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101 REFLEXÕES SOBRE A SERENIDADE EM HEIDEGGER: A CAMINHO DO QUE SOMOS OSCAR FEDERICO BAUCHWITZ (UFRN) RESUMO Este artigo procura refletir acerca da Serenidade (Gelassenheit) na filosofia heideggeriana, considerando que a pergunta pela essência humana resulta em uma pergunta pela essência do pensar. Evidenciam-se os limites do pensamento calculador e a abertura essencial do pensamento meditativo. Ao primeiro corresponde o mundo da técnica e a “era atômica”, marcada pela mais perigosa desdita: o desarraigo do próprio homem e de suas obras; à segunda corresponde uma convocação: chegar à propriedade de nosso próprio ser. É nesse contexto onde a Serenidade traduz uma atitude frente ao mundo da técnica, mas que, sobretudo, visa explicitar que a essência do ser humano, como pensar, repousa em um não querer, com as conseqüências renovadoras que este não querer acarreta, concretamente, a descoberta de que estando tão próximos, permanecemos em uma remota distância de nós mesmos. PALAVRAS-CHAVE: Heidegger – Serenidade – Técnica - Ética ABSTRACT This article looks for to reflect about Releasement (Gelassenheit) in the heideggerian philosophy, considering that the question for the human essence results in a question for the essence of thought. One proves the limits of the calculating thought and the essential opening of the meditating thought. To the first one, it concerns to the world of the technology and “atomic age”, marked for the most dangerous misfortune: the unroot of the same man and his works; to the second concerns a call: to take in propriety our own being. In this context Releasement translates an attitude face of the world of the technique, but that, over all, it aims at to show that the human being essence, as to think, rests in a not want, with the renewing consequences that this not want causes, concretely, the discovery that being so close we remain in a remote distance of ourselves. KEY-WORDS: Heidegger – Releasement – Technology – Ethics As reflexões aqui apresentadas procuram pensar em que medida a elucidação da Serenidade no pensamento de Heidegger nos coloca, por exigência do próprio tema, a caminho do que nós mesmos somos.

Reflexões sobre a Serenidade em Heidegger; A caminho do que somos - Oscar Federico Bauchwitz

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REFLEXÕES SOBRE ASERENIDADE EM HEIDEGGER:

A CAMINHO DO QUE SOMOS

OSCAR FEDERICO BAUCHWITZ(UFRN)

RESUMO

Este artigo procura refletir acerca da Serenidade (Gelassenheit) na filosofiaheideggeriana, considerando que a pergunta pela essência humana resulta em umapergunta pela essência do pensar. Evidenciam-se os limites do pensamentocalculador e a abertura essencial do pensamento meditativo. Ao primeirocorresponde o mundo da técnica e a “era atômica”, marcada pela mais perigosadesdita: o desarraigo do próprio homem e de suas obras; à segunda correspondeuma convocação: chegar à propriedade de nosso próprio ser. É nesse contextoonde a Serenidade traduz uma atitude frente ao mundo da técnica, mas que,sobretudo, visa explicitar que a essência do ser humano, como pensar, repousaem um não querer, com as conseqüências renovadoras que este não querer acarreta,concretamente, a descoberta de que estando tão próximos, permanecemos emuma remota distância de nós mesmos.PALAVRAS-CHAVE: Heidegger – Serenidade – Técnica - Ética

ABSTRACT

This article looks for to reflect about Releasement (Gelassenheit) in the heideggerianphilosophy, considering that the question for the human essence results in aquestion for the essence of thought. One proves the limits of the calculatingthought and the essential opening of the meditating thought. To the first one, itconcerns to the world of the technology and “atomic age”, marked for the mostdangerous misfortune: the unroot of the same man and his works; to the secondconcerns a call: to take in propriety our own being. In this context Releasementtranslates an attitude face of the world of the technique, but that, over all, it aimsat to show that the human being essence, as to think, rests in a not want, with therenewing consequences that this not want causes, concretely, the discovery thatbeing so close we remain in a remote distance of ourselves.KEY-WORDS: Heidegger – Releasement – Technology – Ethics

As reflexões aqui apresentadas procuram pensar em que medidaa elucidação da Serenidade no pensamento de Heidegger nos coloca,por exigência do próprio tema, a caminho do que nós mesmos somos.

