele che-ga a apontar o capitalismo como umdos responsáveis por esse processo,mas não nos esclarece, de forma con-sistente, qual foi a sua relação com onarcisismo e a mudança do código dasecularidade, que passou de transcen-dente para imanente. Falar do impactoprovocado pelo capitalismo no séculoXIX em termos de tumulto na vida pú-blica, que estimulou um refúgio na vidafamiliar, da produção em massa quecriou a propaganda e a fetichização damercadoria ou a mistificação dos fe-nômenos públicos, parece não ser su-ficiente para explicar essa questão.Faz-se necessário, então, saber se exis-tiram outros elementos desse sistemaque contribuíram para destruir a vidapública.

Décio Saes, num texto intitulado Areemergência do populismo no Brasil e naArgentina, propõe um modelo teóricoalternativo ao de Sennett. Para ele, noplano especificamente econômico, nosistema capitalista, passa a existir umtrabalho privado na produção fabril,que é um processo simultaneamentesocializado e parcializado. Esse siste-ma implica um isolamento do produ-tor direto diante das suas tarefas e, noplano especificamente jurídico e políti-co, a igualização de todos os homens,mediante a sua conversão em sujeitosiguais de direito. Com esse processo,o Estado reconhece a autonomia da per-sonalidade individual. O autor acredi-

ta que, como resultado do funciona-mento dessa estrutura do capitalismo,temos �a individualização dos agentesda produção e o incentivo, no planoideológico, à expressão autônoma dapersonalidade individual�. Seria isso,para ele, que estaria na base do pro-cesso de valorização da auto-exposiçãoda personalidade política, do maiorinteresse na vida privada do que napública.11

A crítica de Décio Saes é pertinen-te, mas nos parece que o seu esquematambém não apreende todo o sentidodo individualismo na sociedade mo-derna. Mesmo sem a pretensão deaprofundar, e muito menos esgotar adiscussão sobre esse assunto, importadestacar, como nos lembra Stuart Hall,que as transformações surgidas na mo-dernidade libertaram os indivíduos deseus apoios estáveis nas tradições e nasestruturas e fizeram surgir uma novaforma de individualismo. Alguns mo-vimentos importantes no pensamentoe na cultura ocidentais contribuírampara uma nova concepção de sujeito:as reformas religiosas que eliminarama mediação da Igreja e expuseram osindivíduos diretamente aos olhos deDeus; o humanismo renascentista quecolocou o homem no centro do univer-so; as revoluções científicas que facul-taram ao homem a capacidade de in-quirir, investigar e decifrar os misté-rios da natureza; o Iluminismo e sua

11. SAES, D. A. M. (1994), �A reemergência dopopulismo no Brasil e na América Latina.� In:DAGNINO, E. (org.), Os anos 90: política e socieda-de no Brasil, São Paulo: Brasiliense, pp. 41-48.

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concepção do homem racional, científi-co, libertado do dogma e da intolerân-cia, que pretendia compreender e do-minar a totalidade da história humana.Assim, o indivíduo soberano/cartesianoestá inscrito nos processos e práticascentrais que fizeram o mundo moder-no, tanto como sujeito da razão, do co-nhecimento e da prática, quanto comoaquele que sofria as conseqüências des-sas mesmas práticas. Mas à medida queas sociedades modernas se tornarammais complexas,

as leis clássicas da economia política,da propriedade, do contrato e da trocatinham de atuar, depois da industria-lização, entre as grandes formações declasse do capitalismo moderno.

Da mesma forma, o cidadão individu-al se enredou nas maquinarias buro-cráticas e administrativas do Estadomoderno, fato que provocou o surgi-mento de uma concepção mais socialde sujeito. O indivíduo passou a ser lo-calizado e definido no interior dessasgrandes estruturas e formações susten-tadoras da sociedade moderna.12 Con-cordamos com Hall quando afirma queo sujeito moderno nascido em meio àdúvida e ao ceticismo metafísico nun-ca foi estabelecido e unificado, comodescrito pelo pensamento racional. To-davia, acreditamos que essa imagem ourepresentação exerceu e, provavelmen-te, ainda exerce, influências sobre oindividualismo.

