21
Educ. foco, Juiz de Fora, v. 13, n. 2, p. 45-65, set 2008/fev 2009 REFLEX‹O CR¸TICO- COLABORATIVA NA CRECHE: O ESPAÇO EM DISCUSS‹O Léa Stahlschmidt Pinto Silva 1* Viviam Carvalho de Araújo 2** Resumo O artigo aborda as reflexões construídas por educadoras e pesquisadores externos sobre o espaço da creche: o espaço idealizado e o espaço construído; o espaço físico e o espaço de relações. Trata-se de uma experiência de pesquisa interventiva crítico-colaborativa. A constru– ção de espaços/lugares de reflexão nas creches são importantes instrumentos para a ressignificação das práticas pedagógicas, para a construção coletiva de saberes e transformação do espaço institucional. Abstract The article approaches the reflections built by educators and external researchers about the daycare space: the space idealized and the space built; the physical space and the space of relations. It is an intervening critic/ collaborative experience of research. The construction of spaces/places of reflection in the daycares are important instruments for the resignification of the pedagogical practices, for the collective construction of knowledge and transformation of the institutional space. * Doutora em Psicologia. Professora do Programa de Pós-graduação e Graduação da Faculdade de Educação - UFJF. Coordenadora da pesquisa Espaço de reflexão Crítica em contexto de colaboração: reconstruindo os sentidos e significados da prática educativa na creche. [email protected] ** Mestre Faculdade de Educação – UFJF [email protected]

REFLEX‹O CR¸TICO COLABORATIVA NA CRECHE O … · COLABORATIVA NA CRECHE: O ... os espaços estão abertos à criatividade e à ação do ho- ... significado para os praticantes

Embed Size (px)

Citation preview

Educ. foco, Juiz de Fora,v. 13, n. 2, p. 45-65, set 2008/fev 2009

REFLEX‹O CR¸TICO-COLABORATIVA NA CRECHE: O ESPAÇO EM DISCUSS‹O

Léa Stahlschmidt Pinto Silva1*

Viviam Carvalho de Araújo2**

ResumoO artigo aborda as reflexões construídas por educadoras e pesquisadores externos sobre o espaço da creche: o espaço idealizado e o espaço construído; o espaço físico e o espaço de relações. Trata-se de uma experiência de pesquisa interventiva crítico-colaborativa. A constru–ção de espaços/lugares de reflexão nas creches são importantes instrumentos para a ressignificação das práticas pedagógicas, para a construção coletiva de saberes e transformação do espaço institucional.

AbstractThe article approaches the reflections built by educators and external researchers about the daycare space: the space idealized and the space built; the physical space and the space of relations. It is an intervening critic/collaborative experience of research. The construction of spaces/places of reflection in the daycares are important instruments for the resignification of the pedagogical practices, for the collective construction of knowledge and transformation of the institutional space.

* Doutora em Psicologia. Professora do Programa de Pós-graduação e Graduação da Faculdade de Educação - UFJF. Coordenadora da pesquisa Espaço de reflexão Crítica em contexto de colaboração: reconstruindo os sentidos e significados da prática educativa na creche. [email protected]

** Mestre Faculdade de Educação – UFJF [email protected]

46

Léa Stahlschmidt Pinto Silva e Viviam Carvalho

de Araújo

Educ. foco, Juiz de Fora,

v. 13, n. 2, p. 45-65, set 2008/fev 2009

ResuméL’article aborde les réflexions qui ont été faites par les éducatrices et chercheus externes à propos de l’espace de la crèche: l’espace idealisé et l’espace construit; l’espace physique et l’espace des relations. Il s’agit d’une expérience de recherche critique-colaborative. La construction des espaces/lieux de réflexions dans les crèches sont des instruments importants pour les changements des pratiques pedagogiques, pour la construction collective des savoirs et la transformation de l’espace institutionnel.Mots-clés: Crèche. Apprentissage Colaborative. Espace.

... os espaços estão abertos à criatividade e à ação do ho-mem que, nas suas artes de fazer não as concebe de forma submissa, mas é capaz de inventar novas formas de uso.Michel de Certeau, 1994.

Em pesquisas anteriores1 observamos que tanto o espaço físico quanto o político, projetado para as escolas de Educação Infantil, constitui-se como o definidor das suas propostas peda-gógicas, quando era de se esperar que ocorresse o contrário: que as propostas pedagógicas definissem esses espaços. Considerando esse fato e abraçando a causa de que as propostas pedagógicas devem definir o espaço de vivências e saberes da creche, dirigi-mos esta pesquisa para os saberes construídos por pesquisadores e educadoras2 de uma creche pública, num contexto que se confi-gurou como um espaço de reflexão-crítico e colaborativa.

Trata-se de uma experiência de pesquisa interventiva críti-co-colaborativa. Interventiva, pois consideramos que no processo de intervenção o pesquisador não só intervém, mas também so-fre interferência neste processo. Nesse sentido, entendemos que o investigador pesquisa porque faz perguntas, através das quais, em nossa compreensão, promove avanço no processo de construção do conhecimento científico. Crítico, a partir da ideia de que o obje-tivo é tornar os participantes conscientes e sujeitos na construção de seu discurso e de sua ação, com base no diálogo, na relação entre os discursos, formando uma cadeia, na qual um texto traz o outro. Não tem a ver somente com o olhar do outro para mim, mas com o que esse olhar implica em mim e para o outro. Assim, faz-se co-laborativa, na medida em que se pauta por problematizar as ações cotidianas, procurando repensar e ressignificar o familiar, o hábito, há muito sedimentado no senso comum.

47

Reflexão crítico-colaborativa na creche: o espaço em discussão

Educ. foco, Juiz de Fora,v. 13, n. 2, p. 45-65, set 2008/fev 2009

A partir dessas considerações iniciais, este texto abordará as reflexões construídas pelas educadoras da creche e por nós, pes-quisadores externos, sobre o espaço da creche: o espaço idealizado e o espaço construído; o espaço físico e o espaço de relações. Es-sas reflexões tiveram lugar no interior das reuniões semanais que aconteciam na creche, durante um semestre, denominadas de sessões refl exivas. “A sessão reflexiva se constitui como uma nova orga-nização discursiva que teve início com a necessidade de propiciar contextos para a formação de um educador reflexivo informado em uma prática crítica”. (MAGALHÃES, 2004, p. 82). Na pesquisa, consideramos as sessões reflexivas como um espaço de discussão que possibilitou a construção de significados sobre a prática das educadoras em colaboração conosco - os pesquisadores externos.

