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1 UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ MESTRADO ACADÊMICO EM POLÍTICAS PÚBLICAS E SOCIEDADE YANNE ANGELIM ACIOLY REFORMA PSIQUIÁTRICA: COM A PALAVRA, OS USUÁRIOS. FORTALEZA 2006

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ

MESTRADO ACADÊMICO EM POLÍTICAS PÚBLICAS E

SOCIEDADE

YANNE ANGELIM ACIOLY

REFORMA PSIQUIÁTRICA: COM A PALAVRA, OS

USUÁRIOS.

FORTALEZA

2006

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ

MESTRADO ACADÊMICO EM POLÍTICAS PÚBLICAS E SOCIEDAD E

YANNE ANGELIM ACIOLY

REFORMA PSIQUIÁTRICA: COM A PALAVRA,

OS USUÁRIOS.

Trabalho apresentado ao Curso de Mestrado Acadêmico em Políticas Públicas e Sociedade, da Universidade Estadual do Ceará, como requisito ao título de Mestre. Área de estudo: Política Pública em Saúde Orientadora: Profa. Dra. Maria Glaucíria Mota Brasi l

FORTALEZA

2006

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ

MESTRADO ACADÊMICO EM POLÍTICAS PÚBLICAS E SOCIEDAD E

REFORMA PSIQUIÁTRICA: COM A PALAVRA, OS USUÁRIOS.

YANNE ANGELIM ACIOLY

DEFESA EM: __/__/__ CONCEITO OBTIDO: ___________

BANCA EXAMINADORA

__________________________________________

Maria Glaucíria Mota Brasil, Profa. Dra.

Orientadora

Universidade Estadual do Ceará (UECE)

__________________________________________

Cleide Carneiro, Profa. Dra.

Universidade Estadual do Ceará (UECE)

__________________________________________

Carmen Silveira de Oliveira, Profa. Dra.

Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS)

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Manicômio é sinônimo de um certo olhar, de um certo

conceito, de um certo gesto que classifica desclassificando,

que inclui excluindo, que nomeia desmerecendo, que vê

sem olhar (Amarante, 1999).

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AGRADECIMENTOS

A realização deste trabalho só foi possível graças aos apoios muito especiais

que não poderia deixar de agradecer.

Agradeço, sobretudo, a minha família. Aos meus pais, pelo carinho e apoio

em todos os momentos; aos meus irmãos, pela acolhida sempre carinhosa e o incentivo

para continuar; ao meu companheiro, pelo amor, incentivo e pela escuta sempre

compreensiva em momentos difíceis nessa caminhada. Ao mais novo “xodó” da

família, meu amado filho que, ainda no ventre, partilhou de tantos momentos deste

estudo me encorajando a prosseguir e após seu nascimento se privou várias vezes da

minha presença para que o trabalho fosse concluído.

À professora e minha orientadora Glaucíria Brasil, que com sua crítica

construtiva e competência muito contribuiu na realização desse estudo.

À amiga Teresa Cristina Esmeraldo pela escuta sempre carinhosa, pelas

palavras de incentivo e sugestões valiosas em todos os momentos em que a procurei.

Obrigada por ser uma amiga tão solidária e, embora extremamente inteligente, não se

deixar levar pelo egoísmo, partilhando seus conhecimentos.

À amiga Carmelita Sampaio, por tudo que partilhamos no Mestrado e pelo

apoio em momentos fundamentais.

À amiga Milena Barroso pelas palavras de carinho e o incentivo para

prosseguir.

À amiga Veridiana Simões (Veri) pelo apoio em momentos fundamentais à

realização desse estudo.

Aos profissionais e usuários do Centro de Atenção Psicossocial (CAPS/

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SER III) que contribuíram direta e/ou indiretamente para realização desse estudo e,

principalmente, aos interlocutores da pesquisa. Sem a disponibilidade de vocês esse

estudo não seria possível.

À professora Dra Cleide Carneiro por ter contribuído muito ao participar da

banca de qualificação do projeto de dissertação e aceitar fazer parte da banca

examinadora final.

À professora Dra Carmen Silveira de Oliveira por aceitar participar da

banca examinadora vindo de longe para contribuir conosco.

Aos integrantes da Rede Internúcleos do Movimento Nacional da Luta

Antimanicomial e em especial aos que participam do Núcleo Cearense desse

Movimento, por tantos conhecimentos e momentos partilhados. Continuemos firmes e

em “boa companhia”!

À Coordenação do Mestrado Acadêmico em Políticas Públicas e Sociedade

-professor Dr. Horácio Frota - sempre empenhada em oferecer melhores condições de

estudo aos alunos e melhor qualidade ao curso.

À admirável Fátima Albuquerque, secretária desse Mestrado, por

desempenhar suas atividades com tanta dedicação e pelo carinho de todas as horas.

À CAPES pelo incentivo financeiro fundamental para subsidiar despesas

com livros e outros materiais, além do meu deslocamento à campo.

À todos (as) que de maneira direta e indireta contribuíram para a realização

desse trabalho, meus sinceros agradecimentos.

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LISTA DE ABREVIATURAS

CAPS: Centro de Atenção Psicossocial

COOPCAPS: Cooperativa do Centro de Atenção Psicossocial Ltda.

DINSAM: Divisão Nacional de Saúde Mental

HUWC: Hospital Universitário Walter Cantídio

I CNSM: I Conferência Nacional de Saúde Mental

I CNTSM: I Congresso Nacional de Trabalhadores em Saúde Mental

II CNTSM: II Congresso Nacional de Trabalhadores em Saúde Mental

MS: Ministério da Saúde

MTSM: Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental

PMF: Prefeitura Municipal de Fortaleza

SER III: Secretaria Executiva Regional III

UFC: Universidade Federal do Ceará

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RESUMO

O presente trabalho trata de um estudo a respeito da reforma psiquiátrica em Fortaleza. Tem como objetivo compreender e interpretar o lugar social dos sujeitos que utilizam serviços de saúde mental na reforma psiquiátrica em Fortaleza partindo de suas narrativas acerca deste processo. Trata-se de um estudo qualitativo cuja metodologia é descritiva-analítica. A pesquisa teve como campo empírico um dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) desse município. Para obtenção de dados foram entrevistados alguns usuários vinculados à Cooperativa do Centro de Atenção Psicossocial. As observações direta e participante, bem como, o diário de campo foram recursos complementares importantes. Os principais conceitos discutidos foram loucura, institucionalização, reforma psiquiátrica e desinstitucionalização. As discussões desses conceitos partiram prioritariamente dos discursos dos interlocutores da pesquisa. Surpreendentemente a maioria destes afirmou desconhecer o processo de reforma psiquiátrica e aqueles que puderam falar a respeito destacaram apenas o aspecto do tratamento. O distanciamento dos interlocutores em relação a essa discussão não se dá por mera desatenção dos mesmos. Traduz o distanciamento das ações do próprio CAPS em relação aos princípios da proposta de reforma psiquiátrica, limitando-se a condição de "lugar de tratamento", revelando assim a fragilidade dessa proposta em nível local. Ademais, evidencia que tal como historicamente o "louco" esteve à margem das decisões sobre seu destino, silenciado, ocupando um lugar social periférico demarcado por determinados saberes e práticas, no processo de reforma psiquiátrica local os usuários continuam tendo seus espaços delimitados por esses mesmos saberes e práticas há séculos hegemônicos que, embora sob novos discursos, os mantém "presos" ao silêncio. Contudo, além destes conteúdos, algumas narrativas sugeriram uma demanda de desinstitucionalização e sinais de resistência. Nesse sentido, a oportunidade à palavra – como argumento e ação – aos usuários dos serviços de saúde mental é condição fundamental para que se possa pensar em uma efetiva reforma psiquiátrica no Brasil ou particularmente, em Fortaleza.

ABSTRACT

This work deals with the psychiatric reform in Fortaleza. The objective was to understand and to interpret the social place of the citizens that use services of mental health in the psychiatric reform in Fortaleza, from its narratives about this process. This is a qualitative study whose methodology is descriptive-analytical. The research was developed in one of the Centers of Psicossocial Attention (CPSA) of this city. For data keeping was interviewed some users of the institution who participate of the Cooperativa do Centro de Atenção Psicossocial. The direct and participant observations, as well as, the diary of field, was important complementary resources. The main concepts argued was madness, institutionalization, psychiatric reform and “deinstitutionalization”. The quarrels on these concepts came from speeches of the interlocutors of this research. The majority of them unknew the process of psychiatric reform; and those that had been able to say something about the theme detached only the aspect of the treatment. The lack of information in relation to the quarrel is not given to mere carelessness of the interlocutors, but reflects the distance of the actions of the CPSA in relation to the principles of the proposal of psychiatric reform, limiting itself to the condition of "treatment place", thus disclosing the fragility of this proposal in local level. This also demonstrate that, as historically the so called "crazy" was apart of the decisions in relation to his own destiny, silently, occuping a peripheral place demarcated with knowledge and practical activities, in the process of the local psychiatric reform the users of the services of attention in mental health continue with its spaces delimited for these same knowledge and practical activities, hegemonic for centuries, that, now under new speeches, keeps them “arrested” to silence. However, some narratives suggested a demand of deinstitutionalization and signals of resistance. In this direction, the opportunity to the users of the services of attention in mental health to speak is a fundamental condition to a efective psychiatric reform in Brazil or particularly, in Fortaleza.

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SUMÁRIO

Lista de abreviaturas ........................................................................................... 7

Introdução............................................................................................................ 11

Capítulo I - Questionando a realidade: a construção do objeto de pesquisa........... 23

1.1 Elementos de um mosaico revelando a “história” do objeto ..................... 24

1.2 Trilha percorrida...................................................................................... 29

1.2.1 Trabalho de campo: “estando lá” ....................................................... 30

Capítulo II - Reforma Psiquiátrica: uma construção histórico-social.................... 39

2.1 Desinstitucionalização: desospitalização ou (des)construção? ..................... 47

Capítulo III - CAPS/SER III: observando e descrevendo o locus da pesquisa.........

55

3.1 Um pouco da história................................................................................. 55

3.2 Aspectos gerais sobre as pessoas atendidas............................................... 56

3.3 A equipe técnica........................................................................................ 58

3.4 Principais atividades.................................................................................. 59

3.5 Quem são os interlocutores da pesquisa?................................................... 61

Capítulo IV - Discursos e práticas que constituem a institucionalização da "loucura"

............................................................................................................................. 75

4.1 A percepção da "loucura" por aqueles que são nominados de "loucos" ... 75

4.2 Razão e não razão: se penso não posso estar louco, se estou louco, não posso

pensar .................................................................................................................. 79

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4.3 Disciplinamento e controle dos corpos .................................................... 84

4.4 A "loucura" como “doença mental” ......................................................... 91

Capítulo V - Reforma psiquiátrica em Fortaleza: construção de um outro lugar social

para a chamada loucura .................................................................. 95

Considerações finais ............................................................................................ 105

Bibliografia........................................................................................................... 111

Anexos ................................................................................................................ 120

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INTRODUÇÃO

Ao longo da história da humanidade, a “loucura” tem sido interpretada sob

diversos prismas1, conforme as condições objetivas, as perspectivas econômicas,

sociais e culturais próprias de cada época; entretanto o olhar e as ações predominantes

a seu respeito têm sido pautados na segregação.

Historicamente, o hospital psiquiátrico assumiu a conotação de espaço de

“tratamento” aos chamados loucos, os quais, reclusos nessas instituições, eram

submetidos aos mais diversos tipos de violência (repressão, maus-tratos, negligência),

resultando na negação de sua condição de sujeito.

Essa prática de institucionalização - e de diversas formas de violência

veladas pelas “paredes” institucionais - mesmo após tantos séculos de história, ainda é

hegemônica em vários países, dentre os quais o Brasil.

O filme Bicho de sete cabeças, da cineasta Laís Bodanzky, inspirado no

livro O canto dos malditos, de autoria de Austregésilo Carrano Bueno, chama atenção

para a realidade desumana identificada cotidianamente em hospitais psiquiátricos,

onde as pessoas, aprisionadas, são subjugadas ou como diria Goffman (2001), passam

por um processo de mortificação e degradação da individualidade e identidade, e eu

acrescento, quando não chegam à morte física.

Publicado pelo Conselho Federal de Psicologia em 2001, o livro A

instituição sinistra: mortes violentas em hospitais psiquiátricos no Brasil traz

denúncias que estão além do que poderíamos conceber como ficção. Evidencia relatos

de alguns crimes ocorridos no interior de hospitais psiquiátricos brasileiros no período

de 1992 a 2001, revelando que histórias de horror e dor no interior dessas instituições

1 Foucault (1999a) menciona que a chamada loucura esteve presente na arte e literatura, esteve relacionada às supostas “manifestações malignas”, às “fraquezas humanas”, ao “erro”, à “não-razão”. E, a partir do século XVIII, com o nascimento do asilo e, por conseguinte, o surgimento da psiquiatria, a “loucura” assume a conotação de doença mental. Para complementar informações a respeito das representações em torno da loucura,

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(dor que ultrapassa o campo subjetivo, dor que é física), além de reais, não fazem parte

de um passado longínquo ou apenas de séculos passados evidenciados por Foucault

(1999a) em seus estudos sobre saberes e práticas em relação à “loucura”.

Tais crimes, como retrata essa coletânea de casos de morte física em

hospitais psiquiátricos brasileiros (embora os autores reconheçam a morte simbólica

também proporcionada pela instituição total, detêm-se a casos de morte física),

acontecem em nossos dias e, também, em nosso estado. Dentre os sete casos

ressaltados no livro, destaca-se um crime ocorrido na antiga Casa de Repouso

Guararapes, no município de Sobral, região norte do Ceará2.

Diante dessas e de outras questões que envolvem a referida “assistência” em

hospitais psiquiátricos e as formas histórico-culturais de lidar com o fenômeno loucura

e o chamado louco, tem-se construído nas últimas décadas, no cenário mundial, um

processo de discussões e de críticas através do que se denominou Movimento de

Reforma Psiquiátrica.

No Brasil, o Movimento alcançou maior visibilidade no chamado período de

redemocratização, no final da década de 70 e ao longo da década de 80, em meio à

consultar Pessotti (1994). 2 Damião Ximenes Lopes morreu em 04 de outubro de 1999, de “causa indeterminada”, na Casa de Repouso Guararapes, em Sobral. Segundo relatos de sua irmã, Irene Ximenes Lopes Miranda, apresentados no livro, no dia 1 de outubro de 1999, tarde de sexta-feira, Damião foi internado naquela instituição, levado por sua mãe que lá o deixou para que recebesse cuidados médicos. Na segunda-feira seguinte, pela manhã, a mãe retornou para visitar Damião e o encontrou quase morto. Ele apresentava sinais de espancamento, estava com suas roupas sujas e rasgadas. Exalava “odor de sangue, fezes e urina”. Suas mãos estavam amarradas para trás e ao se aproximar da mãe chamava pela polícia. Uma das faxineiras do local citou auxiliares de enfermagem e monitores de pátio como os autores da violência contra Damião. Após providenciar medidas de higiene e de ver seu filho medicado, a mãe de Damião retornou para sua residência em Varjota, cidade situada a 70 km de Sobral. Ao chegar foi informada de um telefonema da Guararapes exigindo sua presença com urgência. Ao retornar àquela instituição, tomou conhecimento de que Damião havia falecido e lhe foi entregue um laudo informando “parada respiratória” como causa mortis. A família, ciente de que se tratava de um homicídio, procurou a polícia, solicitando um exame cadavérico, contudo, o então médico legista era o diretor clínico da Casa de Repouso. Desse modo, nada aconteceu. A família então solicitou o mesmo exame junto ao Instituto Médico Legal de Fortaleza, mas ainda segundo os relatos de Irene Ximenes, o exame foi incompleto e o resultado manipulado, constando causa mortis “indeterminada”. A partir daí, Irene denunciou o caso para todas as autoridades relacionadas a saúde, justiça e direitos humanos. Várias providências foram tomadas, dentre as quais, auditorias, supervisões e vistorias pelas Secretarias de Saúde do Estado e de Sobral. Através de sindicância, as denúncias da irmã de Damião foram confirmadas. Dentre as recomendações referentes ao relatório final da Comissão de Sindicância datado de 18 de fevereiro de 2000 constava o descredenciamento da Casa de Repouso Guararapes da prestação de serviços ao Sistema Único de Saúde, no âmbito do Sistema Municipal de Saúde de Sobral. Após os esforços da família da vítima em busca de apoio de entidades e autoridades competentes, a instituição foi fechada em julho do mesmo ano.

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efervescência de vários movimentos sociais, sofrendo, talvez por esse contexto, maior

influência do Movimento de Reforma Psiquiátrica da Itália ou Psiquiatria

Democrática.3

A reforma psiquiátrica questiona o modelo de atenção em saúde mental

pautado na psiquiatria tradicional, o qual tem o hospital psiquiátrico como centro de

“tratamento”, propondo não só novas formas de atenção às pessoas com sofrimento

psíquico,4 mas também a construção de novas formas de relacionamento com a

experiência da “loucura” e com o chamado louco.

Dentro dessa proposta de novas formas de atenção, destacam-se os Centros

de Atenção Psicossocial (CAPS). Estes serviços surgiram no Brasil em 1987, na

cidade de São Paulo. Esse CAPS, segundo Pitta, (...) constitui-se num espaço

paradigmático de reabilitação psicossocial onde a ética presente está a serviço da

ampliação de direitos e liberdade dos que ali transitam (1994, p. 654).

Ainda a respeito desse CAPS, Goldberg sublinha que [d]esde sua criação é

um serviço de assistência, ensino e pesquisa, inserido na rede pública de atenção à

saúde mental (1996, p.p. 33-34). E Oliveira acrescenta que foi inaugurado (...) com a

proposta de atendimento a pacientes com transtornos mentais, em especial, psicóticos

e neuróticos graves (2002, p. 73).

No Ceará, a emergência ou a maior visibilidade da reforma psiquiátrica se

deu a partir da década de 90, caracterizada por uma maior mobilização dos

trabalhadores de saúde mental a respeito das questões políticas, morais, econômicas e

3 Este modelo teve Franco Basaglia como seu principal mentor e a psiquiatria tradicional como alvo de suas críticas. Tratarei a esse respeito no capítulo II. 4 A partir do contato com a literatura específica e ao participar como espectadora de alguns eventos (seminários, palestras etc.) sobre o tema em estudo, percebi que há diferentes formas de se referir às pessoas que utilizam serviços de saúde mental, dentre as mais comuns destaco: doença mental, transtorno mental e sofrimento psíquico. O conceito doença mental, como citei antes e destacarei mais adiante, surgiu entre o fim do século XVIII e início do século XIX como um novo significado para a loucura e com ele emergiu a figura do asilo e por conseguinte, a psiquiatria. A denominação transtorno mental vem do inglês disorder, ou seja, o que não está em ordem, um transtorno, um desvio. Franco Basaglia utiliza a expressão doença mental entre aspas despertando suspeitas quanto a possibilidade desse conceito proveniente da psiquiatria explicar completamente a experiência tão complexa por ele representada. Daí a preferência do autor em utilizar a expressão existência-sofrimento, questionando assim o paradigma racionalista causa-efeito. Nesse sentido, optei por utilizar o termo sofrimento psíquico como possibilidade mais aproximada da expressão basagliana.

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culturais que ofereciam (e ainda oferecem) sustentabilidade ao modelo tradicional

(segregador) vigente.

Dentro da perspectiva preconizada pela reforma psiquiátrica em 1991 surgiu

o primeiro CAPS do Estado, no município de Iguatu, localizado na região Centro-Sul.

Nesse período logo passaram a surgir seminários e outros eventos5 no cenário local,

que tinham como objetivo a discussão das experiências em construção, inclusive, em

outros estados.

A partir dessa iniciativa em Iguatu, outros CAPS foram implantados no

Ceará, dentre os quais: os de Canindé (1993), Quixadá (1993), Icó (1995), Cascavel

(1995), Aracati (1997), entre outros. Na capital, mais especificamente, o primeiro

CAPS surgiu apenas em 1998, vinculado à Universidade Federal do Ceará.

Todo esse processo pela reforma psiquiátrica no Ceará culminou no

estabelecimento da lei nº 12. 151/1993, que dispõe sobre a extinção progressiva dos

hospitais psiquiátricos e sua substituição por outros recursos de assistência, além de

regulamentar a internação compulsória.6

Embora o primeiro CAPS tenha sido instalado no Brasil na década de 80,

apenas em 1992, o Ministério da Saúde reconheceu a existência desses serviços,

regulamentando o funcionamento dos mesmos, inicialmente através da Portaria nº

224/1992.

Através dessa Portaria, dentre outros aspectos, o Ministério da Saúde (MS)

definia os CAPS como (...) unidades de saúde locais/regionalizadas, que contam com

uma população adscrita definida pelo nível local e que oferecem atendimento de

cuidados intermediários entre o regime ambulatorial e a internação hospitalar, em um

5 Destaca-se a realização da I Conferência Estadual de Saúde Mental no ano de 1992 em Fortaleza. 6 Consta no artigo 2º dessa lei a seguinte definição de internação psiquiátrica compulsória: aquela realizada sem o expresso consentimento do paciente, em qualquer tipo de serviço de saúde, sendo responsabilidade do médico autor da internação, sua caracterização enquanto tal.

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ou dois turnos de 4 horas, por equipe multiprofissional.

É oportuno destacar que os CAPS são atualmente regulamentados pela

Portaria nº 336/2002, do Ministério da Saúde, a mesma estabelece em seu artigo 1º que

os mesmos poderão constituir-se em três modalidades de serviços, quais sejam, CAPS

I, CAPS II e CAPS III, (...) definidos por ordem crescente de porte/complexidade e

abrangência populacional.7 Também são considerados nessa Portaria os modelos

CAPS i (para atendimento infantil) e CAPS AD (para atendimento de casos de

alcoolismo e drogadicção).

De acordo com essa Portaria, os CAPS devem constituir-se em serviço

ambulatorial de atenção diária, incluindo as seguintes atividades de assistência aos

usuários: atendimento individual (medicamentoso, psicoterápico, de orientação, entre

outros); atendimento em grupos (psicoterapia, grupo operativo, atividades de suporte

social, entre outras); atendimento em oficinas terapêuticas; visitas domiciliares;

atendimento à família e atividades comunitárias que favoreçam a integração do

usuário na comunidade, bem como, sua inserção familiar e social.8

Em publicação recente o Ministério da Saúde define um CAPS como

... serviço de saúde aberto e comunitário do Sistema Único de saúde (SUS). Ele é um lugar de referência e tratamento para pessoas que sofrem com transtornos mentais, psicoses, neuroses graves e demais quadros, cuja severidade e/ou persistência justifiquem sua permanência num dispositivo de cuidado intensivo, comunitário, personalizado e promotor de vida.9

Desse modo, a reforma psiquiátrica não sugere a extinção da atenção aos

usuários de serviços de saúde mental e sim, uma efetiva atenção consentânea às suas

necessidades e, principalmente, a construção de novas possibilidades de entender e

7 Para atendimento nessas modalidades de CAPS são previstos nessa Portaria os respectivos números populacionais: municípios com população entre 20.000 e 70.000 habitantes; 70.000 e 200.000 habitantes; acima de 200.000 habitantes. 8 Essas atividades são comuns às três modalidades de CAPS, apenas uma atividade é exclusiva do CAPS tipo III, qual seja, o acolhimento noturno nos feriados e finais de semana para eventual acompanhamento. 9 Brasil. Saúde Mental no SUS: os centros de atenção psicossocial. Ministério da Saúde; Secretaria de Atenção à Saúde; Departamento de Ações Programáticas estratégicas. Brasília, DF, 2004. Grifos meus.

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relacionar-se com esses sujeitos. Pretende, assim, o investimento na construção da

autonomia deles próprios, visando a possibilidade de que estes construam novas

sociabilidades.

Segundo Birman (1992), a reforma psiquiátrica está além da discussão sobre

a assistência psiquiátrica, objetivando a construção de um outro lugar social para a

chamada loucura. A respeito desse lugar, Amarante o especifica como [u]m lugar

social que não seja o da doença, anormalidade, periculosidade, irresponsabilidade,

insensatez, incompetência, incapacidade, defeito, erro, enfim, ausência de obra (1999,

p. 49).

Partindo dessa ótica, a construção de uma efetiva Política Pública de Saúde

Mental envolve, portanto, não somente o compromisso do setor público e a construção

de uma rede de novos serviços de caráter não segregador, tais como CAPS, centros de

convivência, leitos psiquiátricos em hospitais gerais etc., mas também a dissolução de

mitos e preconceitos histórica e culturalmente construídos, ainda muito arraigados e

evidentes na sociedade.

Assim, esse processo extrapola os muros institucionais e requer o

envolvimento não só dos trabalhadores da área, mas também das pessoas que utilizam

serviços de saúde mental, dos seus familiares e de demais segmentos sociais.

Esse discurso de interação com a sociedade (não isolamento) e de ênfase na

participação social advindo da reforma psiquiátrica subsidia as propostas até então

existentes de serviços substitutivos ao modelo tradicional de confinamento. Inclusive,

a referida Portaria nº 336/2002, em seu artigo 3º, estabelece que os CAPS (...) só

poderão funcionar em área física específica e independente de qualquer estrutura

hospitalar.

É possível identificar esse discurso também na lei nº 10.216/2001,10 que

10 Consta no artigo 3º dessa lei: É responsabilidade do Estado o desenvolvimento da política de saúde mental, a

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dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de sofrimento psíquico e

redireciona o modelo de assistência em saúde mental.

Sampaio & Barroso, ao destacarem os objetivos do CAPS, também

assinalam essa perspectiva de envolvimento com a sociedade. Dentre os objetivos

assinalados pelos autores, podem-se destacar: [p]revenir hospitalismo, desamparo e

outras formas de alheamento, garantindo permanência dos vínculos sociais;

[p]revenir rotulação, estigma e cronificação; [e]stimular redimensionamento crítico

das relações com família, trabalho, vizinhança, sexualidade e política (2002, p. 4).

Essa dimensão da inserção, mais especificamente dos usuários, no processo

de reforma psiquiátrica, despertou algumas inquietações, quando da pesquisa que

realizei para subsidiar o trabalho monográfico ainda na graduação em Serviço Social.11

A busca em compreender o objeto estudado à época suscitou novas indagações que

não puderam ser respondidas naquele momento e que se mostraram relevantes para

novos estudos.

Despertou atenção o fato de alguns dos usuários entrevistados afirmarem

desconhecer o processo de reforma psiquiátrica, o que foi emblemático levando-se em

consideração que o CAPS trata-se de um dos chamados novos serviços substitutivos às

assistência e a promoção de ações de saúde aos portadores de transtornos mentais, com a devida participação da sociedade e da família, a qual será prestada em estabelecimento de saúde mental, assim entendidas as instituições ou unidades que ofereçam assistência em saúde aos portadores de transtornos mentais. Vale ressaltar que recentemente o Ministério Público (MP) promoveu em Fortaleza o I Seminário sobre Internação Psiquiátrica e Cidadania do Ceará, cuja preocupação central foi a implementação do conteúdo dessa lei. Esse evento apresentou duas dimensões relevantes. Por um lado, sugeriu uma preocupação do Ministério Público em fortalecer o processo de Reforma Psiquiátrica do Ceará, o que é louvável, indiscutivelmente. Mas, por outro, evidenciou o quanto ainda é necessário avançar, uma vez que discutia-se na ocasião a efetivação do conteúdo de uma lei já aprovada há dois anos, sem considerar os anos de tramitações para que esta viesse a existir. 11 Esse trabalho monográfico, intitulado Entre o ‘velho’ e o ‘novo’: um estudo sobre a ação profissional do(a) assistente social na saúde mental, teve como objetivo compreender se o movimento de Reforma Psiquiátrica configurava-se como redefinição da ação profissional do(a) assistente social. A pesquisa foi realizada durante o segundo semestre do ano de 2002 e teve como campo empírico o Centro de Atenção Psicossocial vinculado à Secretaria Executiva Regional III da Prefeitura de Fortaleza. Para levantamento de dados realizei entrevistas com as assistentes sociais, alguns profissionais de outras categorias e usuários da instituição. A observação direta e o diário de campo foram recursos complementares extremamente importantes. O estudo revelou que a ação profissional das assistentes sociais da instituição oscila entre o “velho” e o “novo” paradigmas de atenção em saúde mental, isto é, ora apresentam uma prática pautada no modelo tradicional, centralizado na perspectiva da doença e negando a condição de cidadão do usuário, ora atuam em consonância com a proposta inovadora da Reforma Psiquiátrica, entendendo o portador de sofrimento psíquico como sujeito.

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instituições asilares referendados pela reforma psiquiátrica, que preconiza o

envolvimento de usuários, seus familiares e a sociedade como um todo, além dos

trabalhadores da área, na construção de novas relações com a chamada loucura.

Assim, essa desinformação dos usuários pareceu contraditória. Como se

inserir ativamente na reforma psiquiátrica sem minimamente tomar conhecimento

desse processo? Como pensar em efetiva participação social, interação com a

sociedade, segundo consta na legislação específica, se nem mesmo as próprias pessoas

que utilizam os serviços de saúde mental estiverem fazendo parte dessa construção que

se pretende coletiva?

Essas inquietações iniciais levaram ao aprofundamento dos questionamentos

culminando na necessidade de melhor compreender e interpretar o lugar social dos

sujeitos que utilizam serviços de saúde mental na reforma psiquiátrica em Fortaleza a partir

de suas narrativas acerca deste processo. Para tanto cabe indagar: Quem são esses

sujeitos? O que pensam sobre a chamada loucura? Qual a compreensão e a avaliação

desses a respeito da reforma psiquiátrica? Quais as possíveis estratégias (institucionais

ou não) utilizadas por eles para se inserirem no processo de reforma psiquiátrica local

(ex: associações, fóruns, Conselhos, entre outros)? Esses sujeitos se reconhecem como

atores sociais importantes nesse processo, tal como sugerem a literatura e a legislação

específicas?