Também relacionado com esse tur-bilhão de mudanças da era moderna, aconsolidação do sistema capitalistacriou um mercado de trabalho basea-do na igualdade formal perante a lei,no qual a burguesia e o proletariado serelacionariam dentro de uma supostaigualdade de condições. Não precisa-mos aqui argumentar sobre a faláciadessa premissa por ela já ter sido exaus-tivamente discutida, sobretudo na li-teratura marxista. O que nos importa éenfatizar que tal processo, de fato, con-tribuiu para a individualização das re-lações sociais de trabalho. Nele, o ope-rário passou a ser confrontado com oseu empregador, ou outras instituições,como um indivíduo e não mais comomembro de uma família, estamento,comunidade ou uma guilda medieval.O capitalismo destruiu, ou procuroudestruir, todas as instituições legadaspelo antigo regime que funcionavam,até certo ponto, como uma espécie deproteção do trabalhador.

O liberalismo, filosofia que se pro-põe a explicar a concepção de mundoda sociedade burguesa/capitalista, ba-seia-se no princípio da liberdade do in-divíduo, mas as práticas burguesasvieram a demonstrar, ao longo da his-tória, que se trata muito mais da liber-dade da propriedade do que da pes-soa humana. Locke, um dos maioresexpoentes do pensamento liberal clás-sico, ao teorizar sobre o nascimento dasociedade política, sustenta a tese deque o trabalho é a origem e o funda-mento da propriedade. O homem, em-bora vivesse em perfeita liberdade eigualdade no estado natural, estava

12. HALL, Suart. (1999), A identidade cultural napós-modernidade. 3ª ed., Rio de Janeiro, DP&A,pp. 24-30.

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sujeito a certos inconvenientes, quaissejam, a tendência a beneficiar-se a simesmo e a seus amigos, em prejuízode outros. Para evitar tais riscos os ho-mens abandonaram o estado natural e,por intermédio de um pacto social,criaram a sociedade política. Nessaconstrução está implícita a premissa deque a criação do Estado se devia ànecessidade de assegurar os frutos de-correntes do trabalho � a propriedade� e não propriamente a criação de umespaço da vida pública ou da liberdade.13

Dessa forma, mesmo tendo falado deum pacto entre os homens que fundoua sociedade, o individualismo continuacomo premissa no sistema de Locke.

A filosofia liberal, e isto é muitomais importante para os nossos propó-sitos nesse momento, é uma filosofiaindividualista. O indivíduo é o únicoreal protagonista da vida ética e eco-nômica contra o Estado e a sociedade.Não deve haver nenhuma instância in-termediária entre ele e o Estado. Emconseqüência disso, no mercado polí-tico e econômico o homem deve agirsozinho.14 Assim sendo, o indivíduo écolocado acima da razão de Estado, dosinteresses de grupos e das exigênciasda coletividade. Basta lembrar, comonos diz René Rémond, a hostilidade

dos liberais durante a Revolução Fran-cesa, no que dizia respeito às organi-zações, às ordens; a desconfiança quelhes provocava a associação, o temorde que o indivíduo fosse absorvido eescravizado pelos grupos.15 Na verda-de, muito dessa aversão a qualquerforma de poder se devia ao desejo, atécerta forma natural para a época, deabolir o absolutismo do Estado. Talconcepção ficou muito bem expressa nafamosa fórmula da divisão dos pode-res, em Executivo, Legislativo e Judi-ciário. Todavia, sob a suposta necessi-dade de proteger a liberdade dos in-divíduos, o que acabou prevalecendofoi a destruição ou enfraquecimento deorganizações e instituições que são fun-damentais, hoje o sabemos, para pre-servar os direitos e garantias indivi-duais. Numa tal situação, o liberalis-mo contribuiu muito mais para o de-senvolvimento do individualismo, ouo culto à personalidade, para usarmosa linguagem de Sennett, do que pro-priamente para assegurar a liberdadedo homem.