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Serenidade é uma palavra usual de nossa língua, com ela seaponta a certo estado de tranqüilidade e impassibilidade. Aqui ela traduza palavra alemã Gelassenheit que intitula a obra publicada por Heideggerem 19591. Na língua alemã o termo designa esse mesmo estado do qualainda não atinamos, rigorosamente, como se relaciona com o nosso ser.

Serenidade foi publicada contendo duas partes: o discursopronunciado por Heidegger em Messkirch, por ocasião do 175ºaniversário do compositor Conradin Kreutzer, em Outubro de 1955,seguido pelo escrito “Debate sobre a Serenidade. De uma conversasobre o pensar em um caminho do campo” (Zur Erörterung derGelassenheit. Aus einem Feldweggespräch über das Denken) extraídode um escrito maior, “Um diálogo de três em um mesmo por um caminhodo campo entre um investigador, um erudito e um sábio” (’Agxibasíh.Ein Gespräch selbstdritt auf einem Feldweg zwischen einem Forscher,einem Gelehrten und einem Weisen) escrito em 1944/45, que compõejunto a outros dois diálogos o Feldweg-Gespräche, vol. 77 daGesamtausgbe2. No texto publicado em 1959, no entanto, Heideggermuda um dos personagens, em lugar do sábio se encontra um professor(Leher). Não sabemos por que Heidegger muda o nome de seupersonagem. Talvez por ser o Professor uma figura mais próxima ecotidiana. Entretanto, não se trata de um professor qualquer, é elequem guia os interlocutores pelo caminho do campo. É possível, ainda,entender que o diálogo situa-se em uma tradição sapiencial, na qual omestre não é o portador da sabedoria, mas aquele que indica a seusinterlocutores a árdua tarefa exigida pela época em que vivem, épocadespojada de ilusões e testemunha da crueldade da guerra que tocavaa seu fim, sobre a qual, aliás, não há nenhuma menção no texto. Por

1 Na tradução francesa, Serenité e na espanhola, Serenidad; em inglês Releasement,que traz o sentido de ser solto ou desprendido, e recorda o verbo alemão quecompõe Gelassenheit (Lassen: deixar, ceder, soltar). Como veremos, no contextoda obra analisada, Serenidade designa tanto um deixar quanto um permanecerdeixado, e deve ser entendida junto a uma série de palavras que constituem osentido procurado: gelassen/sereno, einlassen/introduzido,admitido, sich einlassen/comprometer-se, überlassen/confiar a, loslassen/liberar. Cf. “Advertencia” in:Serenidad, trad. Yves Zimmermann, Ediciones de Serbal, Barcelona, 1994, p.7s.

2 M. Heidegger Feldweg-Gespräch, Gesamtausgabe Band 77, Frankfurt a. M.,V.Klostermann, 1995. O “Debate sobre a Serenidade” ocupa um terço do diálogode 44/45(105-157). Os outros dois diálogos são: Der Lehrer trifft den Türmer ander Tür zum turmanfgang e Abendgespräch in einem Kriegsgefangenenlagerin Russland zwischen einem Jüngeren und einem Älteren.

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outra parte, o sábio promove um diálogo que é mais a conclamação deum esforço coletivo para pensar no essencial do ser humano do queuma resposta definitiva e meditada por um único indivíduo3.

Anos depois, em 1954, no Prólogo de Conferencias e Artigos,Heidegger retoma essa mesma postura: “Um autor que anda peloscaminhos do pensar, o único que pode fazer, no melhor dos casos, éindicar (weisen), sem que ele mesmo seja um sábio (Weiser: sábio,aquele que indica), no sentido do sophós”.

Como indicações ambos os textos que compõem Serenidademostram uma situação paradoxal e não menos preocupante: o homem queessencialmente é um ser pensante, já não pensa! Essa falta de pensamentosoa surpreendente: por um lado, diante das conquistas científicas, comoentender que o homem não pensa? E por outro lado, se é a marca essencial