Espaço, lugar, território ... de que se trata?

O debate sobre o espaço vem marcando o campo das discussões na área educacional. Pesquisas se voltam para inves-tigar os diferentes usos e relações que se constituem nos múl-tiplos espaços. Falar sobre espaço no âmbito da educação, ne-cessariamente, implica trazer as contribuições de autores que se debruçaram sobre essa questão.

De acordo com Souza (2001), muitas pesquisas e estu-dos buscam investigar os diferentes aspectos das relações trava-das dentro dos espaços das instituições de Educação Infantil. É preciso pensar o espaço enquanto um conceito multiforme, que se destina a qualificar situações, ambientes, estruturas, distâncias, extensões, lugares. O espaço não pode ser reduzido a apenas um espaço físico, mas antes como um ambiente, onde emergem múl-tiplas dimensões humanas e diversas formas de expressão.

Zabalza e Forneiro (1998) fazem uma distinção entre es-paço e ambiente, apesar de terem a clareza de que são conceitos intimamente ligados. O termo espaço refere-se aos locais onde as atividades são realizadas, compondo-se pelos objetos, móveis, materiais didáticos, decoração. O termo ambiente diz respeito ao conjunto desse espaço físico e às relações que aí se estabelecem, as quais envolvem os afetos e as relações interpessoais das pessoas envolvidas no processo. É um todo indissociável de objetos, pes-soas, sons que se relacionam dentro de uma estrutura física e que fala, ainda que nos mantenhamos calados. Portanto, não existe

48

Léa Stahlschmidt Pinto Silva e Viviam Carvalho

de Araújo

Educ. foco, Juiz de Fora,

v. 13, n. 2, p. 45-65, set 2008/fev 2009

espaço físico ou material neutro, desprovido de significados, uma vez que nele os sentimentos se revelam e produzem marcas que permanecem nas pessoas.

O historiador Viñao Frago (1998) nos aponta a não neu-tralidade do espaço, que é vivo, produz sentidos, podendo de-marcar relações de poder e de escolhas: “...a arquitetura escolar é também por si mesma um programa, uma espécie de discurso que institui na sua materialidade um sistema de valores” (p. 26). A percepção do espaço é, portanto, um processo cultural. Segundo o autor, não percebemos espaços, mas sim lugares, isto é, perce-bemos espaços construídos. O lugar é discutido por Frago como um conceito que dá um significado ao espaço. O espaço vai se transformando em um lugar na medida em que vai ganhando um significado para os praticantes que o constroem cotidianamente:

A ocupação do espaço, sua utilização, supõe sua constitui-ção como lugar. O “salto qualitativo” que leva do espaço ao lugar é, pois, uma construção. O espaço se projeta ou se imagina; o lugar se constrói. Constrói-se “a partir do fluir da vida” e a partir do espaço como suporte; o espaço por-tanto, está sempre disponível e disposto para converter-se em lugar, para ser construído. (1998, p. 61).

Considerando que os textos são pretextos para estudar, tais ideias nos levaram a refletir sobre espaço, lugar e território buscando compreender como as educadoras da creche percebem e entendem o seu meio ambiente.

É importante ressaltar que espaço é o produto de inter-relações. “É o produto das dificuldades e complexidades, dos entrelaçamentos e dos não entrelaçamentos de relações” (MASSEY, 2004, p. 17). Espaço e lugar, na nossa compreensão, estão intimamente relacionados. Para Tuan (1983, p. 6), na experiência, o significado de espaço frequentemente se funde com o de lugar. “Espaço é mais abstrato do que lugar. O que começa como espaço indiferenciado transforma-se em lugar à medida que o conhecemos melhor e o dotamos de valor”. Assim, o espaço abstrato, imaginário se torna o lugar de ação a partir do momento em que o dotamos de afeto, de valor. O exemplo dado pelo professor Jader Janer Moreira Lopes, da Universidade Federal Fluminense (UFF), em uma de suas palestras, ajudou-nos a compreender a relação entre espaço, lugar e território. Ao se referir ao conflito entre israelenses e palestinos

49

Reflexão crítico-colaborativa na creche: o espaço em discussão

Educ. foco, Juiz de Fora,v. 13, n. 2, p. 45-65, set 2008/fev 2009

na disputa pela cidade de Jerusalém, considerada sagrada por esses povos, destaca o professor que o conflito envolve a disputa por um espaço que se torna lugar, já que envolve valores de ordem religiosa e, ao mesmo tempo, materializa-se na disputa por um território, que é, “assim, um espaço mediado pelas representações construídas por um determinado grupo ao estabelecer o seu poder frente a outro e que apropria-se do espaço como forma de sua expressão e projeção” (LOPES, 2001, p. 13).

Por outro lado, não se pode entender o território sem compreender a noção de limite, pois todo e qualquer modo de organização das partes de um todo implica a noção de limite que, mesmo não sendo traçado, como em geral ocorre, exprime a rela-ção que um grupo mantém com uma porção do espaço.

Nessa perspectiva, podemos compreender o espaço da cre-che como lugar na medida em que envolve valores como o cuida-do e a educação de crianças pequenas, materializando-se em um território porque exprime a relação que o grupo responsável pelo cuidado e educação dessas crianças mantém com uma porção do espaço físico e também a partir das relações que esse grupo vai estabelecendo entre si.

Assim, entender o significado de espaço, lugar e território foi necessário para a aquisição de consistência teórica no tocante ao estudo das práticas educativas que se concretizavam no espaço da sala de atividades da creche pesquisada.

DO ESPAÇO IMAGINADO AO ESPAÇO CONSTRU¸DO: PR˘TI-CAS EDUCATIVAS NA CRECHE

Analisar a questão do espaço da creche e os desdobra-mentos que dele decorrem vai além de concebê-lo apenas como um arranjo da estrutura física. É preciso considerar toda sua di-mensão simbólica a ser apropriada e reelaborada pelos educado-res, funcionários e pelas crianças.