A nossa proposição é a de que oindividualismo, ainda cultuado na so-ciedade de nossos dias, deve ser en-tendido como uma concepção de vidae de mundo que começou a ser implan-tada na modernidade e foi levada àsúltimas conseqüências pela classe bur-guesa. Ele é, por assim dizer, a sua pró-pria filosofia de sociedade. Acredita-mos ser possível admitir que, com oseu domínio e hegemonia nesses últi-

13. LOCKE, J. (1991), 1632-1704. Ensaio acerca doentendimento humano. Segundo tratado sobre o go-verno. 5ª ed., São Paulo, Nova Cultural (Col. �OsPensadores�).14. MATTEUCCI, N. (1997), �Liberalismo�. In:BOBBIO, N.; MATTEUCCI, N. e PASQUINO, G.Dicionário de política. 9ª ed., Brasília, Ed. UNB, p.689.

15. RÉMOND, R. (1976), O século XIX (1815-1914).São Paulo, Cultrix, p. 27.

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mos séculos, a burguesia tenha conse-guido um relativo êxito na dissemina-ção de seus princípios individualistasde vida, ao menos no mundo ociden-tal. Essa forte representação do indi-víduo como um ser soberano, constan-temente enfatizada nos discursos polí-ticos, científicos e na mídia, certamen-te ainda exerce influência. Entretanto,na atualidade, ganha mais força a cons-tatação de que nem toda a sociedadefoi contaminada por tal concepção. Sem-pre existiu e existe vida comunitária esolidariedade entre as pessoas.

Hannah Arendt, uma vez mais,atingiu, a nosso ver, uma compreen-são muito penetrante desse fenômenona modernidade. Em sua obra Origensdo totalitarismo, ela já expunha claramen-te que o individualismo, a atomizaçãosocial, o desenraizamento eram produ-tos naturais das concepções e práticaspolíticas dentro do sistema capitalista.Nos chamados conceitos liberais depolítica como

a concorrência sem limites, reguladapor um secreto equilíbrio que provém,de modo misterioso, da soma total dasatividades concorrentes; na busca deum �esclarecido interesse próprio� co-mo virtude política,

não se pode ver mais do que a somade vidas privadas e padrões de com-portamentos pessoais, cujo resultado éapresentado como leis da história, daeconomia e da política.

A vida pública assume um aspecto en-ganador quando aparenta constituir atotalidade dos interesses privados,

como se esses interesses pudessemcriar uma qualidade nova pelo simplesfato de serem somados.16

Em outras palavras, para ela só podeexistir vida pública quando, além dehabitarem juntos o mesmo espaço, oshomens compartilharem o bem comum.Já criticamos essa concepção da auto-ra, que identifica vida pública com bemcomum, mas não se pode negar que,quando cada um procura defender oseu próprio interesse, não existe maisnenhuma possibilidade de instaurar asociedade política.

Uma sociedade que elege comoideal máximo a vitória do indivíduo aqualquer preço na concorrência com osseus semelhantes está muito mais pró-xima do princípio da seleção naturaldas espécies da teoria darwiniana, noqual o mais apto sobrevive, do que deuma comunidade humana. Nela, tudoo que podemos compartilhar, à seme-lhança do estado natural de Hobbes, éa necessidade de continuarmos lutan-do uns contra os outros para nos man-termos vivos ou, quem sabe, com a aju-da da sorte, conseguirmos acumularalguma riqueza, que acaba por ser aúnica possibilidade de liberdade e se-gurança num mundo como esse.

Por essa razão concordamos comHannah Arendt, quando argumentaque a sociedade burguesa, baseada nacompetição, no consumismo, gerouapatia e hostilidade em relação à vidapública, não somente entre os excluí-

16. ARENDT, H. (1989), Origens do totalitarismo.São Paulo, Cia. Das letras, p. 175.

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dos mas também entre elementos daprópria burguesia. Nessa filosofia desociedade,

o sucesso ou o fracasso do indivíduoem acirrada competição era o supre-mo objetivo, de tal modo que o exercí-cio dos deveres e responsabilidades docidadão eram tidos como perda des-necessária do seu tempo e energia.17

Ela chamou essa sociedade atomizadade sociedade de massas, que teriamconstituído a base de sustentação polí-tica dos regimes totalitários. Emborao conceito de massa não possa mais sersustentado atualmente, à luz das dis-cussões trazidas pela história social, éimportante dizer que a autora identifi-cou a origem desse fenômeno nosfragmentos de sociedades atomizadas,que surgiram com o capitalismo namodernidade.