3 Como sugere M. Álvarez Gómez em seu artigo “Raíces místicas del pensamiento deHeidegger”, Heidegger conhece e recebe as influências de Mestre Eckhart e AngelusSilesius e “traduce la mística al pensamiento filosófico”, in: Pensamiento del ser yespera de Dios, Editorial Sígueme, Salamanca, 2004, p.419; publicado anteriormentein: J.Lomba (ed.) Mística, pensamiento y cultura, Zaragoza, 1996, 13-31. MestreEckhart é lembrado no diálogo pela ressonância que possui a serenidade-gelassenheitem sua obra, mas, de uma forma inesperada, Heidegger quer mostrar uma diferença:“inclusive a serenidade pode ser pensada ainda dentro do domínio da vontade, talcomo sucede com os antigos mestres do pensar, p.ex. o mestre Eckhart. De quem,no entanto, há muito de bom que aprender”. É estranho que Heidegger recuse aaproximação com Eckhart, que é conhecido pela sua doutrina do desprendimento ouabandono. De fato, Heidegger conhece e cita o mestre de Erfurt em diversas partesde suas obras. Aqui, no entanto, Heidegger nos diz que a sua “serenidade não mentao abandono da vontade própria em favor da vontade divina”. O que nos surpreendeé que em Eckhart tal abandono deveria ser matizado, porque deus não possui estavontade e nem é mais o mesmo deus da tradição, em termos heideggerianos, onto-teo-lógica. Por outra parte é evidente que o termo em Heidegger se mantém em umâmbito totalmente distinto ao vivido pelo místico e surge como resposta ao mundoda técnica contemporânea. Sobre a presença de “elementos místicos” no pensamentoheideggeriano e da dívida de Heidegger para com os místicos e mesmo com opensamento oriental há uma vasta bibliografia. Veja-se: R. Schürmann “Troispenseurs du délaissement : Maître Eckhart, Heidegger, Suzuki”, Journal of the Historyof Philosophy, 12 (1974), p.455-478 e 13 (1975), p.43-60; Ph. Capelle “Heideggeret Maître Eckhart”, Revue des sciences religieuses, 70/1 (1996), p.113-124; A. DeLibera Eckhart, Suso, Tauler y la divinización del hombre, José J. de Olañeta Editor,Barcelona, 1999; J.Caputo The Mystical Element in Heidegger’s Thought, NewYork: Fordham University Press, 1986; G. Srummiello, “Got(t)heit: a deidade emEckhart e Heidegger” (Trad. R.Guerizoli), Veritas, v.47, n.3, 2002, p.347-364;C.Saviani, El Oriente de Heidegger, Herder, Barcelona, 2004.

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do homem o pensar, então estaria o homem desviando-se de si mesmo?Como ocorrem tais coisas?

Para Heidegger a época que vivemos é marcada pela indigência.É o tempo de penúria e a noite do mundo que empalidece e resta brilhoà própria existência, de tal modo que sequer a falta de deus chega a servista como uma falta. Do vazio que se instaura no céu ocidental projeta-se a sombra do nihilismo e do sem sentido que obscurece o existir: É afalta de respostas aos por quês. A época dos deuses fugidos, noentanto, não é outra que aquela mesma na qual o homem foge de simesmo, foge do pensar!

Esta fuga do pensar e, portanto, do que tem de mais próprio, nãoé algo admitido pelo homem e nem mesmo procurado. Frente à realidadedo domínio científico resulta difícil, senão uma temeridade, aceitar que ohomem não pensa. Jamais teve o homem à sua disposição tanta informaçãoou levou a cabo investigações tão precisas. Como compreender que ohomem foge do pensar ou como escreve Heidegger de maneira maisradical em O que significa pensar? : “o gravíssimo de nossa época é queainda não pensamos”4.

A resposta para Heidegger é simples, mas não por isso menosalarmante. Escreve Heidegger: “Há dois tipos de pensar, cada um dosquais é, por sua vez e a sua maneira, justificado e necessário: o pensarcalculador (rechenende Denken) e a reflexão meditativa (besinnlicheNachdenken). É a esta última a que nos referimos quando dizemos queo homem de hoje foge ante o pensar”5.

O que caracteriza o pensar calculador se encontra em toda parte,aqui mesmo ao nosso redor e em nosso cotidiano. Dito de outra formao pensar que calcula é o mesmo que planifica, controla, organiza,investiga, é um pensar voltado para determinadas circunstâncias e comvistas a determinados resultados, nunca, diz Heidegger, se pode esperardeste pensar que se detenha a meditar ou venha a pensar em prol do“sentido que impera em tudo quanto é”. Esta falta de interesse por partedo pensar calculador em “meditar”, não depõe contra a sua importância

4 M. Heidegger ¿Qué significa Pensar?, trad. Raúl Gabás, Madrid, Editorial Trotta,2005, 1ª Lição, p.17.

5 As páginas citadas se referem, em primeiro lugar, à tradução portuguesa e emseguida à edição alemã. Cf. M. Heidegger, Serenidade, trad. M.M. Andrade e O.Santos, Lisboa, Ed.Instituto Piaget; M. Heidegger, Gelassenheit, Pfullingen,Verlag Günter Neske, 1959, p.13-13.