A organização dos espaços educativos e a forma como são pensados demonstram a intencionalidade educativa da instituição. Diferentes concepções de criança, infância e de educação podem permear a proposta pedagógica da instituição: práticas que incluem as crianças e as suas diversas infâncias, práticas escolarizantes, assis-tencialistas, adultocêntricas, higienistas e discriminatórias podem es-tar presentes. Além disso, o espaço demarca as relações de poder.

50

Léa Stahlschmidt Pinto Silva e Viviam Carvalho

de Araújo

Educ. foco, Juiz de Fora,

v. 13, n. 2, p. 45-65, set 2008/fev 2009

A partir da pesquisa que realizamos na referida creche pú-blica, pudemos refletir de forma crítica e colaborativa com as quatro educadoras responsáveis pelas crianças de 2 e 3 anos sobre o espaço da creche, considerando: a sua organização física, as relações que ali são travadas, incluindo as relações de poder, de escolhas, de formação e/ou disciplinarização, como também de instituição de práticas.

Na discussão com as educadoras da creche, percebemos sua dificuldade em se apropriarem do espaço da instituição como algo a ser construído a partir de suas práticas e saberes. Nos dis-cursos produzidos pelas educadoras fez-se bastante presente o entendimento do espaço da creche qualificado, por um lado como potencializador e organizador de atividades e, por outro, como demarcado por relações de poder e de disciplinarização.

Essas observações materializaram-se nas sessões reflexivas semanais que eram subsidiadas pelas videogravações3 de atividades que as educadoras realizavam com as crianças. O fato de as educado-ras revê-las nas referidas sessões possibilitava o seu auto-confronto com a sua prática. Numa dessas ocasiões, a educadora Gláucia refe-riu-se ao espaço físico de uma das salas de atividades que fora filmada com as crianças de 2 anos.

Gláucia: ... elas têm que ter mais espaço do que aquele (...) porque tem hora que eu nem concordo muito com as mesas e cadei-ras porque elas [as crianças] fi cam muito presas ali nas mesas e nas cadeiras,(...) se tivesse mais espaço pra brincar livre, no chão, fl uía mais. Aí, se levar pro chão não é muito melhor? Se fosse pro chão, todo mundo ali à vontade... E ali no vídeo eu observei que a mesinha atra-palha e elas são muito pequenininhas pra sentar na mesinha (Sessão refl exiva nº4 - 28/08/2006).

Ainda que as duas salas das crianças de três anos fossem mais espaçosas e a rotina estabelecida pela creche permitisse que as crianças se deslocassem para outros espaços, tais como o refei-tório, o parquinho, a observação da educadora Gláucia suscitou reflexões pedagógicas significativas. Entre elas, a que se refere ao papel importante desempenhado pelo ambiente. De acordo com Wallon (1989), um ambiente sem estímulos, em que as crianças não possam interagir desde tenra idade umas com as outras, com os adultos e com objetos e materiais diversos não possibilitará o desenvolvimento em sua plenitude.

51

Reflexão crítico-colaborativa na creche: o espaço em discussão

Educ. foco, Juiz de Fora,v. 13, n. 2, p. 45-65, set 2008/fev 2009

Dada a importância que Wallon atribui à tonicidade mus-cular e postural da criança, por exemplo, podemos inferir que a organização espacial de um ambiente que acolhe crianças pequenas deverá ocupar um espaço físico amplo onde elas possam movimen-tar-se com amplitude. Na investigação em questão, nós, educado-ras e pesquisadoras, percebemos que nas salas que abrigavam as crianças de dois anos, havia mesas e cadeiras nas quais as crianças realizavam atividades com massa plástica, de desenho e com blo-cos. Algumas destas atividades nos pareceram muito semelhantes àquelas desenvolvidas com crianças de faixas etárias bem superiores (5 anos), e apresentavam reduzida dimensão. As mesas e cadeiras ocupavam um espaço central, o que impunha às crianças um con-trole do corpo e dos movimentos. Diante desse fato foi importante refletir entre nós que, para os pequenos da creche as áreas para cor-rer, saltar e rolar são extremamente importantes para o seu desen-volvimento. Portanto, faz-se necessário que se proceda à previsão de atividades dessa natureza, fundamentais para a faixa etária a que se destinam, adequando móveis e objetos para o espaço físico no qual elas serão desenvolvidas com as crianças.

Como pesquisadores, tínhamos a tarefa de intervir de for-ma crítico-colaborativa nas discussões que aconteciam. Para tal, en-tre outras estratégias, buscávamos reconstruir a atividade que havia suscitado as reflexões. Em uma dessas intervenções procedeu-se à reconstrução de uma atividade feita por uma das educadoras que, conforme afirmou, tinha como objetivo trabalhar de forma lúdica a questão do equilíbrio, de dentro e fora, para as crianças adquirirem uma noção de espaço. A educadora traçou no chão do refeitório da creche um retângulo com o auxílio de uma fita gomada. As crianças em fila, uma de cada vez, deveriam andar sobre a linha.

A reconstrução da atividade foi feita no pátio externo com as próprias educadoras. Um fato interessante foi que as crianças de 3 anos encontravam-se no pátio sob a orientação das bolsistas e acabaram participando da atividade junto com as educadoras. Uma das pesquisadoras desenvolveu exercícios que envolviam ati-vidades de correr, parar e continuar o movimento. Propôs tam-bém a dramatização da história dos três porquinhos utilizando um quiosque do pátio para representar a casinha e um fantoche de lobo mau. No momento da reflexão sobre a reconstrução da atividade, as educadoras comentaram que durante sua execução haviam sido exercitados o equilíbrio, a noção de dentro e fora, o

52

Léa Stahlschmidt Pinto Silva e Viviam Carvalho

de Araújo

Educ. foco, Juiz de Fora,

v. 13, n. 2, p. 45-65, set 2008/fev 2009

sentimento da confiança e do medo. A pesquisadora elencou os diferentes espaços em que haveria a possibilidade de proporcionar às crianças diversas formas de exercitar o equilíbrio trazendo para a reflexão os três tipos de equilíbrio: o estático (“que é esse que a gente fica paradinho”), o dinâmico (“andando ou correndo”) e o recuperado (“que é esse que a gente fez: está correndo, parou e tem que ficar na pose e depois continuar o movimento”). Conti-nuou comentando que para trabalhar o equilíbrio com as crianças pequenas, podemos fazer uso de atividades diferentes da realizada em que cada criança deveria andar, uma de cada vez, sobre uma linha determinada pela educadora. Entre outras alternativas, citou atividades envolvendo o correr, o saltar, o rolar, a dramatização de uma história, atendendo, assim, às características próprias da faixa etária de 2 e 3 anos, justificando que, toda vez que deslocamos o nosso centro de gravidade (andando, correndo, rolando), estamos em desequilíbrio e, necessariamente, faremos um esforço para nos reequilibrarmos, exercitando, assim, o nosso equilíbrio corporal.