Foi sobre essas questões a que voltei o meu olhar, tomando um ponto, uma

experiência disponível no universo que constitui o campo da atenção em saúde mental

na cidade de Fortaleza e os serviços de atendimento existentes:12 o Centro de Atenção

Psicossocial vinculado à Secretaria Executiva Regional III (CAPS/SER III), campo

empírico desta pesquisa.

Vale salientar que a delimitação desse campo empírico não foi algo

imediato. Depois de delimitar o objeto de pesquisa, passei a me questionar sobre o

12 Dentre os serviços existentes em Fortaleza destacam-se, além dos CAPS, um arsenal de sete hospitais

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possível locus para o estudo. Inicialmente pensei em tomar os três CAPS até então

existentes em Fortaleza como universo empírico para poder me referir à questão de

forma mais ampla, inclusive podendo comparar aspectos específicos dessas

experiências. Por outro lado, eu me questionava se o campo ideal não seria o Conselho

Municipal de Saúde, uma vez que este, em tese, se propõe a ser um espaço aberto à

participação de usuários dos serviços de saúde. Retomei insistentemente o projeto de

pesquisa buscando, no próprio objeto, indicações. Além disso, foram preciosas as

contribuições de pessoas da área ao discutirem comigo a respeito, levando-me,

portanto, a novas reflexões.13

Tive acesso a textos14 que tratavam sobre participação em saúde nos quais

os Conselhos de Saúde recebiam destaque. Procurei saber se havia representação de

usuários especificamente de serviços de saúde mental no Conselho Municipal de

Saúde e constatei que não15. Há representação de familiares, mas a minha proposta era

evidenciar os discursos de quem utiliza esses serviços e não de seus familiares, embora

reconheça a importância da presença destes naquele espaço. Percebi que não seria

“via” Conselhos, instâncias cujas existências são oficialmente determinadas e

normatizadas,16 que eu poderia revelar as “vozes” que buscava; não era, então, aquele

o caminho.

Observando essas questões, retomei a idéia inicial de pesquisar nos três

psiquiátricos. 13 Destaco aqui em particular as preciosas colaborações das amigas Ana Lúcia Tavares (assistente social) e Lídia Dias Costa (médica psiquiatra) às quais dirijo sinceros agradecimentos. 14 Côrtes (2001); Freire (2002); Tatagiba (2002). 15 Pelo menos, não oficialmente, isto é, se há usuário(a), este(a) não se declara como representante desta categoria. Caso isto se dê realmente, a mim é compreensível, uma vez que posso imaginar o que significa para alguém se apresentar como usuário de serviços de saúde mental frente a uma sociedade cujos parâmetros de “normalidade” estão rigorosamente definidos e que estigmatiza, recrimina e pune aqueles que considera possíveis representantes da “anormalidade”, os “desviantes”. 16 Consta no capítulo IV, artigo 15, inciso I, da Lei Orgânica da Saúde (Lei nº 8.080/90) como atribuição comum dos diferentes níveis de governo a definição das instâncias e mecanismos de controle, avaliação e fiscalização das ações e serviços de saúde. Através do Decreto nº 99.438/90 o Governo Federal criou o Conselho Nacional de Saúde, normatizando sua organização e atribuições. A constituição e estruturação de Conselhos Estaduais e Municipais de Saúde foram recomendações aprovadas na Resolução nº 33/92. Esses Conselhos de Saúde configuram-se como instâncias permanentes, consultivas e deliberativas, compostas por usuários, profissionais de saúde, governo e entidades ou prestadoras de serviços (públicos, filantrópicos e privados). Vale salientar que a Lei nº 8.142/90 prevê a representação paritária dos usuários em relação ao conjunto dos demais segmentos.

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CAPS, afinal, se o objeto de pesquisa diz respeito ao processo de reforma psiquiátrica

e esse tipo de serviço vem sendo apontado pela literatura específica e em eventos da

área como referência nesse processo, a opção pelos CAPS parecia-me ser a mais

acertada. Mas, logo veio a reflexão: não seria ousadia demais tomar os três serviços,

uma vez que a intenção era realizar uma pesquisa de cunho qualitativo, cujo caminho

metodológico buscava evidenciar narrativas? Seria possível em tão pouco tempo?

Em meio a tantas inquietações, foram três os elementos básicos que

motivaram a opção pelo CAPS/SER III. Primeiro, por se tratar do mais antigo

instalado na cidade, acreditei que poderia configurar uma “experiência mais sólida”,

possibilitando, inclusive, o acesso a registros sobre sua história e dados mais

específicos das ações cotidianas, bem como estar desenvolvendo ações coletivas

importantes junto à comunidade geograficamente circunvizinha.

Segundo, o ponto de partida para a construção do objeto dessa pesquisa me

foi apresentado nesse CAPS, quando da realização da pesquisa referente ao ensaio

monográfico. E, terceiro, por uma questão estratégica: o fato de ter realizado uma

pesquisa anterior poderia facilitar não só o acesso às informações através de alguns

profissionais ali envolvidos, mas também o meu “trânsito” no local, essencial para ao

estudo a que me propunha.

Assim, retomo a afirmação de que para esse estudo tomei apenas um ponto

dentro do que se constitui como campo de atenção em saúde mental no município de

Fortaleza e por isso mesmo, o texto resultante desse trabalho não é passível de

generalizações.

Trata-se da tentativa de evidenciar “vozes” múltiplas reveladoras dos

sujeitos que as impulsionaram e do que pensam sobre a condição social que assumem

ou são levados a assumir. “Vozes” registradas num espaço específico, mas não

homogêneo, num momento específico, porém passível de diversas representações e

ainda mediadas e interpretadas a partir de um certo olhar, de uma certa escuta e de

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uma certa escrita.

O trabalho ora apresentado se subdivide em cinco capítulos cujo eixo

principal conduz à compreensão do lugar social dos sujeitos que utilizam o CAPS/SER

III na reforma psiquiátrica em Fortaleza partindo de suas narrativas a respeito desse

processo.

No capítulo I - Questionando a realidade: a construção do objeto de

pesquisa - revelo os caminhos que resultaram na construção do objeto de pesquisa e o

percurso metodológico adotado, considerando algumas impressões, sentimentos,

descobertas e decisões a partir do trabalho de campo.

No capítulo II – Reforma Psiquiátrica: uma construção histórico-social -

contextualizo o processo de reforma psiquiátrica no Brasil a partir do final da década

de 70, período em que alcançou maior visibilidade, ressaltando também elementos

pertinentes à experiência no Ceará e em Fortaleza. Ao identificar o preceito de

desinstitucionalização como ponto relevante no debate sobre reforma psiquiátrica,

estabeleço também uma discussão específica a esse respeito sob a perspectiva de

(des)construção e não de desospitalização.

No capítulo III – CAPS/SER III: observando e descrevendo o locus da

pesquisa - apresento uma descrição do campo onde a pesquisa foi realizada. Destaco a

história da instituição, os aspectos gerais das pessoas que ali são atendidas, a equipe

técnica, as principais atividades desenvolvidas e apresento quem são os interlocutores

da pesquisa por intermédio de alguns elementos que compõem suas trajetórias de vida.

No capítulo IV – Discursos e as práticas que constituem a

institucionalização da loucura - discuto acerca do fenômeno “loucura” e do seu

processo de institucionalização tomando as compreensões dos interlocutores e suas

experiências de internação em instituições psiquiátricas como ponto de partida. Como

aporte teórico para essa discussão recorro a Foucault em História da loucura na idade

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clássica (1999a).

No capítulo V - Reforma Psiquiátrica em Fortaleza: construção de um

outro lugar social para a chamada loucura? - apresento uma análise sobre a inserção

dos usuários de serviços de saúde mental na reforma psiquiátrica em Fortaleza com

base na compreensão dos sujeitos interlocutores sobre esse processo, estabelecendo

relação com a idéia de Birman (1992) sobre a construção de um outro lugar social

para a “loucura” (e, acrescento, para a pessoa com sofrimento psíquico).

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CAPÍTULO I

Questionando a realidade: a construção do objeto de pesquisa

Preciso não dormir até se consumar o tempo da gente

Preciso conduzir o tempo de te amar

Te amando devagar e urgentemente

Pretendo descobrir no último momento

O tempo que refaz o que desfez

E recolhe todo o sentimento

E guarda no corpo uma outra vez

Prometo te querer até o amor cair doente, doente

Prefiro então partir a tempo de poder

A gente se desvencilhar da gente

Depois de te perder te encontro, com certeza

Talvez num tempo da delicadeza

Onde não diremos nada, nada aconteceu

Apenas seguirei como encantado ao lado teu.17

Lembrando uma alusão feita pelo professor Geovani Freitas,18 essa

composição de Bastos & Buarque nos remete a estabelecer relações com a experiência

de pesquisar, de produzir conhecimento, uma vez que esta, diferente do que alguns

teimam em defender, não se dá apenas a partir do uso de teorias e métodos, mas

também do despertar e do envolvimento do pesquisador e de seus sentimentos.

A música pode ajudar a compreender, inclusive, que investigar não é tarefa

simples, fácil, exigindo do pesquisador uma certa disciplina (de conduzir o tempo, às

vezes de maneira mais apressada e, outras vezes, mais lentamente) e, ao mesmo

tempo, uma certa delicadeza.

Em pesquisa, há momentos de “mergulhar” no fenômeno que se pretende

17 Composição de Chico Buarque e Cristóvão Bastos intitulada Todo sentimento. 18 Sociólogo, doutor em Sociologia, professor adjunto da Universidade Estadual do Ceará. Na ocasião em que ministrava um curso sobre metodologia de pesquisa, fez alusão à música Todo sentimento ao se referir ao processo de pesquisar.

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compreender, de se aproximar sem receios, objetivando apreender o máximo a seu

respeito, mas também de recuar, distanciar-se do objeto de estudo, desvencilhar-se

para conhecê-lo melhor.

Pesquisar, portanto, constitui-se uma experiência complexa e contínua,

envolve tentativas de conhecer a realidade, ou seja, aproximações sucessivas ao real

que apresenta um processo de metamorfose constante, permeado por uma riqueza de

teias de relações, sentidos, significados e linguagens até mesmo indizíveis. Daí porque

só é possível ao pesquisador conhecer fragmentos desse real imensurável na sua

totalidade.

É oportuno salientar que essa experiência não emerge por mera influência

do acaso, mas está intrinsecamente relacionada a uma dimensão filosófica, a uma

perspectiva de questionamento da realidade, muitas vezes possibilitada pela própria

história de vida do pesquisador.

Desse modo, cabe revelar, ainda que de maneira sintética, os caminhos que

me conduziram à proposta de pesquisa realizada no Mestrado. Enfim, é oportuno

destacar aqui a trajetória que resultou no meu objeto de pesquisa.

1.1 Elementos de um mosaico revelando a “história” do objeto

O meu interesse, como pesquisadora, pelo campo da saúde mental

provavelmente não aconteceu por acaso, e acredito que está também relacionado a

uma experiência pessoal bem anterior à experiência acadêmica, ainda na infância.

Na zona rural próxima a um município do interior do Ceará, viviam em

companhia dos pais e irmãos dois primos de minha mãe, conhecidos como Chaguinha

e Isaura,19 ambos com sofrimento psíquico.

19 Atualmente Isaura reside com suas irmãs na cidade mais próxima do sítio onde vivia. Seus pais e seu irmão Chaguinha faleceram. Isaura realiza tratamento (ambulatorial) em sua cidade e não vive mais como uma prisioneira. Tem dificuldades de circular pelas ruas, diz que prefere ficar em casa. Na última vez que a vi, fez

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Em determinadas ocasiões foi possível acompanhar minha mãe a algumas

de suas visitas a esses familiares e me intrigava o fato de Chaguinha e Isaura viverem

cada um em um “quartinho nos fundos do quintal”, separados do convívio com os

demais por um portão de ferro. Neste portão, lembro-me bem da existência de um

espaço por onde lhes era entregue a alimentação por sua mãe ou irmãs. Estas eram as

responsáveis pelos cuidados com alimentação, higiene e medicação de ambos.

Quando indagava porque viviam ali presos, a resposta era rápida e seguida

de advertência: porque eles são doentes da cabeça, às vezes batem nas pessoas; e, não

encoste suas mãozinhas na grade porque eles podem puxar!

Hoje, após mais de quinze anos, posso compreender muito do que eram

apenas perguntas de uma criança curiosa. Os primos, assim como tantas outras pessoas

com sofrimento psíquico, foram vítimas da ausência de uma atenção efetiva em saúde

mental somada a uma certa desinformação de familiares. Justificavam preferir mantê-

los em cárcere, seguros de que estariam sendo alimentados e limpos, a permitir que

fossem mais duas pessoas a engrossar o número de internados no hospital psiquiátrico

mais próximo daquela localidade, do qual se ouvia falar horrores, envolvendo maus-

tratos e negligência.

Após cerca de onze anos, mais precisamente em 1999, retomei minha

aproximação com a área de saúde mental, mas agora sob uma nova conotação e

diferentes circunstâncias. Em uma disciplina do curso de Serviço Social, foi-me

solicitada a realização de um trabalho a respeito da atuação do assistente social em

uma área específica de meu interesse, devendo este estudo ser complementado por

uma entrevista a este profissional em seu local de trabalho.

questão de dizer que já consegue banhar-se sozinha e de mostrar que tem vaidade, exibindo com satisfação sua habilidade em colorir seus lábios com batom. As irmãs falam, com orgulho, das conquistas de Isaura no que se refere a sua autonomia em cuidar de si.

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A opção pela saúde mental foi motivada pela leitura breve da obra de

Foucault, intitulada História da loucura na idade clássica (1999a), na qual, entre

outras questões, o autor aborda a respeito do processo de institucionalização da

chamada loucura, do isolamento do chamado louco do convívio em sociedade,

despertando em mim lembranças da experiência de infância acima referida. A partir de

então, iniciou-se minha trajetória de estudo nesse âmbito específico.

Essa visita a um hospital psiquiátrico proporcionou-me algumas

observações e questionamentos que extrapolavam o seu objetivo central. Inicialmente,

chamou-me atenção a dificuldade de conseguir marcar um horário junto à instituição

para que eu fosse recebida. Foram necessários contatos insistentes, o que poderia

indicar possivelmente um “fechamento” da instituição para pesquisas acadêmicas.

Outra situação intrigante ocorreu logo após a entrevista com a assistente

social, quando manifestei o desejo de conhecer as dependências do hospital. Foi

autorizada a entrada apenas no pátio utilizado para os horários de visita aos internados.

Fui informada da existência de um espaço específico aos “doentes mais violentos” e,

também, que não seria adequado “circular” pelos espaços internos da instituição.

Nesse momento surgiram vários questionamentos: por que aquele hospital,

que deveria ser um espaço de “tratamento”, onde a saúde deve ser a questão

primordial, mais parecia uma “penitenciária de segurança máxima” a qual não se podia

conhecer? Se havia um local destinado aos “doentes mais violentos” significava,

portanto, que todos os doentes eram violentos? E mais, os outros hospitais

psiquiátricos seriam da mesma forma? Infelizmente, essas e outras questões não

poderiam ser esclarecidas naquele momento.

Em agosto de 1999, a partir de minha busca por estágio na área de Serviço

Social, surgiu a oportunidade de uma experiência num hospital psiquiátrico.

Imediatamente aqueles questionamentos voltaram a me inquietar, o que foi suficiente

para aceitá-la de pronto, mesmo se tratando de uma experiência de estágio

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extracurricular.20

A vivência no campo de estágio passou a exigir leituras específicas com as

quais não tinha estabelecido contato no espaço acadêmico, sobretudo a respeito de

patologias e de seus sintomas.

Ao transitar pelos espaços de internamento, sentia-me perplexa com a

realidade vivenciada pelas pessoas ali internas. Era comum a prática de mendicância

por cigarros ou por algum dinheiro para comprar alimento na cantina do pátio. Seus

poucos objetos pessoais (principalmente chinelos) assumiam ali muitas vezes um valor

de moeda (valor de troca) entre o grupo.

Muitas daquelas pessoas estavam instaladas naquelas dependências há anos,

o que caracterizava o espaço institucional para alguns como “moradia”. Nos horários

de alimentação, chamava-me atenção aquele “emaranhado” de pessoas no refeitório.

Também era notória a carência afetiva de muitos que solicitavam minha atenção e a de

quem passasse pelo pátio a procura de um momento de diálogo, de escuta mesmo.

Muitos desses raramente eram visitados por familiares e/ou amigos; outros estavam

ali, talvez esquecidos...

Chamava-me ainda atenção a ação do Serviço Social, em que a assistente

social em seus atendimentos individuais aos usuários limitava-se a indagações tais

como: “dormiu bem?”, “está se alimentando bem?”, “está tomando a medicação

direito?”21 Além de por vezes assumir um discurso e uma postura de cunho

assistencialista e/ou de piedade.

20 A situação de estágio extracurricular é polêmica uma vez que a (o) estudante não dispõe da orientação paralela de um professor da graduação, muitas vezes constituindo-se como “mão-de-obra barata” para os organismos contratantes, sem que estes tenham, portanto, a mínima preocupação com o aprendizado, o que descaracteriza a finalidade de tal experiência. Em geral, o interesse dos alunos por estágio extracurricular está relacionado a dois aspectos centrais, quais sejam, a ânsia em aproximar-se da prática profissional e/ou a necessidade de obter remuneração. 21 Registro em diário de campo em agosto / 1999.

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Aproximadamente um ano após o início dessa experiência, iniciou-se um

processo de mudanças no hospital, as quais não deveriam se restringir somente a sua

estrutura física, mas também atingir a assistência dirigida aos usuários e o “pensar”

dos profissionais ali envolvidos. Falava-se na necessidade de aproximação aos

preceitos da reforma psiquiátrica. Esta, inicialmente, me parecia ser apenas uma nova

proposta de atenção em saúde mental, não conseguindo perceber ainda sua dimensão

mais ampla de ruptura com o instituído histórica e culturalmente em relação à

“loucura” e ao chamado louco.

Desde então, passei a dedicar meus estudos à área de saúde mental, mais

precisamente à reforma psiquiátrica e a isso foram se somando inquietações

particulares com relação ao exercício profissional em geral e especificamente nesta

área. Tais inquietações advinham da minha tentativa constante de articular o conteúdo

acadêmico vivenciado na Universidade e a experiência no campo de estágio.

Nesse percurso, ao mesmo tempo em que fui procurando articular alguns

elementos, pude perceber algumas discrepâncias, levando-me a construir e

desconstruir saberes, suscitando outras indagações, tais como: aquela prática do

Serviço Social, representada na instituição por aquela assistente social, era histórica?

Por que a assistente social se restringia, nos atendimentos individuais, a indagações e

constatações daquela natureza? Essa postura seria modificada diante das discussões

sobre a reforma psiquiátrica em efervescência na instituição?

Essas e outras questões me levaram a problematizar o exercício da profissão

na esfera da saúde mental diante do contexto da reforma psiquiátrica de forma mais

ampla, não mais me limitando ao espaço daquela instituição.

Todo esse percurso, portanto, propiciou a opção em estudar a respeito da

ação profissional do assistente social diante do processo de reforma psiquiátrica como

objeto de pesquisa do trabalho monográfico.

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Como mencionei, a pesquisa de campo suscitou questionamentos para além

do que se propunha meu trabalho naquele momento, os quais não puderam ser

explorados, uma vez que o cerne de minhas discussões era a ação profissional do

assistente social. Entretanto, com a oportunidade do Mestrado, o aprofundamento

desse estudo se mostrou possível.

Essa trajetória, articulada a leituras direcionadas e a participação em eventos

sobre a temática, propiciou a minha opção em problematizar e investigar a respeito do

lugar social dos sujeitos que utilizam serviços de saúde mental na reforma psiquiátrica em

Fortaleza a partir de suas narrativas acerca deste processo como objeto de pesquisa no

curso de Mestrado.

1.2 Trilha percorrida

Na tentativa de desvendamento do real, é de fundamental importância o

percurso metodológico escolhido pelo pesquisador, que deve corresponder às

especificidades do seu objeto de pesquisa na busca de melhor compreendê-lo.

A partir dos questionamentos acima referidos e da especificidade do objeto

investigado, ir a campo além de realizar o estudo bibliográfico se revelou fundamental,

afinal, como me aproximaria daqueles sujeitos senão indo até eles?

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1.2.1 Trabalho de campo: “estando lá”22...

Imagine o que sente um(a) pesquisador(a) pouco experiente ao se ver na

necessidade de ir a campo, ao se aproximar de uma realidade que não lhe é cotidiana.

Dá uma certa ansiedade, pois a curiosidade e o mistério do novo são instigantes. Mas,

o que seduz, às vezes, desperta também um sentimento de angústia e insegurança,

atrelado a autoquestionamentos, tais como: Como será que as pessoas vão me receber?

Será que vou encontrar formas de me aproximar delas? Será que estarão dispostas a

contribuir com a pesquisa? Qual a melhor maneira de observar a dinâmica local? Terei

a capacidade de desenvolver as faculdades de olhar, ouvir e escrever de que trata o

antropólogo Roberto Cardoso de Oliveira?23 Teriam os pesquisadores experientes

questões como essas? Será que vou conseguir?

Foi acompanhada de alguns sentimentos e questões dessa natureza que, não

pela primeira vez, cheguei ao CAPS/SER III de Fortaleza. Ali estava eu numa manhã

de setembro de 2004, retornando ao locus de pesquisa do meu trabalho monográfico.

Mas, o fato de ter estado no local antes não tirava de mim o “frio na barriga” diante do

novo. Sim, novo, afinal, a realidade não é estática. Os objetos até poderiam estar nos

mesmos lugares, mas as pessoas e ações que preenchem o ambiente não. Na ocasião,

trazia o relatório final da pesquisa anterior, no sentido de dar um “retorno” aos que

colaboraram comigo.

Tal como das outras vezes o portão de entrada estava aberto, diferente do

que se observa nos hospitais psiquiátricos, trancados a sete chaves. Aliás, a estrutura

22 O antropólogo Clifford Geertz, em seu livro Trabalho e vidas: o antropólogo como autor, distingue no ato de escrever os momentos do estando lá – referindo-se a situação do pesquisador estar no campo – e, do estando aqui, relativo ao trabalho do pesquisador fora do campo, isto é, em seu gabinete, entre seus pares, utilizando-se de todos os recursos que podem ser oferecidos por instituições universitárias e de pesquisa (Cf. Oliveira, 1998, p. 25). 23 Oliveira (1998) sugere que a primeira experiência do pesquisador de campo talvez seja a domesticação teórica de seu olhar, isto é, o olhar mediado pela teoria, afinal, nenhum objeto escapa de ser apreendido pelo esquema conceitual formador da sua maneira de ver a realidade. Entretanto, acrescenta o antropólogo, o olhar não é suficiente para perceber a natureza dos fenômenos, sendo necessário conjugá-lo a outra faculdade do entendimento, o ouvir. Além desses “atos cognitivos mais preliminares”, o autor destaca o ato de escrever que se realiza, por excelência, no gabinete, apresentando singularidades em relação ao que é registrado no diário de campo, uma vez que aí se inicia o processo de textualização do que foi visto e ouvido no campo, a tradução do que foi observado para o plano do discurso (Cf. Oliveira, 1998, p. 18-25).

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física do CAPS/SER III difere totalmente das referentes a instituições totais, pois tem

uma casa como sede e os hospitais psiquiátricos geralmente têm estruturas similares às

de penitenciárias: muros altos, grades e portões de ferro separando os espaços,

“olheiros” (no hospital psiquiátrico, geralmente, os auxiliares de enfermagem

assumem esse papel), entre outros.

Ao adentrar, deparei-me com poucas pessoas sentadas no primeiro cômodo

da casa aguardando atendimento. Trata-se de uma área onde cadeiras estão dispostas

em forma de semicírculo, uma sala de espera. Algumas pareciam se conhecer,

gesticulando ao passo em que conversavam sobre o cotidiano de suas vidas. Outras

apenas se olhavam...

Inicialmente fiz parte desse último grupo. Com o adiantar da hora, mais

pessoas foram chegando e sentando junto a nós. Enquanto isso, os profissionais

também iam chegando e se organizavam para mais um dia de trabalho.

A recepcionista então começou a chamar “o próximo” e as pessoas iam se

dirigindo ao balcão da sala à frente (recepção) para receber uma senha referente à

ordem de atendimento médico e assinar o que chamam de “freqüência”. Em seguida

retornavam à sala de espera para aguardar a chegada do médico. Outros aguardavam o

início de suas atividades em grupo. Começava mais um dia no CAPS/SER III.

Diferente de tempos atrás, observei que um pequeno portão de madeira

(uma espécie de “cancela”) havia sido acoplado à porta que dá acesso ao interior da

casa. A porta larga permanecia aberta, mas um funcionário estava lá, abrindo e

fechando a “cancela” para as pessoas que por ali passavam, exercendo assim uma

espécie de “controle” de quem entrava e de quem saía, contribuindo com a

recepcionista que chamava, por “ordem de chegada”, as pessoas que aguardavam

consulta médica para realizar os procedimentos usuais acima referidos. O diário de

campo da pesquisa revela registro de inquietação a esse respeito:

... fui surpreendida com uma ‘cancela’ na porta que liga a sala de espera ao interior da casa. Antes observava um trânsito livre e agora essa cancela

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separa os ambientes... por que esse controle? Havia antes e não se percebia por não ser explícito como agora, materializada na forma de cancela ou é uma estratégia disciplinar recente? ... ao permanecer na sala de espera percebi que não fui a única a me inquietar com a situação. Uma mulher chegou a mencionar em voz alta olhando para nós: “pra que isso (posicionando a mão à cancela) na porta agora? É pra ninguém entrar? Deus me livre, o pessoal pensa que a gente não tem educação. Ninguém vai ficar entrando e saindo daí sem precisão ...”. Mais tarde, conversando informalmente com o funcionário encarregado de abrir e fechar a cancela, o mesmo me disse: não faz muito tempo que colocaram (referindo-se a cancela) ... é pra organizar mais, tem hora que é gente demais e fica atrapalhando o trabalho do pessoal aqui dentro ...”24

Após um certo tempo na sala de espera, resolvi “quebrar o silêncio” e

procurei a recepcionista. Falei que gostaria de entregar o relatório da pesquisa anterior.

Na ocasião, outra funcionária me reconheceu e se mostrou receptiva. A recepcionista

também se mostrou simpática e pediu que eu aguardasse um pouco para falar com a

coordenadora sobre o relatório.

Retornei à sala de espera e permaneci lá por boa parte da manhã. Em meio a

olhares silenciosos das pessoas para mim e vice-versa, surgiam perguntas tais como:

Quem são essas pessoas? Que histórias as trouxeram para cá? O que buscam aqui?

Como se sentem nesse ambiente? Houve um momento em que pude perceber que não

só elas me despertavam curiosidades, mas também eu a elas. Alguém me indagou se

estava a espera de atendimento. Informei o meu propósito e passamos a conversar,

quer dizer, eles mais e eu menos. Algumas mulheres traziam à tona questões de gênero

ao comentarem sobre suas relações com companheiros ou ex-companheiros, outras

pessoas comentavam entre si sobre o “tratamento”, os efeitos de medicações em uso

etc.

Essas falas, porém, eram interceptadas pela voz da recepcionista que

chamava para o atendimento e por intervalos de silêncios que me levavam a mais

questionamentos: será que meus interlocutores estariam ali entre aqueles rostos?

Embora alguns dos que ali estavam se mostrassem receptivos a conversar, seria difícil

me aproximar deles a ponto de futuramente dividirem comigo alguns aspectos e

24 Registro em diário de campo em 04/09/04.

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episódios de suas experiências de vida e de seus pensamentos?

Alguns disseram ter história de internações em hospitais psiquiátricos, o que

me levou a pensar que já tiveram sua intimidade (trajetórias de vida, sentimentos e

sonhos) invadida tantas vezes pelos atendimentos rotineiros de profissionais que

insistem numa conduta fragmentada, em que ao invés de partilharem os atendimentos

e informações, costumam, um a um (assistente social, enfermeiro, psicólogo,

psiquiatra, terapeuta ocupacional, entre outros), investigar aspectos de suas vidas

muitas vezes difíceis de serem verbalizados ou expressos de alguma maneira porque

causam dor, sofrimento. Assim, esse tipo de situação acaba revitimizando-os.

Desse modo, se haviam pessoas ali tantas vezes (re)vitimizadas, será que

estariam dispostas a me revelar, ainda que em linhas gerais, um pouco de si, de quem

são, do que pensam? Ao propor isso futuramente, estaria eu repetindo a ação

desempenhada pelo tipo de profissionais anteriormente mencionados, os quais

geralmente valorizam aspectos de seus discursos apenas no sentido de caracterizar

seus sintomas e classificar suas “doenças”? Não, respondi pra mim mesma. Meu

propósito não era ouvi-los para “tratá-los”, mas ouvir e evidenciar as suas narrativas, a

palavra que pode até permanecer silenciosa, mas não silenciada.

Durante as idas ao CAPS/SER III, através do contato, geralmente receptivo,

com as pessoas que aguardavam atendimento e alguns familiares que os

acompanhavam, bem como, com os profissionais que lá trabalham, tomei

conhecimento de que não havia organização de usuários e familiares vinculada àquele

CAPS em forma de Associação, mas fui informada da existência de uma Cooperativa

Social cuja maioria dos cooperados é de usuários da instituição, a Cooperativa do

Centro de Atenção Psicossocial Ltda (COOPCAPS).

Essa Cooperativa surgiu em julho de 2003, a partir das atividades de terapia

ocupacional.25 Além do suporte do CAPS/SER III, a COOPCAPS dispõe do apoio da

25 Mais especificamente das chamadas oficinas de produção, as quais, segundo a terapeuta ocupacional que tem acompanhado as atividades da Cooperativa desde a idéia de sua constituição, têm caráter de produção para comercialização.