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ou contra a necessidade de sua existência, tão somente alerta para ofato de que este pensar não pode esgotar o próprio do homem, justamenteporque tal pensar sempre se pauta um fim específico. Por isso, na visãodo pensar calculador a reflexão que medita sempre se encontra“suspenso, por cima da realidade. Perde o chão”. Por isso mesmo, “nãoserve para dar conta dos assuntos correntes, não contribui em nadapara levar a cabo a práxis” 6.

À crítica de inutilidade que parece caracterizar a reflexão, certaocasião Heidegger respondeu de modo emblemático: a questão não ésaber o que podemos fazer com a filosofia, mas, sobretudo, o que afilosofia pode fazer conosco. Ter isso em mente nos abre o horizontedevido para compreender o que se indica com Serenidade e como estase relaciona com o nosso ser, com a essência do pensar.

Agora bem, que época é essa onde a reflexão não tem lugar ecomo chega a se dar tal transformação? Para Heidegger, essa é a época daimagem do mundo, a época de da metafísica consumada, a era da técnica,a era atômica em suma. O que caracteriza a era atômica é para Heidegger,menos a bomba propriamente dita e o conseqüente domínio doconhecimento científico, do que uma ameaçada profundamente maisperigosa: o homem encontra-se em “uma posição totalmente nova nomundo e em relação ao mundo. Agora o mundo aparece como um objetosobre o qual o pensamento que calcula investe, nada mais devendopoder resistir aos seus ataques” 7.

Sabemos que essa nova posição em e para o mundo, emboragestada ao longo dos milênios da tradição metafísica, ganha seuscontornos atuais com a modernidade européia e o surgimento de umadicotomia de ordem cognoscitiva, onde um sujeito se estabelece comoreferência a um objeto, no caso o próprio mundo, e, sobretudo, comosujeito de uma vontade de limites insuspeitados. Também sabemos quefalar em era atômica pode parecer algo anacrônico. Décadas passaramdas primeiras explosões que deram fim à segunda guerra, e mesmo atensão da guerra fria já é algo que para boa parte da humanidade é umfato para os historiadores. Por outra parte, cada vez mais podemosassistir a manifestações críticas contra o emprego da energia atômica ea busca de outras fontes alternativas de energia. No entanto, o texto

6 Idem 14-13.7 Ibidem 18s-17s.

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heideggeriano resulta ser bem atual. Heidegger observa os resultadosde duas reuniões ocorridas em 1955 que congregavam 18 cientistasganhadores do prêmio Nobel: 1) a ciência, ou seja, a moderna ciênciada natureza é um caminho para uma vida mais feliz do homem8; 2) estápróxima a hora em que a vida será posta em mãos do químico, queirão decompor, reconstituir e modificar a substância vital como lhesaprouver”9. Diante dos avanços da engenharia genética e da criação detransgênicos ou mesmo da constituição do genoma humano, as palavrasde Heidegger soam muito próximas.

Junto a tais afirmações, extremamente atuais, poderíamos aindaacrescentar a visionária leitura que faz Heidegger da televisão ou darádio ou de qualquer outro meio de comunicação. Em A coisa, textocontemporâneo à Serenidade, Heidegger nota o “encolhimento” dasdistâncias no tempo e no espaço, como o avião que nos permite alcançarlugares antes muito remotos ou de como as informações nos chegamquase que ao instante. Para Heidegger, a televisão seria o cume destasupressão de toda possibilidade de distância e que logo dominaria todaa estrutura e as comunicações. Tudo parece mais próximo e facilmenteconhecido e reconhecido. No entanto, conclui Heidegger: Estaapressada supressão das distâncias não traz nenhuma proximidade,porque a proximidade não consiste na pequenez da distância10. Arigor, a supressão das distancias é também a ausência da proximidade ecom isso a instauração em definitiva do terrível, da ameaça mais perigosaque há pouco mencionávamos: o terrível é que os poderes que regem aera da técnica impõem a abstenção do humano, pois há tempos quesuperaram a vontade e a decisão humana, porque não foram feitos pelohomem; o terrível é aquilo que arranca a tudo que é de sua essênciaprimitiva; o terrível é a perda de arraigo do ser mais íntimo do homem, afalta de enraizamento (Bodenständigkeit) das obras humanas11, tal é aépoca que nos toca viver. O que é verdadeiramente inquietante paraHeidegger, “não é o fato do mundo se tornar cada vez mais técnico.Muito mais inquietante é o fato do ser humano não estar preparadopara esta transformação do mundo, é o fato de nós ainda não