Essa deve ser, a nosso ver, uma dasprincipais fontes do individualismo,que ainda existe, ao menos como umadas tendências da sociedade atual. Asmudanças trazidas pelo capitalismo, alongo prazo, com certeza provocaramatomização social. Destaque-se que no-vas formas de associações e organiza-ções dos trabalhadores surgiram nosséculos XVIII e XIX, fato que acaboucontribuindo até mesmo para provo-car uma definição mais social do indi-víduo nas ciências sociais. Mas, no fi-nal do século XX, a maioria dessas ins-tituições está em franco declínio. Cer-tamente, assim como a profunda in-

ventividade dos homens pobres criouformas de organização para se prote-gerem das atrocidades do sistema ca-pitalista no século XIX, é provável queo mesmo processo já esteja ocorrendono final do século XX. Mesmo assim,entre os homens que ainda continuamdesprotegidos, pode ser compreensí-vel um sentimento de isolamento nummundo que funciona com base na eco-nomia de mercado, pautada pela lógi-ca da oferta e da procura, do custo ebenefício, cujos princípios eles tam-bém não entendem.

A referência a Hannah Arendt, in-dependentemente de concordarmoscom a totalidade de seus pontos devista, parece indispensável na atuali-dade. Um importante aspecto do seupensamento tornou-se bastante atualno mundo da globalização. A filósofaalemã viu com clareza o que muitospensadores não vêem, ou se negam aadmitir: que a vida pública pode seraniquilada quando é subjugada pelaatividade econômica. Hoje, exceto osque são adeptos do neoliberalismo,todos os pensadores percebem o quan-to a atividade econômica tem exerci-do uma supremacia sobre a vida pú-blica. A política, pelo menos a pratica-da pelos Estados-nações, os políticose a maioria dos partidos tem estado,na maior parte do tempo, em estadode hibernação. Entretanto, a vida po-lítica não depende somente dessas ins-tituições ou pessoas � muitas delasalinhadas ao status quo �, mas poderesidir nos homens capazes de se in-dignar com o que discordam no mun-do em que vivem. Se assim não fosse,17. Ibid., p. 363.

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teríamos de concordar com a morteda vida pública.

Por outro lado, o distanciamentodas pessoas em relação à grande polí-tica, na atualidade, também pode es-tar relacionado a outros determinantes.Talvez uma das maiores conquistas dasgrandes revoluções sociais da moder-nidade tenha sido a democracia repre-sentativa, que ampliou significativa-mente a possibilidade formal de amaioria das pessoas participar, por in-termédio do voto, das questões políti-cas mais importantes nas sociedadesocidentais. Essa que, a princípio, apre-sentou-se como uma das maiores vitó-rias do homem moderno, trouxe con-sigo problemas ainda não solucionados.Na impossibilidade de todos os habi-tantes dos Estados-nações decidiremos seus destinos de forma direta emassembléia, como se fazia na Grécia an-tiga, a democracia representativa se ba-seia na idéia de que os cidadãos de umacomunidade ou Estado escolham osseus pares e, por intermédio do voto,deleguem-lhes o poder de representá-los no Parlamento, ou no Executivo, oque raramente acontece.

