26
1 Regimes Regulatórios na América do Sul: uma análise comparativa Verônica Cruz 1 Resumo O objetivo deste estudo é, em um primeiro momento, descrever e analisar o arcabouço regulatório do setor de eletricidade em seis importantes países sul-americanos: Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Peru e Venezuela. A partir da análise do arcabouço regulatório em cada um dos países selecionados o estudo aponta o padrão regulatório existente na região com destaque para o papel desempenhado pelo Estado e em seguida demonstra também como as variáveis institucionais locais interferem no desenho institucional implementado pela reforma regulatória realizada nestes países. Como suporte teórico o estudo recorre ao conceito de path dependency e sugere que a predominância das variáveis domésticas no ordenamento regulatório sul-americano deve-se à força e à persistência de instituições pregressas bem como a história política dos países analisados. Introdução A América do Sul, assim como outras regiões, vem buscando uma maior e melhor inserção no mundo globalizado, focalizando a transposição de obstáculos econômicos e sociais, de modo a tornar-se mais equilibrada quanto às desigualdades sociais e mais competitiva do ponto de vista econômico. A despeito das críticas às escolhas governamentais feitas pelas lideranças dos países da região visando a consecução de tais objetivos, parece não haver dúvidas entre eles sobre a importância de determinadas estratégias políticas, como a regulação de setores e serviços públicos de infra-estrutura, mais especificamente do setor energético. As transformações no cenário político-econômico nos anos noventa, a saber, a reforma regulatória e a criação de agências reguladoras independentes, introduziram uma considerável inovação na administração pública e também uma transformação do papel do Estado. Este paper analisa as formas assumidas por estes corpos regulatórios e o papel reservado à função estatal em relação à promoção do desenvolvimento em países sul-americanos. O padrão regulatório do setor de energia adotado na região assume importância central nesta análise. A seleção dos seis países escolhidos (Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Peru, Venezuela) deve-se à sua relevância estratégica para o desenvolvimento da região, seja pelo grau de desenvolvimento econômico, pela proeminência política, pela propriedade de reservas ou potencial energético ou ainda pela dependência energética em relação aos demais países da região. A comparação das formas como cada país a sua maneira organiza seu arcabouço regulatório poderá indicar quais são as variáveis que compõem e predominam no ordenamento regulatório sul-americano. O processo de globalização, acentuado pelas políticas neoliberais, provocou certo isomorfismo das instituições governamentais, especialmente as de ordem econômica. No entanto, neste estudo sustenta-se que a proeminência das instituições internas de cada país, observada pouco depois das reformas ocorre graças ao fenômeno demoninado pela literatura com path dependency, para o qual há uma tendência de que certas 1 Pesquisadora Neic/Iuperj

Regimes Regulatórios na América do Sul: uma análise ...paperroom.ipsa.org/papers/paper_3578.pdf · um dos países selecionados o estudo aponta o padrão regulatório existente

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Regimes Regulatórios na América do Sul: uma análise ...paperroom.ipsa.org/papers/paper_3578.pdf · um dos países selecionados o estudo aponta o padrão regulatório existente

1

Regimes Regulatórios na América do Sul: uma análise comparativa

Verônica Cruz1 Resumo O objetivo deste estudo é, em um primeiro momento, descrever e analisar o arcabouço regulatório do setor de eletricidade em seis importantes países sul-americanos: Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Peru e Venezuela. A partir da análise do arcabouço regulatório em cada um dos países selecionados o estudo aponta o padrão regulatório existente na região com destaque para o papel desempenhado pelo Estado e em seguida demonstra também como as variáveis institucionais locais interferem no desenho institucional implementado pela reforma regulatória realizada nestes países. Como suporte teórico o estudo recorre ao conceito de path dependency e sugere que a predominância das variáveis domésticas no ordenamento regulatório sul-americano deve-se à força e à persistência de instituições pregressas bem como a história política dos países analisados. Introdução

A América do Sul, assim como outras regiões, vem buscando uma maior e melhor inserção no mundo globalizado, focalizando a transposição de obstáculos econômicos e sociais, de modo a tornar-se mais equilibrada quanto às desigualdades sociais e mais competitiva do ponto de vista econômico. A despeito das críticas às escolhas governamentais feitas pelas lideranças dos países da região visando a consecução de tais objetivos, parece não haver dúvidas entre eles sobre a importância de determinadas estratégias políticas, como a regulação de setores e serviços públicos de infra-estrutura, mais especificamente do setor energético. As transformações no cenário político-econômico nos anos noventa, a saber, a reforma regulatória e a criação de agências reguladoras independentes, introduziram uma considerável inovação na administração pública e também uma transformação do papel do Estado. Este paper analisa as formas assumidas por estes corpos regulatórios e o papel reservado à função estatal em relação à promoção do desenvolvimento em países sul-americanos.

O padrão regulatório do setor de energia adotado na região assume importância central nesta análise. A seleção dos seis países escolhidos (Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Peru, Venezuela) deve-se à sua relevância estratégica para o desenvolvimento da região, seja pelo grau de desenvolvimento econômico, pela proeminência política, pela propriedade de reservas ou potencial energético ou ainda pela dependência energética em relação aos demais países da região. A comparação das formas como cada país a sua maneira organiza seu arcabouço regulatório poderá indicar quais são as variáveis que compõem e predominam no ordenamento regulatório sul-americano.

O processo de globalização, acentuado pelas políticas neoliberais, provocou certo isomorfismo das instituições governamentais, especialmente as de ordem econômica. No entanto, neste estudo sustenta-se que a proeminência das instituições internas de cada país, observada pouco depois das reformas ocorre graças ao fenômeno demoninado pela literatura com path dependency, para o qual há uma tendência de que certas

1 Pesquisadora Neic/Iuperj

Page 2: Regimes Regulatórios na América do Sul: uma análise ...paperroom.ipsa.org/papers/paper_3578.pdf · um dos países selecionados o estudo aponta o padrão regulatório existente

2

tradições ou práticas do passado persistam mesmo que outras alternativas estejam disponíveis.

1. Segurança Jurídica, Agências Independentes e Instituições Internas

Ao longo das duas últimas décadas a maior parte dos países em desenvolvimento viu-se comprometida com reformas em direção ao mercado, entre as quais se destaca a reforma regulatória. Esse tipo de reforma caracterizou-se pela estruturação de entidades públicas, preferencialmente setoriais, destinadas a regular os serviços públicos, após a transferência de propriedade de empresas prestadoras de tais serviços públicos para o setor privado. A combinação de privatizações e a criação das instituições regulatórias ampliaram concomitantemente o fortalecimento da capacidade fiscalizadora do Estado, estabelecendo o fim do período do Estado interventor e a era do “Estado Regulador” (Majone, 1997).

Neste contexto se insere o conceito da segurança jurídica para o bom desempenho econômico. A sua relevância está mais recentemente desenvolvida nas análises que se utilizam da abordagem neo-institucionalista. O princípio da segurança jurídica, além de ser um dos pilares do Estado de Direito, tem como objetivo facilitar a coordenação das interações humanas, reduzindo a incerteza que as cerca. De acordo com Pinheiro (2005) a segurança jurídica proporciona aos atores estabilidade, certeza, previsibilidade e calculabilidade do ordenamento jurídico não apenas no que se refere às relações entre particulares, mas todos esses fatores são tão ou mais relevantes quando envolvem a participação do Estado.

Dado o duplo papel exercido pelo poder público, pois ele é parte integrante da relação jurídica e ainda responsável pela definição e aplicação das normas, é objetivo da segurança jurídica “proteger o particular nas suas relações com o Estado” (Pinheiro, 2005, pp.3). Isto ocorre porque o Estado, como qualquer uma das partes de uma relação jurídica, também tem incentivos para atuar de forma oportunista, aumentando os riscos de expropriação, um dos mais temidos entre os agentes econômicos. Em razão da sua disponibilidade de coerção legal, o Estado pode mudar ou invalidar os termos de uma relação, por isto é necessário haver limitações também para a capacidade dos governos de alterar a qualquer tempo as normas que orientam a atuação dos atores envolvidos. Daí a necessidade também de um poder Judiciário forte e independente, que obrigue as partes a agir conforme firmado.

Dadas as vicissitudes do setor de infra-estrutura, onde os agentes econômicos operam com muitos riscos, autores como Levy e Spiller (1996) sugerem que um compromisso de credibilidade de longo prazo para o regime regulatório seja estabelecido com os agentes econômicos. Após uma análise empírica com foco específico no setor de telecomunicações em diversos países, estes autores concluíram que, mesmo em um ambiente problemático, um compromisso dessa natureza pode ocorrer, mas, sem o mesmo, não há possibilidade alguma de o setor de infra-estrutura receber investimentos que não sejam estatais.