Uma outra implicação pedagógica importante que diz res-peito ao modo como o espaço onde a criança se insere e se re-laciona com outras pessoas é organizado, pode ser traduzida nas observações das educadoras Gláucia, Tânia e Dalva realizadas na sessão reflexiva em que discutíamos a atividade desenvolvida por uma delas com as crianças de 3 anos. Nessa ocasião a educadora havia colocado à disposição das crianças tintas de várias cores com as quais elas, em determinado momento, começaram a pintar as mãos e os braços, despertando uma discussão sobre a conser-vação da limpeza da sala.

Tânia: Eu observei que na atividade da Gláucia as crianças puderam se expressar no espaço sufi ciente para realizar a atividade e também a preocupação das crianças em manter a sala limpa.

Gláucia: É, eu sempre achei que elas [as crianças] têm uma preocupação com a limpeza, mas elas fi caram bem descontraídas né? Eu abandonei aquele negócio de fi car com a vasilhinha e a pasta para limpar as mesinhas e a sala na minha mão. Não tô fazendo mais isso! Até porque não vou deixar a sala toda imunda, o chão todo sujo porque isso faz parte do aprendizado das crianças. Mas fi car preocupada com o risco de giz-de-cera em cima da mesa eu não vou. Isso eu já tirei de mim.

53

Reflexão crítico-colaborativa na creche: o espaço em discussão

Educ. foco, Juiz de Fora,v. 13, n. 2, p. 45-65, set 2008/fev 2009

Dalva: (...) acabou de pintar, rapidinho eu já vou limpando, não dá tempo nem dela [a criança] falar sobre aquilo que ela pintou. Então eu acho que inibe o meu trabalho e eu fi co cansada! Você acaba fazendo com a criança um trabalho e menos um aprendizado, como se fosse uma máquina, aquela coisa assim: pintou, limpa, pintou, limpa a mãozinha [a educadora esfrega uma mão na outra], guardou a tinta para não mexer de novo.

Tânia: Põe a mãozinha pro alto para não sujar a mesa, aí sai todo mundo com a mãozinha assim [a educadora levanta as mãos abertas até a direção do pescoço] aí, até que chega no banheiro [não tem lavatório na sala] pode acontecer de encostar na parede... pensa bem, se tem uma mãozinha na parede de repente [Risos] (Sessão refle-xiva nº6 – 18/09/2006).

As educadoras comentam que reconhecem o valor do trabalho do pessoal dos serviços gerais, reforçando que, como não há substituição dos funcionários em férias, o trabalho é au-mentado. A mesma situação ocorre com elas, as educadoras. A despeito de apontarem a colaboração que todos devem promo-ver na limpeza do espaço físico, as educadoras comentam que a pressão exercida para não se deixar a sala de atividades suja interfere na sua função. Em resposta à pergunta de uma das pes-quisadoras sobre se esse fato tem sido explicitado nas reuniões com todos os funcionários, elas negam até a possibilidade de fazê-lo, argumentando que tal questão poderia trazer problemas, ferir suscetibilidades. Assim, as educadoras recorrem à estratégia de sugerir que é preciso que todos os profissionais da creche também sejam incluídos nos cursos de capacitação destinados para as educadoras, ressaltando a importância de sua participa-ção, inclusive, nas nossas sessões reflexivas.

Nessa perspectiva, pensar no espaço da creche que se constrói enquanto um lugar carregado de sentidos é pensar nesse espaço cotidiano muito além do que se vê. É preciso conhecer e refletir sobre as práticas que nele se dão e os usos que dele se faz (CERTEAU, 1994).

Essa capacidade de reelaborar e buscar ações táticas para a apropriação do espaço constitui-se questão essencial para aque-les que constroem o espaço cotidianamente.

54

Léa Stahlschmidt Pinto Silva e Viviam Carvalho

de Araújo

Educ. foco, Juiz de Fora,

v. 13, n. 2, p. 45-65, set 2008/fev 2009

No entanto, é importante ampliarmos o significado desse termo no tocante às questões educacionais. Para Massey (2004), o espaço pode ser conceituado a partir de três proposições: ser um produto de inter-relações; ser considerado a esfera da possibilida-de da existência da multiplicidade; estar num processo de devir. Assim, o espaço é considerado em uma visão qualitativa, na qual podem emergir múltiplas possibilidades da existência do “eu” e do “outro”. Pensá-lo enquanto um processo de devir é considerá-lo em uma perspectiva de acontecimento, em que há sempre lugar para o imprevisível, em que os praticantes do cotidiano são os res-ponsáveis por construí-lo e significá-lo diariamente. O ambiente da creche, sendo um espaço de devir e movimento, é espaço da expressão das “táticas”4. É um lugar praticado pelo sujeitos histó-ricos, que o criam e recriam-no, fazendo dele um lugar.

É fato que o espaço é considerado muitas vezes de for-ma generalizada pelas políticas educacionais, nas quais predo-mina uma visão quantitativa, negligenciando-se todo o aspecto qualitativo de considerá-lo em uma trama de relações que se estabelecem cotidianamente. Pensando no espaço físico en-quanto o espaço que se vê, aquele que é pensado por aqueles que detêm o poder, é interessante a discussão de Alves (1998) que traz uma leitura do espaço como dimensão material do currículo. Para a autora, o espaço deve ser considerado dentro da problemática curricular. É preciso se resgatar a materiali-dade dos processos no que se refere ao cotidiano escolar. O espaço visível é aquilo que se vê, faz parte do campo político. No entanto, é no espaço invisível5 que se dão as relações coti-dianas. É nesse constante fazer e refazer, no espaço do impre-visível, que se dá a construção de saberes. Pensando no espaço enquanto um conceito abrangente, podemos considerar o es-paço da creche um lugar onde são produzidas subjetividades. O espaço torna-se um elemento significativo no currículo na medida em que é uma construção dos múltiplos interesses ex-plícitos e implícitos que vão sendo elaborados e reelaborados, afetando a vida daqueles que o praticam. O espaço da creche é parte integrante de um contexto macro, que é fruto de um processo dinâmico inserido nas práticas sociais. No entanto, apesar das influências macro exercidas sobre o espaço da ins-tituição, é inegável a participação dos praticantes nesse espaço que o constroem de forma qualitativa e vão trazendo novas estruturas e significações.

