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Reflexões sobre a Seleção e a Utilização de Manuais Didáticos

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Artigo sobre o papel do professor na seleção e utilização de materiais didáticos em sala de aula

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REFLEXÕES SOBRE A SELEÇÃO E A UTILIZAÇÃO DE MANUAIS DIDÁTICOS

Valéria Moura Venturella1

RESUMO:Este trabalho reflete sobre o modo como os professores brasileiros selecionam os manuais didáticos de que fazem uso e sobre a maneira como utilizam esses materiais no processo de ensino e aprendizagem, como colocado por Bárbara Freitag. O trabalho, então, contrapõe essas práticas com os novos desafios colocados aos educadores pelas necessidades de nossa sociedade atual, que exige do processo educacional a formação de pessoas autônomas, flexíveis e criativas. Por último, o trabalho procura apontar alguns caminhos para um exercício mais reflexivo de escolha e de emprego de manuais didáticos em sala de aula.

Qualquer livro ou material impresso – atlas, dicionários, histórias infantis, literatura

clássica ou popular, revistas de todo tipo, jornais, folhetos de propaganda política ou

comercial, entre outros – pode, em princípio, ser utilizado como um recurso didático em sala

de aula. Para que isso ocorra, basta que o uso desses materiais seja intencionalmente

planejado com o objetivo de promover o aprendizado e a reflexão a respeito de um

determinado tema.

O foco deste trabalho, no entanto, não é o uso dessa diversidade de materiais

impressos como utensílios pedagógicos, mas a utilização em sala de aula de livros

projetados especificamente para serem usados, por professores e estudantes, no ambiente

escolar: os chamados livros ou manuais didáticos.

Quem não se lembra de uma cartilha que tenha utilizado durante o processo de

alfabetização? E como esquecer um determinado livro de química ou de matemática

utilizado já em fases mais avançadas de nossa vivência estudantil? Esses conhecidos livros-

texto, como também são chamados, passam hoje por uma profunda avaliação. Sua

utilização em sala de aula é alvo de severas críticas. A professora Ângela Dionísio, da

Universidade Federal de Pernambuco acredita que a tradicional parceria entre o professor e

o livro didático “atravessa um momento de encontros e desencontros, uma vez que ambos

estão em fase de transição” (DIONÍSIO, 2003, p. 82).

Os educadores dos tempos atuais têm tido seu trabalho constantemente

questionado. A complexidade da sociedade em que vivemos hoje – um mundo globalizado e

interligado, em que o acesso à informação, a quantidade de informações disponíveis e a

rapidez com que os fatos evoluem parecem não ter limites – impõe à educação e, por

conseguinte, ao professor, a desafiadora missão de proporcionar aos estudantes condições

para que se preparem para os contextos em que vão atuar, e para que essa atuação seja

participativa e responsável. Pressionados para oferecer a seus estudantes uma educação

adequada às necessidades do mundo atual, os professores estão em busca de rumos para

1 Mestre em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul; Doutoranda em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul; Professora da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – Uruguaiana.

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seu trabalho. Nesse processo, a seleção e o uso de um manual pedagógico adequado pode

não só facilitar como também viabilizar um trabalho de qualidade em sala de aula. Ou, ao

contrário, pode asfixiar tanto o professor quanto os estudantes em sua criatividade, auto-

expressão e consciência crítica.

O objetivo deste trabalho é propor uma reflexão sobre o papel que os livros e

materiais didáticos são levados a desempenhar no processo de formação dos estudantes,

ponderando sobre a dinâmica do emprego dos manuais escolares tanto por professores

quanto por estudantes em sala de aula, desde o processo de seleção do livro até a maneira

como ele é utilizado na ação educativa. O trabalho também procura apontar alguns

caminhos no sentido de fazer dos livros didáticos ferramentas que auxiliem professores e

estudantes a, ao longo do processo educativo, atingir os objetivos que lhes são colocados

pela sociedade atual. Ao considerarmos que o livro didático pode ser, em muitos casos, o

único livro com que uma criança entra em contato (MOLINA, 1988), essa reflexão adquire

importância fundamental, pois pode ser determinante no processo de formação não apenas

acadêmica como também pessoal dos estudantes.