Não cabe nos limites deste texto,nem é nosso objetivo uma maior dis-cussão sobre os problemas da demo-cracia representativa. Queremos ape-nas argumentar que ela está na baseda consolidação da profissionalizaçãoda política, bem como da ampliaçãodo seu corpo de �funcionários�. Tal-vez isso explique por que, nesse pe-ríodo, a política tenha assumido tama-nha complexidade, cuja correta com-preensão ficou restrita a um pequeno

grupo de iniciados, e tenha se torna-do quase inacessível à maioria dos ci-dadãos. Assim sendo, podemos notarque a profissionalização dos políticos,particularmente após o século XIX, équase uma decorrência natural da es-pecialização que essa atividade gra-dativamente passou a exigir. Nos doisúltimos séculos, algumas das princi-pais instituições dos regimes democrá-ticos assumiram a forma moderna quenós conhecemos. As associações, os sin-dicatos e os partidos políticos passa-ram a funcionar em tempo integral,com suas organizações rigidamentehierarquizadas e burocratizadas. Apartir de então, o campo político pas-sou a contar com um maior númerode profissionais especializados nas téc-nicas necessárias para dominar as es-tratégias de funcionamento da políti-ca. Tal conhecimento envolve, entreoutras coisas, o domínio de temas,conceitos, vocabulários e terminolo-gias específicas, próprias das ciênciaspolíticas. Essas especialidades soamcomo exóticas ou incompreensíveispara quem não é desse campo.

Já na Antiguidade, quando se pra-ticava a democracia direta, os orado-res mais eloqüentes conseguiam mani-pular os cidadãos reunidos em assem-bléia. Tal prática só veio a se agravarna modernidade, a partir do momentoem que a atividade política assumiutoda essa complexidade. Pierre Bourdieu,em seu livro O poder simbólico, levantaalguns elementos indispensáveis parapensarmos sobre esse assunto. Ele ar-gumenta que a abstenção da políticapelo cidadão ou o desapossamento

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pela delegação � que se acentuamquanto mais são desfavorecidos eco-nômica e culturalmente � só podemser explicados por uma análise políticaque leve em consideração as determi-nantes econômicas e sociais da divisãodo trabalho político. Assim, o monopó-lio, ou a concentração do capital políti-co nas mãos de um pequeno grupo deprofissionais, é substancialmente favo-recido pelo desapossamento econômi-co e cultural da grande maioria. Essadesigual distribuição dos instrumentosde representação do mundo social fazcom que a política seja descrita na lógi-ca da oferta e da procura. Nesse senti-do, os produtos políticos, problemas,programas, análises, comentários e con-ceitos gerados pela concorrência entreos seus profissionais devem ser esco-lhidos pelos cidadãos comuns, reduzi-dos ao estatuto de consumidores, cujaprobabilidade de mal-entendidos é tan-to maior quanto mais estiverem afas-tados do lugar de produção desses con-ceitos e significados.

Esse desapossamento em funçãoda concentração dos meios de produ-ção de discursos ou atos reconhecidossocialmente como políticos aumenta àmedida que o campo da produçãoideológica ganha autonomia, com oaparecimento das grandes burocraciaspolíticas de profissionais, como os insti-tutos de ciências políticas, por exem-plo. Essas instituições não só formamo corpo de profissionais, mas tambémas regras e o corpus de saberes indis-pensáveis à respectiva acomodação.

�A ciência política� que se ensina eminstituições especialmente ordenadaspara este fim é a racionalização dacompetência que o universo da políti-ca exige e que os profissionais pos-suem no estado prático.

Essa cultura esotérica e estranha docampo político é composta por proble-mas, conceitos e discursos sem referen-te na experiência do cidadão comum,razão pela qual se apresenta para elecomo algo inacessível. Tais sutilezas,que passam desapercebidas aos olhosdos não iniciados, nada mais são doque produto das relações de conflitose concorrências entre as diferentesorganizações em disputa dentro docampo.18

Para Bourdieu, os representantespolíticos só defendem os interesses dosseus representados quando estes estãode acordo com os seus interesses nocampo político. E mais, a relação queos políticos profissionais mantêm comos seus clientes (os cidadãos) é deter-minada de modo mais ou menos com-pleta pela relação que mantêm com osseus concorrentes no campo político.

Eles servem os interesses dos seusclientes na medida em que (e só nessamedida) se servem também ao servi-los.