8 Ibid. 18-17.9 Ibid. 21-20.10 La Cosa, in: Conferencias y Artículos, Barcelona, Ediciones del Serbal, 1994, p. 143.11 Serenidade, op.cit., p. 22s-21s.

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conseguirmos, através do pensamento que medita, lidar com aquiloque, nesta época, está realmente a emergir”12.

Heidegger não pretende abdicar da técnica ou condená-la comoarte diabólica. Dependemos dos objetos técnicos. Mas, diante doexposto até aqui, é evidente que aquilo que essencialmente pertenceao modo de ser do homem permanece em perigo e deve de serdespertado. Por isso, nos pergunta Heidegger: “Não poderia serrestituído ao homem um novo solo e fundamento a partir dos quaisseu ser e suas obras possam florescer de um novo modo, inclusivedentro da era atômica?”13. O procurado com esta pergunta talvez seache muito perto, tão próximo que o mais fácil é não adverti-lo, porquepara nós, os homens, o caminho ao próximo é sempre o mais remoto epor isso o mais árduo. Este é o caminho da reflexão. Nesta direção sedá o anúncio desta estranha postura que supõe a Serenidade:

“Podemos utilizar os objetos técnicos tal como eles têm deser utilizados. Mas podemos, simultaneamente, deixar esses objetosdescansar em si mesmos, como algo que não interessa àquilo quetemos de mais íntimo e de mais próprio. Podemos dizer sim à utilizaçãoinevitável dos objetos técnicos e podemos ao mesmo tempo dizer nãoimpedindo que nos absorvam e, desse modo, verguem, confundam e,por fim, esgotem a nossa natureza (...) Deixemos os objetos técnicosentrar em nosso mundo cotidiano e ao mesmo tempo deixemos-losrepousar em si mesmos como coisas que não são algo de absoluto,mas que dependem elas próprias de algo superior”14.

Esta atitude que diz simultaneamente sim e não ao mundo técnicoé a Serenidade para com as coisas (die Gelassenheit zu den Dingen). Apartir desta postura de aparência simples, deixamos de ver as coisas tãosomente desde uma perspectiva técnica, percebendo que todos osprocessos já estabelecidos pela técnica unidimensionalizante possuemum sentido que nos escapa. Para Heidegger, tal sentido permaneceoculto. No entanto, a partir da Serenidade para com as coisas, ao menos,percebemos que esse mesmo sentido se oculta na medida em que vemao nosso encontro. Isso que se mostra e ao mesmo tempo se retira noocultamento, Heidegger denomina mistério.

12 Idem, 21-20.13 Ibidem, 22-21.14 Serenidade, op.cit., 23s-22s.

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A atitude pela qual nos mantemos abertos ao sentido oculto domundo técnico é a abertura ao mistério (die Offenheit für das Geheimnis).Tal abertura e a serenidade se pertencem mutuamente. A partir destarelação, o estar-no-mundo torna-se outro. Esta atitude nos promete umnovo solo e um fundamento sobre os quais subsistir, um novoenraizamento que se aproxima e nos permite pensar de que formapoderíamos estar no mundo técnico, mas ao abrigo de sua ameaça.

A Serenidade para com as coisas indica uma nova relação paracom as coisas, situando-nos além da relação moderna de sujeito eobjeto, que é apenas uma variação histórica da relação do homem coma coisa, onde por um lado, as coisas se convertem em objetos antesmesmo de atingirem a sua natureza coisal (Dingwesen) e por outro, ohomem convertido em egoidade (Ichheit), se mantém preso à definiçãode sua própria essência como animal rationale e não investe emprocurar a sua essência além de si mesmo15.