Nas últimas duas décadas, dada a importância que assume na experiência escolar

da maioria dos estudantes, o livro didático tem sido o tema de muitos estudos

especializados. Segundo Bárbara Freitag, autora de O Livro Didático em Questão

(FREITAG, 1997), a maior parte dos estudos sobre os livros didáticos realizada no Brasil

têm dois focos principais, que são a fundamentação pedagógica, psicológica, lingüística e

semiológica dos textos e também os valores, preconceitos e concepções ideológicas

contidas no livro didático. O primeiro grupo de autores se dedica a refletir sobre a didática

sugerida pelos livros, sua metodologia de ensino, as teorias de aprendizado subjacentes à

sua organização e sua fundamentação teórica e filosófica. Já o segundo conjunto de

estudiosos se concentra nas concepções de mundo propagadas explícita ou implicitamente

pelo livro através de sua linguagem, de seu conteúdo e de sua organização.

Uma reflexão importante apresentada nesses estudos é a baixa qualidade dos livros

dedicados aos estudos escolares. A autora aponta como principais pontos negativos a

linguagem artificial, a marginalidade dos textos em relação à literatura clássica e sua

distância da realidade cotidiana das crianças e mesmo dos professores. Quanto à

metodologia de trabalho sugerida ou recomendada, os resultados desses estudos sugerem

que a maioria dos livros didáticos editados no Brasil são obras apoiadas primordialmente em

bases empíricas, carecendo de uma fundamentação psicopedagógica segura.

Tais materiais, porém, deveriam ser projetados a partir de sólidos conhecimentos

sobre a vida das crianças e dos jovens e sobre teorias do desenvolvimento humano. “O

material didático utilizado em sala de aula precisa ser o mediador entre as estruturas

cognitivas dinâmicas da criança e a estrutura do conhecimento ou da área do saber que

está sendo transmitido à criança em sala de aula” (FREITAG, 1997, p. 68). No momento em

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que o livro entra em descompasso tanto com os interesses quanto com as necessidades

dos estudantes, eles o rejeitam. E, se o livro é o principal recurso no processo educativo, ao

repudiar o livro as crianças estão se afastando também dos estudos, da escola e da

educação.

Por outro lado, a ideologia veiculada pelos livros didáticos é também um assunto que

merece ser objeto de reflexão e debates. O estudo de Freitag (1998) mostrou que muitos

materiais, intencionalmente ou não, transmitem mensagens preconceituosas e concepções

distorcidas para seus consumidores: as imagens do homem, da mulher e da criança, a

concepção de cidadania, as diferenças entre classes sociais mais ou menos favorecidas

economicamente, a representação do trabalho, da escola, da família, do lazer, entre outros.

Frente a evidências desse tipo, alguns pensadores recomendam a eliminação do uso

do livro didático nas escolas, denunciando a banalização com que importantes temas são

tratados nos livros escolares. Acusando o manual de ser uma “peça na grande engrenagem

que produz e recompõe o sistema” (FREITAG, 1997, p. 71), esses autores recomendam

que, em vez de servir para financiar a elaboração de materiais pedagógicos, investimentos

governamentais sejam direcionados para abrir, equipar e manter bibliotecas públicas, de

modo a permitir que estudantes e professores consultem a mais variada gama de livros e

revistas, tendo acesso a textos originais e integrais, à sua escolha.

É aconselhável, porém, que avaliemos com cuidado a idéia de que o livro-texto

escolar é o maior – ou mesmo um dos maiores – difusor de preconceitos e concepções

errôneas sobre o mundo. Não devemos nos esquecer que vivemos em um mundo de textos

e imagens ideologizantes: programas e comerciais de televisão e de rádio, filmes, revistas

adultas e infantis, materiais de divulgação de todos os tipos, entre outros. Suprimir o livro

didático não eliminaria o problema em si, mas apenas uma de suas manifestações. O curso

de ação mais adequado em uma luta contra visões estereotipadas e intolerantes da

realidade é auxiliar as pessoas a desenvolver e exercer seu espírito crítico diante do que

lhes é veiculado nas mais variadas frentes.