55

Reflexão crítico-colaborativa na creche: o espaço em discussão

Educ. foco, Juiz de Fora,v. 13, n. 2, p. 45-65, set 2008/fev 2009

Ainda discutindo a questão do espaço visível e do espaço invisível, Alves (1998) pontua:

Colocado no lugar mais baixo de uma hierarquia extrema-mente complicada e perversa, o espaço escolar, com suas práticas cotidianas, faz parte desses espaços que não se veem, mas sobre os quais se exerce uma severa crítica, de-pois de sobre ele decidir quase tudo - sua construção, sua organização, sua direção, os seus conteúdos e as relações que nele se dão. O único olhar possível a quem está no alto é o de conjunto, aquele ao qual é negado ver a emoção de cada curva e o sofrimento de cada dia (p. 50-51).

É preciso, no entanto, convidar os que estão no alto a ler, ouvir, sentir, cheirar o espaço construído cotidianamente, que na prática do dia-a-dia é possuído, tecido, unido pensado e feito (ALVES, 1998). A necessidade desse convite a que se refe-re Alves foi discutido pelas educadoras:

Teresa: Hoje eu vi a importância da pedagoga6 estar partici-pando destas reuniões. Pelo menos da nossa creche. Dela vir ver como que é, da gente estar discutindo essas coisas. Eu acho importante ela vir, para estar passando isso até para o programa [programa munici-pal de creches]. Ela que é assim... ela que está inserida lá, então para ela é mais fácil [discutir] do que pra gente aqui dentro da unidade.

Tânia: Muitas vezes quando a gente coloca alguma nova mu-dança, aí esbarra no político, aí a gente fi ca... ah, mas esbarra na questão política!

Dalva: Nem sempre também elas estão abertas às transforma-ções que a gente sugere para elas. Elas são meio assim... elas fi cam meio resistentes.

Pesquisadora: As pedagogas?

Dalva: Eu sinto isso quando a gente vai nessas reuniões dos proje-tos, [reunião mensal para elaboração do planejamento coletivo mensal das creches] lá embaixo. Aí, o que você coloca fi ca sempre aquela troca de olhares e nada sai resolvido. Igual a questão de estar falando desses projetos que nós desenvolvemos. Muitas vezes têm atividades para serem

56

Léa Stahlschmidt Pinto Silva e Viviam Carvalho

de Araújo

Educ. foco, Juiz de Fora,

v. 13, n. 2, p. 45-65, set 2008/fev 2009

desenvolvidas, como as datas comemorativas que já vêm determinadas, que nós colocamos que não está de acordo com a faixa etária deles. E veio da mesma forma. Eu acho assim que deveria ser feita uma transformação entre elas também (Sessão reflexiva nº 5 – 04/09/2006).

A creche, que inicialmente é marcada pelo espaço visível, campo do poder e instituída como espaço político de hierarquiza-ção, é também espaço invisível, construído pelas ações dos sujeitos históricos que o transformam em lugar praticado. O espaço invisí-vel ocupa o espaço visível, enchendo-o de ações táticas, nas quais várias saídas podem ser propostas.

As educadoras da creche apontam que as estratégias utiliza-das para fazer frente às dificuldades encontradas demonstram que, embora o espaço invisível ocupe o espaço visível com suas ações táticas, ambos limitam e disciplinam. Este faz parte do campo políti-co, refere-se à administração central das creches públicas, enquanto aquele é o espaço da creche, com suas práticas cotidianas que incluem múltiplas relações, inclusive aquelas decorrentes do espaço visível.

Gláucia: Eu acho que o espaço físico que hoje é adaptado para ser escola, creche, eles não são adequados para criança. O próprio piso, sabe, não poderia ser de taco de madeira, teria que ser um piso lavável, mais fácil de limpar. A pintura na parede teria que ser a óleo pra qualquer coisa que sujasse, limpasse. Acho que teria que ser um espaço físico para que a criança fi casse mais livre. Adapta-se uma sala e colocam as crianças de Educação Infantil naquela sala. E aí a professora fi ca com aquele cui-dado: “Ai meu Deus, se sujar a parede eles vão falar comigo! Ai meu Deus, se sujar de tinta eles vão falar comigo!” Então ela própria fi ca com medo de sujar, entendeu? (Sessão reflexiva nº 4 - 28/08/2006)

Dalva: Tem coisa que não depende só de nós, né? Você esbarra, como se diz, no político... (Sessão Reflexiva nº. 5 - 04/09/2006).

O espaço de construção de saberes na creche é muitas ve-zes atravessado pela constituição da rotina que, em sua forma mais limitadora, apresenta-se como uma função organizadora e mode-ladora dos sujeitos em relação ao espaço e nas suas inter-relações, partindo de padrões fixos e universais. De acordo com Barbosa (2006), a universalização da rotina pedagógica nas instituições para crianças pequenas não é recente, estando presente em diversas ins-

57

Reflexão crítico-colaborativa na creche: o espaço em discussão

Educ. foco, Juiz de Fora,v. 13, n. 2, p. 45-65, set 2008/fev 2009

tituições de forma muito parecida e independentemente do lugar e do momento histórico, tanto no Brasil como em outros países, a exemplo da Itália, Suécia, Estados Unidos e Espanha.

Rotinas universalizantes geram práticas homogêneas, par-tindo de uma padronização e dissimulação das diferenças, crian-do um discurso único, desconsiderando o contexto histórico e as práticas culturais presentes em cada instituição. Segundo Barbosa (2006), “há nas instituições um discurso dominante sobre a edu-cação das crianças, socialmente aceito e apresentado como verda-deiro” (p. 178). No entanto, a autora nos chama atenção para o fato de que “...esse discurso, mesmo quando aponta para uma uni-cidade, está permeado por diferenças que se expressam de modo peculiar nas diferentes práticas” (p. 178).