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Incubadora de Cooperativas da UFC26 que, inclusive, foi a responsável pela

capacitação dos cooperados antes de se organizarem efetivamente.

Uma vez que ainda não dispõem de sede própria, os cooperados utilizam o

espaço físico do CAPS/SER III. O grupo é composto por vinte e três participantes27 e

se reúne duas vezes por semana para produzir peças artesanalmente (tapetes, bonecas

de pano, cestas para arranjos florais, chaveiro etc.). A venda dos produtos é realizada

individualmente pelos cooperados, sendo uma parte do montante proveniente das

vendas destinada à compra de matéria-prima e o valor restante divido entre os

membros do grupo de maneira igualitária.

Observei que a Cooperativa se trata de uma experiência singular entre os

CAPS existentes em Fortaleza. Certamente não posso afirmar se representa uma

modificação na vida das pessoas cooperadas ou qual o significado daquela atividade

para elas, nem tampouco os possíveis impactos da renda proveniente da

comercialização dos produtos na situação financeira de suas famílias, até porque não

era este meu objeto de pesquisa. Mas, o fato de aqueles sujeitos atendidos no

CAPS/SER III estarem coletivamente organizados foi um dos critérios para a escolha

dos mesmos como interlocutores da pesquisa.

A facilidade de encontrá-los reunidos semanalmente foi outro critério. Além

disto, chamaram atenção aspectos heterogêneos do grupo. As pessoas não estão

reunidas por serem especificamente homens ou mulheres, jovens ou idosas, com

diagnóstico A ou B.

26 A Incubadora de Cooperativas Populares de Autogestão da Universidade Federal do Ceará (UFC) foi implantada em 1997 como Projeto de Extensão. É uma iniciativa inspirada na Autogestão e na Economia Solidária e tem como objetivo incentivar o modelo cooperativista e associativista de trabalho e produção como possibilidade de gerar trabalho e renda em áreas de baixo poder aquisitivo. Desse modo, propõe-se a oferecer assessoria técnica e educacional às cooperativas incubadas, abrangendo desde o processo de formação até sua efetiva inserção no mercado; capacitar os associados direcionando-os para um processo de auto-gestão com sustentabilidade no sentido da distribuição de renda e da economia solidária; auxiliar na formação de incubadoras de cooperativas que tenham como objetivo a disseminação da Autogestão e a Economia Solidária (www.incubadora.ufc.br). 27 Vinte usuários e três familiares.

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Desde que tomei conhecimento da existência dessa Cooperativa, passei a

participar de suas reuniões para produção e acompanhar o processo de confecção das

peças a serem comercializadas, inclusive, ora “colocando a mão na massa” a convite

do grupo.

Esses momentos foram de muita importância, sobretudo, para o

estabelecimento de uma relação de confiança mútua, a meu ver, necessária ao

desenvolvimento da pesquisa, uma vez que minha proposta era adentrar no universo da

subjetividade dos interlocutores, buscando compreender e interpretar suas concepções

e opiniões pessoais jamais possíveis de serem encontradas em documentos ou outra

fonte que não o contato direto entre nós.28

Após um período de acompanhamento do grupo passei a estabelecer contato

individual por meio da técnica de entrevista29 com os cooperados que se dispuserem a

colaborar com a pesquisa no sentido de abordar questões mais específicas acerca do

objeto de estudo. Para tanto, mostrou-se necessário o uso de um roteiro mínimo de

orientação30 no intuito de trabalhar de maneira compatível com o tempo disponível

para a pesquisa de campo, o que se tornaria difícil caso optasse pela perspectiva não

diretiva.

28 A respeito desses contatos com o grupo, lembro-me de momentos em que, mesmo tentando explicar meu propósito ali como pesquisadora, a minha presença foi interpretada por alguns sob outra dimensão: ... observo que minhas idas ao CAPS, o acompanhamento das atividades do grupo têm possibilitado a construção de uma relação de confiança entre nós. Às vezes há quem ‘quase misture as coisas’, como os rapazes que vez por outra me indagam se tenho namorado ou se sou casada, tecem elogios carinhosos. No geral, porém, acredito que a maioria das pessoas já compreende o motivo da minha presença no grupo, inclusive, algumas perguntam quando conversarei individualmente com elas para que possam colaborar com meu trabalho. Essa disponibilidade em contribuir com a pesquisa e a vontade que demonstram de falar fortalece em mim o desejo de tornar ‘visível’ suas concepções, desejos, sonhos, enfim, suas ‘vozes’, com muito respeito. (Registro em diário de campo em 22/11/04). 29 A entrada no campo e início do acompanhamento do grupo ocorreu em setembro de 2004. As entrevistas foram realizadas no período de março a maio de 2005. A opção pela entrevista se deu a partir da especificidade do objeto de estudo e da necessidade de um aprofundamento qualitativo à pesquisa, bem como, por identificá-la como uma técnica possível dada a receptividade dos membros do grupo. Vale ressaltar que todas as entrevistas foram gravadas sob o consentimento dos interlocutores e seus nomes foram revelados ou substituídos por nomes fictícios de acordo com a vontade dos mesmos. 30 O roteiro pode ser consultado em anexo. 31 Os modelos se encontram em anexo. É importante lembrar que a identificação ou utilização de nomes fictícios na transcrição dos discursos está de acordo com a autorização ou não de cada interlocutor previamente acordada quando da assinatura desse termo.

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As entrevistas eram geralmente agendadas com antecedência e sempre

realizadas nos dias e horários de encontros do grupo. Algumas vezes houve

disponibilidade de uma sala reservada para realizá-las, outras vezes utilizamos o

próprio pátio onde os cooperados trabalham. Nestes casos mantínhamos uma certa

distância dos demais membros do grupo durante a entrevista.

Antes de iniciar cada conversa relembrava o objetivo da pesquisa em linhas

gerais e uma vez percebendo a disponibilidade do possível interlocutor, apresentava-

lhe o termo de consentimento livre.31 Após a leitura e assinatura deste, iniciávamos a

entrevista que soava como uma conversa apenas guiada pelo roteiro mínimo

previamente elaborado.

Dos vinte usuários vinculados à Cooperativa, treze foram entrevistados.

Conversei com aqueles que estavam participando regularmente dos trabalhos do grupo

e se dispuseram a colaborar com o estudo, além de estarem presentes nos dias

programados para as entrevistas. Vale ressaltar que a relação de confiança com base no

vínculo construído entre esses usuários e eu ao longo da pesquisa foi também um

elemento relevante para tomá-los como interlocutores.

Através desse contato direto e individual, procurei conhecer alguns aspectos

relacionados à trajetória de vida dos sujeitos, considerando, inclusive, possíveis

experiências de internações em hospitais psiquiátricos. Conhecer quem são as pessoas

com as quais dialoguei foi importante para compreender suas concepções de mundo,

uma vez que aquilo que pensamos e fazemos geralmente se relaciona às nossas

experiências e trajetórias de vida.

Considerei ainda suas concepções acerca da chamada loucura e da reforma

psiquiátrica a fim de discutir tais conceitos também a partir dos discursos desses

sujeitos e não apenas do que trata a literatura específica.

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Vale salientar que a observação direta e anotações no diário de campo foram

recursos extremamente importantes à consecução desse estudo principalmente no que

se refere às definições em relação ao “caminhos metodológicos” percorridos. A

delimitação dos interlocutores, por exemplo, só foi possível a partir do contato direto

com o campo empírico através de observações sistemáticas e conversas informais. O

uso do diário de campo, além de registrar informações captadas pela observação,

possibilita registrar narrativas em momentos diversos.

É importante destacar que o diálogo com autores que trabalham conceitos

básicos a esse estudo como loucura, institucionalização, reforma psiquiátrica e

desinstitucionalização se deu ao longo do percurso metodológico, entretanto, em

diferentes proporções, visto que no período dedicado ao trabalho de campo priorizei o

contato com os sujeitos interlocutores da pesquisa e suas concepções de mundo

construídas com base em suas experiências de vida.

Após a saída do campo32 me dediquei à conclusão das transcrições das fitas

e a interpretação dos discursos com base na teoria consultada sob uma perspectiva

analítica-crítica. Não é redundante lembrar que busquei realizar esse trabalho

investigativo valorizando idéias, opiniões, crenças, valores, sentimentos, lembranças,

sonhos e silêncios dos interlocutores. Nessa perspectiva, essencialmente o trabalho

deve ser visto como um “feito por várias mãos”.

Assim, como referem Buarque & Bastos, ... apenas seguirei como

encantado ao lado teu... Cabe aqui retomar esse trecho da composição desses autores

para assinalar que, embora com a satisfação de ter vivenciando mais uma experiência

de pesquisa, não me apropriarei do conhecimento por ela proporcionado, pois outros

sujeitos foram partícipes da consecução desse estudo a ser partilhado, somado,

multiplicado. Afinal, como nos diz Gondim, (...) a maior contribuição que o

pesquisador pode dar para mudar o mundo reside no trabalho que realiza para tornar

esse mundo compreensível (1999, p. 29).

32 Agosto/2005.

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CAPÍTULO II

Reforma psiquiátrica: uma construção histórico-social

O Movimento de reforma psiquiátrica vem sendo discutido em vários países

conforme suas conjunturas, havendo, portanto, diferentes experiências, dentre as quais

encontram-se as Reformas francesa, canadense, americana e italiana, sendo esta última

- Psiquiatria Democrática - segundo Rotelli & Amarante (1992), a de maior influência

para o Brasil.

Esse modelo inicialmente emergiu na Itália na década de 70, tendo Franco

Basaglia como seu principal idealizador. Basaglia, após um processo de

amadurecimento crítico em relação à natureza da instituição psiquiátrica a partir de sua

experiência inicial em Gorizia, concluiu que de nada bastaria apenas à reorganização

da instituição psiquiátrica e assim, iniciou na cidade de Trieste, também na Itália, um

processo de demolição da estrutura manicomial - extinguiu os chamados “tratamentos”

pautados em violência, destruiu os muros de separação entre os espaços intra e extra-

institucional, abriu cadeados e grades - e propôs a construção de novos espaços e

formas de lidar com a chamada loucura.33

O pensamento crítico de Basaglia no que diz respeito à instituição

psiquiátrica, aos poucos foi deixando de se restringir apenas aos grupos daqueles que

com ele trabalhavam, atingindo, cada vez mais, técnicos, usuários, líderes sindicais e

comunitários, repercutindo ainda no surgimento de iniciativas também em outras

cidades italianas.

Em 13 de Maio de 1978, na Itália, foi aprovada a Lei Basaglia (Lei 180) que

33 Antes de propor a transformação em Trieste, Basaglia realizou um trabalho no hospital psiquiátrico de Gorizia na década de 60, cujo objetivo era a transformação daquela instituição em comunidade terapêutica e a tentativa de sua superação, o que não foi possível tendo em vista o impedimento de forças políticas locais. Após essa experiência Basaglia concluiu ser insuficiente a reorganização da instituição psiquiátrica, decidindo assim pelo fim do manicômio. Com o fim do manicômio em Trieste, surgiram Centros de Saúde Mental, Cooperativas de Trabalho destinadas aos ex-internos e Serviço de Emergência Psiquiátrica. Para aprofundar estudo a respeito da experiência italiana consultar Barros (1994a); Rotelli & Amarante (1992).

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substituiu a legislação de 1904, proibindo não apenas a recuperação de antigos

manicômios como qualquer iniciativa de construção de novos espaços como esses. A

exemplo da Itália, outros países engajaram-se nesse processo de mudança, dentre eles,

o Brasil.

Foi também na década de 70, mais precisamente no final desse período, que

o Movimento de reforma psiquiátrica alcançou maior visibilidade no Brasil,

intrinsecamente relacionado com o surgimento do Movimento dos Trabalhadores em

Saúde Mental (MTSM).

Na concepção de Amarante et al pode-se perceber três importantes

momentos ou trajetórias do processo de reforma psiquiátrica no Brasil, quais sejam, a

alternativa, a sanitarista e de desinstitucionalização ou de desconstrução/invenção

(1995, p. 89).

A primeira foi caracterizada por importantes manifestações no âmbito da

saúde, num contexto marcado também pelo crescimento de movimentos sociais em

oposição ao regime militar.

Nesse contexto emergiu o MTSM, fazendo fortes denúncias contra o

governo militar que, muitas vezes, utilizava a psiquiatria como mecanismo de controle

da sociedade, através, inclusive, de torturas.

Esse Movimento tinha como finalidade a construção de propostas de

transformação da assistência psiquiátrica brasileira. Entretanto, vale destacar que

inicialmente suas reivindicações não se restringiam a críticas à psiquiatria tradicional e

à busca de um novo modelo, havendo também uma preocupação com questões

trabalhistas, tais como a melhoria salarial.

Nesse período, surgiram vários encontros de discussão, dentre os quais

destaco o V Congresso Brasileiro de Psiquiatria, realizado em 1978, dado o seu

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relevante significado, uma vez que possibilitou a organização de iniciativas similares

ao MTSM em vários estados brasileiros.

Com a repercussão nacional alcançada, no ano seguinte realizou-se na

cidade de São Paulo o I Congresso Nacional de Trabalhadores em Saúde Mental (I

CNTSM), no qual, entre outras questões, priorizou-se a crítica ao modelo asilar dos

hospitais públicos como espaço depositário de “marginalizados”, em detrimento dos

aspectos corporativos.

O início da década de 80 foi marcado pela ascensão da trajetória sanitarista,

caracterizada pela incorporação de parte do movimento de reforma sanitária, além da

psiquiátrica, ao Estado, configurando-se um momento essencialmente

institucionalizante.34

Nesse período, os Ministérios da Saúde e da Assistência e Previdência

Social tomaram providências para a reestruturação das unidades hospitalares

constituintes da Divisão Nacional de Saúde Mental (DINSAM), órgão do Ministério

da Saúde à época.

[O] início da trajetória institucional da estratégia sanitarista é uma tentativa tímida de continuar fazendo reformas, sem trabalhar o âmago da questão, sem desconstruir o paradigma psiquiátrico, sem construir novas formas de atenção, de cuidados, sem inventar novas possibilidades de produção e reprodução de subjetividades (Ibdem, p. 93).

Nessa mesma década, em março de 1986, ocorreu em Brasília, com uma

grande participação popular, a 8a Conferência Nacional de Saúde, donde surgiu uma

nova concepção de saúde como um “direito do cidadão e dever do Estado”. Neste

evento também foram definidos princípios básicos, dentre os quais, o de

universalidade no acesso à saúde.

34 Os marcos teóricos conceituais que estavam na base da origem do pensamento crítico em saúde (...) dão lugar a uma postura menos crítica onde, aparentemente, parte-se do princípio que a ciência médica e a administração podem e devem resolver o problema das coletividades (Amarante et al, 1995, p. 91).

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Dando continuidade ao leque de eventos dos anos 80, foi realizada, em

1987, a I Conferência Nacional de Saúde Mental (I CNSM), acontecimento que

marcou o início da trajetória da desinstitucionalização ou da desconstrução/invenção,

a partir da qual foi iniciada a construção de um novo projeto de atenção em saúde

mental, sendo a desinstitucionalização entendida para além da simples

desospitalização.

Essa ruptura com a perspectiva sanitarista se deu a partir da emergência de

conflitos entre alguns militantes do MTSM e os promotores do evento (DINSAM e

Associação Brasileira de Psiquiatria). Estes defendiam um evento de cunho técnico,

enquanto aqueles exigiam que fosse adotada uma perspectiva participativa.

A partir dessa Conferência surgiram associações de usuários e familiares

tais como a SOSINTRA (RJ) e Associação Franco Basaglia (SP), constituindo-se

como novos atores nesse processo, descentralizando as discussões pertinentes à

chamada loucura. A questão da loucura e do sofrimento psíquico deixa de ser

exclusividade dos médicos, administradores e técnicos da saúde mental para alcançar

o espaço das cidades, das instituições e da vida dos cidadãos, principalmente

daqueles que as experimentam em suas vidas (Ibdem, p. 95).

Em 1987, como desdobramento da I CNSM, realizou-se na cidade de Bauru

o II Congresso Nacional de Trabalhadores em Saúde Mental (II CNTSM) sob o lema

Por uma sociedade sem manicômios, percebendo-se a inviabilidade da trajetória

institucionalista de ocupação e de aliança com o Estado. A perspectiva assumida era a

de que a questão da loucura e das instituições psiquiátricas deveriam ser discutidas

também pela sociedade.35

A intervenção da Secretaria de Saúde do Município de Santos, no hospital

psiquiátrico privado Casa de Saúde Anchieta, culminando no seu fechamento, tendo

em vista casos de óbitos e outros absurdos ali constatados, trouxe forte repercussão

35 Vale frisar mais uma vez que, ainda nesse mesmo ano foi inaugurado, na cidade de São Paulo, o primeiro CAPS (Centro de Atenção Psicossocial Professor Luiz da Rocha Cerqueira).

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nacional ao processo de reforma psiquiátrica no ano de 1989.

Ainda nesse ano, pode-se destacar como desdobramento e resultado do

processo político encaminhado inicialmente pelos Movimentos de Trabalhadores em

Saúde Mental, a apresentação do Projeto de Lei nº 3.657/89 de autoria do então

deputado Paulo Delgado (PT/MG). Seu conteúdo versava sobre a regulamentação de

direitos de pessoas com sofrimento psíquico no que diz respeito ao tratamento, bem

como, a extinção progressiva de manicômios públicos e privados e a substituição

destes por outros recursos de atenção não manicomiais.

Esse Projeto de Lei desencadeou críticas contrárias e a favor, dividindo

opiniões, inclusive de algumas associações de usuários e familiares. Discussões sobre

questões referentes à chamada loucura e práticas institucionais a ela direcionadas

assumiram relevância nacional.

Em 1992 ocorreu em Brasília a 2a Conferência Nacional de Saúde Mental,

ocasião em que foi ratificado o compromisso pela desinstitucionalização e destacada a

necessidade de análise sistemática dos novos serviços de atenção em saúde mental no

sentido de evitar o funcionamento dos mesmos como mera extensão do manicômio.

A década de 90 também foi um período importante para o campo da saúde

mental no Ceará, pois é desse período que datam a emergência ou a maior visibilidade

do Movimento de reforma psiquiátrica, o processo de instalação de CAPS e, como

mencionado anteriormente, a aprovação da Lei nº 12. 151 que trata da reforma

psiquiátrica no estado.

Diante do exposto, torna-se evidente a ampla dimensão da reforma

psiquiátrica, (...) um processo histórico de formulação crítica e prática, que tem como

objetivos e estratégias o questionamento e elaboração de propostas de transformação

do modelo clássico e do paradigma da psiquiatria (Ibdem, p. 87).

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Ao longo dos últimos anos no Brasil, verificam-se, portanto, avanços e

conquistas significativas no campo da saúde mental e na sociedade em si, como a

criação de serviços substitutivos36 aos hospitais psiquiátricos em diversos municípios;

elaboração, bem como, aprovação de leis estaduais e federal de reforma psiquiátrica;

elaboração e implantação de portarias ministeriais e estaduais sobre procedimentos e

estruturação de serviços de saúde mental; crescimento do movimento social em prol da

defesa dos direitos civis das pessoas portadoras de sofrimento psíquico através de

Associações de usuários e familiares; entre outros.

Vale lembrar, contudo, que o modelo tradicional centralizado no hospital

psiquiátrico ainda é hegemônico. Não se trata aqui da defesa de iniciativas de extinção

imediata de todos os hospitais psiquiátricos do país sem que exista de fato uma

substituição progressiva desses espaços por serviços de caráter não segregador, mas

não se pode retroceder a ponto de acreditar na “humanização” do espaço hospitalar

como “ponto de chegada”.

Nesse sentido, a questão do financiamento se apresenta como um desafio. A

proposta é que, com o fechamento progressivo de leitos em hospitais psiquiátricos, os

recursos sejam redirecionados, possibilitando a construção dos chamados serviços

substitutivos.

Essa proposta é factível, entretanto o atual contexto problemático de saúde

pública no Brasil requisita um controle social veemente para que não nos deparemos

com o fim dos hospitais psiquiátricos atrelado à ausência de serviços que de fato os

substituam, o que significaria, ao contrário do que busca o Movimento de reforma

psiquiátrica, um verdadeiro descaso com a população que necessita dessa atenção

específica.

De modo geral, na realidade, questões de ordem política e não técnica ou

36 O hospital-dia e o CAPS são exemplos desses serviços. O hospital-dia é definido pela antiga Portaria nº 224/92 como um recurso intermediário entre a internação e o ambulatório, que desenvolve programas de atenção de cuidados intensivos por equipe multiprofissional, visando substituir a internação integral.

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financeira têm-se apresentado como maior obstáculo à efetivação da reforma

psiquiátrica. É fundamental que os usuários dos serviços de saúde mental estejam

envolvidos ativamente nesse processo, não só acompanhando a gestão dos

denominados novos serviços, a exemplo dos CAPS, mas também se inserindo nos

mais diversos espaços (institucionais ou não) que possibilitem o fomento de discussões

em torno da condição social em que se encontram (estigma, preconceito), bem como a

proposição, implementação e o acompanhamento de Políticas Públicas de Saúde

Mental consentâneas às suas necessidades.

Mesmo considerando iniciativas importantes como as Associações de

usuários, as discussões em torno da saúde mental, pelo menos no Ceará, parecem ainda

estar muito mais próximas do segmento dos trabalhadores que atuam na área.

A implantação dos CAPS é importante, contudo não significa que os

problemas em torno da atenção em saúde mental estejam resolvidos. O artigo 2º da lei

cearense de nº 12. 151 preconiza a instalação e funcionamento de vários serviços como

leitos psiquiátricos em hospitais gerais,37 hospitais-dia, centros de atenção, centros de

convivência,38 entre outros.

Em Fortaleza, contudo, a rede pública de saúde dispõe atualmente apenas de

dois desses tipos de serviços, quais sejam, hospital-dia e CAPS, que se apresentam em

número insuficiente frente à demanda.

Observa-se na atual gestão municipal a preocupação com a construção de

uma rede de serviços substitutivos aos hospitais psiquiátricos. Ao final do primeiro

semestre do ano de 2005 foram implantados dez CAPS em Fortaleza – 01 do tipo

infantil (CAPS i), 03 do tipo geral (CAPS II) e 06 do tipo AD (CAPS AD) –

37 Para os casos em que a internação se mostre realmente necessária. A disponibilidade de leitos em hospitais gerais favorece o enfrentamento do estigma historicamente vinculado às pessoas com sofrimento psíquico e à própria figura do hospital psiquiátrico. 38 Espaços propiciadores de trocas sociais em que o convívio entre pessoas com sofrimento psíquico e a população em geral deve favorecer o exercício da cidadania, fomentando projetos de trabalho, lazer, associações, entre outros, ampliando a compreensão e as formas de relacionamento com a “loucura".

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totalizando atualmente treze serviços dessa natureza.39 Até então não havia CAPS para

atendimento específico ao público infantil ou para casos de alcoolismo e/ou uso de

outras drogas.

Certamente apenas com esses serviços ainda não podemos falar de uma

rede de atenção em saúde mental no município, mas é mais um importante passo no

longo caminho a percorrer para a efetivação da reforma psiquiátrica em Fortaleza.

Outro desafio que se apresenta, mais especificamente, aos próprios

trabalhadores da área, inseridos nesses serviços substitutivos, é o de não reproduzirem

em seu interior as práticas tradicionais, há anos desenvolvidas nos hospitais

psiquiátricos, as quais se pretende superar.

Esse aspecto é extremamente relevante uma vez que efetivar a reforma

psiquiátrica não significa apenas mudar o ambiente institucional, pintar paredes e

suprimir grades. O Movimento de reforma psiquiátrica em curso no Brasil, entendido

como uma tentativa de transformação de uma realidade, requisita dos profissionais

envolvidos na área de saúde mental, bem como, da sociedade, uma nova postura, o que

passa obviamente pela necessidade de dissolução de saberes e/ou concepções histórica

e culturalmente construídos e cristalizados muitas vezes como verdades absolutas e

intransponíveis.

Ademais, é ainda predominante a percepção social em relação à pessoa com

sofrimento psíquico como um ser necessariamente incapaz e que oferece perigo à

sociedade, devendo, portanto, lhe ser destinado um lugar específico.

O preconceito construído histórica e culturalmente em relação a quem se

convencionou chamar louco e à chamada loucura (denominada doença mental a partir

do final do século XVIII) talvez seja a principal “barreira” à efetivação da reforma

psiquiátrica, de uma Política de Saúde Mental construída a partir da coletividade.

39 As sedes desses nove novos CAPS estão sendo providenciadas e organizadas. Por enquanto os profissionais desses serviços estão utilizando equipamentos socais existentes nas comunidades (ex: postos de saúde e centros sociais) para realizar alguns atendimentos à população.

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2.1 Desinstitucionalização: desospitalização ou (des)construção?

Como dito anteriormente, a reforma psiquiátrica questiona o modelo de

atenção em saúde mental pautado na psiquiatria tradicional, centralizada no hospital

psiquiátrico como espaço de “tratamento”, propondo novas formas de atenção em

saúde mental e de sociabilidades aos chamados loucos. Nesse sentido, destaca-se a

desinstitucionalização como um de seus preceitos.

O conceito desinstitucionalização surgiu nas sociedades européias e

americana no período pós-Segunda Guerra Mundial, a partir dos “processos de

reestruturação sócio-institucional” dessas sociedades, quando os Estados Modernos

assumiram a responsabilidade pelos problemas sociais (Barros 1994a; 1994b).

No contexto europeu pós-Guerras a realidade dos hospitais psiquiátricos,

cujas estruturas comparavam-se a campos de concentração, despertou interesse social

em meio às discussões voltadas para redefinições políticas e econômicas, bem como, a

imprescindível necessidade de reorganização institucional. Cada país europeu elaborou

respostas a esse problema a partir de suas particularidades históricas e concepções

próprias acerca da loucura e da doença mental (Barros, 1994b).

No caso dos americanos, a autora sugere que o processo vinculou-se muito

mais à necessidade de redefinição das atribuições do Estado na regulação capital-

trabalho. Do ponto de vista de mudanças na assistência à população, essa discussão

teve maior destaque nos anos 60, quando criaram o termo desinstitucionalização para

qualificar as altas hospitalares e a reinserção comunitária dos internos psiquiátricos.

Conteúdos heterogêneos surgiram a partir da perspectiva de

desinstitucionalização no que dizia respeito às questões práticas das instituições de

caráter manicomial. Nos Estados Unidos, na França e na Inglaterra a proposta

privilegiou a criação de serviços de assistência comunitários, apostando assim no

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enfraquecimento da estrutura hospitalar (asilar) como conseqüência inevitável da

existência daqueles novos serviços.

Na Itália o caminho foi diferente. Acreditou-se na necessidade de criar

condições para o desmonte do manicômio a partir do seu interior, aniquilando seu

funcionamento e sua lógica sustentadora. A intenção era desconstruir o manicômio e,

simultaneamente, construir serviços territoriais.40

A noção de desinstitucionalização norte-americana traduziu-se apenas em

desospitalização e racionalização de recursos. Em contrapartida, o processo italiano

assumiu maiores proporções, tomou outros movimentos sociais e sindicatos como

aliados, ampliou as denúncias às instituições psiquiátricas vislumbrando o seu fim.

Embora a Itália tenha adotado inicialmente o modelo de comunidade

terapêutica,41 Barros (1994b) pondera que, ao verificar suas limitações, a experiência

italiana contrapôs-se ao asilamento, bem como, aos modelos de comunidade

terapêutica e psiquiatria de setor,42 preservando destas o princípio de democratização

das relações entre os atores institucionais e a noção de territorialidade (tratamento em

serviços comunitários), respectivamente.43

O movimento de desinstitucionalização revelou o manicômio como locus de uma psiquiatria que é administração das figuras da miséria, periculosidade social, marginalidade e improdutividade. O conhecimento a respeito do

40 Destaca-se nesse sentido a experiência de Gorizia em 1961, comentada anteriormente. 41 A experiência de comunidade terapêutica surgiu efetivamente no final dos anos 50 na Inglaterra. Caracterizada por um processo de reformas no campo institucional (mais no interior do hospital psiquiátrico), propunha ações democráticas, participativas e coletivas, tendo como finalidade transformar a dinâmica da instituição asilar. Desse modo, constituiu-se um modelo importante de modificação no interior do espaço hospitalar, contudo não “extrapolou seus muros” atingindo efetivamente a comunidade externa, não questionou o(s) motivo(s) da reclusão dos chamados loucos no asilo. (Cf. Amarante et al, 1995; Oliveira, 2002) 42 A psiquiatria de setor surgiu na França como contestação à psiquiatria asilar francesa, objetivando provocar na psiquiatria uma perspectiva terapêutica, proposta inviável dentro de uma estrutura asilar. Assim, o hospital psiquiátrico seria apenas um dos momentos do “tratamento”, sendo prioritário aproximar a psiquiatria à comunidade. Defendia-se com esse modelo a realização do “tratamento” na própria região na qual o indivíduo “doente” vivia, preservando seu convívio social. Tal como o modelo de comunidade terapêutica, a psiquiatria de setor permaneceu com a estrutura asilar e manteve a noção de loucura como doença mental, não realizando, portanto, nenhuma transformação no campo da psiquiatria. (Cf. Amarante et al, 1995; Oliveira, 2002) 43 Cabe destacar aqui a experiência de Triste nos anos 70, portanto, posterior a de Gorizia, também citada em momento anterior. Em 1973 surgiu o primeiro núcleo da psiquiatria democrática, um movimento que coordenou, ao longo dos anos 70, a luta pela transformação da psiquiatria italiana. (Barros, 1994a/b)

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sofrimento psíquico e mesmo a ação dos operadores em saúde mental não poderiam, para a equipe triestina, desconsiderar a realidade do asilamento, que é anterior à constituição da doença mental. A desinstitucionalização deveria, assim, concretizar-se na desconstrução do manicômio (p. 175).44

(Des)construção cujo sentido ultrapassa os muros institucionais, suas

estruturas físicas, e atinge saberes e práticas, entrelaçamentos políticos e culturais

mantenedores do manicômio e de tantas outras instituições violentas por este

representadas.