O livro didático não traz em si apenas estreitezas e limitações. Neville Grant (1988)

enuncia que o livro tem a vantagem de oferecer de maneira ao mesmo tempo organizada,

econômica e atraente muitos materiais adicionais – tais como tabelas, gráficos, ilustrações,

gravuras, entre outros – facilitadores do aprendizado, o que otimiza o tempo de

planejamento das atividades de sala de aula do professor e serve como um auxílio

prestimoso nos estudos individuais dos estudantes. Talvez aqui resida a principal vantagem

da utilização de um manual pedagógico em sala de aula.

Grant afirma também que o livro mostra ao professor e aos estudantes o que deve

ser ensinado e aprendido e os métodos mais apropriados para esse processo, mas é

importante que reflitamos com cuidado a respeito dessa noção. A seleção de objetivos de

um curso, e posterior escolha de conteúdos que atendam esses objetivos é papel do

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professor em seu diálogo com a instituição em que atua e com o público que atende –

estudantes, famílias e comunidade. Nenhum material didático pode pretender desempenhar

essa função.

Os autores de Conceber e Avaliar Manuais Escolares, Gerard e Roegiers (1998),

colocam claramente a limitada atribuição do livro didático no processo educativo, ao

sustentar seu objetivo principal é atuar como um instrumento que permita ao professor um

melhor desempenho em seu papel na sala de aula. Assim, o manual pedagógico se

configura como um dos recursos, junto a muitos outros, a ser utilizado de maneira crítica e

distanciada pelo professor em sua atuação profissional. Ele é um facilitador, e não um

condutor; uma sugestão e não uma receita.

Embora a maioria dos estudos realizados no Brasil sobre livros destinados ao uso

em sala de aula se concentre no material propriamente dito (FREITAG, 1997), talvez essa

não seja a única – e nem sequer a mais relevante – abordagem de estudo desse que ainda

é o mais freqüente e importante apoio pedagógico à disposição de professores e

estudantes. É importante que se reflita sobre o livro didático sob a perspectiva de seu

emprego, ou seja, o uso que é feito dele no processo educativo, tanto sob a ótica do

professor quanto sob a do aluno.

Nossa discussão, então, muda de foco neste ponto. Passamos aqui a abordar a

utilização do livro didático em sala de aula, desde os critérios usados para sua seleção até o

modo como ele pode promover ou frustrar a experiência de aprendizado do aluno.

Tentaremos discutir suas potencialidades e limitações do ponto de vista dos sujeitos do

processo de ensino e aprendizagem: o professor e os estudantes.

É importante que lembremos que, por mais elevada que seja a qualidade de um

manual escolar, ele jamais será totalmente compatível com os objetivos, as exigências e os

interesses de um grupo de estudantes. Os livros são planejados e produzidos para

professores e estudantes idealizados, e não para pessoas reais, pertencentes a um local e

uma época específicos. Assim, a atribuição do professor, mesmo diante de um excelente

material pedagógico, continua sendo a de estabelecer uma ligação entre seus conteúdos e

metodologias e a realidade de seus estudantes.

No Brasil, nem sempre é o professor que escolhe o material com que trabalha. No

caso de instituções que fazem parte de redes privadas de ensino, por exemplo, os materiais

são padronizados e não há possibilidade de escolha por parte do professor. Há também

circunstâncias em que as escolhas são determinadas por entidades mantenedoras ou

mesmo pela direção da escola. Mesmo nesses casos, é importante que o professor tenha

condições de avaliar o material que tem em suas mãos para que possa partir para um

trabalho de reflexão e pesquisa de alternativas possíveis para – quando necessário –

adaptar o material à sua realidade.