Ao se questionar a relação do homem e das coisas se evidenciaque a própria coisa permanece impensada, sendo vista como algo àmercê da vontade humana. Soa estranho que algo tão próximo e familiar,as coisas com as quais nos ocupamos, possam adquirir um sentidosuperior ao de um objeto passível de ser tratado e conhecido por umsujeito. Uma vez mais Heidegger no convoca a pensar naquilo que nosé tão próximo e ao mesmo tempo desconhecido. Agora o caso é dacoisa. O que é uma coisa? Na resposta a esta questão instaura-se umanova interpretação de algo aparentemente tão simples quanto uma coisa,mas, sobretudo, se ganha um novo sentido para o mundo. Trata-se daconhecida quaternidade do mundo que nos apresenta Heidegger, ondedivinos e mortais, céu e terra se coligam na simplicidade da coisa. Naanálise de uma simples jarra percebemos a grandeza da coisa que reúnee deixa ver, como se de um jogo de espelhos se tratasse, isso quechamamos mundo. Por isso, a coisa é coisa quando nela ressoa a tessiturade nossa existência, quando nela ressoa o campo total de possibilidadesde nossa existência, quando se tratando dela, trata-se nela e com ela,esse campo de possibilidades a partir do qual toma sentido a nossaexistência, nos diz respeito, nos interessa. Como já estamos longe daempobrecida imagem do mundo técnico. A coisa descobre e põe emvigília a nossa existência. Coiseando, a coisa faz presente o mundo.

15 Ibid., 54s-55s.

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Por outra parte, a questão da essência do homem não é umaquestão sobre o homem, e exige desviar o olhar do homem para, talvez,encontrar a sua essência16. O Professor, que como adiantávamos, équem determina o rumo a ser seguido, diz algo surpreendentementeparadoxal. Em linhas gerais o argumento é como segue: se o pensar éo que caracteriza a essência do homem, então só se poderá divisar oessencial desta essência apartando o olhar do pensar, investigandoassim, se for possível, a essência do pensar. Como na filosofia modernao pensar sempre foi concebido como representação e como um querer(pensar é querer e querer é pensar) e se a essência do pensar é algodiferente do pensar, segue-se que a essência do pensar é algo diferentedo querer. Assim, o paradoxo que o Professor nos apresenta é: “sobreo que eu propriamente quero na meditação sobre o pensar, respondi:quero o não querer! (Ich will das Nicht-Wollen)”17.

Não-querer continua significando um determinado querer, masde um modo que o que impera nele é um não, que se dirige ao próprioquerer, abdicando dele. Não querer é, portanto, abdicar voluntariamentedo querer, permanecendo absolutamente fora de todo tipo de vontadeconhecida e, desse modo, um não-querer que não se alcança por umquerer, mas que paradoxalmente mantém uma relação com esse. Essarecusa patente na expressão do não-querer é a recusa daquilo que vigeem e pelo pensamento calculador. A expressão não se limita à negaçãodo vigente senão que nela se antecipa um novo comportamento e umareflexão, ela indica um âmbito de todo desconhecido e inusitado ao qualnão se chega pela acomodação do já conhecido, como se de uma reformase tratasse. Esse novo âmbito, no entanto, não é certo lugar distante ouremoto, ao qual pudéssemos chegar com os meios e procedimentosconhecidos. O novo âmbito exige um salto para nenhum outro lugarque aquele onde já nos encontramos e estamos admitidos, se ele apareceremoto é porque permanece oculto, embora sendo o mais próximo. Nadamais próximo ao homem que a sua essência, mas a ausência efetivadessa essência, a sua tendência fundamental de mostrar-se e ocultar-seainda mais rapidamente, a converte em algo remoto.

Em um momento de acentuado matiz “místico”, da noite queestá caindo e que compele ao recolhimento, anuncia-se com claridade

16 Ibid., 31-29.17 Serenidade, op.cit., 32-30.

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a relação entre o querer e o não querer: um não querer mediante o qualpossamos comprometer-nos com a busca do pensar que não é umquerer. Tal é a serenidade. A serenidade se desperta, portanto, quandoao nosso ser lhe é outorgado o comprometer-se com o que não é umquerer. Nela se oculta um agir mais elevado do que em todas as gestasdo mundo e maquinações dos homens18. Um agir, no entanto, que nãoé nenhuma atividade. E, certamente não é uma atividade ao tempo quetampouco é passividade, senão que a Serenidade se encontra além dadicotomia atividade/passividade porque se situa fora da vontade. Umestar fora que não pode significar um deixar-se à deriva ou pairar noirreal ou na nulidade, tampouco a negação da vontade de viver, massim indicar o comprometimento com algo que não é um querer e,portanto, com um pensamento já liberado da representação, umpensamento meditativo mediante o qual se adentra no não-querer,onde se dá a experiência de uma vontade despojada de qualquer anelode efetividade. A Serenidade, assim, é uma espécie de ação meditativa,a ação de um pensamento impulsionado por um querer superior (demhöchsten Wollen) que não é o fruto de uma apetência ou quererhumanos, senão a decisão que nos situa à escuta do essencial.