(Des)construir o manicômio pressupõe questionar um produto do

iluminismo, tal como adverte Foucault (1999a).45 Nesse sentido, implica o

questionamento de pressupostos históricos a partir dos quais a “doença mental” foi

definida e classificada. Processo histórico esse que, aliás, continua se reproduzindo e

legitimando o saber-poder psiquiátrico que reduz o fenômeno “loucura” à “doença

mental”.

O preceito de desinstitucionalização, portanto não deve ser confundido

apenas com ato de fechamento do hospital psiquiátrico, ou seja, desinstitucionalização

não significa (ou, pelo menos, não deve significar) simplesmente desospitalização.

[A] ‘negação da instituição’ não é a negação da doença mental, nem a negação da psiquiatria, tampouco o simples fechamento do hospital psiquiátrico, mas uma coisa muito mais complexa, que diz respeito fundamentalmente à negação do mandato que as instituições da sociedade delegam à psiquiatria para isolar, exorcizar, negar e anular os sujeitos à margem da normalidade social (Rotelli & Amarante, 1992, p. 44).

Ao partir dessa concepção, a reforma psiquiátrica traz para a sociedade a

necessidade de refletir sobre o que historicamente produziu e entendeu como “atenção

em saúde mental” e sobre suas próprias concepções acerca da chamada loucura e

doença mental. E ainda, evidencia a responsabilidade dessa mesma sociedade criar

44 Grifo meu. 45 A prática da reclusão do chamado louco é anterior ao surgimento do asilo, entretanto, como destaca Foucault (1999a), isto se dava junto a outros “errantes” (desocupados, prostitutas etc), não existindo até então, um locus de aprisionamento-“tratamento” específico aos “insensatos”.

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meios efetivos de atenção não mais pautados na segregação, bem como, a necessidade

de se oportunizar outras formas de sociabilidade àqueles que demandam atenção

específica nessa área.

Vale frisar, contudo, que nem todos os envolvidos no processo de reforma

psiquiátrica comungam com essa idéia de desinstitucionalização como desconstrução.

Alguns teóricos defendem inclusive a proposta de investimento em “bons hospitais

psiquiátricos”, além da existência de serviços ambulatoriais ou ainda, a

“transformação” da instituição psiquiátrica em instituição “terapêutica”, lembrando a

noção de comunidade terapêutica comentada anteriormente.

Um dos teóricos a compartilhar dessa idéia é Gentil (1999). Este analisa a

proposta de fechamento do hospital psiquiátrico como uma “vertente radical” dentro

do Movimento de reforma psiquiátrica e acrescenta:

Longe de abrir mão da moderna psiquiatria, para promover um efetivo aprimoramento do modelo assistencial em Saúde Mental, será necessário investir em uma rede diversificada, abrangente e integrada em seus vários níveis, que não se restrinja apenas ao atendimento dos casos mais graves e à reabilitação, mas que inclua ambulatórios, hospitais especializados de retaguarda e asilos não-hospitalares. (...) é melhor extinguir os manicômios, garantir o direito de asilo e proteção aos necessitados, ampliar a rede extra-hospitalar, notadamente os ambulatórios psiquiátricos, e incentivar, também investimentos em alguns bons hospitais psiquiátricos, públicos e privados (p. 22-3).

Vale registrar que, ao defender a garantia do direito de asilo e proteção aos

necessitados, o autor induz ao pensamento de que os asilos teriam surgido na

perspectiva de “direito” dos internados, talvez até como uma necessidade/demanda

destes, quando, na realidade, a história revela que, como sugerem os estudos

foucaultianos, o asilo surge a partir de um processo histórico de separação do “louco”

do convívio em sociedade, em que este passa a ser considerado doente mental,

necessitando de “tratamento” específico.

No campo da chamada psicoterapia institucional, por exemplo, Vertzman et

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al (1992) também se posicionam em defesa pela manutenção da instituição psiquiátrica

como espaço legítimo de “tratamento” para alguns sujeitos ao dizerem:

Uma instituição psiquiátrica, desde que adquira uma disposição capaz de acolher e escutar esse indivíduo com uma organização psíquica particular, pode ser um lugar legítimo de tratamento e tecido de vida para determinados sujeitos. Obviamente a instituição que mencionamos de forma alguma pode ser confundida com o asilo (...) (p. 18).

Os autores não apenas defendem a manutenção do hospital psiquiátrico, mas

se referem ainda sobre o locus da noção fundamental da psicoterapia institucional,

qual seja, os denominados “clubes terapêuticos”. Estes são definidos como

... uma organização autônoma no interior dos estabelecimentos hospitalares e são geridos prioritariamente por pacientes e técnicos. (...) Mas é preciso não confundir o clube com um lugar comum, uma sala, por exemplo, que abre em certos horários e onde os pacientes se encontram por alguns momentos. (...) o clube é muito mais que isso, é o que agrupa todos ao ateliês e, mais ainda, é todo o sistema de encontros, um sistema de superfície, de agrupamento horizontal, facilitador de trocas. (...) todas as atividades cotidianas do hospital giram em torno do clube: os ateliês, as saídas, as festas etc (Ibdem, p. 27).

A partir das considerações desses autores percebo que a “transformação” da

instituição psiquiátrica em “instituição terapêutica” propõe que se estabeleça uma

espécie de “réplica da sociedade” no espaço intra-institucional. Então, cabe-nos

questionar por que não permitir que os sujeitos experimentem tais “trocas”,

supostamente facilitadas pelos “clubes”, no espaço social não artificial? Não teria esse

sujeito o direito de viver em espaços para além dos “muros” institucionais?

O hospital psiquiátrico, um tipo de instituição total, como denomina

Goffman (2001), por mais que tente “humanizar” suas relações, não perde sua

característica de “fechamento”. Assim, as “escolhas” e “possibilidades” do internado

são sempre pré-estabelecidas.

Lembrando ainda os estudos de Goffman, mesmo que seja modificado o

espaço institucional, como alguns teóricos defendem, a barreira à relação social com

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o mundo externo permanece, e com ela a idéia da existência do que caracterizaria de

dois “mundos impermeáveis”: “mundo dos normais” e “mundo dos anormais”.

É importante assinalar também que o fato de extinguir o hospital

psiquiátrico não significa a supressão da cultura pautada no manicômio como espaço

necessário ao chamado louco. Afinal, caso não haja um processo crítico-fiscalizador

constante, os serviços extra-hospitalares podem assumir o caráter de reprodutores

dessa cultura hospitalocêntrica, havendo assim, uma mudança apenas de espaço físico.

[E]ntendemos que é necessário desconstruir não apenas a instituição manicomial, mas também as idéias, as noções e os preconceitos que a acompanham e modelam, e que são parte do imaginário mesmo daqueles que, conscientemente, desejam destruí-la (Barros, 1994b, p. 191).

No entanto, não se pode acreditar que a implantação de novos serviços de

cunho não-manicomial, por si só, seja suficiente para que o hospital psiquiátrico venha

a ser superado nem tampouco que sua “humanização” signifique um caminho possível.

Rotelli & Amarante chamam atenção de que a superação desse tipo de instituição é

imprescindível diante da inviabilidade de sua autodestruição:

A ilusão de que o hospital psiquiátrico torna-se obsoleto pela simples implantação de uma rede de serviços assistenciais ‘extra-hospitalares’, ou aquela outra, de que pode humanizar-se e tornar-se terapêutico com a modernização técnica e administrativa, já não devem contaminar-nos mais. Por isso mesmo, desconstrução não é o mesmo que destruição do hospital, mas superação do aparato manicomial - o que diz respeito à ruptura dos paradigmas que fundamentam e autorizam a instituição psiquiátrica clássica, os paradigmas clínico e racionalista de causa e efeito (...) (1992, p. 53).

Rotelli destaca ainda que esses paradigmas produziram (...) o conjunto de

aparatos científicos, legislativos, administrativos, de códigos de referência cultural e

de relações de poder estruturados em torno de um objeto bem preciso: ‘a doença’, à

qual se sobrepõe no manicômio o objeto ‘periculosidade’ (1990, p. 90).

Ao participar de alguns eventos relacionados ao tema em questão pude

identificar que há quem justifique a permanência do hospital psiquiátrico como

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hospital especializado assim como é comum em outras especialidades da área médica,

como por exemplo, hospitais específicos para tratamento de cardiopatias. Porém, é

importante recordar as representações acerca da “loucura” e da própria figura do

hospital psiquiátrico socialmente construídas, as quais em nada se compara à situação

dos que sofrem de cardiopatas (ou de quem sofre de outras patologias), afinal, em

geral estes não são estigmatizados ou “alvo” de preconceito.

Como ressaltou um usuário de serviço de saúde mental que participava do I

Encontro da Rede Nacional Internúcleos da Luta Antimanicomial sediado no Ceará em

dezembro de 2005, (...) a sociedade vê o cego como alguém que precisa de ajuda, mas

o louco é visto pelas pessoas como desnecessário ou perigoso. No caso do hospital

psiquiátrico, por mais que se tente pintar as paredes e deixar tudo por dentro mais

bonitinho, a gente não pode esquecer que os muros desse lugar têm história. Uma

história, na maioria das vezes, de pesadelo, de dor e sofrimento.

Nesse sentido, a reforma psiquiátrica, a partir de seu princípio de

“desinstitucionalização-(des)construção” se configura como mais que um

questionamento do modelo tradicional de atenção em saúde mental, pressupõe a

(des)construção de saberes e práticas em relação à “loucura” e à “doença mental”

socialmente cristalizados como absolutos. Daí porque também representa interferência

nas relações de poder e nas estruturas de dominação aí implicadas, demonstrando sua

característica de continuidade.

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CAPÍTULO III

CAPS/SER III: observando e descrevendo o locus da pesquisa

3.1 Um pouco da história ...

O CAPS vinculado a Secretaria Executiva Regional III46 da Prefeitura

Municipal de Fortaleza (CAPS/SER III) funciona das 08 às 17 horas, numa casa

relativamente espaçosa, localizada em frente ao Hospital Universitário Walter Cantídio

(HUWC), na rua Capitão Francisco Pedro, nº 1269, no bairro Rodolfo Teófilo. A casa

é alugada pela Prefeitura Municipal.

Esse serviço é o mais antigo dentre os CAPS existentes na cidade, foi

inaugurado em 1998. Surgiu de uma iniciativa de trabalhadores do HUWC, mais tarde

apoiada pela Prefeitura Municipal.

Segundo informações de profissionais que estão no CAPS/SER III desde sua

implantação, “tudo começou” com uma equipe técnica vinculada ao Hospital HUWC,

constituída por profissionais das áreas de enfermagem, psicologia, psiquiatria

(professores da Faculdade de medicina da UFC), serviço social e terapia ocupacional.

A idéia e conquista primeira desse grupo foi a implantação de um serviço de

saúde mental (ambulatório de saúde mental) dentro do HUWC em substituição ao

antigo ambulatório de psiquiatria e psicossomática, pautado no modelo tradicional,

(...) em que o paciente vinha, recebia a receita e ia pra casa (...) sem nenhum

acompanhamento.47

A partir dessa iniciativa e de experiências em desenvolvimento no interior

46 A Prefeitura Municipal de Fortaleza passou por uma reforma administrativa a qual, dentre outras providências, dividiu o município em seis regiões, correspondendo a cada uma delas uma Secretaria Executiva Regional (SER). Estas Secretarias funcionam como miniprefeituras e executam as ações da Prefeitura nos bairros. 47 Depoimento concedido em 07/11/02 por uma profissional entrevistada na ocasião da pesquisa que subsidiou meu trabalho monográfico.

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do estado do Ceará48 e em outros estados brasileiros, como São Paulo, surgiu a idéia

de se implantar um CAPS no município de Fortaleza. Então, o grupo passou a buscar

parcerias, culminando na realização de um convênio entre a UFC e a Prefeitura

Municipal de Fortaleza, através da SER III.

O grupo de profissionais que trabalhava no serviço de saúde mental do

HUWC assumiu o trabalho nesse novo serviço, ficando a Prefeitura responsável em

viabilizar os recursos materiais necessários, porque na época não dispunha de recursos

humanos para serem alocados no CAPS.

Em virtude do número insuficiente de profissionais, o CAPS/SER III, no seu

primeiro ano de existência, era aberto ao público apenas um expediente, só depois

passando a funcionar durante os dois turnos, inclusive com os mesmos profissionais

vinculados à UFC. Apenas ao final do ano 2000, a Prefeitura realizou concurso

público para a contratação de mais profissionais para integrar a equipe daquele CAPS.

Mesmo havendo o convênio entre o HUWC - UFC e a Prefeitura Municipal

de Fortaleza, o CAPS/SER III é uma instituição municipal, embora, de acordo com

alguns de seus profissionais, aquela Universidade seja a grande parceira, inclusive

fornecendo muitas vezes material de expediente, o que seria de responsabilidade da

Prefeitura. A farmácia, que fornece medicação aos usuários do CAPS/SER III, também

pertence à estrutura do HUWC - UFC.

3.2 Aspectos gerais das pessoas atendidas

Atualmente no CAPS/SER III estão cadastradas aproximadamente 6.000

pessoas, entretanto, estima-se que apenas 20% a 30% dessas comparecem

regularmente.49

48 Tal como mencionei antes, desde 1991 começaram a surgir CAPS em municípios do interior do estado do Ceará. 49 Registro em diário de campo em 26/10/04. Informações fornecidas por um dos funcionários do CAPS/SER III vinculado ao setor de arquivo. Uma vez que o número de pessoas cadastradas se modifica a cada dia de

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Em virtude da demanda significativa por atendimento em descompasso com

o número restrito e insuficiente de CAPS e de outros serviços de atenção em saúde

mental de caráter não asilar que possam responder a essa demanda, o tempo médio de

espera para ser atendido pela primeira vez no CAPS/SER III é de dois (ou até três)

meses.

Para ser usuário do CAPS/SER III, o interessado tem de preencher os

seguintes critérios: ter acima de 12 anos de idade e residir nas regiões de abrangência

da Secretaria Executiva Regional III. Além disso, deverá se dirigir a esse serviço

levando um encaminhamento médico ou de instituições da rede de saúde ou de

assistência social, e, segundo uma das recepcionistas, (...) de preferência apresentar

comprovante de residência porque é muita procura já das regionais que é pra atender

e não dá pra receber pessoas de outras regionais.50

De acordo com a então Coordenadora Administrativa, o público-alvo desse

serviço pode ser caracterizado como ... adulto-jovem, psicótico ou neurótico, em

sofrimento psíquico crônico ou agudo.51 Apresenta como diagnósticos mais freqüentes

transtornos de ansiedade e depressão, mas o serviço também atende pessoas que

apresentam transtornos psicóticos, entre outros. E embora ocorra atendimento a alguns

adolescentes, complementou a Coordenadora, esses não são público-alvo da

instituição.

funcionamento do CAPS, certamente esse número já foi superado. 50 Informação concedida por uma das recepcionistas. Registro em diário de campo em 04/10/04. 51 Registro em diário de campo em 06/10/04. Recentemente o cargo de Coordenação Administrativa do CAPS passou a ser ocupado por outra profissional.

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3.3 Equipe técnica

Com a realização do referido concurso público no ano 2000 a Prefeitura

alocou mais alguns profissionais na equipe do CAPS/SER III, que se constitui

atualmente por quatro assistentes sociais, duas enfermeiras, três psicólogas, quatro

psiquiatrias, duas terapeutas ocupacionais e uma psicopedagoga.52

É oportuno assinalar que com a contratação dos profissionais através do

concurso da Prefeitura, a equipe passou a apresentar um caráter misto, no sentido do

tipo de vínculo institucional dos profissionais, o que os diferencia na questão salarial.

As assistentes sociais vinculadas à Prefeitura, por exemplo, têm remuneração inferior à

assistente social vinculada ao Ministério da Saúde, cedida para trabalhar no CAPS/

SER III.

Uma das assistentes sociais com quem conversei informalmente afirmou

que a busca pela modificação dessa situação tem se dado através de processos na

Justiça, mas sem garantia. Segundo ela, (...) o salário é vergonhoso, se disser ninguém

acredita. O que tá salvando a gente é a produtividade.53

Outra questão que pude perceber foi que o fato do CAPS/SER III ser

conveniado à UFC o configura também como um espaço de pesquisa e extensão,

tornando-se campo de experiência para alunos de graduação, tais como enfermagem,

medicina, psicologia, serviço social e terapia ocupacional. E ainda recebe

profissionais dessas áreas interessados em atualização, sendo incluídos no serviço por

um período de seis meses, sendo chamados de extensionistas. Esse caráter de pesquisa

e extensão parece facilitar a presença de alunos de graduação e pós-graduação para a

realização de pesquisas.

52 Também trabalham no CAPS/SER III: auxiliares de enfermagem, auxiliar e agente administrativo. 53 Registro em diário de campo em 06/10/04.

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3.4 Principais atividades desenvolvidas

Ao chegar pela primeira vez para atendimento no CAPS/SER III, a pessoa

inicia seu percurso pela atividade triagem, uma espécie de “porta de entrada” do

serviço, a partir da qual lhe é indicado um plano de atividades (nomeado pela equipe

de plano terapêutico) de acordo com sua demanda ou especificidade. Esta atividade é

realizada por vários profissionais da equipe, exceto o médico.

Em conversas informais com alguns profissionais de outras categorias, essa

ausência do profissional médico na triagem é interpretada como decorrente da

expressiva demanda para um número restrito de psiquiatras, o que termina

restringindo-os a atividade de consulta médica ou ainda, como expressão da

dificuldade dessa categoria profissional trabalhar numa perspectiva interdisciplinar

tendo em vista a posição histórica que o saber-poder médico54 tem ocupado nas

instituições de saúde: (...) tem muita gente pra ser atendida pelos psiquiatras e como

eles são poucos, não dá tempo participar de outra atividade (...) é difícil mudar uma

cultura, o poder médico na equipe ainda é uma questão muito forte ...55

Essa questão do saber-poder médico me reporta a um episódio que observei

em campo, na sala de espera.

Por volta de 8h uma pessoa da recepção foi chamando cada pessoa que 54 A questão do poder aparece nas análises foucaultianas atrelada a discussão do saber. Para Foucault, saber e poder implicam-se mutuamente. O saber se origina de relações de poder e estas se constituem de um campo de saber que compõe novas relações de poder. No caso específico do saber-poder médico sua constituição está diretamente relacionada ao surgimento do hospital como “lugar de cura”. Até meados do século XVIII, o hospital caracterizava-se basicamente como instituição de assistência, separação e exclusão. Nesse período quem decidia sobre o cotidiano hospitalar eram os religiosos. O médico apenas fazia visitas irregulares aos internos, estando submetido administrativamente ao pessoal religioso. Por volta do fim desse mesmo século, quando o hospital passou a ser concebido como instrumento de cura, assumindo assim uma dimensão terapêutica, o médico tornou-se a principal figura da organização hospitalar. Vale salientar ainda que nesse mesmo período, o hospital passou a se configurar como lugar de formação e transmissão de saber aos médicos. O interno, portanto, tornou-se objeto do saber e da prática médicos. No caso mais específico do saber-poder médico no hospital psiquiátrico do século XIX, conhecido como asilo, Foucault em Microfísica do poder (1999b, p. 122) refere que [o] grande médico do asilo (...) é ao mesmo tempo aquele que pode dizer a verdade da doença pelo saber que dela tem, e aquele que pode produzir a doença em sua verdade e submetê-la, na realidade, pelo poder que sua vontade exerce sobre o próprio doente. Todas as técnicas ou procedimentos efetuados no asilo do século XIX (...) tinha por função fazer do personagem do médico o ‘mestre da loucura’; aquele que a faz se manifestar em sua verdade quando ele se esconde, quando permanece soterrada e silenciosa, e aquele que a domina, a acalma e a absorve depois de a ter sabiamente desencadeado. 55 Registro em diário de campo em 05/10/04.

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aguardava consulta médica para receber a senha por ordem de chegada e assinar o que os que aguardam chamam de “freqüência”. O detalhe é que o médico por eles esperado só chegaria às 11h. Nesse período me chamou atenção uma mulher de cabelos curtos, estatura média, cuja expressão corporal, sobretudo a da face, sugeria profundo sofrimento ratificado por palavras dirigidas a todos nós que ali estávamos: “tomara que o doutor ... não se atrase porque eu não tô bem, tô com uma angústia danada, já faz um tempão que não venho e preciso falar com ele ...”. Depois de certos intervalos de tempo a mulher voltava a verbalizar o quanto se tornava insuportável aquela espera: “ô meu Deus, nem quero pensar no que vou fazer se o doutor ... demorar hoje. E se ele não vier?” ( passava as mãos pelos cabelos e rosto, o olhar era de dor, sofrimento) ... Quando finalmente o médico adentrou e passou pela recepção, a senhora então disse: “ doutor ..., graças a Deus (ergueu as mãos ao alto em gesto de agradecimento) que o senhor chegou”. O médico desejou-nos bom dia e se dirigiu a sala de atendimento. A mulher complementou: “Deus dê muitos anos de vida ao doutor ...”56

Essa situação leva a pensar: por que aquela mulher permaneceu por

aproximadamente três horas à espera do médico tentando suportar o sofrimento que

sentia e expressava e não procurou um outro profissional da equipe, no sentido de

tentar encontrar pelo menos um acolhimento a sua dor? Por que demonstrava depositar

apenas na figura do médico a possibilidade de resolver seu problema? O discurso

acima demonstra que o poder médico também é legitimado por quem é usuário do

serviço de saúde.

Ainda sobre a atividade triagem, convém destacar que os profissionais

utilizam um roteiro de entrevista previamente elaborado como instrumento para

registrar dados gerais de identificação do entrevistado e conhecer um pouco da sua

história de vida e familiar, bem como, da história de desenvolvimento da doença.

Também fazem parte do roteiro da entrevista os itens exame psíquico e exame físico.

Ao final, o profissional sugere uma hipótese diagnóstica e um plano terapêutico para o

entrevistado que pode ser constituído de consulta médica, acompanhamento em

grupos, psicoterapia individual etc., dependendo da demanda de cada indivíduo.

Além da triagem, no CAPS/SER III são desenvolvidas as atividades de

grupos de queixas difusas, oficinas terapêuticas, psicoterapia individual, consulta

56 Registro em diário de campo em 05/10/04.

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médica, visita domiciliar e dispensação de medicação.57

Tal como citei anteriormente, a COOPCAPS vem sendo apoiada pelo

CAPS/SER III, inclusive utiliza o espaço físico dessa instituição, o que talvez possa

explicar o fato de alguns profissionais e usuários considerá-la como uma das

atividades daquele CAPS.

Em conversas informais com alguns profissionais da equipe identifiquei a

inexistência de trabalhos do CAPS/SER III junto à comunidade circunvizinha, embora

seja uma recomendação oficial do Ministério da Saúde, como parte da assistência

prestada pelos CAPS, a realização de atividades comunitárias enfocando a integração

do doente mental na comunidade e sua inserção familiar e social.58

3.5 Quem são os interlocutores da pesquisa?

Márcia ,59 39 anos, nascida em Fortaleza, partiu para São Paulo em companhia de seus familiares por volta dos três anos de idade vivendo ali parte de sua infância. A família também viveu no Paraná por dois anos, retornando a Fortaleza quando Márcia tinha doze anos. Primeira dentre os três filhos de seus pais, da mesma forma que seus irmãos, não pode desfrutar muito da convivência com o pai (falecido há cinco anos), uma vez que os desentendimentos do casal e as “saídas” de seu pai de casa eram freqüentes, culminando em separação definitiva entre ambos. Quando o pai saía de casa, a mãe trabalhava muito para não deixar que os filhos passassem fome. Solteira, testemunha de Jeová, reside em companhia de sua mãe, irmão, cunhada e três sobrinhas. Concluiu o 2º grau, mas não teve nenhuma experiência de trabalho antes de vincular-se a Cooperativa. A manutenção econômica da casa é de responsabilidade de sua mãe (aposentada) e irmão. Relaciona-se bem com a mãe, mas tem conflitos com o irmão e a cunhada: a gente discute muito dentro de casa, a minha mãe, a minha cunhada, meu irmão. Minha mãe querendo apaziguar e eu fico logo com raiva porque eu acho que ela sempre tá do lado dos outros, acho que ela nunca tá do meu lado. Eu sou assim, eu acho que eu tenho, não sei, uma

57 É importante lembrar que, embora esta seja uma das atividades do CAPS/SER III, as pessoas recebem a medicação mediante apresentação de documento de identificação pessoal e receituário médico na farmácia localizada nas dependências do HUWC. Pude observar que nem sempre a medicação prescrita pelo médico é disponibilizada na farmácia. Em certa ocasião uma usuária me informou: (...) tô indo lá na farmácia.. Tomara que tenha meu remédio porque quando falta algum remédio é horrível, a gente que é pobre não sabe o que fazer porque precisa do remédio e não tem. Minha fia, a vida não é fácil, não. (Registro em diário de campo em 05/10/04) 58 Portaria nº 336/2002. 59 Optou por esse nome porque disse ter simpatia por ele, mas afirmou não ter nenhum motivo especial para essa escolha.

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mania de perseguição, que as pessoas não gostam de mim. Eu acho ... às vezes eu me sinto assim ... tem hora que eu não me sinto da família, assim ... por exemplo, eu quero fazer um bolo, eu não tenho aquela ação de ir atrás de comprar o açúcar, os materiais pra fazer o bolo. Eu não me sinto assim da família, às vezes eu me sinto intrusa. (...) às vezes eu gosto muito de me meter nas coisas ... um dia desses meu irmão disse, um tio meu tava com raiva lá que ele não dá de comer a um vagabundo que é um conhecido lá. Ai eu disse assim: mas ele tá certo, não é filho dele, não é nada dele e é vagabundo mesmo e o dinheiro é do meu tio. Aí ele [o irmão] disse assim: então, assim eu não tenho obrigação a dá comida a você, você também é vagabunda. Mas isso eu tô até hoje sem falar com ele. Eu me senti magoada por isso porque como que eu sou vagabunda? A diferença (...) eu sou mulher, eu não ando atrás de maconha. Essa outra pessoa que ele estava se referindo, ele é desse jeito (...) as pessoas que moram lá sustenta ele de tudo (...). Eu penso assim, tem que ser verdadeiro. Como é que eu vou ser verdadeiro se eu não digo, se eu não demonstro? Se eu digo uma coisa que a pessoa não gosta, ai eu, não, não vou dizer pra não magoar. Ai, eu não sou disso não. Tem que dizer, nem que magoe. Esse meu irmão não disse pra mim, não me magoou? Por que a agora eu não posso magoar ele também? Não falando de revidar, porque a bíblia diz pra gente não revidar, mas é por que às vezes eu me sinto assim, se as pessoas tudo podem, pra minha mãe, porque ela sempre me ensina muitas coisas também, me ensina, (...) mas às vezes eu entendo assim: as pessoas podem tudo nessa casa e eu não posso nada ... quer dizer, elas não podem ser magoada e eu posso? Eu penso assim ... Além da Cooperativa, Márcia participa de um grupo religioso e como lazer gosta de ficar em casa, ouvir músicas ou dormir. Afirma não ter experiência de internação em hospital psiquiátrico e que freqüenta o CAPS há dois anos por indicação de um médico do HUWC. Márcia diz-se satisfeita com o atendimento recebido no CAPS e com sua participação na Cooperativa, o que a faz sentir-se como “uma funcionária da instituição”: o atendimento do CAPS é bom, eu gosto do atendimento dos médicos, dos enfermeiros, dos psicólogos que ajuda a gente, as terapeutas. Eles são muito bons, sempre prestativo, sempre presta atenção na gente e todo mundo que vem pra cá gosta, diz que se sente em casa e realmente é. Quando eu entro ali é como se eu já fosse tipo uma funcionária daqui e não uma paciente (risos). Eu já entro ali no portão do CAPS como se eu já fosse uma funcionária e não uma paciente, eu me sinto assim aqui no CAPS desde que começou a cooperativa. (...) Eu gosto muito de fazer as coisas aqui no CAPS. Tem hora que, eu sou assim, um trabalho difícil como fazer uma cesta aí eu fico assim, mas aí (...) meu negócio é assim, se eu tiver uma ajuda por perto, uma orientação, eu vou fazendo bem direitinho (...) se eu não tiver uma orientação eu não consigo fazer, eu não sei o que é, se é doença ou o que é, já é de mim. Mas, eu tendo uma orientação, eu vou fazendo até aprender (...). É assim que eu consigo fazer.

Quim,60 31 anos, paraense, veio morar em Fortaleza ainda criança. Reside atualmente com sua avó e uma tia. A manutenção econômica da casa se dá com a aposentadoria da avó, a ajuda de seus filhos e de Quim, que trabalha vendendo dindins feitos por sua tia. Diz que o relacionamento familiar e com os vizinhos é bom. Solteiro, católico, estudou até a 8 série e trabalhou algum tempo com avicultura, experiência que representa sua profissionalização. Além da Cooperativa, não participa de nenhum outro

60 Escolheu esse nome por ser um apelido que lhe foi dado por familiares.

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grupo. Nas horas de lazer gosta de assistir t.v., jogar dama e dominó com seu tio e com as pessoas da família. Passou por três internações em hospitais psiquiátricos (HP) e duas em hospital-dia (HD), chegando ao CAPS por sugestão de uma psiquiatra de um dos hospitais em que esteve internado. Diz que o atendimento no CAPS é bom, mas chama atenção para a necessidade de melhorar o acesso a subsídios para deslocamento: Eu acho que o atendimento é bom, em termos da gente receber remédio. Agora se as pessoas levassem a sério até mesmo o vale-transporte, não deixasse faltar o vale-transporte eu acho que seria melhor ainda. [E o atendimento em si, dos profissionais?] Eu acho um atendimento bom. No que diz respeito a participação na Cooperativa observei que Quim prioriza ações de feitura dos objetos e não de comercialização dos mesmos.