Nesta discussão, no entanto, vamos nos concentrar nos casos em que a seleção dos

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manuais pedagógicos está sob a responsabilidade do professor. Em nosso país, desde

1985 (MOLINA, 1988), os professores das redes públicas de educação fundamental e média

gozam de autonomia para eleger os materiais com que desejam trabalhar, sendo que o

Estado se encarrega de sua distribuição gratuita aos estudantes. À primeira vista, essa

parece ser uma situação ideal: um professor que tem o poder de escolher, dentre as opções

disponíveis, o manual didático que melhor atende às necessidades e aos interesses de seus

estudantes, e um Estado responsável por garantir que todos tenham acesso a ele.

Freitag (1997) denuncia, porém, que os critérios utilizados pela maioria dos

professores brasileiros são extrínsecos ao processo de ensino e aprendizagem. O que

geralmente dita suas escolhas são os aspectos gráficos do livro, a indicações de colegas, e

sugestões de editoras seguidas de envio gratuito de exemplares e visitas de vendedores

representantes das editoras. Os resultados da pesquisa da autora mostraram que a maioria

dos professores jamais havia participado de qualquer tipo de preparação para avaliar os

livros didáticos, e que realizava a escolha sem reflexões mais aprofundadas. Sem qualquer

preparação formal para essa importante tarefa, os professores contam apenas com seu bom

senso e com os esforços de vendas das empresas que publicam os livros.

A partir desse ponto de vista, fica claro que da iniciativa do Ministério da Educação

de deixar a cargo do professor a missão de escolher os manuais didáticos perde muito de

sua validade. Embora seja evidente que o educador é a pessoa mais indicada para esse

trabalho, também é correto esperar que, para realizá-la, ele desenvolva uma certa clareza

quanto aos critérios que deveriam nortear suas escolhas e também quanto ao próprio

processo de seleção do manual mais adequado à sua realidade.

Com base nos trabalhos de Freitag (1997), de Molina (1988) e de Grant (1988), é

possível divisarmos alguns critérios que poderiam auxiliar o professor: (a) a relevância dos

conteúdos do material e dos métodos de trabalho propostos para a vida dos estudantes; (b)

a adequação entre o livro e os objetivos e conteúdos do plano de ensino a ser desenvolvido

em sala de aula, tanto em termos dos tópicos abordados quanto em relação à linguagem

adotada; (c) a capacidade do material de estimular nos estudantes o interesse, a

curiosidade, a autonomia, a reflexão, a criatividade e o gosto pelo estudo e pela

investigação; (d) a formação, a experiência e outros trabalhos publicados pelo autor, assim

como a reputação e o catálogo da editora. Cabe a cada professor, é claro, modificar essa

lista, adicionando ou suprimindo itens, de acordo com suas necessidades específicas.

Segundo Grant (1988), a avaliação de um livro didático deveria ocorrer ao longo de

três fases, que são: a apreciação inicial, a investigação detalhada e a avaliação em uso.

Uma apreciação inicial serve principalmente para, dentre uma gama de livros à escolha do

professor, filtrar aqueles materiais que não atendem aos critérios de qualidade definidos

pelo professor. O autor nos aconselha a resistir aos apelos visuais e estéticos do livro, que

são inicialmente os mais fortes, e ir adiante em uma avaliação mais detalhada dos

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conteúdos e dos procedimentos sugeridos.

Na avaliação detalhada do material, afirma Grant, o ideal seria a pilotagem de um

curso ou mesmo de algumas aulas com seu uso. Sabemos, porém, que nem sempre essas

são circunstâncias possíveis na rotina de um professor. A segunda alternativa proposta é a

preparação de uma checklist ou de um questionário objetivo – cobrindo os aspectos

considerados importantes em um livro didático – a ser respondido durante a análise de

alguns materiais já selecionados a partir da fase inicial.

Já a terceira instância de avaliação – a mais importante – ocorre de maneira

continuada ao longo do período em que o material está em uso. É em sua utilização na

prática e no diálogo que se estabelece a partir dele entre o professor e os estudantes que

um livro didático mostra suas principais características, e também as necessidades de

interferência do professor.