A análise de Levy e Spiller (1996) é especialmente relevante para o desenho de políticas regulatórias em ambientes onde a falta de desenvolvimento econômico está relacionada à falta generalizada de restrições administrativas – como em países em desenvolvimento

Page 3: Regimes Regulatórios na América do Sul: uma análise ...paperroom.ipsa.org/papers/paper_3578.pdf · um dos países selecionados o estudo aponta o padrão regulatório existente

3

e como no caso em questão neste estudo -, além de outros padrões econômicos. O argumento central dos autores é que a credibilidade e a efetividade da estrutura regulatória, e, conseqüentemente, sua habilidade para encorajar investimentos privados e sustentar a eficiência na produção, varia de acordo com as instituições políticas e sociais de cada país. O desempenho pode ser satisfatório dentro de uma ampla variedade de procedimentos administrativos desde que três mecanismos sejam adotados: restrições substantivas sobre as ações discricionárias do regulador, restrições formais e informais sobre mudanças do sistema regulatório e instituições para reforçar essas restrições.

Assim como Pinheiro, Levy e Spiller também corroboram a tese de que a combinação de investimentos em infra-estrutura e a politização das instituições tornam vulneráveis os agentes econômicos que atuam nesse setor. Para os últimos, no entanto, uma estrutura comum incorporando o desenho regulatório e as instituições endógenas de cada país guiou a análise sobre como cada país tem resolvido seus problemas regulatórios.

Segundo os autores, as instituições de um país influenciam tanto a confiança dos investidores quanto o desempenho dos serviços públicos. No entanto, para que tenham a habilidade de restringir a ação administrativa discricionária, as instituições políticas e sociais devem ter um efeito independente sob cada tipo de regulação e um equilíbrio adequado entre o comprometimento com um sistema regulatório particular e a flexibilidade para responder às mudanças tecnológicas. É com base nesse paradoxo entre o comprometimento com um sistema regulatório e a flexibilidade frente às novas tecnologias que os autores desenvolvem toda sua argumentação sem, no entanto, o reconhecer como tal.

Pinheiro (2005) avança mais nesse sentido e discute, no âmbito de sua preocupação com segurança jurídica, esse dilema básico. Para este autor, a segurança jurídica não pode tornar imutáveis as políticas públicas, muito menos impedir a natural evolução da norma que ocorre por meio da produção legislativa, bem como da alteração da jurisprudência. Portanto, a previsibilidade que orienta a segurança jurídica não pode ser absoluta.

De acordo com a abordagem de Levy e Spiller, para se entender a capacidade de um país de comprometer-se com determinado sistema regulatório e suas instituições, deve-se estar atento ao desenho regulatório, que possui dois componentes: a governança e os incentivos. A estrutura de governança incorpora os mecanismos sociais úteis para se restringir a ação discricionária do regulador e se solucionarem os conflitos que essas restrições venham suscitar. Já a estrutura de incentivos compreende as regras governamentais que definem preços, subsídios, competição e entrada de novos competidores, interconexões, etc. Eles sustentam que a ênfase apenas nos incentivos regulatórios é um equívoco, pois, embora os incentivos afetem o desempenho, o maior impacto é sentido apenas se a estrutura de governança tiver seu lugar.

O principal achado desses autores, no entanto, refere-se ao entendimento de que tanto os incentivos quanto a estrutura de governança são determinados pelas instituições internas de casa país. A estrutura e organização dos poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, os costumes e outras normas informais amplamente aceitas, as características da competição de interesses na sociedade e a capacidade administrativa de cada país compõem um conjunto de critérios que, segundo os autores, determinam e influenciam as opções regulatórias em cada país.

Page 4: Regimes Regulatórios na América do Sul: uma análise ...paperroom.ipsa.org/papers/paper_3578.pdf · um dos países selecionados o estudo aponta o padrão regulatório existente

4

Essa determinação e influência ocorrem na medida em que essas instituições endógenas restringem as ações arbitrárias do governo. Ao analisar empiricamente as experiências de Chile, Argentina, Jamaica, Filipinas e Reino Unido, os autores demonstram que cada país resolve seus conflitos regulatórios de um modo. O que explica essa variação na forma de solucionar as tensões regulatórias são as diferenças entre os desenhos institucionais de cada país. Isso significa que, se um país dispõe de instituições que se mostrem mais capazes de conter a ação discricionária do regulador do que outro, esse país provavelmente irá dispor de mais credibilidade e, por essa razão, poderá contar com mecanismos regulatórios que outro país com menos credibilidade não teria sucesso se o adotasse.

Ante o exposto, nota-se que as reformas institucionais com vistas a aperfeiçoar o sistema regulatório dos países sul-americanos nos últimos anos foram, na prática, esforços governamentais para se alcançar credibilidade e se atrair investimentos privados, ainda que para isto muitos países tenham assumido elevados custos sociais. Por meio da regulação, os governos formalizam e institucionalizam seus compromissos para proteger consumidores e investidores. Vista dessa maneira, a política regulatória adotada em quase toda a região atua como um tipo de segurança jurídica para todas as partes, permitindo que consumidores recebam bens e serviços a um preço razoável providos pelo mercado que, por sua vez, fica protegido de mudanças súbitas das regras as quais está obrigado.

2. Os Sistemas Elétricos Nacionais Sul-Americanos

Não há crescimento sem uma infra-estrutura adequada. A falta de infra-estrutura em um país resulta, de um lado, em grande obstáculo à competitividade das empresas e em uma séria restrição à retomada do crescimento a taxas elevadas. De outro lado, implica baixo padrão de qualidade de vida da população.

De acordo com Fróes (1999) as mudanças no direcionamento dos investimentos em infra-estrutura ocorrem de acordo com o nível de desenvolvimento de cada país. Os investimentos em saneamento básico são predominantes nos países de baixa renda. A partir de certo estágio de desenvolvimento econômico, com o aumento do nível de renda e, por conseqüência, da demanda da população, os investimentos em rodovias, ferrovias, telecomunicações e energia ganham maior relevo.

Frente à crescente demanda dos setores de infra-estrutura e à iminente incapacidade do Estado de investir, a América Latina, em grande medida, adotou o padrão regulatório anglo-americano, baseado quase sempre em comissões ou em agências reguladoras independentes, que podem ser definidas como organizações públicas com amplos poderes regulatórios. A especificidade desse tipo de organização está no fato de que elas não são nem diretamente escolhidas pelo povo, nem diretamente administradas por políticos eleitos. Trata-se, portanto, de instituições não majoritárias.

A despeito das implicações que esse padrão de desenho institucional das agências reguladoras possa ter para a democracia, sua difusão pela região é notável, salvo raras exceções2. O fator que melhor explica a difusão deste padrão está associado à credibilidade transmitida ao mercado pelos governos que adotam esta opção

2 Para saber mais sobre as implicações no campo político provocadas pelo modelo institucional das agências reguladoras para a democracia brasileira ver Cruz, 2007.

Page 5: Regimes Regulatórios na América do Sul: uma análise ...paperroom.ipsa.org/papers/paper_3578.pdf · um dos países selecionados o estudo aponta o padrão regulatório existente

5

institucional de regulação. De acordo com Gilardi (2004), que analisa a difusão internacional das agências reguladoras, esta presunção vem da abordagem institucionalista da escolha racional, que sugere que o estabelecimento de agências reguladoras autônomas pode ser a melhor solução, particularmente para o problema da incerteza política.

Além da credibilidade das instituições entre os países analisados, bem como em qualquer sociedade moderna, a energia elétrica é um elemento fundamental no desenvolvimento. Por esta razão, este serviço deve estar disponível com segurança de abastecimento, qualidade, a um custo razoável ao consumidor e compatível com as estruturas de custos das empresas. Além de garantir que o mercado funcione de acordo com esses critérios, em muitos casos, a atividade regulatória assegura ainda que outras formas de energia sejam transformadas em energia elétrica e chegue até o consumidor final, o que ocorre a partir de três atividades: a geração, a transmissão e a distribuição da energia3.

A estrutura regulatória estatal iniciada nos anos 50 e que predominou até o início dos anos 90 nos países analisados tendia a organizar o processo de forma a integrar vertical e horizontalmente as três atividades. Após as privatizações, a função regulatória foi isolada das atividades de geração, transmissão e distribuição de energia, com uma ativa participação da iniciativa privada. O papel principal do Estado no setor elétrico passou a ser o de criar condições de concorrência onde coubesse.

Finalmente, cabe destacar um último aspecto que agrega relevância à análise dos padrões regulatórios na América do Sul, o qual está relacionado à importância da energia propriamente para a região, não apenas no que tange à importância do sistema energético para o desenvolvimento regional, mas também no que tange à sua contribuição para acelerar o processo de integração regional. A integração econômica experimentada pelos países sul-americanos, especialmente pelos países membros do Mercosul (Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai), tem se aprofundado nos últimos anos e revela-se atualmente um processo irreversível4. Agrega-se a isto o fato de que o suprimento de infra-estrutura, na atualidade, passa pelo entendimento de que a qualidade de vida humana, o equilíbrio social e a preservação do meio-ambiente são objetivos políticos a serem perseguidos e valores sociais amplamente compartilhados, não podendo, portanto, ficar de fora das decisões governamentais, sejam elas locais ou regionais (Cruz e Coutinho, 2007).