A presença desse discurso único e da padronização das prá-ticas pedagógicas fez-se presente na fala das educadoras da creche.

Tânia: (...) E a gente esbarra também que aqui na creche tudo é padronizado, então, se fi zer aqui, a gente tem que fazer em todas as creches... (Sessão Reflexiva nº 5 - 04/09/2006)

Gláucia: É aquilo que eu te falei no início. A organização das nossas salas tem todo um padrão [estabelecido pela adminis-tração central] que tem que ser seguido na instituição... (Sessão Reflexiva nº 5 - 04/09/2006)

Nesse sentido, as reuniões de planejamento das ativida-des, denominadas de projeto pelas educadoras, também repro-duzem uma prática de padronização percebida por elas como um entrave para o desenvolvimento de suas atividades.

Tânia: Uma vez por mês são feitas as reuniões de elaboração desse projeto. Uma educadora de cada creche vai lá embaixo na ad-ministração central e se reúne com as demais para fazer a construção desse projeto. O que se decide lá é mandado para todas as unidades. Só que são datas fechadas. Os temas que defi nem os projetos são fe-chados. Muitas vezes acabam fugindo do que a gente gostaria de es-tar trabalhando aqui, da forma que a gente gostaria que fosse... Não é que a gente não possa estar trabalhando o que a gente gostaria, mas, talvez se a gente pudesse elaborar do nosso jeito, com a nossa realidade, fi caria melhor (Sessão Reflexiva nº 5 - 04/09/2006).

58

Léa Stahlschmidt Pinto Silva e Viviam Carvalho

de Araújo

Educ. foco, Juiz de Fora,

v. 13, n. 2, p. 45-65, set 2008/fev 2009

O espaço, por não ser neutro, indiferente, traduz a cultura de infância, as representações de crianças e adultos que o marcam, representando também o projeto educativo concebido para as crian-ças de uma determinada instituição de Educação Infantil. No caso da creche, as práticas produzidas nesse espaço, na opinião das educa-doras apresentavam-se, muitas vezes, como um modelo a ser seguido desconsiderando-se o contexto sócio-cultural no qual estão inseridas as creches. Fica evidente a produção de um espaço de controle no qual as educadoras se sentem submetidas a um contexto macro, represen-tado pela administração central das creches, que nem sempre traduz as necessidades do seu contexto mais próximo, em nível micro.

Teresa: [...] A gente coloca o que a gente pensa e tem que pas-sar pela coordenadora para ela ler. Ela tem que assinar.

Tânia: Lá embaixo.Teresa: É. O que a gente escreve e se não tiver...Tânia: De acordo...Teresa: Então as coisas são muito políticas mesmo.Gláucia: A questão democrática é uma questão assim, é uma

democracia meio, como é que eu vou te falar...Tânia: Meio ditadura.Dalva: É ... mais é mesmo!Gláucia: Meio acuada. Porque é democrático e não é ao mes-

mo tempo.Tânia: É democrático porque você pode estar escolhendo desde

que não afete... Gláucia: Desde que não afete o interesse (Sessão Reflexiva

nº 5 – 04/09/2006).

O discurso da educadora Gláucia “Meio acuada. Porque é democrático e não é ao mesmo tempo” marca a compreensão dos sentidos que o espaço promove, institui, hierarquiza, disciplina e educa fazendo pensar na importância de se recolher meto-dologicamente registros, anotações, diários, legislações e nor-matizações, imagens, plantas arquitetônicas, enfim, documentos diversos que se transformariam em fontes para a compreensão e a ressignificação dos sentidos daquilo que o espaço promove, tal como o registro do diálogo entre as educadoras acima descri-to. Enquanto para a administração central da creche, a reunião mensal de planejamento com a presença de uma educadora de

59

Reflexão crítico-colaborativa na creche: o espaço em discussão

Educ. foco, Juiz de Fora,v. 13, n. 2, p. 45-65, set 2008/fev 2009

cada uma das creches sob a sua gerência, possivelmente, traduz-se numa atitude democrática, que propicia a interação, para as educadoras da creche em questão, tal reunião limita, disciplina, homogeiniza realidades diferentes.

Na visão de Foucault (2007, p. 144), essa situação poderia ser interpretada como

(...) a de uma arquitetura que não mais é feita simples-mente para ser vista (fausto dos palácios), ou para vigiar o espaço exterior (geometria das fortalezas), mas para permitir um controle interior, articulado e detalhado – para tornar visíveis os que nela se encontram (...) O ve-lho esquema simples do encarceramento e do fechamen-to – do muro espesso, da porta sólida que impedem de entrar ou de sair – começa a ser substituído pelo cálculo das aberturas, dos cheios e dos vazios, das passagens e das transparências.

Na abordagem de Bronfrenbrenner (1996), numa estrutu-ra ecológica7 de relações, podemos interpretar que um ambiente distante da creche atua como fator relevante nas interações que nela se estabelecem. Assim, a família das crianças, a administração municipal da cidade, a administração central da creche, por exem-plo, atuam consideravelmente nas relações que se estabelecem no interior da creche.

O espaço como processo de construção de possibilidades

O espaço na educação se constitui como uma estrutura de oportunidades. Será facilitador, ou pelo contrário limitador, em função do nível de congruência com respeito aos objetivos e à di-nâmica geral das atividades que se desenvolvem, ou com respeito aos princípios que fundamentam o projeto político pedagógico que caracteriza o nosso trabalho.

Existem alguns tipos de influências diretas no ambiente que provocam, impedem, facilitam ou dificultam o desenvolvimento do processo educativo, as quais poderíamos identificar como espaço visível, conforme já definido anteriormente. Todavia, quando não é esse espaço e sim a percepção e a interpretação que os educadores

60

Léa Stahlschmidt Pinto Silva e Viviam Carvalho

de Araújo

Educ. foco, Juiz de Fora,

v. 13, n. 2, p. 45-65, set 2008/fev 2009

fazem de diferentes aspectos do ambiente escolar, são as influências simbólicas (espaço invisível) que condicionam a conduta e o desen-volvimento das atividades educativas.