Diante das indicações que relacionam a Serenidade e a essênciado pensamento, o Investigador (Forscher) argumenta não poder (“nemcom a maior boa vontade”) representar (vorstellen) em que consiste essamesma essência. Como resposta a suas inquietações ouve do Professorque não deve fazer nada a não ser aguardar e renunciar ao representartranscendental-horizontal para penetrar na essência do pensamento nãoexperimentada. Com tal renúncia, o horizonte, esse campo de visão quenos permite captar os aspectos de todos os objetos, e que é experimentadotão somente a partir desses mesmos objetos e da própria representação,passa a ser pensado a partir do que possui de mais próprio, a abertura quepropicia e que não provém do fato de “olharmos dentro dele”19. Ahorizontalidade agora é vista como apenas o lado virado para nós (para onosso poder de representação) de um aberto que nos rodeia. Esse abertoé como uma região (Gegend), por cuja magia (Zauber) tudo aquilo que lhepertence retorna ao sítio onde repousa20.

18 Ibid., 35-33.19 Ibid., 37s-37s20 Ibid., 39-38

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Essa região, no entanto, não é uma região qualquer. Àobservação do Erudito (Gelehrther), que entende a região a partir deseu sentido literal, pelo qual a região é aquilo que vem ao nossoencontro (das uns Entgegenkommende), o Professor responde que,de ser assim, uma vez mais se caracterizaria a região a partir da relaçãoque mantém conosco e não pelo aberto que nos rodeia. Tal região é aregião de todas as regiões, é a região, por isso sublinha que deveriaser chamada de Região (Gegent)21. Por outro lado, vir ao nosso encontronão é o fundamental dessa região, mas sim que ela mesma seja regiãode encontro, que reúna tudo (“cada coisa com cada coisa e todasentre si”) levando-o a demorar no repouso de si mesmo. A Região étanto amplidão livre (freie Weite) quanto morada (Weile), de modo quenela o aberto se mantenha e se sustente, deixando cada coisa abrir-seno seu repouso próprio. E, por isso, a Região menos vem ao nossoencontro do que se retira, dando abrigo a todas as coisas, de talmaneira que nela já não possuem o caráter de objetos diante de nós,senão que jazem, descansando no repouso de seu próprio ser.

Com a introdução da Região, o diálogo certifica-se, uma vez mais,da impossibilidade de representar o repouso no qual as coisas e o homemretornam ao que lhes é próprio. E, uma vez mais, aguardar é ocomportamento adequado. Um aguardar aparentemente paradoxal, poisjá prescindiu de toda representação e encontra-se liberado de todo objetorepresentado, um aguardar que é espera serena e não a expectativa dealgo determinado. Para Heidegger esse aguardar é uma “espera que seaventura no próprio aberto...na amplidão do longínquo, em cujaproximidade encontra a Morada, na qual permanece”22. A essência desteaguardar é a Serenidade em relação à Região. É, pois, pelo próprio abertoda Região que se aguarda pensando e liberando-se da representação.Com a espera do aberto propiciado pela Região, anuncia-se o pensamentocomo o chegar-à-proximidade (In-die-Nähe-kommen) do longínquo.

21 Serenidade, op.cit , 41s-39s. Gegent é a forma antiga de Gegend e se traduz porcomarca ou região. Assim como Gegenstand (objeto) e Gegner (adversário), têmcomo raiz gegen (contra). A palavra, embora presente no dialeto suábo e suíçoalemão, não é a habitual da língua alemã e possui o sentido de responder aoencontro (entgegnen). Para o contexto específico que Heidegger procuraexpressar, a tradução portuguesa optou por grafá-la com maiúscula. Em espanhole em francês, respectivamente, por contrada e contrée. Cf. nota do tradutor deSerenidad, trad. Yves Zimmermann, Ediciones de Serbal, Barcelona, 1994, p.47.