2.1 A regulação do setor elétrico na Argentina

A reforma regulatória no âmbito no setor energético argentino ocorreu entre 1990 e 1993 e se distingue de outras experiências por sua profundidade, seu alcance e a rapidez de sua execução. Com etapas específicas, esta reforma se completou em menos de

3 Boa parte dos países da América do Sul conta com grande potencial hidroelétrico e concentra grandes reservas de gás natural gerando energia elétrica a partir da combinação entre hidrelétricas e termelétricas, dependendo de sua disponibilidade de recursos. O Brasil, por exemplo, sendo um país eminentemente hidráulico tem cerca de 75% de sua energia gerada a partir dos recursos hídricos (Roca 2006). Em razão do elevado preço do petróleo e das incertezas políticas que o cercam, a geração de energia a partir de seus derivados convida à busca de outras alternativas energéticas e coloca os citados países em posição favorável no campo energético. 4 Mai, Santos e Meldonian (1998) indicam em seu estudo sete hidroelétricas binacionais no âmbito do Mercosul envolvendo Brasil, Paraguai, Argentina e Uruguai das quais três se encontravam em operação e quatro em projeto.

Page 6: Regimes Regulatórios na América do Sul: uma análise ...paperroom.ipsa.org/papers/paper_3578.pdf · um dos países selecionados o estudo aponta o padrão regulatório existente

6

quatro anos e, de acordo com estudos como o de Devoto (1998), Gomelsky (2003), Bouille (1999) e Manzetti (2002), com um balanço no qual os aspectos positivos superam largamente os aspectos negativos.

A transformação do setor elétrico na Argentina, bem como nos demais países analisados, foi em grande medida conseqüência do crescente aumento de demanda e a não correspondência de investimentos pelo ente Estatal. Porém, um fator que acelerou a mudança foi a grave crise energética atravessada pelo país entre os anos de 1998 e 1999, em virtude de muitos anos de sucessivos desacertos no setor (Legisa, 2001).

No que diz respeito à ordem de prioridades que caracterizou a primeira etapa de reforma do Estado, Oszlak e Felder (2000) sustentam que na Argentina houve uma inversão que adiou a criação e o fortalecimento do aparato institucional que deveria atuar como interlocutor dos prestadores privados. A urgência governamental em transferir os serviços para o setor privado aumentou significativamente a capacidade de negociação empresarial. Há casos extremos de setores inteiramente privatizados sem que os marcos regulatórios sequer estivessem definidos. No entanto, para o setor elétrico e de gás, as privatizações ocorreram com o marco regulatório sancionado, mas sem um ente regulador estabelecido.

A Reforma do Estado na Argentina e, mais precisamente, o Plano de Emergência Econômica promulgado pela Lei 23.697, de 1989, marcam a nova ordem estatal instituída no país. No caso do setor elétrico, a Lei 24.065, juntamente com a Lei 15.336, traz os dispositivos institucionais que constituem o marco regulatório do setor elétrico, porém a primeira, mais abrangente, modificou em muitos aspectos a segunda. A partir desse marco foram definidos os atores privados que foram se incorporando em todos os seguimentos do setor elétrico, dando início ao processo de transformação com fins de se estimular a concorrência.

Com a Lei 24.065, várias mudanças foram introduzidas, como a separação das diferentes funções do sistema elétrico (geradores, transportadores, distribuidores e grandes usuários) e a criação de associações para cada um dos setores (AGEERA – geradores, ATEERA – transportadores, ADEERA – distribuidores, AGUEERA – grandes usuários). Esta lei também define como serviços públicos o transporte e a distribuição de energia elétrica, além de fixar novos objetivos para a política nacional em matéria de abastecimento de energia focalizando os direitos dos usuários.

O órgão regulador na Argentina é o Ente Nacional de Eletricidade, ENRE, um organismo autárquico vinculado à Secretaria de Energia do Ministério de Planejamento Federal, Investimento Público e Serviços e que dispõe de autoridade para aplicar o novo marco regulatório do setor estabelecido pela Lei 24.065, a mesma que o criou. Cabe ao ENRE assegurar que não ocorram condutas prejudiciais aos objetivos contemplados pela lei argentina. No entanto, é válido notar que conforme definido nesta mesma lei em um ambiente de concorrência a intervenção estatal deva ser limitada à prevenção de condutas anti-competitivas, discriminatórias, que caracterizem formação de monopólios ou abuso de posição dominante. Este órgão deve também assegurar os controles ambientais, além de outorgar certificados de conveniência e necessidade pública para a ampliação do sistema de transportes, o chamado CCNP. Por fim, é este mesmo órgão que concede autorizações para a ampliação do sistema de transporte, assim como também autoriza o acesso à capacidade de transporte já existente, além de dispor sobre novos projetos de geração e sobre o controle das estruturações acionárias.

Page 7: Regimes Regulatórios na América do Sul: uma análise ...paperroom.ipsa.org/papers/paper_3578.pdf · um dos países selecionados o estudo aponta o padrão regulatório existente

7

Além disso, a Lei 24.065 estabelece também o funcionamento do Mercado Atacadista Elétrico (Mercado Mayorista Eléctrico AS - MEM), definido como um espaço de concorrência que reúne os atores participantes do mercado atacadista da cadeia elétrica (produtores, transportadores, distribuidores, grandes usuários e comerciantes), e a empresa sem fins lucrativos, vinculada ao Despacho Nacional de Cargas, a Companhia Administradora do Mercado Atacadista Elétrico Sociedade Anônima (CAMMESA). São igualmente acionistas da empresa as associações mencionadas anteriormente e a Secretaria de Energia, que tem poder de veto na diretoria. A geração térmica e hidráulica, o transporte e a distribuição de energia são privatizados, permanecendo como estatais as centrais nucleares e as hidroelétricas binacionais Salto Grande e Yacyretá.

A Companhia Administradora do Mercado Atacadista Elétrico Sociedade Anônima (CAMMESA) cumpre funções administrativas entre as quais estão a coordenação das operações de despacho, a responsabilidade pelo estabelecimento dos preços no atacado e a administração das transações econômicas. Trata-se de uma empresa de gestão privada com propósito público. Cabe aos agentes do mercado a propriedade de 80% de seu pacote acionário, distribuídos igualmente entre geradores, transportadores, distribuidores e grandes usuários, com 20% de participação cada um, ao passo que o restante (20%) fica em poder do Ministério Público, que assume a representação do interesse geral e dos usuários. Por fim, cabe a CAMMESA a execução dos seguintes propósitos públicos: aportar economia e racionalidade à administração do recurso energético; coordenar a operação centralizada para garantir segurança e qualidade; e administrar o MEM assegurando transparência por meio da participação de todos os agentes envolvidos e das regulamentações respectivas5.

Finalmente, compete à Secretaria de Energia ditar a resolução com as normas para as transações de energia e potencia a serem aplicadas pelo Despacho Nacional de Cargas (DNDC), órgão que segundo a lei deve se constituir hierarquicamente abaixo desta secretaria sob a forma de sociedade anônima. Ao determinar as normas para o funcionamento do DNDC, garantindo que este órgão atue com transparência e eqüidade das decisões, a secretaria busca atender aos seguintes princípios: permitir a execução de contratos livremente acordados entre as partes e atender a demanda com base em preços determinados a partir dos custos econômicos do sistema. Com a Lei 24.065, a Secretaria de Energia deixou de gerir o Fundo Nacional de Energia Elétrica, destinado a contribuir para financiamento dos planos de eletrificação, o que passou a ser feito pelo Conselho Federal de Energia Elétrica (CFEE).

2.2 A regulação do setor elétrico no Brasil

De acordo com a análise de Oliveira, Losekan e Szapiro (1999) sobre a evolução do setor elétrico brasileiro, a indústria de serviços elétricos surgiu no Brasil no final do século XIX pelas mãos de empreendedores privados. Várias iniciativas localizadas foram sucedendo no tempo sem planejamento centralizado, dando origem a um conjunto de concessionárias com características técnicas, econômicas e financeiras distintas. A pulverização fragilizava a maioria das concessionárias e inviabilizava a padronização de parâmetros técnicos. Esta situação aumentava os custos operacionais e dificultava o financiamento dos planos de expansão.

5 Em http://www.cammesa.com/inicio.nsf/marcomem

Page 8: Regimes Regulatórios na América do Sul: uma análise ...paperroom.ipsa.org/papers/paper_3578.pdf · um dos países selecionados o estudo aponta o padrão regulatório existente

8

O déficit de infra-estrutura tornou-se um dos principais gargalos da economia brasileira, impedindo a constituição de um mercado nacional e limitando o crescimento econômico. Como a superação deste cenário requeria investimentos significativos e o aval dos governos era indispensável para obter recursos dos organismos internacionais de créditos, criou-se um ambiente favorável para a constituição das empresas estatais, que passaram então a desempenhar um papel central na expansão dos setores de infra-estrutura de modo geral (Oliveira, Losekann e Szapiro, 1999). A consolidação dos monopólios públicos ocorreu nos anos 70. No setor elétrico especificamente, a Eletrobrás assumiu a função de holding, controlando quatro geradoras regionais, mas com a participação minoritária nas empresas estaduais.