Assim, podemos considerar o espaço da creche e das ins-tituições escolares, de um modo geral, como contextos de apren-dizagem e crescimento pessoal, por um lado, e como contexto de significados, por outro. Dependendo de como organizamos o am-biente da creche, obteremos umas experiências ou outras, com um determinado perfil. Desse modo, a organização do espaço de uma sala quadrada ou retangular, onde as mesas ocupam o lugar central, certamente não propiciará as mesmas oportunidades de experiên-cias do que um espaço organizado de tal modo que as crianças pos-sam interagir com os objetos, explorando-os, sentadas ou deitadas no chão (de acordo com a educadora Gláucia), com seus pares e a educadora; e ainda, que tenham a possibilidade de um espaço soli-tário, quando assim o desejarem.

A dificuldade de alguns educadores em trabalhar “com corpos que se movimentam” está ligada aos pressupostos de uma pedagogia tradicional ou transmissiva, na qual se afirmou a estratégia de se contro-lar o pensamento das crianças através do controle dos movimentos.

Frente ao exposto, parece claro que não tem muito sentido planejar de forma fechada o trabalho com crianças tão pequenas. Não pode haver programações em que tudo está previsto de an-temão: a variedade de interesses, dedicação e comportamento das crianças, a descontinuidade de seus esforços e de sua atenção re-querem um modelo aberto de programação. A educadora Tânia comenta sobre essa situação vivida na creche:

Tânia: O que se decide na reunião mensal de planejamento é impresso e enviado para cada creche. Só que aí são datas fechadas, os temas que defi nem os projetos são fechados, muitas vezes fugindo do que a gente gostaria de estar trabalhando aqui (sessão reflexiva nº 5 - 04/09/2006).

Uma variedade de oportunidades potenciais que oferecem uma boa organização espacial pode ajudar muito o educador da creche atra-vés dos recursos de espaço de que disponha: lugares, ângulos ou zonas funcionais e diversos objetos situados em posições estratégicas. Isso posto, qualquer coisa que surja pode ser introduzida com facilidade, e o fato novo e inesperado se converte em ocasião de novas experiências a viver num contexto de aprendizagem previamente organizado.

61

Reflexão crítico-colaborativa na creche: o espaço em discussão

Educ. foco, Juiz de Fora,v. 13, n. 2, p. 45-65, set 2008/fev 2009

Forneiro (1998) afirma que a possibilidade de a organi-zação espacial ser transformada é um dos critérios que deve ser considerado quando pensamos em espaços desafiadores, provo-cadores de interações e aprendizagens entre as crianças.

Na hora de planejar os espaços da creche devemos levar em conta alguns princípios, sejam psicológicos (as necessidades da criança), arquitetônicos, estéticos, médicos, de segurança ou di-dáticos. Esses princípios devem atender, pelo menos, as seguintes exigências (Zabalza, 2002):

Necessidade de autonomia: a criança encontra-se em processo de construção de sua identidade, tendo por base ir somando esforços nessa conquista, por meio de atividade físi-ca, da relação com os objetos e com as pessoas. Isso significa transitar em espaços abertos e livres para se movimentar e liberdade para fazê-lo, ter coisas para manipular e oportuni-dades de contato com os demais, entre outras.

A dialética entre o individual e o grupal: um aspecto concreto dessa dialética é o ritmo vigília-sono dos menores. O sono requer um espaço que tenha um clima de afetividade e segurança. Além disso, deve haver um espaço que comporte o desejo de estar só, provido de jogos individuais, como também estímulos para as atividades em grupo. Isso supõe a criação de pequenos ambientes onde a criança que deseje possa refugiar--se.

Curiosidade e descobrimento: referindo-se ao es-paço, isso significa diversificar os estímulos. Para tal, há a exigência de objetos diversificados - duros e macios, móveis, fixos e desmontáveis; exigências arquitetônicas tais como configurações horizontais de diversos níveis, com lugares in-clinados para trepar e deslizar, com superfícies de diferentes tipos e texturas; uma visão de estética que vá mais além da decoração, o estético como estímulo para o desenvolvimento cognitivo e artístico; a presença de estímulos objetivos junto de outros que estimulem a fantasia e a imaginação, a criação de temas de faz-de-conta. Lugares de fazer coisas, lugares de estar só.

Iniciativa: essa iniciativa se exercerá através de expe-riências com objetos de montar e desmontar, materiais com opções diversificadas tais como são a água, a areia, as telas para

62

Léa Stahlschmidt Pinto Silva e Viviam Carvalho

de Araújo

Educ. foco, Juiz de Fora,

v. 13, n. 2, p. 45-65, set 2008/fev 2009

pintura, a argila, as formas e as cores para compor, o papel para rasgar, disfarçar-se etc.

A terceira dimensão do espaço: geralmente nas insti-tuições educativas restringe-se com freqüência o espaço à sua dimensão vertical (estar sentado ou de pé) concedendo-se me-nos opção ao uso do chão. Entretanto, podemos observar que as crianças apreciam atividades que lhes possibilitem atirar-se ao solo, brincar espalhando os objetos, ao invés de se move-rem em espaços estreitos. Sem dúvida, é importante trabalhar o espaço em todas as suas dimensões. A criança necessita ex-perimentar com o corpo os conceitos de espaço para poder entendê-los em sua plenitude.

Ao longo do texto foi possível perceber que nas sessões reflexivas realizadas entre as educadoras da creche e as pesquisado-ras a questão do espaço foi central nas discussões, proporcionando momentos interessantes de reflexão.

O espaço de reflexão construído no espaço/lugar/creche a partir da pesquisa foi importante para que as educadoras pudessem refletir sobre suas práticas e com a colaboração das pesquisadoras reconstruíssem novos significados para seu trabalho. A constru-ção de espaços/lugares de reflexão nas creches constitui-se como importante instrumento para a ressignificação das práticas peda-gógicas, para a construção coletiva de saberes e transformação do espaço institucional, pensado e idealizado, em um lugar praticado, sentido e vivido pelas educadoras e pelas crianças.

Nas palavras das educadoras e pesquisadoras, aprendemos que creche é espaço de reflexão crítico-colaborativa.

Teresa: Essas reuniões estão fazendo a gente refl etir mais tam-bém o nosso trabalho. Por isso está fi cando mais fácil de estar colocando. Porque, a partir do momento que você para para refl etir o que você faz, as coisas mudam. Aí você começa a ver que você sabe colocar, você sabe o porquê, então fi ca mais fácil. Porque a gente faz, só que a gente não tem é esse espaço para parar e poder refl etir. Olha a importância de refl etir! Você está trabalhando, trabalhando... Sem refl etir é diferente... Gera uma mudança!