Antônio,61 42 anos, nascido em Fortaleza, é o oitavo dentre os onze filhos de seus pais. Divorciado, protestante, mora com sua mãe, duas irmãs e um irmão. Concluiu o 2º grau e diz que além de participar da Cooperativa trabalha como vendedor na “banca” de bombons que sua mãe tem na calçada de casa. Acrescenta que recebe um dinheiro mensalmente, mas não sabe precisar se corresponde a Benefício de Prestação Continuada ou aposentadoria. A manutenção econômica da casa é por conta da mãe, com a pensão deixada pelo cônjuge já falecido e através da comercialização de dindins e de bombons na “banca” na calçada. O próprio Antônio diz também ajudar quando pode. Ao mencionar sobre seu relacionamento com a família, sugere insatisfação: É o seguinte: lá em casa, por exemplo, compra um bolo e bota na geladeira lá. Quando eu vou ver, já têm comido todim. Queijo, bolo, milho, aí eu fico chateado. Eu fico chateado porque, ó, o meu irmão (...) bota a comida dele, a minha irmã bota a dela, a outra bota a dela, minha mãe bota a dela e eu, quem bota a minha comida é a minha irmã. [Por que?] Porque, sei lá, tudim bota a comida e eu como pior, bota a comida que quer, porque eu vou dizer uma coisa, não tem coisa melhor do que a pessoa gostar duma coisa e quer botar aquela coisa daquele jeito e os outros botando, não, bota de terceira, de quarta, sei lá, aí eu fico chateado. É difícil eu falar alguma coisa, mas um dia eu falei lá em casa. (...) A minha irmã disse assim: olhe, quando a mamãe morrer, tu vai pagar tudo que tu fez. Eu disse assim: o que foi que eu fiz? Não, quando a mãe morrer tu vai pagar tudo que tu fez. (...) E minha mãe tem problema de pressão e ela é velhinha, anciã, tem 75 anos. Aí, muitas vezes eu não quero discordar dela. Além de participar da Cooperativa, Antônio é engajado num grupo de sua igreja. Sobre seu relacionamento com as pessoas nesse espaço religioso, também demonstra uma certa insatisfação por jamais ter assumido alguma responsabilidade de destaque na igreja que freqüenta atualmente: É o seguinte, na minha igreja lá, é o seguinte, eu tenho bem vinte e um anos de crente e, acredita que eu nesse período eu nunca fui nada na igreja, nunca fui auxiliar. Na Bela Vista eu já fui noutro ministério [refere-se aqui a outra igreja protestante que freqüentava no bairro Bela Vista]. (...) Na Bela Vista, meu sogro, pai da minha esposa, ele era pastor de lá. Aí eu falei pra ele e botou pra ser auxiliar. E eu fui auxiliar. Aí, saí de lá e fiquei na minha igreja, aí pronto, eu tô na minha igreja, nunca fui nada. [Por que nunca foi nada?] Porque eles diz que eu sou uma pessoa que sou inconstante. Eu tô numa igreja e vou pra outra, fico assim. Ele [o pastor da igreja] diz a mim que eu sou uma pessoa sem contenta, porque um irmão da minha igreja, na hora lá ele pegava e fazia assim comigo [nesse

61 Preferiu optar por seu primeiro nome.

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momento, Antônio bate uma mão na outra com força produzindo um alto som para demonstrar] e dava a paz do Senhor, batia na minha mão com força, pá! [Imita o som das mãos batendo]. Aí, eu dizia, não rapaz, não faz isso não. Dá a paz do Senhor direitinho, rapaz. Assim, não. Aí, ele: não, tá certo. Aí, ele [novamente demonstra o bater das mãos e imita o som]. Aí, uma vez lá na dominical de manhã, termina a dominical lá prás 10:30, na frente da igreja, aí eu taquei a mão na cara dele [Por que ele fez isso?] Foi. Aí, ele disse no culto que não tava agüentando falar porque tinha levado uma tapa de um irmão, não sei o que (...). Então, é isso. Nos momentos de lazer, Antônio diz que gosta de “pregar a palavra de Deus”. Foram várias as suas experiências de internação em hospitais psiquiátricos, tantas que não consegue quantificar. O ingresso no CAPS há aproximadamente cinco anos se deu por indicação de uma psiquiatra de um desses hospitais pelos quais passou. Demonstra extrema satisfação ao falar sobre o atendimento prestado no CAPS: aqui é um lugar que eu me sinto bem. Quando é um dia de segunda ou quarta pra mim parece que eu vou é pro céu.

Lindalva ,62 58 anos, é a caçula dentre seus quatro irmãos. Natural de Fortaleza, protestante, casada e mãe de quatro filhos. Sua família é do interior do estado, município de Iguatu. Retomou os estudos recentemente, cursa a 2º série do primeiro grau. Como profissão aponta sua atividade na Cooperativa. Reside em companhia do cônjuge e de um de seus filhos. Seu companheiro, aposentado, mantém financeiramente a casa e Lindalva realiza as atividades domésticas. Sobre o relacionamento familiar e com os vizinhos reservou-se a dizer apenas que “é legal”, não acrescentando mais comentários. Além da Cooperativa, participa de um grupo religioso e resume seu relacionamento com esse grupo da seguinte forma: ouvir a palavra de Deus e orar, ir pras reunião. È muito bom. O trabalho parece estar sempre presente no cotidiano de Lindalva, inclusive, preenchendo seus horários de lazer: O que eu gosto de fazer? Tá trabalhano mesmo, caçando uma coisa pra fazer pra não ficar, a perturbação na cabeça melhorar, porque nós tamo precisando é disso. Tem dia que a gente tá com a cabeça grossa, aí começa a fazer uma coisa e se esquece. [Que coisas seriam essas?] É fazer esse negócio mesmo que eu tô fazendo, é fazer esses brincos [no momento da entrevista, Lindalva confeccionava um colar de miçangas], colar, essas coisas, tá enterteno mais a cabeça pra num tá pertubando a gente parada sem fazer nada. Lindalva diz que nunca esteve internada em hospital psiquiátrico. Quando necessitava de atendimento de urgência era atendida em hospitais gerais e não psiquiátricos: Porque eu sentia depressão, aí tinha dia que eu saía de casa e não sabia onde era que tava. Quando me acordava tava nos hospital já. A crise de nervo era grande. [Para quais hospitais a senhora ia?] Iá pra o Conjunto Ceará, o frotinha do Conjunto Ceará, me levavam pro frotão. Eu não sabia nem onde era que tava, quando acordava tava lá. Em acompanhamento no CAPS praticamente desde sua inauguração, diz-se contente: minha nora trouxe eu pra cá e graças a Deus aqui tô me tratando e tô me sentindo bem. (...) Tô achando bom. Primeiro eu fui pro grupo (...) renascer [grupo de mulheres também denominado grupo de queixas difusas] e do renascer passei pra cá [refere-se a cooperativa] e tô me dando bem.

62 Escolheu esse nome como homenagem a sua nora que costuma acompanhá-la quando vai se consultar ou resolver alguma coisa importante. Diz gostar muito dessa nora.

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Francisca,63 30 anos, católica, natural de Fortaleza, considera-se solteira, embora mencione ter um companheiro. Estudou até a 4º série do primeiro grau e atualmente trabalha com vendas de cosméticos, além de desempenhar atividades na Cooperativa. É a mais nova de uma família de nove irmãos. Reside com o companheiro, com a mãe e uma sobrinha do mesmo. É a sogra de Francisca a responsável pela manutenção financeira da casa. O dinheiro de Francisca proveniente das vendas de cosméticos não é destinado às despesas domésticas. Destaca que às vezes seu companheiro lhe pede algum dinheiro “pra beber uma cachacinha”. Sobre o relacionamento familiar, Francisca diz que é “mais ou menos”, pois tem conflitos com a sogra que não compreende sua mudanças de humor: quando eu tô “emburricada” a véia diz que é porque eu se faço. E não é porque eu se faço. Que às vezes quando a pessoa tá desse jeito a pessoa não fica emburricada, né? [Como assim?] Emburricada, sem falar com ninguém. Aí, a véia diz que eu se faço. Sobre o relacionamento com os vizinhos, Francisca diz não conhecê-los, não ter amizade. Não participa de nenhum outro grupo além da Cooperativa e nos momentos de lazer diz que gosta de passear, ir à missa e à praia. Francisca afirma ter sido internada em hospital psiquiátrico uma vez, mas não lembra o período. Passou a freqüentar o CAPS por sugestão de uma neurologista do HUWC e diz sentir-se bem com o atendimento que lhe é oferecido, destacando o fato de se tratar de um serviço aberto que oferece a sensação de liberdade, diferente do hospital psiquiátrico: Eu acho bom. (...) Me sinto melhor. [Já que você já teve experiência em hospital psiquiátrico, essa experiência aqui é diferente?] É sim. [Em que é diferente?] Porque aqui não é preso, aqui é livre e os doido aqui não arenga [risos].

Camila64 é uma jovem de 21 anos, solteira, católica, nascida em Fortaleza.. Estudante de um curso supletivo (5a e 6a séries), atualmente, além de suas atividades escolares e domésticas, trabalha na Cooperativa. Reside com seus pais e irmão. É a filha mais velha do casal. É com a renda proveniente do trabalho do pai de Camila que a família se mantém financeiramente. Define seu relacionamento com os familiares sinteticamente: bom (...), sem brigar. É um pouco insatisfeita com o relacionamento cotidiano com seus vizinhos que, segundo ela, reclamam de tudo: Porque tem vezes que é muito chato, tudo reclamam. (...) Se botar som alto eles vai lá e pede pra baixar, aí fica falando das pessoas, da gente por trás. Camila informou que não participa de nenhum outro grupo além da Cooperativa e que nos momentos de lazer gosta de passear na casa das amigas. Não tem experiência de internação em hospital psiquiátrico e está em acompanhamento no CAPS há alguns meses. Não precisou quanto tempo, mas acha que faz menos de 1 ano. Ao ser indagada sobre por que procurou o CAPS sua face revelou “um ar de tristeza” e disse que não queria falar a respeito. Comentou apenas o que acha do atendimento: É bom. [Bom como?] O pessoal tudo unido. [Como é que você se sente aqui?] Bem. Alguns dias bom outros dias ruim. (...) [Como é esse bom e esse ruim?] Porque tem um menino aí que eu não gosto dele. [Aqui na Cooperativa?] É. Ele é muito chegadinho demais, enxeridinho. Eu já falei isso pra médica aí e ela ainda não resolveu nada pelo que eu vi. [Mas, do CAPS em geral, os atendimentos?] São muito bons. [E sobre a Cooperativa?] Eu acho bom a Cooperativa. Fazer bonecas, faço bisquit ...

63 Escolheu esse nome, mas disse que não há motivo especial para tal escolha. 64 Escolheu o nome da sua melhor amiga.

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Nira65 nasceu em Fortaleza, é solteira e católica. De uma família de 11 irmãos, é provavelmente a quinta (não precisou), não quis revelar sua idade. Tem o 1º grau incompleto e trabalhou algum tempo em um mercantil como “repositora de produtos”. Sua situação ocupacional atual resume-se ao trabalho na Cooperativa e as atividades de lavar e passar as roupas de uma irmã que a remunera por isto. Como seus pais e uma de suas irmãs faleceram, atualmente reside com sete irmãos e uma sobrinha. Duas de suas irmãs trabalham e sustentam a casa economicamente. O relacionamento familiar é repleto de desentendimentos: São briguenta [risos]. Ninguém se entende com a outra, vou ser sincera. Ninguém gosta da outra, é a maior confusão desde a minha mãe. Minha mãe quando era viva e tá pior, pior, pior, uma coisa horrível. Você não pode calçar nada sem ser sua, ninguém calça nada. Até minha chave é de cadeado porque quando eu chegava elas tinham arrombado a chave e eu dizia: não vai mais mexer não. Pode deixar meu guarda-roupa. Eu sabia o que tinha e o que não tinha, quando eu chegava tava aberto, aí quebrou tudo. Aí eu peguei e botei um cadeado e ando com a chave nos meus cós. Agora tá no cadeado. Elas [refere-se as irmãs] mexe, briga, são muito briguenta, passa o dia todim brigando. Eu não gosto, eu não gosto e acabou-se. (...) eu faço o almoço por causa do meu irmão que deu AVC, então, quem faz o almoço sou eu, ela não sabe fazer nada, nada, nada, nada, tudo errado. Esse meu irmão que deu AVC a culpada foi a mais velha que fez comida salgada. Elas não querem fazer comida nem pra si e nem pra ele, o que você acha? (...) Eu faço só a comida dele e a comida delas, lavo o banheiro e ainda lavo a roupa da minha irmã e engomo. O relacionamento de Nira com os vizinhos é restrito: os vizim? Não, eu não tenho convivência com vizim, eles gosta muito de conversa, muito chafurdo, fofoca de verdade. Aí eu não tenho convivência, falo só oi, tudo bom. Eu não falo com todo mundo naquela rua. Aquela rua se você for conversar com uma pessoa, aí já acha que você tá falando daquela pessoa, fofocando. Nira costuma freqüentar uma academia de ginástica, demonstra se preocupar muito com sua aparência física. Não participa de nenhum outro grupo além da Cooperativa e como lazer diz que gosta principalmente de ir a festas: eu gosto muito é nos meus domingo ir prum forrozim, não vou mentir. É forró, uma praia quando eu posso. (...) Gosto de festa, adoro uma festa. Afirma jamais ter passado por internação em hospital psiquiátrico e que se encontra em acompanhamento no CAPS desde 2003 para onde foi encaminhada por uma médica que a atendeu em um posto de saúde. Estar no CAPS para Nira não representa estar em um ambiente de tratamento, mas de trabalho e de alívio para seus problemas domésticos: [Desde esse período que você está aqui?] Sim. Mas, não tem nada com negócio de remédio. [Você faz parte da Cooperativa e tem psicólogo ou algum outro profissional que acompanha?] Nada disso aí. Nada. [Só vem pra Cooperativa.] Só pra Cooperativa pra dá uma ajuda porque eu preciso sair [de casa], o problema é lá de casa. Aqui eu não tô sentindo nada. Lá em casa eu sinto dor de barriga, mal-estar, aquela agonia, é dor de cabeça. Ao falar de sua participação na Cooperativa demonstra satisfação e orgulho pela qualidade dos tapetes que produz, porém sente vergonha de sua baixa remuneração (valor mensal comumente redistribuído entre os cooperados após a venda dos produtos), muitas vezes mentindo sobre o valor para evitar constrangimento: Tem uma mulher lá na academia que viu o meu tapete e achou muito bonito esse tapete e acha

65 Este é um apelido pelo qual é chamada comumente por seus familiares.

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muito bem feito esse tapete.(...) Quando eu tô lá ela disse que é não sei o que dá Cooperativa das Cooperativas, que tá registrada, que ganha um salário. Aí eu tenho que mentir (...). Quanto é que tu ganha? Aí eu não sei nem aonde é que eu fico. Não, eu faço tapete, a gente assina lá, aí ela junta aquele dinheiro, a gente assina o ponto, a gente fica ali, num pouquim, pouquim, mas dá. E quanto é o pouquim? Eu disse assim: mulher, um salário mínimo não é duzentos e tantos reais? Aí é assim, quando chega naquele mês, se a gente faltar a gente tá em falta aí ganha só aquela metade daquilo que pode ganhar. (...) Aqui eu digo que ganho um salário porque faz vergonha dizer que eu ganho dez reais por mês ...

Fátima,66 59 anos, solteira, evangélica, natural de Fortaleza. Estudou até o 2º grau e atualmente trabalha apenas na Cooperativa, onde se dedica a atividade de costura, principalmente, feitura de bonecas de tecido. Reside com uma sobrinha e o filho dela. Fátima considera essa sobrinha uma irmã, pois “foram criadas juntas”. Diz que a casa é dividida em duas, sendo uma parte sua e a outra onde reside a sobrinha com o filho. As casas têm em comum apenas a área da frente. Sobre os recursos financeiros para suprir as necessidades básicas, Fátima diz que é seu filho recém-casado quem a sustenta: Ele casou, mas mesmo assim ainda me ajuda porque eu não tenho renda. Sobre o relacionamento com os vizinhos, revela que mora no mesmo local há mais de trinta anos e que mantém um comportamento reservado: Minha vizinhança é de bom dia, só de cumprimentar. Eu não sou assim de ficar na calçada conversando, deixando o que fazer dentro de casa pra ir pra calçada conversar. Mas, não sou intrigada com ninguém, na hora que a pessoa precisar de mim eu chego, na hora que eu precisar da pessoa ela me serve, entendeu? (...) Eu dou preferência a ficar dentro de casa fazendo meus trabalhos, minhas ocupações, do que ficar na calçada conversando. Não é questão de querer ser melhor de que o fulano. Não. Passo, falo, se tiver que perguntar alguma coisa e saber alguma coisa. A vizinha há muitos ano que mora ali, tá com mais de trinta ano, nós se entrosa. E que eu saiba ninguém nunca disse assim: a Fátima é antipática. Ninguém tem o que dizer de mim, eu acredito que não, pelo meno até agora. Além da Cooperativa Fátima participava de um grupo de dança, mas as atividades por enquanto estão paralisadas. Entretanto, salienta que pretende prosseguir tão logo o grupo retorne a ativa. Também pratica hidroginástica duas vezes por semana e iniciou recentemente um curso de informática. Nos momentos de lazer gosta de visitar seus familiares. Nunca esteve internada em hospital psiquiátrico. Freqüenta o CAPS há três anos. Antes era acompanhada por profissionais do HUWC e de lá foi encaminhada para o CAPS. Ao falar do atendimento recebido demonstra satisfação: eu acho ótimo. Acho bom. Eu acho ótimo porque, agora faz como se diz assim, aqui foi a tábua de salvação. O tratamento assim em termos de saúde aqui foi a tábua de salvação. Eu acho, acho bom. Não tenho o que dizer não. Aprendi muita coisa com a doutora terapeuta, doutora ... [revela o nome da profissional] que é enfermeira-terapeuta, ela é ótima, ela diz palavras assim mesmo de incentivo e se a gente por em prática, a gente levanta.

Graça,67 46 anos, casada, católica, natural de Quixadá-Ce, estudou até a 8º série do 1º grau. Sexta filha de uma família de sete irmãos, saiu de Quixadá com seus familiares para residir em Fortaleza no ano de 1977. Trabalha

66 Preferiu ser identificada pelo próprio nome. 67 Preferiu ser identificada pelo próprio nome.

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como comerciante em estabelecimento próprio, em casa, além de revender cosméticos e atuar na Cooperativa. Reside com o marido e duas filhas. Afirma que é seu companheiro, também comerciante, quem sustenta a casa economicamente. Cada um é responsável por um estabelecimento comercial. Ao ser indagada sobre sua participação em assumir despesas domésticas, Graça diz que os dois participam, mas o dinheiro dela se destina mais as compras para as filhas. Com alimentação e outros gastos fixos da família é seu marido quem se responsabiliza. Sobre o relacionamento familiar, revela sofrer apenas com conflitos com sua filha adolescente: Eu tenho um sofrimento porque minha filha de 14 anos está numa fase de idade muito ruim, ela tá me fazendo sofrer muito, tem dias que eu fico muito nervosa porque ela tá muito rebelde comigo, respondona, tanto comigo como com o pai, querendo viver na rua direto, sem querer fazer as coisas em casa, só faz na hora que quer, responde muito. O problema só é esse. Com os vizinhos as relações são boas, reside na mesma casa há treze anos. Além de participar da Cooperativa, Graça freqüenta regularmente um grupo religioso e diz que seu relacionamento com as pessoas desse grupo é muito bom: eu me dou muito bem mesmo com eles, gosto de participar porque eu me dou muito bem. A gente que tem esses problemas assim quanto mais amizade a gente tem, né? Mais entrosamento com as pessoas. É um pessoal muito bondoso, eu me dou muito bem com eles. O lazer se resume a participação das atividades da comunidade religiosa e a missa aos domingos. Afirma nunca ter sido internada em hospital psiquiátrico. Seus tratamentos antes de ingressar no CAPS foram apenas em nível ambulatorial com neurologista por quem foi orientada a procurar o CAPS há três anos. Manifesta contentamento com o acompanhamento oferecido pela equipe técnica do CAPS, mas revela insatisfação com a postura adotada com os usuários por um funcionário: Dei início no mês de fevereiro que agora faz três anos que eu estou aqui, me dou muito bem mesmo. (...) É o seguinte: o atendimento que venho recebendo aqui eu me dou muito bem, (...) sobre aqui, no geral, dos outros eu não tenho o que dizer, mas o problema aqui que a gente sofre um pouco é um funcionário que tem aqui que é o ... [revela o nome], ele não dá atenção a gente, a gente vai falar com ele e ele trata a gente com ignorâncias, muito ruim. Então, se a gente é doente dos nervos, vem pra um posto fazer um tratamento e chega no posto e fica sendo mal tratado pelos funcionários, então, não tem como a gente ter melhora. Já vem pra cá a procura de socorro pra melhorar, tá em casa nervosa e tudo, vou pra o CAPS que lá no CAPS é melhor, eu tenho mais sossego lá e, quando chega aqui vai e ainda fica agüentando ignorância também, então, não é? Mas, sobre esses assuntos, é só isso aqui. Expressa gostar de participar da Cooperativa, entretanto, tece crítica a forma como muitas vezes é conduzido o ingresso de pessoas nesse grupo: Pra mim é o seguinte: eu gosto muito da Cooperativa, agora o problema daqui é porque não tem assim um modo melhor, ali botam qualquer pessoa, pessoas que nem tem atividade e ficam fazendo as coisas sem experiência [Como assim?] Tanto faz ter experiência como não. [Como assim?] Assim, por exemplo, qualquer pessoa que entra, depois que formamos a Cooperativa, quantos novatos não já entraram? Uma pessoa entra [no CAPS], dá início a terapia [refere-se a terapia ocupacional], no mesmo dia bem dizer ela já tá ali dentro da Cooperativa. O erro que eu acho é esse, ali já bota, tá aqui, vai fazer isso. Aí a pessoa não sabe nem, não fez a terapia ainda pra pegar a prática, aí já tá ali, já vai ficar ali aprendendo, só aprendendo, então, eu não acho isso bom, eu não vou mentir não.

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Pedro,68 34 anos, casado, católico, natural de Itapiúna-Ce. Terceiro filho de uma família de seis irmãos, mudou-se para Fortaleza quando ainda era criança. Estudou até a 2ºsérie do 2ºgrau. Aposentado, trabalha atualmente na Cooperativa. Reside apenas com sua companheira. O sustento econômico da família se dá através de sua aposentadoria e da renda da companheira que trabalha como costureira: Ela é costureira e eu sou aposentado. Nós dois juntamos o nosso dinheiro e formamos uma força. A respeito de seu relacionamento com a companheira comenta apenas que ... é bem estável. Com os demais familiares (pai, madrasta, irmãs), entretanto, o relacionamento é difícil, pois lhe tratam com descaso, indiferença. Sobre o motivo desses problemas, acrescenta: Porque são problemas que causa assim, como se eu fosse uma pessoa inválida que não prestasse pra nada. (...) Eles acham isso. Como se eu fosse uma pessoa que não seja, [pausa] sabe? [que não seja o que?], eles tem um lado deles de interesse assim, porque eu não tenho nada pra oferecer a eles, nada pra oferecer assim em termos de situação financeira. Pedro não participa de nenhum outro grupo além da Cooperativa e nos momentos de lazer gosta de escrever e assistir t.v.: Eu escrevo o dia-a-dia, as atividades que eu faço em casa. [Você costuma escrever sobre a sua própria vida?] Minha própria vida. [você me falou em alguma outra ocasião que você, inclusive, está escrevendo um livro. E esse livro é exatamente um resumo dessas coisas que você escreve? Seria por aí?] De tudo que passou na minha vida. Mas, eu não falava só de coisas boas, eu falava muito era de coisas ruins. [Uma forma de desabafo, talvez?] É. [Escreve alguma outra coisa além de sua vida? Por exemplo, algum poema?] Alguma coisa de educação religiosa (...).Gosto também de assistir televisão. Internou-se três vezes em hospitais psiquiátricos, a última internação ocorreu há aproximadamente cinco anos. Está em acompanhamento no CAPS há um pouco mais de quatro anos. Procurou este serviço por sugestão de uma pessoa vinculada a Associação de moradores de seu bairro e exprime muita satisfação em relação ao atendimento que lhe é prestado: Excelente! Nota 10! É assim: terapeutas ocupacionais, psicólogas, assistentes sociais, todas elas e, inclusive os acadêmicos também me trataram bem, me tratam bem. Pra mim foi ótimo.

Berenice,69 36 anos, solteira, católica, natural de Mulungu-Ce. Estudou até a 8º série do 1º grau. Diz que sua profissão é costureira e que atualmente trabalha apenas na Cooperativa. É a quinta dentre os onze filhos de seus pais. A família mudou-se de Mulungu para Fortaleza há 10 anos. Berenice reside com os pais e seu pai é o responsável pelas despesas domésticas. Entretanto, o dinheiro referente ao Benefício de Prestação Continuada recebido por ela também tem contribuído para prover as necessidades básicas da família. Caracteriza seu relacionamento com os familiares de maneira positiva: Bom. (...) Convive assim, normal. De chegar, ficar normal mesmo, quer dizer, convive normal, um relacionamento normal de conversas, às vez quando dá pra conversar, conversa, o que dá vontade de perguntar, pergunta. Além da Cooperativa atualmente Berenice não participa de nenhum outro grupo, mas refere interesse em participar de um grupo religioso. A respeito do que gosta de fazer nas horas de lazer menciona: praia, adoro praia! E lazer assim de uma piscina e de uma casa no sítio, assim. Dou o maior valor. Disse nunca ter sido internada em

68 Preferiu ser identificado pelo próprio nome. 69 Preferiu ser identificada pelo próprio nome. Acrescentou que antes sentia vergonha do nome porque achava feio e agora está se sente bem com relação a isso. 70 Preferiu ser identificada pelo próprio nome.

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hospital psiquiátrico, embora tenha passado por atendimentos de emergência em instituições dessa natureza antes de ser encaminhada ao CAPS. Tomou conhecimento da existência deste serviço por intermédio de um profissional de um dos serviços de emergência em que foi atendida. Freqüenta o CAPS há quase três anos e avalia positivamente o atendimento que recebe: Acho bom. [Bom como?] Bom assim, porque o medicamento que passa tem na farmácia. Ou falta, às vezes a gente vai pegar, mas às vezes não tem remédio. Teve um tempo que até não tava faltando, mas agora tem alguns que passa muito tempo faltando. [E o atendimento em si, dos profissionais? O que você acha?] Acho bom, acho bom mesmo. [Explica como é esse bom] O bom é que eles são atencioso, conversa normal, sem discussão.