22 Serenidade, op.cit., 43-42.

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Pensada como relação, com a Serenidade adentra-se na Região. Eadentra-se na Região não porque se estava fora dela, tal coisa iria contrao nosso próprio modo de ser pensantes, mas sim porque, embora dentro,não a tínhamos a ela acedido como Região, e sim como horizonte23.Evidencia-se, assim, certo vaivém entre o estar e o não estar em propriedadeda Região, acolhidos ou não nela, permanecendo como suspensos entresim e não, onde a permanência neste entre é o aguardar24.

A partir do âmbito descoberto além do representar e sustentadopela espera, a Serenidade mostra ser a relação essencial para com aRegião. É o envolvimento outorgado pelo aberto e aponta para umcomprometimento com o não-querer. Em conseqüência, como um pensarque não representa, a ação meditativa deve possuir uma espécie deenergia ativa (Tatkraft) e resolução (Entschlossenheit) que de nenhummodo possuem o teor de uma vontade. A resolução deve ser pensadacomo em Ser e Tempo: “como o propriamente assumido abrir-se do ser-aí ao aberto (...) e é assim que pensamos a Região”25. Com esta mençãoao ente que tem como modo de ser a abertura decidida, o ser-aí, remeteo diálogo à experiência grega da verdade como a não-ocultação e odescobrimento, para entender a Região como o ser oculto da verdade:“Então a essência do pensamento, a saber, a serenidade em relação àRegião, seria a resolução para a verdade que está a ser”26. Segue-se daíque o Homem encontra a sua Morada no pertencer à Região, ele é comoutilizado na essência da verdade.

Na serenidade parece haver, portanto, uma persistência(Ausdauer) do homem em manter-se na origem de sua própria essência,o permanecer confiado à pertença da Região. À persistência empermanecer na origem de sua essência, Heidegger nomeia Insistência(Inständigkeit), na qual reside a nobreza de espírito. É nobre aquilo quetem origem (Herkunft) e nela permanece, de tal modo que morando emsua origem, o Homem seria encorajado e pressentiria a nobreza de seucaráter27, a própria essência do pensamento. A nobreza do Homem é aSerenidade insistente que revela a proximidade do remoto.

23 Idem, 49-49.24 Ibidem, 51-51.25 Ibid., 58-59.26 Ibid., 58-5927 Serenidade, op.cit, 63-64.

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Com uma referência à palavra de Heráclito o diálogo concluianunciando a procura perpétua e inesgotável do procurado e “o maisbelo nome” para o passeio que termina: a essência do pensamentoanelada ao longo do caminho é indicada pelo termo ’Agxibasíh, cujatradução no contexto construído pelos interlocutores vem a dizer “ir-à-proximidade” (In-die-Nähe-gehen), “ser-admitido-no-seio-da-proximidade (In-die-Nähe-hinein-sich-einlassen)”28.

Em uma época onde predomina a exaltação da vontade talvezresulte, no mínimo, estranho que Heidegger nos aponte a Serenidadecomo um comportamento adequado para com este mundo. Essaestranheza, no entanto, a esta altura não é tão estranha assim. Comofoi indicado aqui, a Serenidade, essa estranha proposta de noscomportarmos em nosso mundo, nos convoca ao exercício incessantede tomar em propriedade nosso modo de ser em sua originalidade,talvez não exista convocação mais desafiadora e, ao mesmo tempo,tão poucas vezes experimentada.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

M. Heidegger Feldweg-Gespräch, Gesamtausgabe Band 77, Frankfurta. M.,V. Klostermann, 1995.

M. Heidegger Gelassenheit, Pfullingen, Verlag Günter Neske, 1959.

M. Heidegger Serenidad, trad. Yves Zimmermann, Barcelona, Edicionesdel Serbal, 1994.

M. Heidegger, Serenidade, trad. M.M. Andrade e O. Santos, Lisboa,Ed.Instituto Piaget.

M. Heidegger La Cosa, in: Conferencias y Artículos, trad. EustaquioBarajau, Barcelona, Ediciones del Serbal, 1994

M. Heidegger ¿Qué significa Pensar?, trad. Raúl Gabás, Madrid,Editorial Trotta, 2005.

28 Idem, 68-70. A palavra constitui ela mesma o Fragmento 122 de Heráclito.