O modelo institucional estatal que regulou o setor elétrico instituído nos anos 60 vigorou no país nos 30 anos subseqüentes. No entanto, a partir de 1980 vários fatores levaram à exaustão deste modelo, o que favoreceu as reformas dos anos 90. Entre os citados fatores estava a notória incapacidade do Estado brasileiro de preservar os níveis de investimento necessários ao setor energético. No Brasil as reformas em direção ao mercado no setor elétrico tiveram início no governo Cardoso. Uma crítica é recorrente na literatura quanto à reforma deste setor especificamente, pois se acredita que o governo deu início ao processo de privatização das empresas de distribuição sem antes ter estabelecido o marco regulatório e a estrutura da indústria e isso teria desfavorecido a coordenação e o desenvolvimento ulterior deste setor. A venda de empresas sem um marco regulatório pré-estabelecido aumentou o poder de barganha das empresas e supervalorizou os contratos de gestão.

Segundo Oliveira, Losekann e Szapiro (1999), a Lei 8.987, de 1995, regulamentou a exploração de serviços de infra-estrutura no Brasil e ofereceu as bases para a reforma desses setores, viabilizando a entrada de investimentos privados no fornecimento de serviços públicos. A Lei 8.631, de 1993, eliminou o regime tarifário pelo custo do serviço no setor elétrico. Esta lei promoveu o encontro das contas das empresas elétricas com o Tesouro e eliminou o conceito de remuneração mínima garantida.

Já a Lei 9.074, de 1995, estabeleceu condições legais para que os grandes consumidores de energia elétrica, denominados consumidores livres (com carga superior a 3MW), pudessem eleger livremente o seu gerador. Com esta mudança, permitiu-se a introdução da concorrência no setor elétrico. Os demais consumidores são denominados consumidores cativos, uma vez que permanecem sob o monopólio das distribuidoras (Oliveira, Losekann e Szapiro, 1999).

Em agosto de 1997, a Lei 9.478 determinou a estrutura e o funcionamento do Conselho Nacional de Política energética. Em dezembro do mesmo ano, pela Lei 9.427, foi instituída a Agência Nacional de Energia Elétrica – ANEEL, cuja função regular e fiscalizar a produção, transmissão, distribuição e comercialização de energia elétrica em conformidade com as políticas e diretrizes do governo federal.

O Ministério das Minas e Energia é o órgão do Executivo encarregado do setor energético como um todo no Brasil. Em 2004, no âmbito deste ministério foi criado o Comitê de Monitoramento do Setor Elétrico – CMSE, composto pelo ministro das Minas e Energia e pelos titulares da Agência Nacional de Energia Elétrica, da Agência Nacional do Petróleo, da Câmara de Comercialização de Energia Elétrica – CCEE, da Empresa de Pesquisa Energética e do Operador Nacional do Sistema Elétrico – ONS. Por meio desse comitê, o Ministério das Minas e Energia acompanha o

Page 9: Regimes Regulatórios na América do Sul: uma análise ...paperroom.ipsa.org/papers/paper_3578.pdf · um dos países selecionados o estudo aponta o padrão regulatório existente

9

desenvolvimento das atividades de geração, transmissão, distribuição, comercialização, exportação e importação não apenas de energia elétrica, mas também de petróleo, gás e seus derivados. Entre as atribuições do comitê está a avaliação das condições e da segurança de abastecimento.

A ANEEL foi criada como uma autarquia especial a fim de assegurar-lhe características particulares, como a autonomia na execução de suas funções, conforme ocorre com as agências reguladoras independentes criadas em países centrais, nas quais o Brasil buscou se inspirar. Todavia, no Brasil, as agências são vinculadas a ministérios do Poder Executivo. A ANEEL é vinculada ao Ministério das Minas e Energia, uma vez que a Constituição brasileira não permite que um órgão público opere sem a vinculação a um dos três poderes (Cruz, 2007). A missão dessa agência reguladora é proporcionar condições favoráveis para que o desenvolvimento do mercado de energia elétrica ocorra com equilíbrio entre os agentes e em benefício da sociedade.

Há aspectos importantes em relação à legislação de criação da ANEEL. O primeiro diz respeito à definição das atribuições para que o órgão exerça o cumprimento da defesa da concorrência, estabelecendo regras para coibir a concentração de mercado de forma articulada com a Secretaria de Acompanhamento Econômico do Ministério da Fazenda e com a Secretaria de Direito Econômico do Ministério da Justiça. Em segundo lugar, há a previsão de estabelecimento de convênios com agências estaduais, refletindo a descentralização do setor elétrico no Brasil, o que vem ocorrendo gradativamente, na medida em que os governos de estado se estruturam para, em colaboração com a ANEEL, realizar a fiscalização dos serviços no nível local6.

O Operador Nacional do Sistema – ONS é um órgão colegiado responsável pela coordenação do setor elétrico visando especialmente minimizar a perda de coordenação ocasionada pela introdução da concorrência no setor e ainda possibilitando acesso indiscriminado à rede de transporte. De acordo com Oliveira, Losekann e Szapiro (1999) o ONS não é o proprietário dos ativos de transmissão. As empresas de transmissão delegam a este órgão os direitos de comercialização dos serviços prestados pelas suas linhas, recebendo uma remuneração pela cessão de seus direitos.

O Conselho Nacional de Política Energética - CNPE está vinculado à Presidência da República. Trata-se de um órgão de assessoramento cuja função é propor ao presidente da República políticas nacionais e medidas específicas visando promover o aproveitamento racional dos recursos energéticos, assegurar que o suprimento de recursos energéticos chegue a todo país e estabelecer diretrizes para programas específicos considerando as diversas fontes de energia, entre outros.

O Conselho é composto por dez membros, sendo o ministro das Minas e Energia seu presidente. Além dele fazem parte os ministros da Ciência e Tecnologia, da Fazenda, do Planejamento, Orçamento e Gestão, do Meio Ambiente e do Desenvolvimento Indústria e Comércio, além do ministro-chefe da Casa Civil, de um representante dos Estados e do Distrito Federal, de um cidadão brasileiro especialista em energia e de um representante de universidade brasileira especialista em energia.

A Câmara de Comercialização de Energia Elétrica – CCEE foi criada em 2004 pela Lei 10.848, em substituição ao Mercado Atacadista Energia Elétrica - MAE, criado em 6 Mais informações sobre o processo de criação e funcionamento desta agência, considerados seus aspectos políticos essencialmente pode ser visto em Cruz (2007).

Page 10: Regimes Regulatórios na América do Sul: uma análise ...paperroom.ipsa.org/papers/paper_3578.pdf · um dos países selecionados o estudo aponta o padrão regulatório existente

10

2002. Trata-se de uma associação civil integrada pelos titulares de permissão, autorização ou concessão e ainda por outros agentes vinculados aos serviços e às instalações de energia elétrica, bem como os consumidores livres. Ela tem por finalidade viabilizar a comercialização de energia elétrica no Sistema Interligado Nacional nos ambientes de contratação regulada e contratação livre, além de efetuar a contabilização e a liquidação financeira das operações realizadas no mercado de curto prazo.

Finalmente, a Agência Nacional de Águas - ANA, vinculada ao Ministério do Meio Ambiente, conforme determina a sua lei de criação, é o órgão responsável pela implementação da Política Nacional de Recursos Hídricos. Cabe a esta agência definir as condições de operação em reservatórios de aproveitamento hidrelétricos por agentes públicos e privados, em articulação com o Operador Nacional do Sistema Elétrico.

2.3 A regulação do setor elétrico na Bolívia

A primeira tentativa de reforma do setor elétrico na Bolívia ocorreu em 1989, com apoio do Banco Mundial, sem sucesso, todavia. O governo naquele período se opunha às privatizações porque, a seu juízo, os serviços neste setor funcionavam satisfatoriamente. De acordo com a avaliação do próprio Banco Mundial, de fato o setor elétrico boliviano demonstrava mais eficiência que o dos países vizinhos. A Bolívia não sofria de escassez de energia e não havia o risco de fornecimento energético que precipitou as privatizações em outros países sul-americanos, como na Argentina e no Peru7.

De acordo com relatório do próprio Banco Mundial, a partir de 1993 o governo que assumiu o poder não mais se opôs às mudanças e abriu caminho para as reformas em direção ao mercado, apoiadas por este organismo internacional. Até aquele momento, a regulação do setor era de responsabilidade do Ministério de Energia e Hidrocarbonetos, e várias empresas de geração atendiam a demanda do país: a estatal ENDE se ocupava da geração e transmissão, e a COBEE, empresa privada norte-americana, se encarregava da geração e distribuição em La Paz e Oruro, enquanto outras duas cooperativas elétricas rurais privadas controlavam a distribuição em Santa Cruz e em Sucre e duas subsidiárias da ENDE, em Cochabamba e em Potosí.

Com as mudanças introduzidas pela reforma do setor elétrico, uma nova estrutura setorial se estabeleceu. Os ativos da ENDE se dividiram em três companhias de geração vendidas aos investidores privados: Corani, Valle e Hermoso y Guaracachi. Do mesmo modo, com os ativos da COBEE se constituíram companhias de geração e de distribuição vendidas a licitantes privados. A ENDE criou também uma companhia de transmissão vendida posteriormente, assim como também passaram totalmente para a administração privada as subsidiárias de distribuição de ENDE e COBEE.