É, por assim dizer, a estrutura do cam-po político que determina a tomada deposição por parte dos políticos. Nessesentido, o apolitismo, que muitas

18. BOURDIEU, P. (1989), O poder simbólico. Riode Janeiro, Difel, pp. 170-178.

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vezes assume a forma de um antipar-lamentarismo, passa a ser visto comouma contestação do monopólio dospolíticos.19

É sabido que nem sempre os cida-dãos pobres consomem esses produ-tos políticos de forma passiva, masBourdieu apreende com muita profun-didade um dos principais problemas dapolítica, que se agravou com o surgi-mento da democracia representativa namodernidade. A sua excessiva espe-cialização, complexidade e sutileza pro-vocaram um profundo distanciamentoda vida cotidiana dos homens, e isto écompreensível, uma vez que raramen-te nos interessamos pelas coisas quenão entendemos. Dessa forma, os ho-mens, sobretudo os menos informados,passam a ver a política como algo frioe distante, como um conjunto de assun-tos e problemas que não lhes diz res-peito e que é do interesse de outros.Tudo se passa como se o Parlamentofosse um local destinado única e exclu-sivamente às querelas, intrigas e men-tiras dos políticos.

Essa questão pode ser a base ou es-tar na origem do desinteresse e dis-tanciamento do povo em relação à po-lítica. Pelo menos a política que vemsendo praticada pelos governantes aolongo da modernidade. Maffesoli, emsua obra A transfiguração do político, afir-ma que há, na base da noção de políti-ca, a concepção de responsabilidadetotal sobre a existência social. Mas esseencarregar-se torna-se vacilante quan-do os cidadãos não colaboram com a

vida da cidade. É necessário, então,que um grupo particular assegure obom funcionamento econômico-políti-co. Despojando progressivamente o ci-dadão do seu poder sobre a vida pú-blica, ela se torna negócio de especia-listas: tiranos, burocratas, tecnocratas,entidade abstrata, negócio dos outros,negócio alheio do qual não há razãopara se ocupar.

De maneira estóica, poder-se-ia dizerque o longínquo, o macroscópico, oinstituído, tudo aquilo que escapa àminha ação, torna-se indiferente.

Os especialistas que se encarregam dacidade, do império, forçam a maioria arecuar para a esfera do privado, sepa-rando, com isso, a vida da política, ver-dadeiro fosso de conseqüências incal-culáveis.20

O drama do político, para Maffesoli,reside justamente no fato de ele ser tri-butário da base e, permanentemente,obrigado a abstrair-se dela. Mas sósobrevive enquanto corresponder àssuas aspirações. Ocorre que todos osgovernantes, todos os regimes políti-cos são obcecados por tudo abstrair etudo racionalizar: administração ra-cional, etc. Assim, a coisa pública assu-me um caráter de exterioridade, afas-tando-se da vida que flui e que nãosegue necessariamente os cânones darazão. De um lado, o social, sua vitali-dade e desordem fundadora, e, do

20. MAFFESOLI, M. (1997), A transfiguração dopolítico: a tribalização do mundo. Porto Alegre, Ed.Sulina, pp. 60-118.19. Ibid., pp. 169-178.

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REFLEXÕES SOBRE A DECADÊNCIA DA VIDA PÚBLICA

outro, o Estado com sua ordem mortí-fera e sua razão monovalente.

Essa é uma discussão bastante ins-tigante sobre a política, particularmenteno que se refere à decadência da vidapública. A importância do texto deMaffesoli está em nos fazer pensar essaproblemática fora dos cânones tradi-cionais, em que o desinteresse do povopela política sempre foi visto como ex-pressão de ignorância, desinformação,apatia, etc., e nunca como sintoma deuma ordem subterrânea que em silên-cio, por intermédio de astúcia, indife-rença, ironia e inércia pode estar sola-pando as bases sobre as quais os siste-mas políticos têm se apoiado nos últi-mos séculos. Além disso, alerta-nospara o fato de que, quando a políticanega as paixões, esquecendo-se de queo irracional é um autor legítimo da his-tória, acaba sucumbindo aos seus gol-pes. Dessa forma, o povo se distanciada política porque ela sempre se ba-seou num projeto, numa visão teleoló-gica da história, de sentido único, e,portanto, totalitária, que entra em con-tradição com a diversidade da vida emsociedade, que não se deixa encerrarnuma via reta.