Rosalba,70 50 anos, divorciada, católica, natural de Limoeiro do Norte/Ce, é a caçula de uma família de oito irmãos. Vive em Fortaleza desde seus treze anos de idade, quando chegou a esta cidade para residir com uma tia. Completou o ensino médio e trabalhou muitos anos como vendedora, empacotadora e “repositora de produtos” em algumas lojas da cidade. Rosalba fala dos locais onde trabalhou com muito orgulho: ... deixa eu dizer as empresas tudim que eu já trabalhei, posso? O primeiro emprego foi na Samasa, trabalhei dois anos, isso foi em 75, (...) como vendedora. Da Samasa passei para o Armazém do Sul, trabalhei sete anos e oito meses. Do Armazém do Sul passei para a vencedora que hoje é Big Jeans e da vencedora eu fui pro Armazém Atlântico, trabalhei sete anos e dez meses. Do Armazém Atlântico fui pro Colégio Cristhus, trabalhei quatro anos lá, (...) era auxiliar de serviços gerais. Trabalhei de 97 até 2001 que foi meu último emprego. (...) Eu tenho vinte e seis anos de carteira assinada, vinte e seis anos de INSS pago. Atualmente realiza suas atividades na Cooperativa, dedicando-se prioritariamente as vendas e menos a confecção de produtos e trabalha como autônoma vendendo cosméticos. Rosalba foi casada durante nove anos e este relacionamento terminou quando o marido a abandonou. Desempregada, sem condições de assumir as despesas domésticas, passou a viver em companhia de sua irmã gêmea, porém a convivência resultou em desentendimentos, fazendo com que Rosalba passasse a morar com sua mãe que atualmente tem 81 anos e continua sendo sua companhia. As despesas domésticas básicas são custeadas pela mãe que é aposentada e por um de seus irmãos que embora não resida na mesma casa costuma ajudá-las financeiramente. O dinheiro proveniente do trabalho de Rosalba se destina prioritariamente às suas necessidades pessoais. Sobre o relacionamento com a mãe destaca: às vezes eu discuto com ela, não vou mentir não. Às vezes eu discuto, aborreço ela. Meu irmão disse que eu tivesse muito cuidado porque ela tem problema de coração, evitar aborrecimento. Às vezes eu procuro evitar, mas às vezes a gente num momento assim de raiva, às vezes acontece de eu discutir com ela. [Mas, de um modo geral, como você consideraria esse relacionamento?] Ela, ave Maria, ela me trata muito bem, ela é uma santa como diz o ditado, é uma santa mesmo. Guarda as coisas de comida melhorzinha guarda pra mim, mãe é mãe. [Vocês tem um bom entendimento, então, no geral?] Tem, no geral é. Desentendimento é muito comum, quem é que não discute hoje em dia, mãe e filho, por mais boa que a pessoa seja, né? Eu vou fazer as compra pra ela porque ela não pode ir ... Sobre o relacionamento com os irmãos, acrescenta: às vezes eu discuto com uma irmã minha, às vezes ela me marca muito, não sei se é

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porque eu já tive esses problema de depressão, às vezes é porque acham que eu sou ignorante, não sabe? Domingo mesmo eu tive um atrito com meu cunhado, esposo da minha irmã, eu tive uma crise de choro. Em relação aos vizinhos diz que não ter do que reclamar: Não tenho nada a dizer, não. Logo a vizinha do lado de lá é evangélica, se fosse pelo gosto dela eu ia ser evangélica também, só que eu não mudo de religião de jeito nenhum. Eu nasci católica e vou morrer católica, até o resto da minha vida. Além da Cooperativa, Rosalba participa de um grupo religioso denominado “Legião de Maria” que tem como uma das atividades visitar doentes: Legião de Maria, eu visito os doentes nas casas, dou comunhão aos doentes todas quartas-feiras. Refere-se ao seu relacionamento com esse grupo religioso com muita satisfação: são bons demais. Eu não vou mentir pra você não. Eu me sinto muito melhor, minha irmã cansa de dizer: você trata muito mal o pessoal da sua família, a minha irmã mesma me disse, às vezes ela é ignorante comigo. Eu me sinto muito melhor com as pessoas de fora do que com os de dentro de casa, sabia? A minha irmã, agora eu vou dizer pra você, ela pediu emprestado 900 reais do meu fundo de garantia do Armazém Atlântico [refere-se a uma das lojas nas quais trabalhou] e nunca me pagou até hoje. Andou me pagando só os juros e depois não me pagou mais. [O fato de você já ter sofrido com depressão e de fazer um acompanhamento em saúde mental isso traz pra você alguma complicação no seu relacionamento com a família? Alguém te trata diferente por conta disso ou não?] Eu noto, eu sinto isso, porque a minha irmã foi dizer pro meu cunhado que eu não gostei, sabe? Que eu não era uma pessoa normal. A minha irmã. Eu não gostei do que ela disse porque eu acho que não era motivo pra ela dizer isso. Era? Me diga. Dizer que eu não era uma pessoa normal só porque eu falei um pouco ignorante com a filha dele, só porque eu não tratei assim [nesse momento gesticula com as mãos dando sinal de tratamento cuidadoso/carinhoso] (...). Mas, isso era motivo, agora eu pergunto, dela dizer pro meu cunhado que eu não era uma pessoa normal? Eu ouvi lá de fora, eu tava lá na cozinha e lá de fora eu ouvi quando ela disse isso. Isso me chocou, ó, me chocou mesmo. (...) Só porque eu tive uma depressão, achar que eu não sou uma pessoa normal. Se eu não fosse uma pessoa normal eu não vendia produtos cosméticos que é uma coisa de responsabilidade. É ou não é? Eu disse mesmo pra ela. Agora porque ela é professora, fez pedagogia, fez mestrado, tudo isso. Porque ela é formada e eu não sou? Qual é a diferença, hein? Eu tenho vários cursos, deixa eu dizer logo os cursos: desenvolvimento pessoal e profissional que eu fiz, já ouviu falar na eleição no ano passado do PDT, no comitê do PDT que eu fiz ano passado em setembro. Eu tenho computação, relações humanas, motivação para o trabalho e cooperativismo que é esse daqui. O de motivação para o trabalho eu fiz no SENAC mesmo, três dias, mas valeu a pena. Agora o daqui não, fiz cooperativismo, vai fazer dois anos agora em junho que eu fiz o curso de cooperativa aqui, você sabe que sempre tá recapitulando, né? Eu tenho cinco cursos. Você acha que se eu não fosse uma pessoa normal eu ia enfrentar pra vender produtos cosméticos que luta com todo tipo de cliente? Isso me chocou, o que ela disse comigo eu fiquei muito chocada porque isso não era coisa que ela dissesse pro meu cunhado não, não tem nada haver. Não gostei não. Sou uma pessoa comunicativa, trato bem meus clientes, quando vejo que a pessoa não paga bem direito eu não vendo mais praquela pessoa, eu passo pra outro tipo de cliente que saiba realmente pagar em dias. É responsabilidade Yanne, mexer com dinheiro dos outros, produtos. Se a pessoa não pagar quem paga sou eu. É toda na minha responsabilidade. Revendedora você sabe como é, revendedora, né? A

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respeito do que gosta de fazer como lazer informou: mexeu nos meus calo agora, viu? (riso) Dançar forró. Dou o maior valor, vou sempre pros clube. Saio num dia e chego no outro. Finais de semana. Não todos finais de semana, é claro, porque senão eu vou ficar muito conhecida, mas eu conheci um coroão foi na festa. Ele tem quase 60 anos, tem 58, vai fazer agora em setembro. (...) É tipo uma terapia, eu me sinto bem corporalmente e espiritualmente. [Dança bastante ...] Bastante, passo a noite dançando. A festa começa mais ou menos 15 pras 10 e termina 5h da manhã. Só venho quando termina. Chego em casa 7h da manhã. [Então, seu lazer é esse] O lazer que eu gosto mais é festa. Eu não posso ir pra praia porque eu tenho problema de pele, um problema seríssimo de pele. Ao ser indagada se já foi internada em hospital psiquiátrico, disse: graças a Deus não. Não porque a gente tem que dominar a doença e não a doença dominar a gente. Rosalba está em acompanhamento no CAPS desde agosto de 2002 quando estava sofrendo de depressão e procurou este serviço por indicação de uma amiga: Porque foi no tempo que eu só vivia chorando, foi até a minha colega que veio comigo, a questão da depressão, né? Só vivia chorando no fundo duma rede. [Você ficou sabendo do CAPS como?] Através de uma amiga minha que me disse. Tanto que nesse dia eu nem vim só, eu vim com uma colega minha que era muito minha amiga há mais de 20 anos. Ela veio comigo até aqui, eu chorava que nem uma criança. Eu não tive só essa depressão não, eu tive antes, quando eu trabalhava na Samasa em 75, já tive esse problema já. Avalia o atendimento dos profissionais do CAPS de maneira positiva, mas critica o trabalho de alguns funcionários que trabalham na recepção: Eu acho a médica é muito boa, agora as pessoas que trabalham na recepção (...). Tem umas duas [refere-se a duas funcionárias do CAPS] alí na recepção que parece que tem é preguiça, atende a gente mal às vezes, não sabe? Assim, não é questão de atender mal, a gente pergunta uma coisa às vezes não sabe o que é. (...) A pessoa tem que ter atividade, dar atenção direitim. [Além da médica você é atendida por quem mais aqui no CAPS?] Só pelo pessoal da recepção pra marcar a volta. (...) Eu fui pra terapia ocupacional, terapeuta. Agora pense numa pessoa boa, maravilhosa, eu já fui. Atualmente Rosalba diz que é acompanhada pela psiquiatra e realiza atividades da Cooperativa.

Sílvia,71 34 anos, casada, católica, nascida em Fortaleza/Ce, é a caçula de uma família de nove irmãos. Completou o 2º grau, trabalhou algum tempo como professora, mas atualmente trabalha apenas na Cooperativa. Reside em companhia de seus dois filhos, pais e três irmãs. Seu companheiro dorme na casa de um irmão, pois segundo Silvia, a casa em que moram já não tem espaço para todos. A família está vivendo em uma casa alugada há quase 01 ano, pois suas casas estão em reforma. A casa de Silvia foi construída no mesmo terreno da casa de seus pais (no quintal) e ambas estão sendo reformadas há algum tempo. Seu companheiro, atualmente desempregado, é o responsável pela reforma, sendo remunerado pelo sogro: meu marido não está morando comigo, mas não é porque a gente teja separado, é porque é assim: a minha casa mesmo tá em reforma, aí eu moro nos fundos da casa e tá em reforma toda. Aí a gente alugou uma casa e é pequena pra caber todo mundo. Aí o meu marido tá com o irmão dele. Todo dia ele vai lá pra casa, tudim, só não faz dormir porque a casa não cabe. (...) E é o meu marido que tá ajudando a reformar, meu marido é que tá reformando a casa. Atualmente uma irmã de Silvia, que trabalha como

71 Preferiu revelar seu nome.

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professora, e o pai, aposentado, são os responsáveis pela manutenção econômica da família. Silvia caracteriza o relacionamento familiar de maneira positiva: é muito bom, nós somos muito unidos, uma ajuda a outra, assim, é muito bom. (...) a gente vive numa boa. Diz que o relacionamento com os vizinhos também é “muito bom”, são pessoas conhecidas há muito tempo, uma vez que Silvia reside com sua família na mesma rua desde seus nove anos de idade: meus vizinhos são os mesmos, é uma família ali na rua. Além da Cooperativa Silvia não participa de nenhum outro grupo e nos momentos de lazer se dedica a trabalhos manuais comumente realizados na Cooperativa: nos momentos de lazer? Eu gosto de fazer assim trabalho manual, caixa, essas coisas, tá entendendo? É, eu gosto de fazer isso. [Então, na verdade, o que você faz aqui na Cooperativa como trabalho em casa você toma como lazer.] É, eu cubro caixinha, cubro enfeites, eu dou o maior valor fazer esse tipo de coisa. Gosto demais mesmo. [Além disso, tem mais alguma coisa que você costuma fazer como lazer?] Passear, levo meus meninos, às vezes a praia com meus amigos, meus irmãos. Nega internação em hospital psiquiátrico e afirma jamais ter realizado qualquer tratamento em saúde mental antes de se vincular ao CAPS. Freqüenta este serviço há quase um ano quando foi encaminhada por um profissional que a atendeu em um posto de saúde. Diz que procurou o CAPS após tomar conhecimento de que seu filho mais novo tem diabetes, fato que a abalou (e ainda a abala) muito emocionalmente. Sofre ao ver o sofrimento do filho em internações hospitalares, aplicações freqüentes de insulina e com restrições alimentares: eu fico nervosa demais por causa disso, foi um choque. É, eu sou nervosa. Eu não tomo nenhum remédio controlado, eu não tomo nada não. Acrescenta que não sofre preconceito pelo fato de participar de atividades no CAPS ou por sentir o que ela denomina “nervosismo” e salienta que não tem “nada na cabeça”: porque o nervosismo que eu sinto é só o medo que eu sinto dele [refere-se ao filho mais novo] sentir alguma reação, de ir pra o médico de novo, dele se internar de novo, tá entendendo? Fico tensa. Eu não tenho nada na cabeça que eu seja anormal. Nunca tive esse problema nem na minha família nunca teve. Mas é assim, foi um choque porque eu nunca esperei. Na minha família não tem ninguém diabético, nem pressão alta, colesterol. Aí, dá glicemia alta, ele [refere-se novamente ao filho mais novo] fica enjoado, fica agressivo, fica tudo, aí vai pro médico e eu já fico tensa porque ele já passou muito tempo internado aí no hospital Walter Cantídio [localizado em rente ao CAPS], já se internou no Albert Sabin [hospital infantil localizado em Fortaleza], aí fico vendo a hora o menino sentir alguma coisa, ter que se internar. Já bem na rua depois da minha tem uma senhora que a filha dela morreu agora faz pouco tempo, diabetes também, a menina tinha 13 ano, aí começou com uma dor de cabeça e ela não ligava, dor de cabeça, dor de cabeça, aí a menina foi e perdeu uma visão, aí internou, internou e aí morreu porque a diabetes tava lá em cima. Aí, quer dizer, fico com aquele medo. Meu menino toma insulina duas vez ao dia. Não é que eu tenha nada na minha cabeça. Silvia afirma que, embora tenha marcado sua consulta inicial, jamais foi atendida por um médico ou psicólogo no CAPS. Inicialmente foi acompanhada pela terapia ocupacional e posteriormente engajada na Cooperativa, sua única atividade no CAPS atualmente. Sobre o que representa o trabalho na Cooperativa destaca: não sei nem dizer [nesse momento parou e pensou um pouco] pra mim acho que é como se fosse um refúgio, quando eu tô aqui eu esqueço meus problemas, tá entendendo? Enquanto eu tô fazendo aquilo eu tô distraindo, eu acho assim excelente. O CAPS pra mim foi o melhor remédio que apareceu, tá entendendo? Eu nunca tinha ouvido falar de CAPS, antes de eu ter problema com o meu

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filho eu nunca tinha ouvido falar de CAPS. Eu vim pra cá, mas eu achava que não ia resolver porque eu achava que isso aqui não tinha nada haver comigo, o meu problema era com meu filho e aqui não iam resolver nada. Mas, não. Aqui é excelente, é ótimo, uma maravilha. Eu gosto de vim pra cá, faço o possível pra vim pra cá porque eu moro longe, pego ônibus e tenho que tê vale, nem sempre eu tenho, mas eu não falto porque eu gosto das pessoas aqui, eu gosto de fazer o serviço, eu sempre gostei de cobrir caixinha, essas coisas e aqui completa. É ótimo, excelente.

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CAPÍTULO IV

Discursos e as práticas que constituem a institucionalização da "loucura"

Não posso me eximir de destacar aqui uma realidade, no mínimo curiosa,

sobretudo no âmbito acadêmico, em relação ao estudo ora exposto. Comumente me

indagavam sobre a pesquisa que subsidiaria minha dissertação de mestrado e ao

revelar os sujeitos que pretendia tomar como interlocutores, ou melhor, as “vozes” que

pretendia ouvir e evidenciar no trabalho, geralmente, era interpelada com colocações

como: “você acha que vai conseguir concluir seu trabalho?” “Como vai tomar os

loucos como informantes, se eles são desprovidos de racionalidade?” “Não seria

melhor entrevistar profissionais que trabalham nessa área ou os familiares dos

loucos?”

Indagações como essas sugerem um certo pensar sobre a "loucura" que não

só exprime preconceito em relação a quem se convencionou nomear de louco, mas

também uma compreensão histórica e social acerca da "loucura" como uma

experiência oposta à razão e, por conseguinte, incapacitante do Ser. Esta percepção

parece comum entre os que se dizem "não loucos". E os nominados de loucos, como

concebem a "loucura"?

4.1 A percepção da "loucura" por aqueles que são nominados de "loucos"

A concepção que se tem a respeito da "loucura" oferece implicações à

forma como se percebe a proposta de reforma psiquiátrica, principalmente ao

considerar seu princípio de desinstitucionalização. Assim, à discussão acerca da

reforma psiquiátrica em Fortaleza se mostrou imprescindível abordar o próprio

fenômeno "loucura" e seu processo de institucionalização. Para tanto, cabe trazer a

cena os próprios interlocutores desse estudo por intermédio de seus discursos. O que

pensam sobre a chamada loucura?

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Eu não sei realmente o que significa a loucura, mas eu acredito, eu concordo com aquele senhor do filme que eu assisti até lá no IPC [refere-se ao Instituto de Psiquiatria do Ceará], eu não tô lembrado o nome do filme, mas era um rapaz que usava drogas. No final do filme o homem falou que a loucura acontece por uma desilusão amorosa, não é bem desilusão, é uma, tipo assim, uma coisa que não deu certo, como é que se chama? É, eu acho que é, né, desilusão? Pois é. Isso e também por fome, uma pessoa que passa necessidade. Aí acontece de ficar louco, fazer loucura. E eu concordo. Não tanto assim com essa desilusão amorosa, mas também, perda na família que ele falou, também acarreta, acontece loucura também.(...) A pessoa que passa fome mesmo ela faz loucura (...).[Quando você diz “faz loucura”, você pensa a loucura em que sentido?] Loucura é fazer coisa, eu pelo menos, eu fazia isso: eu morava lá no Planalto Caucaia, sabe aonde é o Planalto Caucaia? Então, eu pegava dois baldes d’água e ia buscar água lá no Icaraí com os baldes d’água na mão e não tinha hora pra mim ir, era de madrugada, era qualquer hora, meio dia, porque eu ia no Sine e não conseguia emprego, aí eu pensava em trabalhar e a forma que eu achava de trabalho era essa. Entre outras. Quando eu vinha, eu dava água aos animais no meio da rua, às vezes encontrava um caju, comia, uma manga velha na rua, suja, eu comia, fazia essas coisas porque eu precisava e entre outras coisas que eu nem vou falar. Até que uma vez quando eu ia buscar água nesse Icaraí quando dois elementos me acompanharam e deram uma mãozada nos baldes, os baldes caíram, eram dois, um dentro do outro, caíram e de lá eu dobrei pra trás e não olhei nem pra eles, fui embora porque era aquela hora e eu acreditava que ali era até mesmo um pouco de loucura porque eu não imaginava o horário que poderia ser perigoso, mas devido as dificuldades que eu tava atravessando, passando fome, eu fazia coisas assim. (Quim, depoimento concedido em 14/03/05)

Quim apresenta uma compreensão bastante peculiar em relação às demais,

pois associa "loucura" a pobreza, privações, fome, talvez pela sua própria experiência

de vida marcada por dificuldades dessa natureza. De fato, diante da violência diária de

sobreviver com um salário-mínimo ou até com a ausência deste, da precariedade das

condições de existência a que estão submetidos tantos brasileiros, enlouquecer seria

uma alternativa de sobrevivência, a “loucura” torna-se uma espécie de “refúgio” para

alguns sujeitos que “teimam em sobreviver” em meio a essa violência que

cotidianamente vem sendo banalizada.

Dentre todos os discursos a noção de "loucura" guiada por uma perspectiva

racionalista se mostrou preponderante como se pode ver nos depoimentos a seguir:

A pessoa que não sabe o que tá fazendo. É uma pessoa que não tem capacidade de, como é que eu quero dizer? Não tem capacidade de fazer as coisas direito (...). [Então, loucura pra você é o que exatamente?]

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Loucura pra mim é quem não tem juízo [riso] . (Antônio, depoimento concedido em 16/03/05)

Loucura é, a minha compreensão é perder a memória, não saber o que tá fazendo. (...) A loucura é perder a memória mesmo. (...) a coisa mais ruim que tem é a pessoa perder a memória, a gente faz coisa que não é pra fazer. (Lindalva, depoimento concedido em 16/03/05)

Loucura eu acho que é aquele que rasga dinheiro, não é não? [risos] E, come bosta [risos]. (Francisca, depoimento concedido em 16/03/05)

Pra mim loucura é pessoas que não sabe o que é que estão fazendo, não tem discernimento de nada. Aí eu acredito que seja uma pessoa louca. Faz coisas que não sabe nem o que é que tão fazendo, sem o controle, é isso que eu acho que seja loucura. Não tem iniciativa própria, não sabe resolver as coisas, pessoas anormais que vive exclusivamente dando trabalho os outros. Embora não querendo porque a loucura não é uma coisa que a pessoa quer, mas infelizmente, dá trabalho a família. (Fátima, depoimento concedido em 28/03/05. Grifos meus)

A loucura? A loucura eu acho assim, quando a pessoa endoida mesmo da cabeça, é quebrando, como esse rapaz aqui ... [menciona o nome de um dos outros cooperados], eu acho que ele não é normal não, aquilo não é normal não. Eu me assustei uma vez, eu me assustei. E como aquela menina que tira a roupa, aquela menina que é bailarina, ela tirou a roupa. Eu vi ela só de calça aqui. Ia correr nua, não correu por causa de mim. Ela não é normal. (...) É isso, a pessoa tira a roupa. Que nem a cabeça do ... [cita o nome de mais um dos cooperados], eu acho que não é normal não. Porque se ele vê assim, tá vendo uma coisa, ele diz: eu vou te matar! Ele pegou o pobre do ... [menciona o nome de um dos funcionários do CAPS], puxou a roupa dele e deu um murro. Não é normal não. Mas, chamar eu de doida? Não sei nem o que é isso meu Pai. Por que doida, por exemplo, um tapete desse [exibe o tapete que está confeccionando], se eu sou doida eu vou fazer de qualquer jeito (...). (Nira, depoimento concedido em 28/03/05. Grifos meus)

A loucura? (...) Eu acho assim, por exemplo, a pessoa que é mental não tem assim entendimento, não tem capacidade pra nada, não tem mente certa, ali não tem negócio de fazer uma luta [refere-se a trabalho] porque não tem capacidade pra fazer nada daquilo porque se é mental, só pensa coisas ruins, só tem coisas ruins na cabeça, tudo. O que eu acho é isso. (Graça, depoimento concedido em 30/03/05)

Loucura? É quando você faz coisas erradas, quando a pessoa faz coisas erradas, aí é loucura. [Como assim?] Assim: tirar a roupa, ficar nu e [risos] sair, [risos] sair no meio da rua [risos], é isso. (...) Loucura é você fazer uma frase e aí você misturar as estações. É isso. (Pedro, depoimento concedido em 30/03/05)

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Loucura? Ave Maria! Loucura é uma pessoa não saber o que tá fazendo na cabeça, a cabeça fica sem saber, sem destino mesmo, só dá vontade de você andar muito, não tem destino não. Dá vontade de andar no meio do mundo, não vê as casas, não vê nada, andar no caminho, no meio do mundo. É, acho que é isso a loucura. Andando pelos cantos.(...) Eu acho que é isso, a pessoa perder os sentidos, não saber mais o que tá fazendo. (Berenice, depoimento concedido em 30/03/05)

A loucura? Eu acho assim que é a coisa mais triste que pode existir na face da terra porque você sabe que quando a cabeça não funciona o corpo padece, não é isso? (Rosalba, depoimento concedido em 18/05/05)

É um desvio mental. [Como assim?] Como é que eu poderia dizer? Não sei nem como é que eu digo. Uma pessoa que não é equilibrada, uma pessoa que faz coisa sem sentido, fala coisa sem sentido, tá entendendo? Um transtorno, um desvio, uma coisa assim, faz coisas que não tem sentido, fala também, não tem noção das coisa, né? Acho que é isso. (Silvia, depoimento concedido em 18/05/05)

Antônio, Lindalva, Fátima, Graça e Berenice apresentam elementos comuns

em seus discursos. Para eles “loucura” é “não saber o que está fazendo”, “não ter

capacidade de fazer as coisas direito”.

A compreensão de Francisca corresponde a uma percepção recorrente no

senso comum e, embora tenha lhe despertado riso, soado um tom de brincadeira, é

explicitamente depreciativa. Também sugere o sentido de “não saber o que faz”, de

irracionalidade.

Nira, Pedro e Silvia associam “loucura” à noção de anormalidade,

comportamento “desviante” - despir-se em público -, erro, falta de sentido. No

discurso de Nira, porém um elemento incomum aparece, isto é, a “loucura”

relacionada a violência.

Rosalba também apresenta uma compreensão particular e ao mesmo tempo

de certo modo identificada com a visão funcionalista, associa “loucura” a uma

condição infeliz de existência, ao que pode existir de mais triste. Loucura seria uma

disfunção.

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Essas noções de “loucura” - “não saber o que está fazendo”, incapacidade,

anormalidade, ausência de sentido, erro, violência - estão vinculadas essencialmente à

idéia de “loucura” como sinônimo de (des)razão, significado esse que tem raízes

históricas profundas.

4.2 Razão e não razão: se penso não posso estar louco, se sou louco, não posso pensar ...

No sentido de compreender os meandros que envolvem discursos e práticas

em relação à "loucura" e ao chamado louco no curso da história, recorro ao

pensamento de Michel Foucault em História da loucura na idade clássica (1999a)72

por se revelar elucidativo.

A idéia de "loucura" como contraponto à razão teve seus movimentos

iniciais na Renascença radicalizando-se na época clássica, período de predomínio da

visão cartesiana.

No caminho da dúvida, Descartes encontra a loucura ao lado do sonho e de todas as formas de erro. Será que essa possibilidade de ser louco não faz com que ele corra o risco de ver-se despojado da posse de seu próprio corpo, assim como o mundo exterior pode refugiar-se no erro, ou a consciência adormecer no sonho? (Foucault, 1999a, p.45).

Na época clássica radicalizou-se o processo de dominação da loucura pela

razão. O pensamento de Descartes foi um marco nessa transformação, pois ao afirmar

que se alguém pensa, não pode estar louco e, se alguém é louco, não pode pensar,

excluiu a loucura do campo da razão. Loucura e pensamento seriam incompatíveis, o

que culminou na redução daquela ao silêncio.

Pode-se afirmar que se Descartes representou o marco filosófico no domínio

da loucura pela razão, a criação do Hospital Geral foi seu marco institucional. Aliás,

esta instituição teve significativa expressão no que Foucault (1999a) denominou de a

72 Nesse livro Foucault não trata de uma história da psiquiatria, envolvendo seus conceitos basilares ou teorias e métodos historicamente a ela relacionados. Sublinha a relação entre a racionalidade moderna e o processo de dominação que encerrou por tornar a loucura objeto de ciência. Ou seja, Foucault evidencia a história da ocultação da loucura pela razão. Para tanto situa três momentos históricos como “recorte” de suas análises, quais sejam, a Renascença, o classicismo e a modernidade.

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grande internação.

Nesse período o Hospital Geral não tinha o sentido médico que usualmente

lhe é atribuído, não apresentava, portanto, caráter médico-curativo, mas de assistência,

colocando-se entre a polícia e a justiça, assumindo-se assim, como uma “terceira via”

de repressão não no sentido de cura dos “loucos”, mas de exclusão dos que

representavam “ameaça” à sociedade.

... o Hospital Geral não é um estabelecimento médico. É antes uma estrutura semijurídica, uma espécie de entidade administrativa que, ao lado dos poderes já constituídos, e além dos tribunais, decide, julga e executa. (...) Soberania quase absoluta, jurisdição sem apelações, direito de execução contra o qual nada pode prevalecer − o Hospital Geral é um estranho poder que o rei estabelece entre a polícia e a justiça, nos limites da lei: é a terceira ordem de repressão. (...) Em seu funcionamento, ou em seus propósitos, o Hospital Geral não se assemelha a nenhuma idéia médica. É uma instância da ordem ... (Ibdem, p. 49-50).73

Essa caracterização do Hospital Geral como instância da ordem lembra a

figura da prisão também evidenciada e problematizada por Foucault em Vigiar e punir

(2002). Dentre os aspectos evidenciados nesse livro, destaco a disciplina como um

dispositivo de poder comum aos espaços prisional e hospitalar.

A disciplina permite o controle minucioso do corpo, realiza a sujeição de

suas forças e lhe impõe uma relação de docilidade-utilidade. É dócil um corpo que

pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser transformado e aperfeiçoado

(Foucault, 2002, p. 118).

De acordo com Foucault, à distribuição espacial dos indivíduos a disciplina

utiliza diversas técnicas, dentre as quais tem-se a cerca, definida como (...) um local

heterogêneo a todos os outros e fechado em si mesmo (2002, p. 122). Esta técnica

comum às prisões, além de lembrar o que na época clássica se chamava Hospital

Geral, nos remete à figura moderna do hospital psiquiátrico, fechado em si mesmo,

resguardado por seus muros altos e grades de ferro intransponíveis, embora se

73 Grifos meus.

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apresente como espaço de “tratamento”.

A organização dos espaços, inerente ao exercício da disciplina, pode ser

identificada no hospital psiquiátrico na divisão dos internos por “alas”, de acordo com

o sexo, o diagnóstico e suposto “grau de agressividade/periculosidade”.74

Ao abordar sobre experiências de internação em hospitais psiquiátricos com

interlocutores da pesquisa o caráter prisional (fechado) do hospital psiquiátrico foi

revelado.

... eu fui internado assim, na marra mesmo, na força, porque eu não queria. Eu achava que, eu não sabia como é que ia ser quando eu ficasse lá só, se iam me tratar como uma pessoa doida mesmo eu mesmo não queria. Eu fui internado mesmo, foram os meus parentes que me internaram, mas, foi na marra e, pra mim entender que ia ser um tratamento que ia me beneficiar demorou muito, só mesmo com a convivência mesmo foi que eu fui entender que era pro meu bem, que eu realmente tava precisando de um tratamento porque eu tava muito magro, desnutrido, carente. Eu não tinha dinheiro, não tinha emprego, tava muito e meus parentes tavam passando dificuldades, não podiam, assim, me auxiliar no que eu precisava, aí eu fui internado e eu entendi que foi uma coisa boa pra mim, no jeito que eu tava, naquele período que eu tava passando, aquela fase, então foi uma coisa boa. (...) Eu fazia coisa que agora eu não faço, não faço de jeito nenhum. Eu acredito que fiz essas coisas desse tipo, mas foi por causa da minha fraqueza, eu passava necessidade, fome, não me alimentava direito e se eu fosse dizer tudo que eu fiz, é porque eu tenho vergonha de dizer. Mas as pessoas viram que eu precisava mesmo ser internado, tanto é que me internaram, me pegaram a força e levaram, me internaram. (Quim, depoimento concedido em 14/03/05. Grifos meus)

Inicialmente Quim deixa transparecer a noção de hospital psiquiátrico como

“lugar de salvação”, provavelmente por ter se tratado do único espaço que lhe foi

possível responder de alguma forma as suas necessidades mais elementares, sua

magreza, desnutrição. A fome é um aspecto recorrente em seus discursos. Diante de

sua situação precária, como Quim poderia não avaliar um espaço como esse de

maneira positiva se não havia outra alternativa para subsistir? Mas, isto não o impediu

74 Lembro-me agora da minha primeira visita a um hospital psiquiátrico, comentada anteriormente, quando a assistente social me mostrava ao longe a “ala dos doentes mais violentos”. Durante minha experiência de estágio em outra instituição da mesma natureza pude ouvir algumas vezes, profissionais mencionarem que era mais adequado o(a) “paciente A” dividir o quarto com “pacientes B, C, D” (etc.) por serem calmos(as) e cooperativos(as), não sendo interessante encaminhá-lo(a) para próximo de ‘X, Y, Z” (etc.), os(as) “mais

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de identificar o cerceamento de sua liberdade e a sensação de desproteção quando

estava internado:

... eu tinha lido na minha carteira profissional que todo homem é, na carteira profissional tem que todo homem é livre, tem a livre escolha de emprego, essas coisa assim, eu tinha lido. Aí quando me colocaram no Nosso Lar [nome de um dos hospitais psiquiátricos de Fortaleza], à força, na marra, eu pensei: que liberdade é essa que todo homem é livre e eu desse jeito, colocando assim sem eu querer. Eu queria sair, quando o zelador ia passar na porta eu ficava empurrando pra sair. Só que quando eu cheguei no Nosso Lar, assim que eu cheguei, eu tinha ido com um calção assim meio rasgado, calção velho e era curto, tava rasgado já, aí os enfermeiros me colocaram lá num quarto e trancaram o quarto, levaram a chave. Só eles mesmos que abriam, aí eu não entendia e passava coisa assim pela minha cabeça, coisa assim absurda pra pessoa compreender. Eu pensava que porque o enfermeiro falou assim: daí vai pro lixo. Só que eu acho que ele falou com o calção que eu tava, aí eu entendi que eu é que ia pro lixo. Eu pensava que as pessoas iam me jogar amarrado na cama do hospital, que eles amarram às vezes, né?, quando o paciente faz coisa assim, chuta a porta, coisa assim, eles amarram. [Você passou por isso?] Passei. Foi no primeiro dia que eu cheguei lá, porque eu pensava coisa assim que não acontece, eu pensava que eles iam me jogar lá da ponte metálica [refere-se aqui a chamada Ponte dos Ingleses, localizada à beira mar de Fortaleza] amarrado na cama e daí vai pro lixo, eu entendi que eu é que ia pro lixo, porque eles tavam quebrando lá, tava em reforma e eu escutava aquelas pancadas (...). (Quim, depoimento concedido em 14/03/05. Grifos meus)

Essas palavras de Quim demonstram o caráter totalitário75 do hospital

psiquiátrico, seu traço prisional. A imaginação que seria “jogado no lixo” para alguns

pode representar apenas mais um dos delírios de um internado, entretanto, a mim

sugere muito mais, revela como Quim se sentia naquele momento: com fome,

maltrapilho, solitário, amarrado ao leito, desvalido. O “lixo” parecia ser mesmo seu

destino final. Mesmo assim, a dificuldade de subsistência que o havia levado ao

hospital psiquiátrico era tamanha que depois de três experiências de internação

psiquiátrica, Quim consegue ver nessa instituição algo positivo: ser “guardiã da

miséria”.

trabalhosos(as)”. 75 Goffman em Manicômios, prisões e conventos utiliza a expressão instituições totais se referindo à tendência de fechamento, na sua concepção, característica de toda instituição: (...) toda instituição tem tendências de ‘fechamento’. (...) algumas são muito mais ‘fechadas’ do que outras. Seu ‘fechamento’ ou seu caráter total é simbolizado pela barreira à relação social com o mundo externo e por proibições à saída que muitas vezes estão incluídas no esquema físico − por exemplo, portas fechadas, paredes altas, arame farpado, fossos, água, flores ou pântanos. A tais estabelecimentos dou o nome de instituições totais (2001, p. 16).