O processo de privatização do setor elétrico boliviano envolveu um sistema de capitalização singular, no qual os investidores privados adquiriram 50% das ações das companhias públicas. Já os trabalhadores e empregados puderam adquirir cerca de 2% das ações das mesmas empresas. As demais ações foram destinadas à criação de fundos de pensão para cidadãos com mais de 65 anos de idade. Além disso, o sistema previa um contrato que permitia aos investidores privados deter o controle da gestão da 7 Sobre este ponto é válido notar a proeminências de organismos internacionais, como Banco Mundial, na formulação de políticas setoriais em países soberanos, com é o caso da Bolívia.

Page 11: Regimes Regulatórios na América do Sul: uma análise ...paperroom.ipsa.org/papers/paper_3578.pdf · um dos países selecionados o estudo aponta o padrão regulatório existente

11

companhia e previa que o capital gerado pelas vendas, a maior parte de origem estrangeira, ficasse em mãos de companhias privatizadas as quais tinham a obrigação de reinvesti-lo em novos projetos comerciais.

Em 1994, a Bolívia adotou um novo marco regulatório que permitiu a ampla modificação do setor energético. A Lei de Capitalização, de março de 1994, autorizou investimentos de capital privado na empresas estatais. Já a Lei de Criação do Sistema de Regulação Setorial (Lei 1600), de outubro de 1994, permitiu a criação de superintendências independentes para os setores de energia elétrica, telecomunicações, hidrocarbonetos, transportes e águas. As superintendências bolivianas correspondem às instituições independentes adotadas como órgãos reguladores na região.

No entanto, a Lei 1604, de dezembro de 1994, é o instrumento que detalha os aspectos relativos ao funcionamento do setor elétrico. Esta lei normatiza as atividades da indústria elétrica e estabelece os princípios para a fixação de preços e tarifas de eletricidade em todo o território boliviano. A esta lei estão submetidos todos os agentes da indústria elétrica, exceto aqueles ligados à produção nuclear, objeto de lei específica.

A Lei 2.341, de abril de 2001, estabelece as normas que regulam os procedimentos administrativos no âmbito do Poder Executivo da Bolívia, incluindo as entidades descentralizadas ou desconcentradas da administração pública, como o Sistema de Regulação Setorial - SIRESE. Este sistema é parte do Poder Executivo e se encontra sob instrução do Ministério da Fazenda e Desenvolvimento Econômico, sendo regido pela Superintendência Geral e pela Superintendência Setorial de Eletricidade. Por fim, em fevereiro de 2006, a Lei 3.351, dando continuidade à reestruturação e organização do Poder Executivo, cria ao atual Ministério de Hidrocarbonetos e Energia.

A reestruturação do setor elétrico na Bolívia deu origem a um marco institucional novo e mais sólido. Recentemente, em 2006, foi criado o atual Ministério de Hidrocarbonetos e Energia como o órgão máximo do Poder Executivo com a responsabilidade de normatizar, executar e controlar as políticas de desenvolvimento dos setores de energia e hidrocarbonetos, garantindo segurança energética dentro de um marco de eqüidade e respeito ao meio ambiente.

A Superintendência de Eletricidade é um órgão autônomo criado com a finalidade de fiscalizar o cumprimento das normas do setor e de aprovar as tarifas. Já à Superintendência Geral cabe vigiar a eficiência de todos os setores regulados, entre eles o setor elétrico. Este órgão também recebe apelações nos casos em que a Superintendência de Eletricidade não alcança resultados satisfatórios. Para a Superintendência de Eletricidade, além das atribuições gerais, a Lei 1.604 também estabelece, em termos mais específicos, as seguintes atribuições: proteger o direito dos consumidores, assegurar que a indústria elétrica cumpra com as disposições anti-monopólicas, conceda e revogue licenças e concessões entre outras atribuições.

O Comitê Nacional de Despacho de Carga, que conta com um total de cinco representantes das companhias de geração, transmissão e distribuição e dos consumidores não regulados e da Superintendência de Eletricidade é órgão responsável pela coordenação da geração, transmissão e despacho de carga ao menor custo no Sistema Interconectado Nacional – SIN. Além disso, a Lei 1.604 determina como atribuição deste órgão, entre outras coisas, o planejamento no médio prazo (quatro anos) e o despacho de geração semanal e diário.

Page 12: Regimes Regulatórios na América do Sul: uma análise ...paperroom.ipsa.org/papers/paper_3578.pdf · um dos países selecionados o estudo aponta o padrão regulatório existente

12

2.4 A Regulação do Setor Elétrico no Chile

O Chile é o pioneiro na região no que tange à reforma do setor elétrico. É possível afirmar que a reforma chilena proporcionou ao país consideráveis avanços no setor energético, tanto em relação à experiência chilena prévia, quanto em relação aos demais países sul-americanos, como Argentina e Brasil, que no mesmo período operavam sob monopólios estatais, com distorções tarifárias e com baixos níveis de investimentos.

A primeira mudança veio em 1974, quando o governo chileno permitiu o ajuste de tarifas para alcançar o autofinanciamento, o que constituiu o primeiro passo de um amplo processo de reestruturação do setor. Em 1978, foi criada a Comissão Nacional de Energia – CNE, destinada a controlar tarifas e a coordenar as atividades de geração, transmissão e distribuição de energia. Um segundo período de reformas, compreendido entre 1979 e 1990, estabeleceu a separação entre a geração e a distribuição de energia. Em 1992, o país adotou um novo marco regulatório8 prevendo a criação do Centro de Despacho Econômico de Carga – CDEC, encarregado de coordenar a geração com fim de permitir o livre acesso aos novos entrantes e de alcançar a livre concorrência (Auguste, 1999).

Nota-se que o caráter das reformas observadas no Chile neste período era claramente voltado ao mercado; já nesta época o país desobrigou o Estado de desempenhar um papel central como provedor no setor de energia elétrica. O desenho regulatório adotado estabelecia a concorrência na geração para os grandes usuários, sem controle de preços; a regulação de tarifas na distribuição, sem permitir discriminação de preços entre os usuários finais; e, por fim, não previa limites à integração vertical ou horizontal, bem como não previa autonomia para os entes reguladores.

No que se refere à propriedade das empresas de energia, uma vez estabelecido o marco regulatório, as de menor porte foram integralmente privatizadas e, entre as maiores, foram vendidas participações acionárias em proporções variadas. O fato de o país ter estabelecido um arcabouço regulatório consistente antes de iniciar o processo de privatizações e reestruturações acionárias é um fator recorrente mencionado na literatura como responsável pelo êxito do caso chileno (Auguste, 1999; Levy and Spiller, 1996). De fato, tais decisões permitiram ao Chile reduzir o risco regulatório ao mínimo e assegurar um notável desenvolvimento do setor elétrico durante a década de 80. Hoje em dia, por outro lado, este mesmo desenho regulatório é passível de diversas críticas, algumas das quais endossadas pelo próprio governo, que reconhece a necessidade de ajustes no campo regulatório (Auguste, 1999).

O arcabouço legal e regulatório do Chile são formados por leis gerais, específicas e outras que versam exclusivamente sobre o funcionamento do setor energético. Esta estrutura institucional deve ser analisada a partir do Decreto com Força de Lei n.1, de 1982, que constitui o texto básico, juntamente como o Decreto Supremo n.6, de 1985. Cumpre, todavia, mencionar também a Lei de Defesa da Livre Concorrência, cujo texto possui especial relevância para a compreensão do quadro regulatório chileno.

De acordo com Rudnick (1997), que faz uma breve avaliação das principais disposições institucionais do Chile, o Decreto com Força de Lei de 1982, também conhecido como Lei Geral dos Serviços Elétricos, sofreu várias modificações desde sua criação. Seu 8 No novo marco regulatório foi estabelecido por meio de Decreto com força de lei Nº. 1 do Ministério de Minéria.

Page 13: Regimes Regulatórios na América do Sul: uma análise ...paperroom.ipsa.org/papers/paper_3578.pdf · um dos países selecionados o estudo aponta o padrão regulatório existente

13

critério básico, no entanto, foi preservado, o de promover o estabelecimento de condições de concorrência para o setor, reservando a ação reguladora do Estado apenas para as atividades que se assumem características de monopólio natural. O autor cita ainda dois princípios gerais presentes na elaboração desta lei: o funcionamento livre no campo da geração e transmissão de energia e o funcionamento regulado, baseado em normas objetivas e eficientes, no campo da distribuição elétrica em zonas de concessão, posto que a lei deva estabelecer as obrigações e os direitos das empresas concessionárias.

A lei também estabelece que a distribuição de energia elétrica em certas zonas só pode ser efetuada mediante a obtenção de concessões de serviço público de distribuição, outorgadas pelo Ministério da Economia9. A concessão cria a obrigatoriedade do concessionário de distribuir energia a quem a solicite, dentro de padrões e exigências mínimas de qualidade (Rudnick, 1999). Contudo, para o marco regulatório chileno as concessões não constituem um requisito para operar no sistema nas atividades de geração e transmissão de energia, entretanto, aqueles que dispõem de concessão gozam de direitos e vantagens (Auguste, 1999).