Gláucia: Com certeza!

Teresa: Ocorre uma transformação também.

63

Reflexão crítico-colaborativa na creche: o espaço em discussão

Educ. foco, Juiz de Fora,v. 13, n. 2, p. 45-65, set 2008/fev 2009

Gláucia: Acho, nossa é... eu acho que pra gente conseguir a gente tem que parar mesmo e... E esse tempo que nós estamos parando, com essa pesquisa, deu para clarear muita coisa.

Tânia: Foi assim, unânime. Nós paramos e pensamos: nossa, quanto que foi gratifi cante começar, porque o novo assusta! No início eu fi cava assim, aí meu Deus o que será? Como será, o que vai ser, por que vai ser? E agora eu acho que está assim, muito bom. A gente conversa. A gente troca bastante experiência, bastante ideia. (sessão refl exiva nº 5- 04/09/2006).

Pesquisadora: Eu quero dizer uma coisa a vocês. As pessoas acham que a gente tem obrigação de saber o que elas estão pensan-do. Principalmente em situações em que existe hierarquia. Então, por exemplo, quando você fala com a coordenadora sobre algo que na sua opinião não vai bem, pode ser que você se arrisque. Mas, se não for dito, ela não vai saber, porque quem sabe de sua turma de crianças, do espaço e das necessidades delas são vocês. Eu estou aprendendo muito com vocês e se eu for lá na sua sala agora, Tânia, pode ter certeza que eu vou pas-sar por difi culdades. Não saberia o que fazer com as crianças (Sessão reflexiva nº10 – 23/10/2006).

Dalva: O que eu aprendi é que eu não sou auto-sufi ciente e que a troca de experiências é altamente construtiva para o ambiente educacional (Sessão reflexiva nº 12 – 22/11/2007).

Dessa feita, coloca-se a todos nós, educadores e pesquisa-dores, o desafio de examinar as caracterizações que se tem feito dos espaços e das rotinas nas instituições de crianças pequenas, desve-lando os sentidos produzidos pelas suas apropriações, construções, representações históricas e determinações sócio-culturais, que vêm marcando as atribuições e os usos desses espaços institucionais e interpessoais.

Notas

1 SILVA, Léa S.P. O brincar de faz-de-conta e a imaginação infantil: concepções e práticas do professor (tese de doutorado), IPUSP, 2003 e Concepção de qualidade em Educação Infantil: um estudo de caso, publicada no livro SILVA, Léa S. P. &

64

Léa Stahlschmidt Pinto Silva e Viviam Carvalho

de Araújo

Educ. foco, Juiz de Fora,

v. 13, n. 2, p. 45-65, set 2008/fev 2009

MICARELLO, Hilda A. da S. L. Uma experiência de pesquisa, formação e inter-venção em educação infantil, Juiz de Fora: FEME,UFJF, 2005.

2 Optamos pelo termo educadoras. Na creche elas são denominadas recreadoras e educadoras sociais.

3 As videogravações foram produzidas por duas bolsistas de iniciação científica em acordo e agendadas com as educadoras.

4 Michel de Certeau (1994) utiliza este termo para designar as reações empregadas para fugir das estratégias de dominação. Para ele a tática é a arte do fraco.

5 Termo usado por Alves (1998) para diferenciar o espaço visível (as construções, o que se vê) do invisível (as múltiplas relações travadas neste espaço).

6 Existe uma profissional graduada em Pedagogia que se responsabiliza pela orien-tação de 4 creches públicas distintas.

7 O ambiente ecológico é concebido pelo autor como uma série de estruturas en-caixadas, uma dentro da outra, como um conjunto de bonecas russas. (BRON-FRENBRENER, 1996, p. 5).

Referências bibliográficas

ALVES, Nilda. O espaço escolar e suas marcas: o espaço como dimensão material do currículo. Rio de Janeiro: DP&A, 1998. BARBOSA, Maria Carmen Silveira. Por amor e por força: rotinas na Educação Infantil. Porto Alegre: Artmed, 2006.

BRONFENBRENNER, Urie. A Ecologia do Desenvolvimento Humano: experimentos naturais e planejados. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996.

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1994.

FORNEIRO, Lina, I. A Organização dos Espaços na Educação infantil. In: ZABALZA, Miguel, A. Qualidade em educação Infantil. Porto Alegre: Artmed, 1998.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Nascimento da prisão. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007, 33. ed.

FRAGO, Antônio Viñao; ESCOLANO, Augustin. Currículo, espaço e subjetividade: a arquitetura como programa.

65

Reflexão crítico-colaborativa na creche: o espaço em discussão

Educ. foco, Juiz de Fora,v. 13, n. 2, p. 45-65, set 2008/fev 2009

Tradução: Alfredo Veiga-Neto. Rio de Janeiro: DP&A, 1998.

LOPES, Jader Janer Moreira. Espaço Escolar, Democracia e Pensamento Educacional Brasileiro. Trabalho apresentado à disciplina Teoria e Educação II, do curso de Doutorado em Educação da Universidade Federal Fluminense, 2001.

MAGALHÃES, Maria Cecília C. A formação do professor como um profissional crítico. São Paulo: Mercado das Letras, 2004.

MASSEY, Doreen. Filosofia e Política da Espacialidade: algumas considerações. In: Geographia. Revista da Pós-Graduação em Geografia. Departamento de Geografia. Universidade Federal Fluminense. Rio de Janeiro: ano VI, n. 12, dezembro de 2004.

SOUZA, Gizele de. Currículo para os pequenos: o espaço em discussão! Educar. Curitiba: Editora da UFPR, n. 17, 2001, p. 79-99. SZUNDY, Paula T. C. A construção do conhecimento no jogo e sobre o jogo. Ensino-aprendizagem de LE e formação reflexiva. Tese de Doutorado em Lingüística Aplicada e estudos da Linguagem, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2005.

TUAN, Yi-Fu. Espaço e Lugar. São Paulo: Difel, 1983.

WALLON, Henri. Origens do Pensamento na Criança. São Paulo: Manole, 1989.

ZABALZA, Miguel A. Qualidade em educação Infantil. Porto Alegre: Artmed, 1998.

______ Didáctica de la Educación Infantil. Madrid, España: NARCEA, S. A., DE EDICIONES, 2002.