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A noção de aprisionamento foi lembrada explicitamente por Francisca e

indiretamente por Pedro ao destacar sentimentos de humilhação e desamparo quando

internado:

Foi ruim [silenciou]. [Ruim por que?] Porque lá parece uma prisão. A gente não vê nem o sol se pondo, parece uma prisão lá [silenciou]. (...)[Como era lá dentro?] Lá dentro era ruim porque parecia uma prisão, os doido arengava comigo [risos] e, eu arengava também com os doido também. Eu fui até amarrada uma vez lá [Por quem?] Pelo pessoal de lá. [Por que?] Porque a doida cismou comigo e eu fui bater na doida. Aí, eu fui amarrada. [Amarrada como?] Amarrada numa máquina [refere-se a maca], toda amarrada numa liga, deitada. (...) Deram um sossega leão. Os pessoal lá pra amarrar a pessoa tem força. (...) Deus o livre de ir pra lá de novo, pra nenhum canto. (Francisca, depoimento concedido em 16/03/05)

Tal como no discurso de Quim, o cerceamento da liberdade, com destaque

para a contenção física, foi lembrado por Francisca e isso parece ter sido tão marcante

em sua vida que descarta qualquer possibilidade de internar-se novamente. É o aspecto

totalitário do hospital psiquiátrico que mais uma vez vem à tona!

(...) pra mim era difícil porque eu gosto de ficar mais em casa. (...) Eu tinha saudade da família, tinha saudade. (...) Lá dentro era assim, eu não podia dormir direito. [Por que?] Eles empurravam a porta. [Quem?] Os pacientes. Eu tomava água suja de torneira porque não tinha filtro, não tinha água pras pessoas. Tinha que pegar um copo lá pra poder levar pra torneira e tomar água quente. [Torneira mesmo, não era de filtro?] Torneira de pia mesmo. Era. E Pediam cigarro a gente. [Quem pedia?] Os pacientes. Pedia pé duro [aqueles cigarros que fazem lá com o fumo?] É. [E como você se sentia dentro dessa realidade?] Eu me sentia humilhado, às vezes eu me sentia humilhado porque não era pra eu tá num lugar daquele ali não, não era pra mim estar não. Porque ora eu era tratado melhor e ora eu era tratado [faz um sinal com o polegar pra baixo indicando algo negativo]. Se não fosse as enfermeiras que me tratasse bem, o resto [silencia]. (Pedro, depoimento concedido em 30/03/05).

Dificuldades para dormir, a falta de visitas, ausência de água potável e a

mendicância por cigarros por parte dos outros internos são elementos que traduzem a

sensação de abandono sofrida por Pedro na condição de interno, isolado e obrigado a

se manter ali, em uma situação similar a de um detento. Humilhação é o termo que

traduz seu sentimento ao se perceber nessa situação. Embora se mostrando

conformado com o tratamento respeitoso oferecido por profissionais de enfermagem,

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não reconhecia aquele espaço de internação como ideal para si.

A internação psiquiátrica foi - antes de assumir seu caráter curativo - e ainda

é, essencialmente, um espaço ordenador, repressor, isolacionista e punitivo. Os

discursos anteriormente destacados revelam a continuidade dessas características do

hospital psiquiátrico, seus traços prisional e disciplinar.

4.3 Disciplinamento e controle dos corpos

O exercício da disciplina no seu sentido de tornar o corpo "dócil" tem o

controle da atividade, mais especificamente, o controle do tempo, como outra técnica

relevante. Esta também pode ser observada no cotidiano do hospital psiquiátrico,

quando os internos devem respeitar os horários de banho, das refeições, de tomar as

medicações, dos atendimentos ou consultas, de receber visitas, entre outros. O tempo

penetra o corpo, e com ele todos os controles minuciosos do poder (Foucault, 2002, p.

129).

O adestramento, função maior do poder disciplinar, tem na vigilância um

importante recurso. De acordo com as análises foucaultianas, esse recurso constitui-se

(...) uma engrenagem específica do poder disciplinar.76 A vigilância é (ou parece ser

aos vigiados) permanente e ilimitada, um olhar que permite ver tudo e não ser visto,

tal como o Panóptico de Bentham.77 Quem ocupa o papel de vigilante no hospital

psiquiátrico?

Na condição de estagiária em um hospital psiquiátrico observei que os

profissionais terminavam assumindo a condição de vigilantes dos internos, inclusive

76 (Ibdem, p. 147) 77 O Panóptico tem como efeito principal (...) induzir no detento um estado consciente e permanente de visibilidade que assegura o funcionamento automático do poder. Fazer com que a vigilância seja permanente em seus efeitos, mesmo se é descontínua em sua ação; que a perfeição do poder tenda a tornar inútil a atualidade de seu exercício; que esse aparelho arquitetural seja uma máquina de criar e sustentar presos numa situação de poder de que eles mesmos são portadores (Ibdem, p. 166).

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por intermédio de registros nos chamados “prontuários” que se referiam aos seus

comportamentos (se “cooperativos” ou não, aceitando a medicação ou não etc.) e

discursos (“mutismo” ou “logorréia”, se “conexo” ou “desconexo” etc.). Trata-se de

uma pirâmide de olhares formada por médicos, enfermeiros, [assistentes sociais,

psicólogos, terapêutas ocupacionais], serventes (Machado, p. xvii In Foucault, 1999b).

A vigilância também se revelava na própria arquitetura da instituição.

Despertava-me atenção, por exemplo, a localização dos postos de enfermagem

próximo aos quartos, compartimentos comumente divididos por um extenso corredor

que favorecia a vigilância constante dos internos.

A disciplina implica um registro contínuo de conhecimento. Ao mesmo

tempo que exerce um poder, produz um saber. O olhar que observa para controlar

não é o mesmo que extrai, anota e transfere as informações para os pontos mais altos

da hierarquia de poder?(Ibdem)

Os sistemas disciplinares também apresentam uma dimensão punitiva, as

micropenalidades, isto é, beneficiam-se de leis, normas, regras e de julgamento

próprios.

Na oficina, na escola, no exército funciona como repressora toda uma micropenalidade do tempo (atrasos, ausências, interrupções da tarefas), da atividade (desatenção, negligência, falta de zelo), da maneira de ser (grosseria, desobediência), dos discursos (tagarelice, insolência), do corpo (atitudes ‘incorretas’, gestos não conformes, sujeira), da sexualidade (imodéstia, indecência). Ao mesmo tempo é utilizada, a título de punição, toda uma série de processos sutis, que vão do castigo físico leve a privações ligeiras e a pequenas humilhações (Foucault, 2002, p. 149).

No caso particular do hospital psiquiátrico, quais seriam as suas

micropenalidades? Arrisco-me a sugerir que estão relacionadas ao tempo (atraso ou

ausência), às atividades (desatenção, desinteresse), à maneira de ser (agressiva, não

cooperativa com o “tratamento”), aos discursos (mutismo, logorréia), ao corpo

(atitudes “incorretas” ou “inadequadas” a situação, “higiene pessoal descuidada”), à

sexualidade (gestos obscenos).

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Acredito que os casos de contenção do interno ao leito e/ou de deixá-lo em

quarto específico (trancado) por alguns dias com a finalidade de “observar a evolução

de seu quadro” ou de submetê-lo a superdosagens de medicações até mesmo de modo

a fazê-lo perder o controle dos movimentos de seu corpo por um certo tempo sob a

justificativa de tratamento são algumas das formas “sutis” de punição

(micropenalidades) no hospital psiquiátrico. Retomemos trechos dos discursos de

Quim e Francisca a esse respeito:

... Eu pensava que as pessoas iam me jogar amarrado na cama do hospital, que eles amarram às vezes, né?, quando o paciente faz coisa assim, chuta a porta, coisa assim, eles amarram. (Quim, depoimento concedido em 14/03/05. Grifos meus)

... Aí, eu fui amarrada. [Amarrada como?] Amarrada numa máquina [refere-se a maca], toda amarrada numa liga, deitada. (...) Deram um sossega leão. Os pessoal lá pra amarrar a pessoa tem força. (Francisca, depoimento concedido em 16/03/05. Grifos meus)

Outro recurso para o “bom adestramento” apontado por Foucault diz

respeito ao exame, definido como uma combinação de técnicas relativas à vigilância e

normalização que se dá de modo extremamente ritualizado. É um controle

normalizante, uma vigilância que permite qualificar, classificar e punir (Ibdem, p.

154).

O “candidato à internação” ou o internado no hospital psiquiátrico também é

submetido a exame. No caso do primeiro, realiza-se o que comumente se denomina

“anamnese” e para o último, “consulta” ou “atendimento”. Para ambos o momento

“soa” como uma consulta, mas, essencialmente, termina assumindo a dimensão de

vigilância que qualifica (como “normal” ou “anormal”, “doente” ou “são”), classifica

(diagnostica) e pune (interna).

Ademais, o exame no hospital psiquiátrico, tal com na prisão, tem seus

“rituais”, “métodos”, “personagens” e “papéis”, “jogos de pergunta e resposta” (ainda

que da resposta só se escute o que for conveniente e que permita qualificar e

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classificar), “sistemas de classificação”.

Retomando a História da loucura e o acontecimento da grande internação

que se deu em toda a Europa, cabe destacar a participação da Igreja. O Hospício surge

exatamente como iniciativa da Igreja de participar do processo de ampliação do

número de Hospitais Gerais nas cidades, empregando-lhe inclusive finalidades

similares.

... desempenhando um papel ao mesmo tempo de assistência e de repressão, esses hospícios destinam-se a socorrer os pobres, mas comportam quase todas as células de detenção e casernas nas quais se encerram pensionários pelos quais o rei ou a família pagam uma pensão (...). Muitas vezes essas novas casas de internamento são estabelecidas dentro dos próprios muros dos antigos leprosários, herdam seus bens (...). Mas também são mantidos pelas finanças públicas (...). Nessas instituições também vêm-se misturar, muitas vezes não sem conflitos, os velhos privilégios da Igreja na assistência aos pobres e nos ritos da hospitalidade, e a preocupação burguesa de pôr em ordem o mundo da miséria; o desejo de ajudar e a necessidade de reprimir; o dever de caridade e a vontade de punir ... (Foucault, 1999a, p. 52-3).

É importante destacar que esse fenômeno da grande internação apresenta

amplo significado, uma vez que diz respeito às esferas social, moral, econômica e

política, revelando assim, a concepção de loucura característica da época clássica.

No que se refere à esfera social, a grande internação sugere uma mudança

na percepção do fenômeno pobreza, em que a visão religiosa cedeu lugar a uma visão

social. Nesse sentido, pobreza passou a assumir uma dimensão de desordem moral,

caracterizando-se sob uma negatividade, como empecilho ao ordenamento da

sociedade e, portanto, torna-se objeto de reclusão.

No plano econômico, destacam-se duas situações: desemprego e pleno

emprego. No período de predomínio daquele, a grande internação poderia oferecer

proteção aos cidadãos contra os possíveis problemas que os ociosos viessem a causar.

Quando do período de pleno emprego, serviria como “meio” de se adquirir mão-de-

obra barata. Como diz Foucault de maneira elucidativa:

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A alternativa é clara: mão-de-obra barata nos tempos de pleno emprego e de altos salários; e em período de desemprego, reabsorção dos ociosos e proteção social contra a agitação e as revoltas (Ibdem, p. 67).

O autor acrescenta, contudo, que essa atribuição econômica das instituições

de reclusão jamais se apresentou positivamente, uma vez que resultava no aumento do

desemprego em regiões próximas, além de intervir nos preços artificialmente.

A partir dessas análises, pode-se sugerir que não foi essencialmente

econômico o sentido da grande internação, afinal, na época clássica a categoria

trabalho estava atrelada muito mais a uma dimensão moral, a partir da qual se

compreendia a pobreza como desordem e não como resultado de desemprego. O

trabalho aparecia aqui como uma espécie de “arma” disciplinadora da pobreza.

Daí é possível identificar que o significado preponderante do internamento

reside no campo da moral. Seu significado político está na absorção dessa dimensão

moral à lei e à administração estatal, em que a repressão física passou a ser utilizada

como forma de correção do que estivesse às margens da ordem social.

O caráter moral do Hospital Geral é discutido por Foucault em vários outros

momentos de seu livro, quando se refere, por exemplo, aos “doentes venéreos”, parte

da população destinada ao Hospital Geral, ao destacar que este deve

... receber os ‘estragados’, mas não os aceita sem formalidades: é preciso pagar sua dívida para com a moral pública, e deve-se estar preparado, nas sendas do castigo e da penitência, para voltar a uma comunhão da qual se foi expulso pelo pecado (1999a, p. 84).

Articulado a esse significado moral, o autor assinala outro conteúdo

importante relacionado ao internamento clássico e que evita uma visão simplista a seu

respeito, a noção de que a sua utilidade estava para além da exclusão de “imorais” e

“desordeiros”, constituindo-se como espaço produtor de homogeneização.

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Em cinqüenta anos, o internamento tornou-se um amálgama abusivo de

elementos heterogêneos (Ibdem, p. 55). Ou seja, a grande internação produziu uma

população homogênea. Os “loucos” se encontravam em companhia de uma população

variada, mas todos apareciam sob uma uniformidade produzida por esse espaço de

reclusão e exclusão.

A hospitalização do “louco”, um costume presente, mesmo que de modo

limitado, na Idade Média e no período Renascentista, também existia na época clássica

a partir de uma noção de “loucura” como sinônimo de doença. Nesse período, o

“louco” era hospitalizado sob a esperança de cura para sua perda de razão através do

tratamento dispensado a qualquer doença, o que pressupunha sangria, purgações e, em

certos casos, vesicatórios e banhos.78

Assim, a "loucura", nesse período, era considerada como doença integrada

as outras doenças e não especificamente como doença mental, inexistindo uma

especialidade médica disposta a tratá-la, tal como a psiquiatria. Desta forma, a teoria

sobre a “loucura” era elaborada tomando como base a doença em geral.

Uma questão fundamental nesse momento histórico é que a internação do

“louco” não se dava sob critérios próprios do conhecimento médico ou científico, mas

a partir da percepção social da loucura como desrazão. Isto é, o internamento do

“louco” correspondia à ordem da razão clássica. Desse modo, percebe-se no período

clássico um descompasso entre as teorias sobre a loucura e as práticas em relação ao

chamado louco.

A evidência do ‘este aqui é louco’, que não admite contestação possível, não se baseia em nenhum domínio teórico sobre o que seja loucura. (...) Mas, inversamente, quando o pensamento clássico deseja interrogar a loucura naquilo que ela é, não é a partir dos loucos que ele o faz, mas a partir da doença em geral. A resposta a uma pergunta como: ‘Então, que é loucura?’ é deduzida de uma análise da doença, sem que o louco fale de si mesmo em sua existência concreta. O século XVIII percebe o louco, mas deduz a loucura. E no louco o que percebe não é a loucura, mas a inextricável presença da razão e da não-razão. E aquilo a partir do que ele reconstrói a loucura não é a múltipla experiência dos loucos, é o domínio

78 Fosseyeux, M. L’Hôtel-dieu à Paris au XVIIe et au XVIIIe siècle. Paris, 1912 apud Foucault, 1999a, p. 113.

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lógico e natural da doença, um campo de racionalidade (Ibdem, p. 187).

Outra perspectiva apresentada pelos interlocutores da pesquisa corresponde

a “loucura” como sinônimo de doença mental:

Eu não sei, é quando a pessoa tá sem saúde mental, não é que a pessoa seja louca, que a pessoa seja doida, porque isso eu acho que loucura, doido, doideira, eu acho que isso é uma expressão, como é que se diz, tão grosseira pra quem tem esses problemas mentais. Por que mesmo as pessoas dizendo isso, elas não vão conseguir ajudar as pessoas a se livrar desses problemas mentais, chamando a pessoa de louca ou de doida. Então, loucura é uma coisa que eu acho grosseira, uma palavra grosseira pras pessoas que tem problema mental, da mente, pra mim isso é grosseiro, a pessoa tá falando assim uma grosseria (Márcia, depoimento concedido em 14/03/05. Grifos meus).

A pessoa tando com depressão, não sabe o que é que tá fazendo. E outras coisas que eu não sei, só sei isso daí, uma depressão. [Na sua opinião quando tá com depressão se está louco?] É, quer morrer, se matar, sem destino, não sabe o que é que faz (Camila, depoimento concedido em 28/03/05).

Márcia percebe a chamada loucura a partir da relação saúde-doença, isto é,

“loucura” é ausência de saúde mental e dentre todos os interlocutores, foi a única a

chamar atenção de que se trata de um termo grosseiro. Além de perceber “loucura”

como sinônimo de doença mental (depressão), Camila apresenta uma noção também

influenciada pelo racionalismo ao afirmar que quem está "louco" não sabe o que faz,

isto é, não pensa.

4.4 A "loucura" como "doença mental"

De acordo com os estudos foucaultianos a noção de “loucura” como

"doença mental" é moderna. É na modernidade que o processo histórico de controle da

razão sobre a chamada loucura atinge seu maior alcance, tornando-se extremamente

eficiente. A "loucura" é, portanto, identificada como alienação e caracterizada como

doença mental.

A respeito desse momento histórico em que a “loucura” passa a ser

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reconhecida como doença mental, destaco a existência do asilo como lugar de

isolamento específico do chamado louco (doente mental).

Ligado ao advento desse espaço asilar no fim do século XVIII, Foucault

(1999a) chama atenção para a figura de Philippe Pinel, na França. Este foi um dos

protagonistas de um movimento que defendia o isolamento dos “loucos” dos demais

“a-sociais”, tornando-os objeto da atenção psiquiátrica. O asilo proposto por Pinel era

o domínio da moral.

Uma moral existe, inteiramente primitiva, que normalmente não é ofendida, mesmo pela pior demência; é ela que ao mesmo tempo aparece e opera na cura (...). (...) O asilo reduzirá as diferenças, reprimirá os vícios, extinguirá as irregularidades. (...) Num único e mesmo movimento, o asilo, nas mãos de Pinel, se torna um instrumento de uniformização moral ... (p. 487-8).

Com Pinel, a “loucura” assume o estatuto de alienação mental. Com essa

noção de alienação, a “loucura” deixa de ser compreendida como ausência de razão e

passa a ser identificada no interior da própria razão, sendo vinculada a uma

possibilidade de cura. Acredita-se que o alienado não perdeu totalmente a consciência,

havendo um “resto” de razão que ainda lhe pertence.

A partir dessa compreensão, a terapia aparece nesse cenário como uma ação

moral restituidora da razão. Uma vez que o alienado não perdeu completamente a

razão, mediante a terapia pode tornar-se, mais uma vez, um ser razoável. Tem-se com

isto a “psicologização” da “loucura” na modernidade, ou seja, o total domínio da

“loucura” pela racionalidade moderna, ou ainda, a absoluta dominação da “loucura”

pela ordem psiquiátrica moderna.

Então, a chamada loucura que o Classicismo situou na relação razão-

desrazão, (na separação entre ambas) excluindo-a a partir de uma perspectiva moral,

torna-se objeto de conhecimento científico na modernidade, sob a conotação de doença

mental.

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Aqui reside talvez uma das mais importantes questões assinaladas em

História da loucura, a saber, a desconstrução da idéia de que a doença mental é

inerente à humanidade, evidenciando que a psiquiatria é uma ciência recente e sua

intervenção em relação ao chamado louco é historicamente datada, isto é, que na

história ocidental não se pode falar em doença mental ou em “patologização” do

“louco” antes do fim do século XVIII.

Segundo a concepção foucaultiana, a psiquiatria resulta de um processo

mais amplo, histórico, essencialmente vinculado à progressiva dominação da loucura,

não devendo ser a primeira percebida como aquela que possibilitou o reconhecimento

e tratamento da segunda.

Nesse sentido, há um momento histórico fundamental em que a “loucura”

assume o significado de doença mental, qual seja, o final do século XVIII com o

nascimento do asilo e, por conseguinte, o surgimento da psiquiatria.

Por outro lado, há que se dizer, ainda de acordo com Foucault (1999a) que,

não foi a medicina a responsável pela definição entre razão e não razão, “loucura” e

“sanidade”. No entanto, foram os médicos os responsáveis pela vigilância das

fronteiras entre razão e não razão, pela rotulação do que se convencionou chamar

doença mental , bem como, pela interdição do “louco”.

No século XIX, a segregação do “louco” a partir de sua reclusão no local

específico do asilo, foi utilizada como importante ação terapêutica pela psiquiatria.

Esta, na compreensão foucaultiana, configura-se como uma forma mais sutil de

dominação da “loucura”, um modo menos explícito de sujeitá-la.

A partir da segunda metade desse mesmo período, a psiquiatria interessou-

se em encontrar uma nova explicação para a loucura de ordem biológica baseada no

paradigma positivista. De acordo com esse modelo biológico, o fenômeno loucura

resultaria de perturbações psíquicas de origem orgânica, isto é, a causa da “loucura”

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estaria no organismo. Daí a relevância que os estudos do cérebro alcançaram no campo

psiquiátrico.

No final desse mesmo século, em vários países da Europa Ocidental, os

asilos se tornaram alvo de críticas tendo em vista a sua situação calamitosa, a sua

dimensão puramente disciplinar e a ausência de ações terapêuticas. Essas críticas

conseguiram destaque apenas após a Segunda Guerra Mundial, o que não significa

afirmar que, a partir de então, houve uma mudança radical no campo da psiquiatria.

A partir desse período, é possível destacar, experiências de tentativas de

mudança e até de (des)construção, tal como destacarei no capítulo a seguir, mas a

prática do internamento, a reclusão sob a noção de “tratamento”, anteriormente

sublinhadas, ainda constituem o modelo hegemônico.

Nas análises de Foucault (1999a), o nascimento da psiquiatria moderna

representa, portanto, o ápice do domínio da loucura pela razão. Nesse sentido, a noção

de doença mental atribuída à “loucura”, na modernidade, não se trata de uma evolução

ou desenvolvimento do conhecimento científico a seu respeito.

A psiquiatria se apresenta como resultado do amplo processo histórico da

progressiva dominação da “loucura” pela razão, o que culminou na sua transformação

em doença mental. O silêncio imposto ao chamado louco, à sua voz e, porque não

dizer, ao seu corpo, aparece em História da loucura, seja na época clássica ou na

modernidade, como elemento revelador dessa dominação.

A partir de Foucault, a leitura do fenômeno loucura e de seu processo de

institucionalização requer um olhar abrangente, uma vez que estão aí envolvidos

aspectos econômicos, sociais, morais, culturais e políticos que nortearam (e norteiam)

o disciplinamento e o lugar do “louco” numa sociedade organizada pela “razão”.

Estão imbricadas nesse “universo” não só relações de poder, mas e,

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principalmente, formas marcantes de dominação, as quais, à proporção que foram (e

continuam) se aprofundando, designaram (e designam) ao “louco” um lugar social

específico e periférico.

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CAPÍTULO V

Reforma psiquiátrica em Fortaleza: construção de um outro lugar

social para a chamada loucura?

Machado de Assis em O alienista há mais de cem anos havia estabelecido

uma crítica a psiquiatria e ao seu objeto (doença mental), à ciência moderna positivista

e sua perspectiva de normalização social. Nesse texto o lugar específico (periférico)

historicamente reservado à “loucura” - instituição total - e o exercício do saber-poder

psiquiátrico aparecem destacadamente.

Como diz Birman, ... a idéia de reforma psiquiátrica não se identifica

absolutamente com a noção de assistência psiquiátrica (...). Vale dizer, a

problemática colocada pela reforma psiquiátrica insere a questão da assistência

psiquiátrica como um dos seus temas e mesmo como um tema privilegiado, mas

certamente a transcende, pois o que está em pauta de maneira decisiva é delinear um

outro lugar social para a loucura na nossa tradição cultural (1992, p.72).

A construção de um outro lugar social para a "loucura" é, portanto, uma

proposta inerente à reforma psiquiátrica. Há neste projeto a ênfase na participação de

usuários de serviços de saúde mental e de seus familiares na sua construção e

efetivação. Isto é, no discurso da reforma psiquiátrica esses sujeitos aparecem como

atores sociais imprescindíveis à construção desse outro lugar social para a chamada

loucura.

No intuito de compreender o lugar social dos sujeitos usuários do

CAPS/SER III na reforma psiquiátrica em Fortaleza partindo de suas narrativas

indaguei aos interlocutores da pesquisa o que entendiam por reforma psiquiátrica e

suas formas de inserção nesse processo. Curiosamente das treze pessoas com quem

conversei, dez afirmaram desconhecer a respeito.

Pra mim é novidade, tô sabendo agora. [Nunca ouviu falar?] Não.

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(Márcia, depoimento concedido em 14/03/05)

Reforma Psiquiátrica? Como assim? [Tento formular a pergunta com outros termos e pergunto se já ouviu falar] Não. [Invisto na tentativa: nem reforma psiquiátrica, nem reforma de saúde mental, nada desse tipo?] Não. [Nunca ouviu falar que os CAPS, como esse que você faz acompanhamento, fazem parte de um processo de tentativas de mudanças no atendimento em saúde mental e que isso seria essa reforma psiquiátrica?] Eu quero, eu gostaria que acontecesse isso. [Mas, você nunca ouviu falar antes?] Não, antes não. (Antônio, depoimento concedido em 16/03/05)

Não, não entendo não, viu? [Nem alguma coisa de mudança na saúde mental? Nunca ouviu falar?] Eu posso já ter ouvido, mas eu não entendo essas coisas não. [Insisti mais um pouco utilizando outros termos, mas Lindalva não referiu nada a respeito, preferindo introduzir outro assunto]. (Lindalva, depoimento concedido em 16/03/05)

Sei não, isso daí eu não sei não. [Tentei reformular a pergunta com outros termos e pergunto novamente se nunca ouviu falar nada a respeito e a resposta continua sendo negativa] Não. (Francisca, depoimento concedido em 16/03/05)

Pra mim, nada. [Você não conhece?] Não. [Nem nunca ouviu falar em mudanças no atendimento em saúde mental ou alguma coisa desse tipo?] Não. (Camila, depoimento concedido em 28/03/05)

Não sei. Aconselhar? [Você já ouviu falar em reforma psiquiátrica? Alguém já lhe explicou alguma coisa sobre reforma psiquiátrica?] Não. [Nunca leu nada a respeito, nem ouviu falar?] A respeito eu já li aquele livro da doutora não sei o que, doutora Helena não sei o que, uma psiquiatra que dá mais ou menos o acompanhamento da pessoa, pra pessoa acompanhar a pessoa que é desse tipo. [Um aconselhamento pra família?] É. Como a pessoa acompanhar a pessoa e dos tratos. O conhecimento que eu sei só é esse. [E você sabe o que é a reforma psiquiátrica? O que é a reforma psiquiátrica pra você?] Não sei o que é não. Reforma [pausa e pensa] [insisto: reforma psiquiátrica] Estudar mais? Não sei o que é não. Nunca ouvi falar não. [Insisto ainda mais: você já ouviu falar que o CAPS faz parte da proposta de reforma psiquiátrica?] O CAPS faz parte da reforma psiquiátrica? Não. [Também não?] Não. Eu só sei que estuda a cabeça aqui, que é o acompanhamento. (Berenice, depoimento concedido em 30/03/05)

Nunca ouvi falar não. [Nunca ouviu falar que o CAPS faz parte de uma proposta de reforma psiquiátrica?] Não, nunca ouvi falar nisso não. [Nem assim, mesmo que não tenha sido pelo nome de reforma psiquiátrica, mas nunca comentaram a respeito de mudanças na saúde mental ou mudanças no atendimento?] Não, nada. Logo eu sou atendida sempre pela doutora e pelo pessoal da recepção. Nunca ouvi falar em reforma não. Por que essa pergunta? O que quer dizer reforma

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psiquiátrica? (Rosalba, depoimento concedido em 18/05/05) Não. [Sabe o que é reforma psiquiátrica? Entende alguma coisa a esse respeito?] Não. [Ínsito modificando a pergunta: nem em reforma em saúde mental?] Não, nunca ouvi falar. [Nunca ouviu falar que o CAPS faz parte da reforma psiquiátrica?] Não. (Silvia, depoimento concedido em 18/05/05)

Não. [Insisto: você não entende nada a esse respeito?] Não. [Nunca ouviu falar?] Não. [Nem o termo reforma em saúde mental ou algo desse tipo?] Não. [Nem nunca ouviu falar que o CAPS faz parte de uma proposta de reforma psiquiátrica?] Ah, que o CAPS faz parte eu já ouvi falar nesses cartazes. [Já ouviu falar através de que?] Às vezes não tem aquele cartaz lá fora que diz centro psiquiátrico, saúde mental e tudo. É só essas coisas assim. [Mas, você nunca sentou pra conversar com alguém ou nunca escutou alguém falar, alguém explicar que o CAPS faz parte da reforma psiquiátrica?] Não. [Então, se eu perguntar o que você entende por reforma psiquiátrica você diria o quê?] Eu já não dizia nada porque eu não entendo mesmo. (Graça, depoimento concedido em 30/03/05)

[Silencia. Insisto: sabe alguma coisa sobre isso, já ouviu falar em reforma psiquiátrica?] Não. [insisti mais: nem em reforma em saúde mental?] Não. [Nada?] Nada. [Já ouviu falar que o CAPS como este aonde você faz acompanhamento e de onde você diz que gosta tanto faz parte da reforma psiquiátrica?] Já. Escrito nos papéis, assim, numas folhas. [Você leu] Li. [Mas, lá explicava, você conseguiu entender o que á a reforma psiquiátrica?] Não. [Mas, lá no papel dizia que o CAPS fazia parte da reforma psiquiátrica?] Era. Num papel, seja no hospital das clínicas [refere-se ao HUWC] ou aqui no CAPS. [Mas, nunca teve uma orientação em relação a isso? Ninguém explicou?] Não. (Pedro, depoimento concedido em 30/03/05)

Tal como é possível identificar nesses trechos, ao ouvir os interlocutores

dizerem não conhecer, assumia uma postura insistente reformulando a pergunta

utilizando outros termos diferentes de “reforma psiquiátrica”, uma vez que poderiam

conhecer o processo por outro nome, entretanto, realmente afirmavam desconhecer.