O Decreto Supremo n.6, de 1985, estabelece as condições que devem cumprir as empresas obrigadas a coordenar sua operação, além de definir as funções e a organização do Comitê de Despacho Econômico de Carga – CDEC, um dos organismos responsáveis pela regulação do sistema elétrico chileno. Já a legislação anti-monopólio do Chile, considera o monopólio propriamente e toda ação que atente contra à livre concorrência como um delito sujeito à penas corporais. Para prevenir, investigar, corrigir e punir os atentados à livre concorrência, a lei estabelece vários organismos: comissões preventivas regionais, a comissão preventiva central, a Comissão Resolutiva e a Fiscalização Nacional Econômica.

Os organismos destinados a regular o setor elétrico no Chile são os seguintes: o Ministério da Economia, a Comissão Nacional de Energia (CNE) e a Superintendência de Eletricidade e Combustíveis (SEC), além do Centro de Despacho Econômico de Carga (CDEC), todos ligados ao governo central. Os governos municipais, todavia, também interferem nas questões regulatórias.

Cabe ao Ministério da Economia promulgar os decretos de concessões, os decretos de fixação de tarifas elaborados pela Comissão Nacional de Energia e também, com esta comissão, solucionar as divergências que possam ocorrer no CDEC. À Comissão Nacional de Energia cabe elaborar e coordenar os planos, políticas e normas para o bom funcionamento e desenvolvimento do setor, zelar pelo seu cumprimento e assessorar o governo em matérias relacionadas a energia. Esta comissão tem status de ministério e está diretamente vinculada à Presidência da República, além de ser diretamente financiada pelo Estado.

Já os Centros de Despacho Econômico de Carga são órgãos sem pessoa jurídica, integrados pelas principais empresas geradoras de cada sistema elétrico interconectado. O Decreto n.6, de 1985, indica como responsabilidades desse órgão: planejar a operação de curto prazo do sistema elétrico considerando as operações esperadas em médio e longo prazos; calcular os custos marginais instantâneos derivados do planejamento;

9 As concessões definitivas são outorgadas por Decreto Supremo do Ministério da Economia, enquanto as concessões provisórias são outorgadas por um período de até 10 anos por resolução da Superintendência de Eletricidade e Combustíveis.

Page 14: Regimes Regulatórios na América do Sul: uma análise ...paperroom.ipsa.org/papers/paper_3578.pdf · um dos países selecionados o estudo aponta o padrão regulatório existente

14

coordenar a manutenção preventiva das unidades geradoras; verificar o cumprimento dos programas de operação e manutenção preventiva; e determinar e valorizar as transferências de eletricidade entre os integrantes do CDEC. O CDEC não possui pessoal próprio e suas atividades são financiadas pelas empresas geradoras.

A Superintendência de Eletricidade e Combustíveis é um órgão público descentralizado que tem como principal objetivo representar a autoridade do Estado no que tange à preservação da segurança dos usuários e do patrimônio no uso dos recursos energéticos. O mesmo objetivo se estende ainda para as operações correspondentes a geração, produção, armazenamento, transporte e distribuição de combustíveis líquidos, gás e eletricidade. O órgão deve também cuidar da qualidade dos serviços prestados aos usuários. Estas funções estão indicadas especialmente na Lei 18.410, e o financiamento do órgão é provido diretamente pelo Estado.

2.5 A regulação do setor elétrico no Peru

O Peru, assim como outros países da região, estabeleceu nos anos 90 um novo marco regulatório para o setor energético, a fim de assegurar a participação privada em um ambiente de concorrência e liberdade empresarial. O Estado peruano, assim como os outros, deveria garantir as práticas pró-concorrência e garantir que a energia elétrica fosse provida a setores e regiões nos quais não houvesse intenção empresarial de participar.

Todavia, o Peru já havia experimentado anteriormente o provimento de serviços públicos pelo mercado. Até antes da década de 70, a indústria elétrica peruana foi desenvolvida principalmente pelo setor privado nacional e estrangeiro. Contudo, a taxa de abastecimento não ultrapassava 15% da população, uma vez que apenas as grandes cidades recebiam o serviço por meio de empresas concessionárias. Somente anos depois, com o surgimento das primeiras empresas estatais, as populações menores tiveram acesso à energia elétrica.

De acordo com Bonifaz (2001), foi apenas com a chegada das Forças Armadas ao poder, em 1969, que se impulsionou o papel do Estado no Peru, com uma série de reformas estruturais que converteu o setor energético no principal incentivador de investimentos públicos. Como parte destas reformas, em 1972 foi criada a indústria elétrica ElectroPerú, resultado da nacionalização de empresas, que atuaria com holding para a geração, transmissão, distribuição e venda de energia elétrica. Segundo Bonifaz, ainda como um dos resultados dessas reformas, os investimentos públicos de modo geral continuaram crescendo no Peru, e os investimentos realizados pela Electroperú ascenderam em média a US$ 180 milhões anuais, o que chegou a representar 0,5% do PIB.

O autor explica que, até a primeira metade da década de 80, os investimentos continuaram aumentando e chegaram a corresponder a 1,74% do PIB, ou seja, US$ 650 milhões anuais. Porém, na segunda metade dessa década, a Electroperú já dava sinais de que atravessava uma crise que, para o autor, estava relacionada ao alto nível de endividamento externo e, sobretudo, ao atraso tarifário que comprometeu a capacidade operativa da empresa e suas possibilidade de investimento.

A administração ineficiente das empresas públicas de energia elétrica levou o Peru a apresentar uma das menores taxas de consumo de energia em comparação com outros

Page 15: Regimes Regulatórios na América do Sul: uma análise ...paperroom.ipsa.org/papers/paper_3578.pdf · um dos países selecionados o estudo aponta o padrão regulatório existente

15

países da região, como Chile e Venezuela. Tendo em vista ineficiências como esta e a intenção de se reduzir a intervenção do Estado nas atividades econômicas, o Peru iniciou nos anos 90 as mudanças normativas necessárias para a retomada do equilíbrio econômico e da qualidade dos serviços.

Em 1992, durante o governo do presidente Alberto Fujimori, são implementadas as reformas institucionais no setor elétrico em direção ao mercado. A primeira delas é a Lei de Concessões Elétricas (LCE – Decreto Lei 25.844) que, baseada nas experiências de países como Chile, Argentina e Reino Unido, introduziu a segmentação das atividades de geração, transmissão e distribuição dentro do setor de energia elétrica, além de promover a especialização das empresas de energia em cada uma das atividades. De acordo com os princípios governamentais, tudo isto deveria realizar-se dentro de um marco de concorrência absoluta e de um regime de liberdade de preços.

Cabe destacar o caráter abrangente da LCE, que descreve ainda as metodologias que devem ser empregadas para a obtenção dos preços máximos de geração, transmissão e distribuição de eletricidade. Além disso, a lei estabelece a Comissão de Tarifas de Energia como o órgão encarregado de fixar as tarifas a partir da aplicação das citadas metodologias (Sánchez, 1999 e Bonifaz, 2001).

A Lei 26.734 aprova em dezembro de 1996 a criação do Organismo Supervisor do Investimento em Energia (OSINERG) como órgão fiscalizador das atividades que desenvolvem as empresas no sub-setor de eletricidade e no cumprimento das normas do setor elétrico e também assinala a existência de um Sistema Supervisor de Investimento de Energia ao qual este órgão se integra.

Em 2000, é promulgada a Lei 27.332, Lei Marco de Organismos Reguladores do Investimento Privado em Serviços Públicos. Trata-se de um marco institucional que estabelece a natureza e as funções de todos os órgãos reguladores, envolvendo não apenas o setor elétrico, mas também os de telecomunicações, água e saneamento e infra-estrutura em transportes. Esta norma define os órgãos reguladores como organismos públicos, descentralizados, atrelados à Presidência do Conselho de Ministros, com pessoa de direito público interno e com autonomia administrativa, funcional, técnica, econômica e financeira. Dentro de seus âmbitos de competência, estes órgãos exercem função supervisora e reguladora.

Finalmente, em julho de 2006, foi aprovada a Lei 28.832 para assegurar o desenvolvimento eficiente da geração elétrica a partir do aperfeiçoamento das regras estabelecidas pela Lei de Concessões Elétricas. Entre seus objetivos estão assegurar a suficiência de geração eficiente que reduza a exposição do sistema elétrico peruano e a volatilidade de preços e os riscos de racionamento prolongado por falta de energia, reduzir a intervenção administrativa para a determinação de preços de geração mediante soluções de mercado, adotar as medidas necessárias para propiciar a efetiva concorrência no mercado de geração.

Os organismos de regulação peruanos, de acordo com a Lei de Concessões Elétricas, são o Ministério de Energia e Minas (MEM), por meio da Direção Geral de Eletricidade (DGE), e o Organismo Supervisor de Investimento em Energia (OSINERGMIM), dentro do qual funciona a Gerência de Regulação Tarifária. A Direção Geral de Eletricidade do Ministério de Energia e Minas é o órgão técnico-normativo do ministério, encarregada de propor e expedir a normatividade das atividades de geração,

Page 16: Regimes Regulatórios na América do Sul: uma análise ...paperroom.ipsa.org/papers/paper_3578.pdf · um dos países selecionados o estudo aponta o padrão regulatório existente

16

transmissão, distribuição e comercialização de energia elétrica, além de promover o desenvolvimento do setor elétrico. A DGE é o órgão facultado a subscrever contratos de concessão e a outorgar autorizações de geração elétrica. De modo geral, também regula aspectos não relacionados à definição de preços. Este era o único órgão estatal que regulava o setor até 1996, quando foi criado o OSINERG.