Dada a importância do processo de seleção de um material didático que tem o poder

de influenciar a formação acadêmica, profissional e pessoal dos estudantes, sabemos que

esse não deveria ser um trabalho isolado de cada professor. Considerando também que

uma boa avaliação deve estar apoiada em conhecimentos tanto da área de estudo quanto

da psicologia do desenvolvimento e da didática – e que dificilmente se pode esperar que

uma só pessoa aprofunde seus estudos em todos esses campos – o ideal é que esse seja

um trabalho de uma equipe de professores, que compartilhem e negociem conhecimentos,

experiências e pontos de vista.

Em relação ao uso do livro didático em sala de aula, Grant (1988) apresenta três

grandes abordagens utilizadas pelos professores: o primeiro grupo professores decide não

adotar um livro didático, preferindo preparar seus próprios materiais, partindo do princípio de

que conhecem seus estudantes melhor do que qualquer autor de livros-texto; um segundo

grupo de professores segue o livro didático página a página, sentindo-se, assim, seguros a

respeito da qualidade do ensino que estão oferecendo a seus estudantes; já um terceiro

grupo acredita na utilidade do livro didático e faz uso dele parte do tempo das aulas,

complementando-o com outros materiais selecionados conforme acredita ser as

necessidades de seus estudantes.

O estudo de Barbara Freitag (1997) mostra que a maioria dos professores brasileiros

se enquadra na segunda categoria de professores. Inseguros em relação a sua própria

formação e sem tempo, condições financeiras ou disposição para investir em sua formação

continuada, os professores se sentem despreparados interferir na apresentação, no

conjunto de tópicos, na metodologia proposta e na ideologia veiculada pelo livro que

adotaram. Assim, os professores utilizam o livro didático sem autonomia intelectual e sem

espírito crítico, posturas que deveriam ser o próprio objetivo do processo educativo. Em vez

disso, Freitag revela, muitos professores têm sua opinião moldada pelo material que

utilizam, pois tendem a acatar seu conteúdo “mesmo quando os textos se chocam

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frontalmente com suas idéias pessoais e convicções mais profundas” (p. 108). Eles

absorvem os conteúdos do material e os transmitem para os estudantes, de forma

reprodutiva, não-criativa e não-reflexiva.

Assim, em vez de utilizar o livro didático como um dos muitos instrumentos que lhe

auxiliam a guiar o processo de ensino e aprendizagem em sala de aula, os educadores o

adotam como “o modelo-padrão, a autoridade absoluta, o critério último de verdade”

(FREITAG, 1997, p. 111). As causas dessa atitude de reverência absoluta, segundo o

estudo, é a falta de confiança do professor em seu conhecimento e seus posicionamentos,

decorrente da percepção das deficiências em sua formação profissional e de seus hábitos

irregulares ou mesmo inexistentes de leitura e estudo.

Umas atribuições mais importantes de um educador é a de tomar decisões durante o

planejamento de seus cursos e em sua atuação em sala de aula, o que inclui sua

interferência nos textos didáticos. É papel do professor não só avaliar os materiais que

utilizará em suas aulas, mas também refletir e tomar decisões sobre como utilizá-los com

inventividade e flexibilidade, principalmente com vistas a atender às necessidades de seu

grupo de estudantes e da realidade que se apresenta. Mesmo um material que

apresentasse erros e interpretações preconceituosas e distorcidas da realidade poderia

servir como ponto de partida para uma melhor compreensão do mundo, desde que fosse

objeto de questionamentos, desconstruções e reconstruções por parte dos professores e

dos estudantes – uma vez que é a interferência do professor que realiza o que é, no

material, apenas potencialidade – sem contudo deixar de abordar o conteúdo recomendado

e especialmente sem deixar de respeitar os direitos dos autores e das editoras.

Do ponto de vista dos estudantes, por outro lado, o livro didático é uma ferramenta.