Nos casos de Graça e Pedro a diferença é que viram em cartazes algo a

respeito da relação entre os CAPS e a reforma psiquiátrica, mas mesmo assim

afirmaram desconhecer este projeto.

Apenas Quim, Nira e Fátima mencionaram algo sobre a temática em

questão.

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Eu ouvi um comentário que tão querendo acabar com os hospitais psiquiátricos e deixar só, assim, como o CAPS que a pessoa fica indo e voltando, não fica mais internado. Eu ouvi falar isso, não sei se é verdade. (Quim, depoimento concedido em 14/03/05)

O que eu entendo? [O que você conhece sobre isso?] Eu conheço assim, a pessoa que tem problema na cabeça e vem pra cá fazer uma, um checap, uma coisa pra vê se a pessoa tem que tomar aqueles remédios. Aí se o doutor acha que a pessoa não tem nada, não vai passar nada [refere-se aos remédios]. Taí, como o doutor disse: você não tem nada, vá trabalhar que é melhor. Você é muito é sadia. [tento reconduzir a conversa: Mas, o que já lhe explicaram sobre reforma psiquiátrica. Você sabe o que é?] Sim, eu sei o que é. Porque as pessoas, quando a pessoa vem pra cá se consultar, ela tem um problema, aquele problema já é sério. Às vezes uma pessoa leva uma pessoa dessa toda assim [simula debilidade no corpo para demonstrar] pro banheiro, não é normal. A pessoa fala só, ri só, faz marmota, faz tudo. A gente já fica cismado com a pessoa. E quando a gente quer conversa com a pessoa, a pessoa não quer conversa com a gente. Faz tratamento. [Então, pra você isso é reforma psiquiátrica]. Sim. (Nira, depoimento concedido em 28/03/05)

É isso que surgiu os CAPS. Porque antigamente não existia, agora já existe os CAPS. Então, essa reforma melhorou porque pessoas não estão sendo mais internadas em hospitais, diminuiu mais o índice de pessoas internadas. (...) A reforma psiquiátrica eu acredito que seja mais no termo de evitar que pessoas sejam internadas em hospitais psiquiátricos, ajuda nisso aí, pra evitar. (...) É uma coisa boa. Eu só acho que é uma coisa boa. (Fátima, depoimento concedido em 28/03/05)

No discurso de Quim está presente uma noção um pouco reduzida do que

seria o projeto de reforma psiquiátrica ao mencionar apenas o CAPS como proposta de

atenção em saúde mental.

Nira relaciona reforma psiquiátrica a noção de tratamento no CAPS, porém

muito mais um tratamento no sentido ambulatorial, medicamentoso, reduzido ao

atendimento médico.

Assim como Nira, Fátima vê a reforma psiquiátrica como algo associado ao

surgimento dos CAPS e ao próprio CAPS. Em comparação a Nira, sua compreensão se

apresenta mais ampliada ao ressaltar a tentativa de reduzir internações e hospitais

psiquiátricos. Participar da reforma psiquiátrica na sua compreensão seria fazer o

tratamento no CAPS, participar das atividades no CAPS, como por exemplo, os

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grupos. A reforma psiquiátrica, portanto, se mistura a própria noção de tratamento, a

reforma psiquiátrica seria o tratamento.

Os três não percebem a reforma psiquiátrica no seu sentido mais amplo,

político, sua perspectiva de mudança da realidade, transformação da forma de tratar,

mas principalmente, de perceber a chamada loucura e de se relacionar com o sujeito de

tal experiência. Contudo, o fato dessas pessoas terem algum conhecimento a esse

respeito, ainda que parcial, é positivo, afinal, sugere uma certa relação entre elas e o

processo.

O discurso de Fátima transcrito acima foi o que mais se aproximou do que

seria a reforma psiquiátrica e por isso foi a única que pode comentar sobre sua

participação e das demais pessoas atendidas no CAPS/SER III nesse processo em

Fortaleza.

[Na sua opinião, as pessoas atendidas no CAPS podem participar da reforma psiquiátrica?] Algumas podem. Eu acho que é dependendo do grau de perturbação. [Como elas poderiam participar?] Não, porque só aquelas pessoas que ficam perturbada por determinado tempo. [Por que?] Assim, porque tem pessoas que são perturbadas por uma causa, tiveram depressão e essa depressão veio a causar um desajuste mental por conseqüência dessa depressão. Mas, tem pessoas que já nasceram com a doença, nasceram com essa doença. Então, pra essas pessoas que já nasceram com essa doença, essa reforma, eu acho que, ajuda, mas não cura totalmente. Não cura totalmente. Pessoas que já nasceram com esse tipo de problema, já vem assim como uma conseqüência até de um trauma, são pessoas que tem uma depressão muito forte, distúrbio, um distúrbio mesmo emocional muito forte que é difícil. Controla. Controla. A reforma, ela controla, ajuda, mas ainda não cura. Ajuda, mas não cura totalmente. (Fátima, depoimento concedido em 28/03/05)

Ao reforçar as palavras “cura” e “controla” Fátima reafirma a perspectiva de

reforma psiquiátrica como tratamento, identificada anteriormente, desvinculada de

uma dimensão mais ampla de transformação de realidade.

Indagada a respeito de sua inserção na reforma psiquiátrica em Fortaleza,

Fátima acrescentou:

Se eu participo? Eu acredito que estou participando. [De que maneira?]

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Vindo pra cá pros grupo. Se tivesse só em casa tomando remédio não

adiantaria muito não. (Fátima, depoimento concedido em 28/03/05)

Ainda que não mencione diretamente a Cooperativa do Centre de Atenção

Picossocial (COOPCAPS) como forma de participação na reforma psiquiátrica, Fátima

reconhece as atividades em grupo no CAPS como mecanismos de participação. Talvez

porque Fátima não identifique a participação no seu sentido político mais amplo e

volte sua atenção apenas para o envolvimento direto com o tratamento.

A afirmação de desconhecimento por parte da maioria e o pouco

conhecimento da minoria sugerem um distanciamento dos sujeitos usuários do

CAPS/SER III do processo de reforma psiquiátrica local e nos remete a pensar o lugar

social desses sujeitos na construção/efetivação desse projeto.

O acompanhamento especializado oferecido pelo CAPS/SER III é percebido

positivamente pelos interlocutores da pesquisa que a ele se referem com vários

elogios, no entanto, não compreendem o CAPS como um dos elementos que compõem

a proposta de reforma psiquiátrica.

Os discursos a respeito da reforma psiquiátrica sugerem a inexistência no

CAPS/SER III de possibilidades de inclusão efetiva dos sujeitos usuários na

discussão/construção da reforma psiquiátrica em Fortaleza, daí porque não se

reconhecem como atores sociais fundamentais nesse processo, tal como ressaltam a

literatura e a legislação específicas. Como se envolver em algo que não se conhece?

A COOPCAPS poderia representar um espaço importante para aproximar

os usuários dessa discussão, contudo, não é assim reconhecido pelos interlocutores e

sim imbuído do sentido de tratamento. A Cooperativa seria, portanto, muito mais uma

atividade do CAPS/SER III e menos um espaço de incentivo ao envolvimento de seus

cooperados no projeto amplo de reforma psiquiátrica.

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O desconhecimento a respeito da reforma psiquiátrica ou a compreensão da

mesma limitada à noção de tratamento, bem como, a percepção acerca da Cooperativa

como atividade do CAPS também vinculada apenas à pespectiva de tratamento são

elementos reveladores de limitações nas ações do CAPS/ SER III que mesmo fazendo

parte da proposta ampla de reforma psiquiátrica se reduz a condição de lugar de

tratamento.

Em nossos dias com a psicofarmacologia e a biologização do discurso

médico se observa cada vez mais a acentuação da perspectiva crítica da loucura

destacada por Foucault (1999a), isto é, como diz Birman (1992) a recusa de qualquer

reconhecimento da presença do sujeito na experiência da loucura.

Na modernidade, quando a loucura passou a conotação de doença mental,

tornou-se possível a restauração da razão do chamado louco e por conseguinte, de sua

condição de sujeito. Para tanto era necessária sua reclusão no asilo sob várias medidas

“terapêuticas”. Para tornar o chamado louco em sujeito seria necessário restaurar a sua

razão.

Instalado forçosamente na periferia do espaço social, nos confins do espaço urbano, nos limites da cidade e da razão, o louco como um não sujeito e como um quase sujeito seria ativamente convertido em sujeito da razão e da vontade, mediante as técnicas de sociabilidade asilar impostas pelo tratamento moral (Birman, 1992, p. 75).

Essencialmente as formas atuais de tratamento ainda visam tornar a pessoa

com sofrimento psíquico em um ser “razoável” e sociável. Há nas entrelinhas dos

discursos terapêuticos de nossos dias uma perspectiva de restaurar ou preencher nessa

pessoa uma certa lacuna, como destaca Birman (1992), de tornar o chamado louco um

cidadão moderno.

A convivência com a diversidade, incluindo aí a pessoa com sofrimento

psíquico, é um objetivo louvável, contudo, nesse caso particular as práticas

terapêuticas na sua busca de “tratar” têm em sua essência o objetivo de adequar ações,

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comportamentos para que essa pessoa seja aceita socialmente, visam senão reparar,

pelo menos minimizar os “excessos”, moldar, perpetuando assim a histórica dimensão

moral disciplinar.

Nesse sentido, concordo com a idéia de Costa (2003) de que os serviços de

atenção em saúde mental que visam substituir o hospital psiquiátrico devem ter a

capacidade de se relacionar com a experiência da loucura em suas diferentes formas de

expressão sem a intenção de moldá-la, discipliná-la.

É necessário que esses serviços possam ir além da aplicação de

psicofarmacos e terapias, enfim, fomentar - e, algumas vezes, viabilizar - o diálogo

entre a chamada loucura e a cidade. De acordo com Costa (2003), a arte pode ser um

meio para isso, não no sentido de possibilitar interpretações da “loucura”, mas da

convivência entre os ditos não-loucos e os chamados loucos.

Estariam os novos serviços se configurando como substitutivos

efetivamente? Embora este não seja o cerne deste estudo, não posso deixar de registrar

mais uma vez a preocupação com a possibilidade de que esses reproduzam antigas

práticas (manicomiais, vigilantes, disciplinadoras). Assim, parece fundamental a

freqüente autocrítica sobre discursos e práticas cotidianos.

Há historicamente um lugar social para a chamada loucura, o do silêncio.

Que outro lugar desejamos construir? Tomando a experiência do CAPS/SER III em

que a maioria dos interlocutores da pesquisa não pode opinar acerca da reforma

psiquiátrica por desconhecer o processo, será que estamos construindo de fato um

outro lugar?

Cabe a reforma psiquiátrica evidenciar o sujeito da loucura, trazê-lo à cena,

possibilitar a leitura dessa experiência por meio de um olhar diferente daquele guiado

pela tradição crítica. Quem sabe recorrer à perspectiva trágica da loucura descrita por

Foucault (1999a) não represente um começo?

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Como bem nos lembra Birman (1992), é fundamental perceber a "verdade"

na “loucura”, não há vazio a ser preenchido, não é necessário “enquadrar” o chamado

louco, moldá-lo seguindo parâmetros de normalidade para que ele seja sujeito. Ele é

um sujeito, apenas não expõe a subjetividade da maneira padrão, isto é, de acordo com

o que está estabelecido como "normal".

Nesse sentido, ainda estamos distantes da efetivação da reforma

psiquiátrica, pois seguimos os passos da normalização impressos no saber-poder da

psiquiatria que ainda dita as regras, inclusive nos novos serviços, onde as relações de

poder ainda dão espaço para a dominação de uma disciplina sobre as outras e de todas

as disciplinas envolvidas (psiquiatria, psicologia, terapia ocupacional, serviço social,

enfermagem, entre outras) sobre o usuário.

Isso não quer dizer que os técnicos devam ser vistos como os vilões, até

porque muitos tentam sair desse lugar comum de dominador, entretanto, estão ali

como representantes de saberes científicos específicos, representantes da mesma

Ciência que enquadra a pessoa com sofrimento psíquico como sujeito carente de

cuidados e detentor do direito a tratamento, impondo-lhe uma condição de objeto.

A reforma psiquiátrica como ação é contrapartida, o que [tem] que fazer é

instaurar ligações laterais, todo um sistema de redes, de bases populares (Deleuze In

Foucault, 1999b, p.74). Tem de extrapolar os “muros” institucionais, alcançar o espaço

coletivo comum onde múltiplas relações se constroem e reconstroem continuamente,

mas com o cuidado de não “psiquiatrizar” também essas relações senão pode incorrer

na revitalização da lógica higienista, isto é, de “medicalização da sociedade”.

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Considerações finais

A reforma psiquiátrica é uma proposta que transcende o questionamento do

modelo tradicional de atenção em saúde mental centralizado na figura do hospital

psiquiátrico como espaço de “tratamento”; uma vez que requisita interferências nas

relações de poder e nos esquemas de dominação que historicamente designaram (e

designam) à "loucura" e aos nominados de "loucos" o lugar social da exclusão, do

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silêncio, da sujeição.

A importância da participação efetiva dos usuários dos serviços de atenção

em saúde mental no processo de reforma psiquiátrica é um elemento recorrente nos

discursos que o legitimam. O presente estudo teve como principal objetivo

compreender e interpretar o lugar social desses sujeitos usuários na reforma

psiquiátrica em Fortaleza partindo de suas narrativas. Para tanto, tomei a experiência

particular do CAPS/SER III como campo de investigação.

Os discursos dos interlocutores da pesquisa revelaram certo consenso de que

a “loucura” seria relacionada a irracionalidade. Poucos se referiram a noção patológica

moderna de “loucura” como sinônimo de doença mental. Foi sugerida ainda certa

relação entre essas duas compreensões por um dos interlocutores da pesquisa, porém a

primeira perspectiva se mostrou preponderante.

Surpreendentemente a maioria dos interlocutores afirmou desconhecer o

processo de reforma psiquiátrica e aqueles que puderam falar a respeito destacaram

apenas o aspecto da assistência/tratamento. Isto sugere não só um distanciamento dos

sujeitos usuários em relação a essa discussão, mas e, principalmente, revela fragilidade

na reforma psiquiátrica em Fortaleza que ainda está acontecendo muito mais no plano

institucional – aliás, até pouco tempo atrás nem mesmo em nível institucional, pois

existiam no município apenas três CAPS até o início do ano de 2005 – e menos no

"conteúdo". Em seu sentido político amplo a reforma psiquiátrica local tem um longo

caminho a percorrer!

No caso do CAPS/SER III, por exemplo, embora apresente estrutura física

distinta da costumeiramente observável nos hospitais psiquiátricos, o conteúdo das

práticas profissionais ali desenvolvidas ainda se mostra muito arraigado à noção

patológica da "loucura", limitado à perspectiva de "tratamento", à idéia de

normalização dos sujeitos. Daí se pode compreender melhor o desconhecimento

afirmado pela maioria dos interlocutores e o destaque apenas à idéia de tratamento

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pelos poucos que falaram a respeito da reforma psiquiátrica.

Com a reforma psiquiátrica as ações dos profissionais dos serviços

substitutivos necessitam se imbuir de novos sentidos, afinal, o que adianta substituir os

espaços físicos e permanecer com práticas normalizadoras? Freqüentar um serviço de

saúde cuja estrutura física é acolhedora e confortável sem dúvida é importante, porém

é apenas um dos aspectos a serem considerados.

Os discursos sugeriram que "tratar" continua sendo o objetivo essencial da

atenção em saúde mental mesmo no CAPS, espaço que nasceu sob a perspectiva de ir

além da assistência médica, com o objetivo principal de fomentar a produção de novos

sentidos e significados para as vidas de seus usuários.

Os interlocutores da pesquisa demonstraram satisfação com os atendimentos

prestados no CAPS/SER III, mas talvez por não viabilizar oportunidades de discussões

extra-tratamento e atividades extra-institucionais, esse serviço é reconhecido por eles

apenas como lugar de tratamento. Somente duas interlocutoras da pesquisa

reconhecem o CAPS/SER III como lugar de trabalho:

Quando eu entro ali é como se eu já fosse tipo uma funcionária daqui e não uma paciente (risos). Eu já entro ali no portão do CAPS como se eu já fosse uma funcionária e não uma paciente, eu me sinto assim aqui no CAPS desde que começou a cooperativa (Marcia, depoimento concedido em 14/03/05)

Tem uma mulher lá na academia que viu o meu tapete e achou muito bonito esse tapete e acha muito bem feito esse tapete.(...) Quando eu tô lá ela disse que é não sei o que dá Cooperativa das Cooperativas, que tá registrada, que ganha um salário. Aí eu tenho que mentir (...). Quanto é que tu ganha? Aí eu não sei nem aonde é que eu fico. Não, eu faço tapete, a gente assina lá, aí ela junta aquele dinheiro, a gente assina o ponto, a gente fica ali, num pouquim, pouquim, mas dá. E quanto é o pouquim? Eu disse assim: mulher, um salário mínimo não é duzentos e tantos reais? Aí é assim, quando chega naquele mês, se a gente faltar a gente tá em falta aí ganha só aquela metade daquilo que pode ganhar. (...) Aqui eu digo que ganho um salário porque faz vergonha dizer que eu ganho dez reais por mês ...(Nira, depoimento concedido em 28/03/05)

Vale ressaltar, no entanto que o campo da atenção em saúde mental em nível

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local tem passado por algumas mudanças significativas, dentre as quais se observa a

importante ampliação do número de CAPS na cidade como indicativo da preocupação

em construir uma rede de serviços de atenção em saúde mental que, inclusive, esteja

articulada aos demais serviços constituintes da rede pública de atenção à saúde.

Outro aspecto relevante é a preocupação em possibilitar capacitação aos

profissionais desses CAPS sob uma perspectiva integrada aos preceitos da reforma

psiquiátrica, principalmente, no que se refere à noção de desinstitucionalização como

(des)construção.

Diante dos avanços, recuos e contradições que permeiam o complexo campo

da saúde mental e, mais especificamente, o universo do CAPS/ SER III, algumas ações

podem ser implementadas pela instituição como sugestões para o alargamento da

horizontalidade do processo de reforma psiquiátrica em Fortaleza, considerando

sobretudo a participação ativa dos usuários.

Primeiro , é imprescindível uma maior articulação interdisciplinar entre os

profissionais que compõem a equipe, partindo de discussões periódicas e sistemáticas

acerca do “fazer cotidiano”, do significado das ações de cada profissional na equipe e

de melhores formas de partilhar esse “fazer”, considerando que a proposta de reforma

psiquiátrica que norteia a criação dos CAPS deve nortear seu “pensar” e “fazer”

cotidianos.

Segundo, igualmente relevante é incentivar e promover sistematicamente o

envolvimento dos usuários nas discussões e propostas que visem a melhoria da

qualidade dos atendimentos realizados pelo CAPS através da participação ativa destes

em todo o processo, desde o planejamento das ações.

Terceiro, cabe ao CAPS viabilizar oportunidades de socialização de

conhecimentos a respeito da reforma psiquiátrica entre os usuários, bem como, junto

aos seus familiares, fomentando maior participação destes em conferências de saúde

mental, fóruns, movimentos sociais e outros espaços democráticos, de modo a se

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fazerem presentes não como meros coadjuvantes, mas como co-partícipes da

construção de uma política efetiva de atenção em saúde mental no município. A

COOPCAPS deve representar um espaço fomentador importante para o início desse

exercício coletivo, político.

Essa perspectiva da participação tem se construído de maneira expressiva

em alguns estados brasileiros como Minas Gerais, por exemplo, onde os usuários dos

serviços de saúde mental e seus familiares não só compreendem a proposta de reforma

psiquiátrica, mas também se articulam entre si – inclusive, por intermédio de

Associação de Usuários – e com profissionais da área para propor e desenvolver ações

que levem à sua efetivação.

Além das ações propostas em nível institucional do CAPS, isto é,

considerando essa discussão de modo mais ampliado na cidade, cabe à gestão

municipal incentivar e acompanhar sistematicamente essas ações e, ao mesmo tempo,

é imprescindível e urgente fomentar e viabilizar também a participação efetiva dos

usuários e de seus familiares na construção de propostas que se relacionem à política

de saúde mental de Fortaleza. As discussões e decisões a esse respeito não podem

continuar centralizadas no segmento de profissionais.

Essa participação pode se dar por intermédio de instâncias já instituídas tais

como os Conselhos de Saúde e as conferências de saúde, bem como, de espaços

coletivos menos formais como assembléias e outros encontros de discussão sobre o

tema. É importante lembrar que a informação é fundamental para que os usuários e

seus familiares se sintam realmente à vontade e em condições de opinar e avaliar os

conteúdos em questão, daí porque as ações no CAPS devem estar em sintonia com a

perspectiva mais ampla adotada pela gestão municipal.

A partir do objetivo principal do presente trabalho, os interlocutores tiveram

oportunidade de se pronunciarem acerca da reforma psiquiátrica. Embora não tenham

podido falar muito sobre o tema em questão, a “palavra” evidenciada se mostrou

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reveladora de um conteúdo importante do processo local.

O desconhecimento ou distanciamento desses interlocutores em relação à

discussão acerca da reforma psiquiátrica não se dá por mera desatenção dos mesmos.

Traduz o distanciamento das ações do próprio CAPS em relação ao seu sentido

fundante, aos princípios da reforma psiquiátrica, limitando-se à condição de "lugar de

tratamento".

Esses contextos de realidade evidenciam que tal como historicamente o

chamado "louco" esteve à margem das decisões sobre seu destino, silenciado,

ocupando um lugar social periférico, demarcado por determinados saberes e práticas,

no processo de reforma psiquiátrica em Fortaleza os usuários dos serviços de atenção

em saúde mental continuam tendo seus espaços delimitados por esses mesmos saberes

e práticas há séculos hegemônicos que, embora sob novos discursos, os mantém

"presos" ao silêncio.

“Aboliu-se” a camisa-de-força, alguns de nós – aqui me incluo – esperamos

ver o fim das práticas de eletrochoque, de intervenções como a lobotomia e da

reclusão em hospitais psiquiátricos, mas são muitas as resistências em lidar com a

experiência da “loucura” e com a figura do “louco” cotidianamente no espaço comum.

Insiste-se em atribuir ao “louco” noções como incapacidade e

periculosidade, em percebê-lo como aquele que necessita de tratamento para se tornar

“sociável”. Seu discurso é quase sempre interpretado apenas como indicativo para

diagnóstico, negando-lhe o exercício da “palavra” no sentido arendtiano do discurso

como importante dimensão da condição humana, como expressão que se revela no

espaço comum, lugar do homem agir e interagir com outros homens.

Ao oportunizar a “palavra” aos interlocutores da pesquisa, além dos

conteúdos evidenciados e discutidos, alguns discursos sugeriram uma demanda de

desinstitucionalização e sinais de resistência. A crítica de uma usuária a respeito da

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“cancela” presente na porta principal de acesso ao CAPS/SER III; os discursos de duas

interlocutoras que se consideram funcionárias e não usuárias daquele CAPS; as

reclamações em relação ao mau atendimento dos recepcionistas ou sobre a falta de

medicação ou ainda à forma de ingresso de vários usuários na cooperativa são

exemplos disso.

Nesse sentido, a oportunidade à “palavra” – como argumento e ação – aos

usuários dos serviços de saúde mental é condição fundamental para que se possa

pensar em uma efetiva reforma psiquiátrica no Brasil ou particularmente, em

Fortaleza.

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Universitária, 1999.

Títulos literários:

ASSIS, M. de. O alienista. 22.ed. São Paulo: Ática, 1992.

BUENO, A. C. Canto dos malditos. 7.ed. São Paulo: Lemos, 2000.

ROTTERDAM, E. de. Elogio da loucura. São Paulo: Martin Claret, 2001. (A obra-

prima de cada autor, 37)

Filme longa metragem:

BICHO de sete cabeças. Direção de Laís Bodanzky. Produção de Maria Ionescu e

Fabiano Gullane. Rio de Janeiro: Buriti Filmes; Gullane Filmes; Dezenove Som;

Imagens e Fábrica de Cinema; Riofilme, 2000. 1 filme (80 min), son., color., 35 mm.

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119

ANEXOS

ANEXO I

Termo de consentimento livre (modelo I)

Declaro que fui informado(a) sobre a realização desta pesquisa e

orientado(a) sobre os objetivos e finalidades deste estudo, não havendo nenhuma

dúvida a respeito.

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120

Compreendo que não sou obrigado(a) a participar da referida pesquisa, bem

como, posso me recusar a responder qualquer questionamento. Estou ciente ainda de

que posso desistir a qualquer momento.

Meu nome e o de pessoas que eu venha a citar não serão revelados nos

documentos pertencentes a este estudo.

Concordo em participar desta pesquisa e autorizo a utilização das

informações por mim prestadas.

Assinatura do(a) entrevistado(a)

Assinatura da entrevistadora

Fortaleza, ____ de ___________ de 2005.

ANEXO II

Termo de consentimento livre (modelo II)

Declaro que fui informado(a) sobre a realização desta pesquisa e

orientado(a) sobre os objetivos e finalidades deste estudo, não havendo nenhuma

dúvida a respeito.

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121

Compreendo que não sou obrigado(a) a participar da referida pesquisa, bem

como, posso me recusar a responder qualquer questionamento. Estou ciente ainda de

que posso desistir a qualquer momento.

Concordo em participar desta pesquisa e autorizo a utilização das

informações por mim prestadas, bem como, a revelação do meu nome nos documentos

pertencentes a este estudo. Contudo, proíbo a citação de nomes de pessoas que por

ventura eu venha a mencionar.

Assinatura do(a) entrevistado(a)

Assinatura da entrevistadora

Fortaleza, ____ de ___________ de 2005.

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122

ANEXO III

Roteiro de entrevista aos sujeitos atendidos no Centro de Atenção Psicossocial

(CAPS) vinculado à Secretaria Executiva Regional - III do município de

Fortaleza - Ce.

Nº _________

Data: _________________

Dados gerais:

nome: ____________________ idade: ______ estado civil: ________________

Religião:_______________________Naturalidade:_________________________

Escolaridade: ________ Profissão:__________________

Atual situação ocupacional: ___________________

Com quem reside?

Quem sustenta economicamente a casa?

Como é seu relacionamento com seus familiares?

E com os vizinhos?

Participa de outro(s) grupo(s) (artístico, político, religioso etc.) além da

cooperativa? Se sim, como é sua relação com as pessoas desse(s) grupo(s)?

O que gosta de fazer nos momentos de lazer?

Sobre possíveis experiências de internação em hospitais psiquiátricos e similares

Passou por internações em hospitais psiquiátricos (institucionalização)? Se sim,

quantas foram?

Qual o período da última internação?

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123

Poderia comentar um pouco sobre essa(s) experiência(s)? O que significou pra

você ficar internado(a)?

Sofre preconceito por ser ex-internado?

Sobre o atendimento no CAPS

Por que procurou este CAPS?

O que você acha do atendimento que vem recebendo neste CAPS?

Compreensão acerca da “loucura”

Na sua opinião, o que é loucura?

Compreensão e avaliação sobre a reforma psiquiátrica

O que você entende por reforma psiquiátrica?

Qual a sua opinião em relação a isso?

Na sua opinião, as pessoas atendidas no CAPS podem participar da reforma

psiquiátrica? Como?

Você participa? De que maneira?

** Há algo mais que você gostaria de dizer?

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