O Organismo Supervisor de Investimento em Energia supervisiona os serviços recebidos pelo usuário final. Seu papel é fiscalizar as empresas que prestam o serviço público de eletricidade, a fim de que cumpram as normas vigentes no que concerne a confiabilidade, segurança, qualidade dos serviços e proteção ao meio ambiente. Cabe a este organismo identificar deficiências quanto à segurança das instalações nas atividades de geração, transmissão e distribuição. Finalmente, faz parte do organismo a Gerência Adjunta de Regulação Tarifária – GART, que é encarregada de todo o planejamento e estudo de tarifas do setor. Porém, em janeiro de 2007, conforme a Lei 28.964, este órgão passa a se chamar OSINERGMIM, não mais OSINERG, e a envolver também a regulação do setor de carvão e minérios. Após mudanças sucessivas de vinculação, em 2000 este órgão foi finalmente adstrito à Presidência do Conselho de Ministros.

A GART, como órgão executivo do OSINERGMIM, é responsável por propor ao seu Conselho Diretivo as tarifas máximas de energia elétrica de acordo com os critérios estabelecidos pela Lei de Concessões Elétricas. Assim, as empresas reguladas são autorizadas a cobrar dos clientes do Serviço Público de Eletricidade, como tarifa máxima, o que é fixado por este órgão.

O instituto Nacional de Defesa da Concorrência e da Propriedade Intelectual – INDECOPI tem, no setor elétrico, a função de zelar pelo cumprimento das leis de mercado e livre concorrência e de defender os interesses de consumidores e empresas que possam ser afetados. Visando evitar concentração vertical ou horizontal, as fusões e aquisições acionárias são notificadas previamente ao INDECOPI, ao qual cabe aprovar ou não o negócio ou ainda estabelecer condições para o mesmo, a depender do impacto que possa ter para a concorrência.

2.6 A regulação do setor elétrico na Venezuela

A Venezuela está entre os países com o maior acesso a serviços elétricos da América Latina; aproximadamente 94% da população dispõe atualmente dos serviços. No entanto, a coordenação e a melhor eficiência no funcionamento dos serviços elétricos datam de um período bem recente. O setor elétrico venezuelano está estruturado de forma mista, sendo integrado por empresas públicas e privadas, muitas das quais são empresas integradas verticalmente, ou seja, desenvolvem simultaneamente atividades de geração, transmissão e distribuição de energia.

De acordo com Rudnick (1997), entre as principais empresas privadas estão a Eleval (CA Eletricidade de Valencia), Caley (CA Luz Elétrica de Yaracuy), Elebol (CA Eletricidade de Ciudad Bolívar), Calife (CA Luz e Fuerza Elétrica de Puerto Cabello), Elecar (CA Eletricidade de Caracas) e Eleggua (Eletricidade de Guarenas e Guatire), Calev (CA Luz Elétrica de Venezuela). Segundo o autor, com a exceção da Elecar, que é integrada verticalmente, as demais são todas empresas de pequeno porte. Já entre as principais empresas públicas estão a Edelga-CVG (Eletrificação do Caroni), Cadafe (CA de Administração e Fomento Elétrico), Enelven (CA Energia Elétrica de Venezuela), Enelco (CA Energia Elétrica da Costa Oriental), e Enelbar (CA Energia

Page 17: Regimes Regulatórios na América do Sul: uma análise ...paperroom.ipsa.org/papers/paper_3578.pdf · um dos países selecionados o estudo aponta o padrão regulatório existente

17

Elétrica de Barquisimeto). Entre estas, as empresas Cadafe, Edelga, Enelven e Enelbar são integradas verticalmente.

A Venezuela permaneceu por muito tempo sem uma lei específica que regulasse o setor, gerando inúmeras ineficiências. Seu setor elétrico se desenvolveu sob um conjunto de leis, decretos e regulamentos de caráter geral, não necessariamente consistente uns com os outros (Rudnick, 1997). Ao longo desse período, o autor destaca uma série de problemas e conflitos, muitos dos quais derivados da falta de regras claras para os distintos participantes como a deterioração da qualidade dos serviços, dívidas consideráveis do Estado com as empresas e entre elas, inexistência de mecanismos ágeis para se combater o furto de energia, indefinição de competências em matéria de distribuição e venda de eletricidade, sistema tarifário deficiente e desconhecimento dos custos dos serviços para determinação de tarifas, existência de importantes subsídios cruzados, crescente participação de geradores independentes, confusão no papel do Estado, que atua como empresário, consumidor e regulador.

Até os anos 90, as únicas legislações que dispunham diretamente sobre o setor elétrico correspondiam à criação do FUNDELEC (Decreto 2.384, de 1992) e às Normas para a Regulação do Setor Elétrico (Decreto 1.558, de 1996), que normatizam as atividades de geração, transmissão e distribuição de eletricidade. Até a promulgação desses decretos, dada a precariedade da legislação, foram adotados acordos privados, como o OPSIS, que regia a interconexão entre as empresas Cadafe, Edelca, Enelven e Elecar. No entanto, além do eventual descumprimento de acordos dessa natureza, não se observava planejamento nem uso racional dos recursos energéticos.

O decreto que determinou a criação do FUNDELEC, embora não tenha trazido muitas inovações à estrutura regulatória vigente, sugeria a criação de um ente regulador especializado e dotado de independência institucional e de autonomia financeira. Já o Decreto 1.558, de 1996, indicava claramente as intenções governamentais de reestruturação do setor elétrico venezuelano, ainda que apenas recentemente sua aplicação tenha sido iniciada. Entre os fundamentos conceituais deste último decreto estão: o estabelecimento de regras que incentivem a eficiência econômica, uma separação clara e institucional das funções do Estado como autoridade reguladora, concedente e prestadora do serviço, orientação dos investimentos com base em planejamento de alcance nacional, privatização das empresas públicas e fomento aos investimentos privados, introdução gradual da concorrência e paulatina separação entre as atividades de geração, transmissão e distribuição de eletricidade.

Em 2000, é publicado o Regulamento Geral da Lei do Serviço Elétrico (Decreto 1.124, de 2000), dispondo sobre o serviço elétrico venezuelano. No ano seguinte, em 2001, complementando o Regulamento Geral em muitos aspectos, é publicada a Lei Orgânica do Serviço Elétrico (n. 5.568, de dezembro de 2001), cujo objetivo era estabelecer as disposições que regeriam o serviço elétrico em território nacional, que até aquele momento não havia contado com um arcabouço legal que ordenasse clara e metodicamente as disposições gerais aplicáveis a esta matéria.

Este regulamento dispôs sobre as normas de funcionamento, bem como sobre a atuação dos agentes que compõem o setor elétrico. Sendo bastante completo, o decreto dispõe ainda sobre o planejamento para o desenvolvimento dos serviços elétricos, comercialização de energia e concessões. Em seu artigo 15, a Lei Orgânica cria também a Comissão Nacional de Energia Elétrica. Em 2003, o regulamento de número 308, do

Page 18: Regimes Regulatórios na América do Sul: uma análise ...paperroom.ipsa.org/papers/paper_3578.pdf · um dos países selecionados o estudo aponta o padrão regulatório existente

18

Ministério de Energia e Minas, estabeleceu as normas e condições que regem a prestação do serviço de distribuição de energia e as relações entre distribuidoras e usuários. Finalmente, o mesmo ministério, com o regulamento de número 225, estabeleceu também as regras para que as empresas distribuidoras de eletricidade desenvolvam suas atividades de modo que os usuários alcancem os serviços demandados ao menor custo possível.

Na Venezuela, a regulação esteve tradicionalmente centrada na fixação de tarifas do serviço elétrico Pelo poder Executivo central, sem maior desenvolvimento de outros aspectos de caráter técnico e administrativo. Embora a Lei do Serviço Elétrico tenha objetivado desenvolver uma nova cultura regulatória voltada para a estabilidade normativa e para o equilíbrio entre os atores envolvidos (Estado, empresários, trabalhadores e usuários), nota-se que a Venezuela não outorgou autonomia ao ente regulador e preservou a tarefa de fixação de tarifas sob a égide do Executivo (Boletines Interconexiones, 2004).

Uma das razões que explica o fato de não ter havido na Venezuela uma aplicação efetiva das leis é a ausência do ente regulador com as características e funções pré-estabelecidas e voltadas para o desenvolvimento de um ambiente regulatório econômica e tecnicamente equilibrado (Boletines Interconexiones, 2004). Esta situação também comprometeu a construção da capacidade regulatória do país, permitindo que as diversas funções regulatórias se desenvolvam de modo progressivo e adaptativo, muito aquém, portanto, dos requisitos de segurança jurídica.

As instituições reguladoras da política energética venezuelana são o Ministério das Minas e Energia, órgão supremo em matéria de energia em nível nacional, por meio da Direção de Eletricidade; a Comissão Reguladora de Energia Elétrica – CREE; e a Fundação para o Desenvolvimento do Serviço Elétrico – FUNDELEC, responsável pelo apoio técnico à CREE.