Assim, se a política se apresenta co-mo uma engrenagem, um enigma inde-cifrável, cujo sentido o homem não en-tende, é compreensível que ele não lhedevote nenhum interesse. E nem po-deria ser diferente, se pensarmos quea política, pelo menos a dos políticos edos partidos, na maioria das vezes nãoatende às suas necessidades básicas.Quando muito, geralmente em perío-dos eleitorais, apresenta-se-lhe com

promessas para um futuro que nuncachega e o qual ele não pode esperar.

Quando chamamos o povo de des-politizado, deveríamos nos perguntarcom qual sentido de política estamostrabalhando. Porque se estivermos fa-lando da política no sentido tradicio-nal, a praticada pelos políticos profis-sionais, pelos partidos e mesmo por al-guns sindicatos, estamos a falar de algoque se distanciou das pessoas, da vidareal, deixando, por essa razão, de des-pertar interesse. O bom senso deverianos ensinar que o comportamento daspessoas pobres obedece a uma lógicamuito específica: a da sobrevivência.Elas estão interessadas em soluçõesconcretas e imediatas para os seus pro-blemas, e não estão dispostas a adiaro gozo para um amanhã que canta,para um futuro longínquo, como é ge-ralmente prometido pela política. Tam-bém não estão interessadas em discus-sões abstratas sobre ideologias, parti-dos, propostas ou programas de go-verno. Isso posto, antes de falarmosem interesse ou desinteresse do povopela política, deveríamos nos pergun-tar o que ela realmente significa paraas pessoas e o que tem, efetivamente,feito pelos desamparados e, por ve-zes, privados das necessidades bási-cas da sobrevivência.

Talvez �apatia� do povo em rela-ção à política do Estado, dos políticose dos partidos, outra coisa não seja se-não uma resposta ao descaso que so-frem dos poderes governantes. Em ter-mos do pensamento político clássico,essa pode não ser a melhor respostadada pela população, mas, como lem-

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bra Maffesoli, nenhum regime políticoresiste muito tempo ao desprezo, à in-diferença e ao distanciamento da base.Acreditamos também ser possível ar-gumentar, com base nas discussões so-bre a crise das identidades � que pormuito tempo estabilizaram o mundosocial �, que algumas instituições cen-trais da modernidade, tais como parti-dos políticos, associações, sindicatos,pelo menos nas formas como têm fun-cionado, não servem mais como pólospara aglutinar as identidades fragmen-tadas dos chamados sujeitos pós-mo-dernos. As pessoas já não identificammais seus interesses sociais exclusiva-mente em termos de classe, por exem-plo. Mudanças estruturais no final doséculo XX podem estar fragmentandoas paisagens culturais de classe, gêne-ro, sexualidade, etnia, raça e naciona-lidade, que forneciam sólidas localiza-ções aos indivíduos sociais. Os novosmovimentos sociais, como o feminis-mo, o movimento negro e outros, ape-lam para novas identidades. Como lem-bra Stuart Hall, tais movimentos sociaisrefletem o enfraquecimento ou o fimda classe política e das organizaçõespolíticas de massa a ela associadas.21

Ou seja, como cada movimento apelapara uma identidade específica, e umindivíduo pode ser portador de maisde uma identidade, não é mais possí-vel uma única instituição aglutinar asdiferenças e defender os múltiplos in-teresses em jogo.

Se essas proposições estiverem cor-retas, então temos que olhar de for-

Luiz Miguel do Nascimento, professor do De-partamento de História da Universidade Esta-dual de Maringá, doutorando no Programa deEstudos Pós-Graduados em História da PUC-SP. E-mail: [email protected]. HALL, Stuart, op.cit, pp. 9-45.

ma diferente para a política, porquesó assim poderemos ver na vida coti-diana dos homens novas formas de serelacionar com a pólis. E, em vez defalarmos em decadência da vida pú-blica, em geral, talvez fosse mais cor-reto falar na decadência de um mode-lo de vida pública, aquela praticadapelos políticos profissionais e pelamaioria dos partidos que surgiram namodernidade.

Recebido em 3/5/2002Aprovado em 30/6/2002