Segundo Grant (1988), “a maioria dos estudantes quer um livro-texto” (p. 8). O autor

acredita que os estudantes, em geral, não atribuem a uma pasta repleta de textos e outros

materiais avulsos o mesmo valor educativo que um livro tem. “Um livro-texto é uma

segurança para a maioria dos estudantes” (p. 8), por se constituir tanto em um roteiro para

seus trabalhos como uma ferramenta de sistematização de seus estudos.

Segundo o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (HOUAISS, 2001), aprender é

construir conhecimentos e habilidades práticas, e também adquirir melhor compreensão de

um determinado objeto de estudo, especialmente pela intuição, pela sensibilidade, pela

vivência e pelo exemplo. Já nas palavras do Relatório da Unesco para a Educação no

Século XXI (DELORS, 1998), a educação deve se organizar para que cada estudante se

desenvolva de modo integrado em quatro instâncias, que são conhecer, fazer, viver juntos e

ser. O tipo de aprendizagem promovida pela utilização do livro didático na sala de aula pode

vir a atender aos objetivos propostos pela Unesco nos moldes significativos e vivenciais

definidos por Houaiss, desde que estejamos atentos para o tipo de trabalho proposto aos

estudantes a partir do material.

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Molina (1988) menciona a diferença entre aprender um texto e aprender a partir de

um texto. Enquanto aprender um texto significa, na maioria das vezes, memorizar as

informações nele contidas, aprender a partir de um texto envolve habilidades cognitivas

como construção de representações mentais, estabelecimento de relações entre as novas

informações e o que já se sabe, análise e síntese de idéias. Além dessas habilidades,

poderíamos incluir no processo de aprendizado a partir de um texto a avaliação das visões

nele contidas e nosso posicionamento pessoal justificado em relação a elas.

Por sua vez, Maria Eunice Verde, em sua dissertação de mestrado O Livro Didático e

a Formação do Leitor (VERDE, 1985), apresenta três níveis de leitura possibilitados pelos

textos: assimilação, interpretação e elaboração. Enquanto a assimilação é o nível mais

superficial de leitura e envolve o desenvolvimento da capacidade de reproduzir o conteúdo

lido, a interpretação abre um espaço para que o leitor atribua sentido ao que leu, um

processo que é diferente em cada experiência de leitura e em cada pessoa. Já a elaboração

requer do leitor a produção de algo novo a partir da interação com o texto.

Assim, considerando a possibilidade aberta ao estudantes para que aprendam a

partir de um texto, interpretando suas mensagens e elaborando novas idéias a partir de seu

conteúdo, podemos afirmar que a utilização de manuais didáticos em sala de aula pode

contribuir para a formação de sujeitos ativos e criativos, capazes de se posicionar em

relação ao que vivenciam e também capazes de se transformar a partir dessa experiência.

Para que essa experiência ocorra, é essencial que a metodologia de trabalho adotada

permita e promova uma experiência significativa de aprendizado.

Infelizmente, essa não parece ser a proposta da maioria dos livros e materiais

pedagógicos utilizados em nossas salas de aula (FREITAG, 1997). Os chamados “livros

consumíveis”, adotados em grande parte das escolas brasileiras, têm suas tarefas

planejadas de modo a serem executadas pelos estudantes com o mínimo de reflexão e

inventividade. Tolhidos da oportunidade de assumir uma posição e de construir

interpretações e elaborações, os estudantes acabam aprendendo a não questionar, a não

pensar e, em última alçada, a não transformar nem a si e nem ao que lhes cerca. Nessas

circunstâncias, o próprio objetivo da educação se perde.

Voltamos, aqui, ao papel crucial do professor – que, em última instância, é o

condutor dos processos na sala de aula – no planejamento das atividades que os

estudantes realizam ao longo de sua formação e no processo de tomada de decisão em

relação aos materiais adotados e ao modo como eles serão utilizados. Ao passo que

esperar que os professores produzissem materiais específicos para cada grupo de

estudantes é uma postura pouco realista, é coerente almejar que os educadores tenham

condições de re-elaborar, em uma relação de diálogo permanente com seus estudantes, os

materiais que utiliza em sua sala de aula.

Neste ponto de nossa discussão, devemos nos dispor a realizar uma profunda

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reflexão a respeito da formação profissional dos professores, tanto inicial quanto continuada.

Os professores necessitam construir um embasamento teórico e metodológico sólido e

também amplo de modo a ter condições de, com os recursos de que dispõem, oferecer

permanente estímulo ao desenvolvimento da autonomia intelectual dos estudantes. A

educadora Ângela Dionísio (2003), coloca que a formação dos professores deve articular a

construção de um conhecimento teórico com o desenvolvimento de habilidades de não só

ensinar como também de pesquisar sobre o processo de ensino e aprendizagem.

Outros respeitados pensadores da educação, como Pedro Demo, vêm defendendo a

formação de educadores com base na construção de posturas questionadoras e de

habilidades de investigação e pesquisa. Demo (2001) denuncia que o professores

aprendem, em seus cursos de formação, a atuar como meros transmissores de

informações, uma vez não têm a oportunidade de, eles mesmos, realizar reelaborações a

partir das teorias que lhes são apresentadas. Seria pouco realista, continua Demo, esperar

que professores que foram formados com base na na aceitação e reprodução de idéias de

outros passem a educar seus estudantes de maneira questionadora e autônoma. Para que o

professor passe a realizar essa tarefa, é essencial que ele mesmo vivencie as experiências

que esperamos que proporcione a seus estudantes.

O aprimoramento do processo de ensino e aprendizagem, assim, passa,

principalmente por esforços de qualificação e revisão permanente dos professores que,

como co-protagonistas e co-autores do processo educativo, vão examinar, selecionar e

utilizar os livros-texto em sala de aula, não como uma fonte única e absoluta de verdades,

mas como mais uma ferramenta pedagógica. A emancipação dos professores, então, se

evidencia no planejamento de seu trabalho com o auxílio do manual, mas também com base

em suas investigações e re-elaborações, e – especialmente – em uma relação dialógica

seus estudantes que, no processo, constroem sua própria autonomia intelectual.

E aqui emerge uma das tarefas mais importantes tarefas dos educadores na

atualidade, que é a de interferir na elaboração de manuais didáticos. “É importante que o

professor tenha consciência da responsabilidade que lhe cabe hoje, ao exercer seu poder

de decisão sobre o destino dos livros didáticos, suas editoras e seus autores” (FREITAG, p.

140). De reprodutores dos conteúdo colocados nos livros, o professor deve construir

condições de estabelecer uma relação de cooperação e intercâmbio de idéias com autores e

editoras no sentido de constantemente aprimorar os materiais que são disponibilizados.

Cabe ao professor monitorar, a médio e longo prazo, a qualidade da produção de materiais

didáticos que serão oferecidos aos estudantes.

REFERÊNCIAS:

DELORS, Jacques. Educação: um tesouro a descobrir. São Paulo: Cortez, 1998.

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DEMO, Pedro. Pesquisa: princípio científico e educativo. 8. ed. São Paulo: Cortez, 2001.

DIONISIO, Angela Paiva. Variedades Lingüísticas: avanços e entraves. In: DIONÍSIO, Ângela Paiva; BEZERRA, Maria Auxiliadora. (Orgs.) O livro didático de português: múltiplos olhares. 2. ed. Rio de Janeiro: Lucerna, 2003, p. 73-86.

Freitag, Barbara. O livro didático em questão. 3. ed. São Paulo: Cortez, 1997.

GÉRARD, François-Marie; ROEGIER, X. Conceber e avaliar manuais escolares. Porto Alegre: Porto Editora, 1998.

GRANT, Neville. Making the most of your textbook. London/New York: Longman, 1988.

HOUAISS, Antonio. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva: 2001.

MOLINA, Olga. Quem engana quem: professor x livro didático. Campinas: Papirus, 1988.

VERDE, Maria Eunice Ferreira Lima. O livro didático e a formação do leitor: estudo dos níveis de leitura requeridos pelos livros de terceira série do 1º grau. 1985. Dissertação (Mestrado em Educação) – Programa de Pós-graduação em Educação, Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 1985.