O Ministério das Minas e Energia foi o órgão regulador e supervisor do setor elétrico venezuelano até que a Lei Orgânica definiu a Comissão Reguladora de Energia Elétrica – CREE como ente regulador do setor elétrico; a partir daí, esta comissão deixou de atuar como órgão assessor do Ministério. Definida em lei como um organismo autônomo, esta comissão tem entre as suas competências propor tarifas e taxas a serem submetidas ao ministério para aprovação. Sua direção é formada por cinco membros que podem livremente ser nomeados ou demitidos, três deles indicados pelo presidente da República, um pelo ministro de Energia e Minas e outro pelo ministro de Produção e Comércio. Esta junta conta ainda um presidente responsável pela gestão do órgão propriamente, designado pelo presidente da República.

A Fundação para o Desenvolvimento do Serviço Elétrico – FUNDELEC foi criada em 1993 como uma fundação do Estado com personalidade jurídica e patrimônio próprio, sob a tutela do Ministério das Minas e Energia. Seu objetivo principal é apoiar a Comissão Reguladora de Energia Elétrica. Sendo um órgão de assistência técnica e assessoria esta comissão tem como funções: o apoio à Comissão Reguladora de Energia Elétrica, desenvolvimento de estudos econômicos e financeiros do setor, estudos legais, de organização e de tarifas e ainda a realização de estudos de planejamento e operação dos sistemas elétricos, bem como estudos relativos à qualidades destes serviços.

Page 19: Regimes Regulatórios na América do Sul: uma análise ...paperroom.ipsa.org/papers/paper_3578.pdf · um dos países selecionados o estudo aponta o padrão regulatório existente

19

Finalmente, o OPISIS corresponde a um contrato de interconexão entre as empresas geradoras de energia (Cadafe, Edelca, Elecar e Enelven). Em tese, tal contrato administra o planejamento, a operação e os intercâmbios de energia dos sistemas elétricos destas empresas. Para tanto, está previsto em lei (Decreto 1.558) o Despacho Central de Cargas para operar o sistema interconectado.

3. Institucionalidade e Desafios Regulatórios na América do Sul: perspectivas e tendências

Ante a descrição precedente do arcabouço regulatório sul-americano é possível destacar alguns aspectos compartilhados pelos seis países analisados, do mesmo modo em que nos é permitido também notar que, ainda que todos os países em questão tenham passado por um mesmo programa de reestruturação regulatória com vistas à segurança jurídica necessária ao desenvolvimento econômico, suas vicissitudes culturais, políticas e administrativas não podem ser negligenciadas. Dispondo atualmente de governos democraticamente eleitos, os países, cada qual a seu modo, agregam ao esforço de se adequar aos padrões globais de desenvolvimento aquilo que de sua parte consideram fundamental e que, por conseqüência, acaba refletido nos seus padrões institucionais.

Em primeiro lugar, destaca-se que, embora quase todos os países analisados tenham passado por um processo de reestruturação e privatização das empresas de energia, não é a primeira vez que estas empresas são geridas por mãos privadas. A formação do setor elétrico em alguns países deu-se inicialmente pela via privada, como é o caso do Brasil e do Peru, e ainda hoje países como Venezuela contam com um sistema de propriedade mista no setor elétrico.

O processo de estatização foi empreendido em meados do século XX, na medida em que o setor privado mostrou-se incapaz de conduzir os investimentos em infra-estrutura e de garantir a universalização dos serviços, além de dificuldades em gerir empresas em um sistema fragmentado, sem coordenação. Já no fim do século XX, o cenário era outro e a conjuntura se inverteu. Neste segundo momento, o Estado revelou esgotamento da sua capacidade de financiamento do setor elétrico frente à crescente demanda na região, além de vários problemas de gestão predispondo os países a crises energéticas.

É válido notar que, com as reformas dos anos 90, o setor privado reapareceu como um ator importante para o desenvolvimento da infra-estrutura na América do Sul. No entanto, atualmente a tendência regional parece ser o estabelecimento de parcerias do Estado com o setor privado a fim de impulsionar o setor elétrico, que ainda carece de investimentos substanciais, para então afastar definitivamente as possibilidades de crises no setor. Este é o caso de Brasil e Venezuela, cujos governos, utilizando mecanismos distintos, têm feito mais do que planejar o desenvolvimento do setor elétrico e tentar atrair investimentos privados10. Neste caso, um movimento de ida e vinda do Estado à frente dos serviços públicos de infra-estrutura é observado na América do Sul, corroborando a perspectiva teórica que destaca o papel do Estado como um ator autônomo na arena política, dotado de uma estrutura organizacional capaz de impulsionar o desenvolvimento econômico11.

10 No caso brasileiro o papel desempenhado pelo BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) para o desenvolvimento do setor de infra-estrutura tem sido determinante, o que pode ser conferido em Gomelsky (2003) e Oliveira, Losekann e Szapiro (1999). 11 Ver Evans, Rueschemeyer and Skocpol (1985).

Page 20: Regimes Regulatórios na América do Sul: uma análise ...paperroom.ipsa.org/papers/paper_3578.pdf · um dos países selecionados o estudo aponta o padrão regulatório existente

20

A análise das reformas operadas em países como Argentina, Brasil, Peru e, mais profundamente, Chile, revelou que, além de simplesmente transmitir a propriedade das empresas de eletricidade do Estado para o setor privado, estes países buscaram introduzir a concorrência e evitar que o antigo monopólio estatal fosse substituído por novas concentrações verticais ou horizontais. Este talvez seja o diferencial entre o primeiro momento, em que o setor privado controlou o mercado de eletricidade, e o atual.

O valor da concorrência foi consideravelmente acentuado nesta reforma, em especial na área de geração, mas também na de transmissão, cujas regras para os novos entrantes são claramente estabelecidas, a colaboração entre órgãos reguladores e órgãos de defesa da concorrência é estimulada, e criaram-se também órgãos especificamente encarregados da coordenação entre as empresas concorrentes para evitar que ela ocorra de forma predatória. Contudo, apenas um exame específico da atividade industrial no setor elétrico em cada país poderia indicar a eficácia e o impacto deste arcabouço institucional como incentivo à competição propriamente, pois se sabe que a existência puramente normativa desses incentivos é valiosa, mas não suficiente para viabilizar um ambiente de concorrência.

Um outro achado recorrente entre os países analisados é a indicação de preocupação com a atividade de planejamento setorial tanto na legislação quanto entre as atribuições dos órgãos reguladores, como é o caso do Brasil, do Chile e da Bolívia. Ainda que na realidade possa haver uma distância entre o planejamento e sua execução propriamente, os países indicam um amadurecimento em relação à importância desta atividade para o pleno desenvolvimento econômico e técnico do setor de energia elétrica. O planejamento setorial é que permite que o crescimento da demanda energética seja atendido satisfatoriamente, livre de crises energéticas e racionamentos. Agrega-se a isto a promoção do aproveitamento racional dos recursos energéticos, outro valor que, ainda que possa parecer ou ser ideal no sentido weberiano, também está contemplado na legislação e no compromisso dos órgãos reguladores.

A criação tardia de organismos de regulação é explicada a partir da ausência de critérios pré-estabelecidos acerca do funcionamento esperado dos serviços e do próprio organismo de controle. Um dos principais problemas decorrentes dessa defasagem é que a incerteza a respeito dos alcances do marco regulatório pode gerar formas de seleção adversas ao atrair investidores dispostos a assumir riscos mais altos ou aqueles com maior capacidade de exercer influência e de captar rendas em detrimento dos consumidores. Os casos brasileiro e argentino são emblemáticos neste sentido, evidenciando as conseqüências deste tipo de inversão. Em oposição, a experiência chilena, mesmo não sendo a única, é expressiva na região pelo êxito em estabelecer um arcabouço regulatório consistente antes de iniciar o processo de privatizações.

Sobre a estrutura regulatória propriamente, nos é possível observar que, nos países analisados, tanto os agentes do mercado atuantes no setor elétrico quanto os usuários dos serviços de eletricidade contam com regulamentações sobre os direitos e as obrigações dos agentes econômicos, dos usuários de serviços regulados e do ente estatal. Com leis mais gerais ou com legislações mais fragmentadas e mais detalhadas, cada um dos países analisados buscou nos anos 90 estabelecer normas e órgãos reguladores que lhes proporcionassem a institucionalidade requerida para que a operação do setor elétrico ocorresse dentro dos padrões internacionais. No entanto, conforme ainda será visto, em alguns desses países os arranjos institucionais

Page 21: Regimes Regulatórios na América do Sul: uma análise ...paperroom.ipsa.org/papers/paper_3578.pdf · um dos países selecionados o estudo aponta o padrão regulatório existente

21

desempenham papel unicamente protocolar ou são encobertos pelas fragilidades e armadilhas das estruturas de governança.

Quadro Comparativo da Institucionalidade Regulatória dos Países Sul-americanos

Argentina Bolívia Brasil Chile Peru Venezuela

Ente regulador específico para o setor elétrico

ENRE Superin. de

Eletricidade ANEEL CNE DGE CREE

Clareza nos objetivos regulatórios

SIM SIM SIM SIM SIM NÃO

Promoção da concorrência

SIM NÃO SIM SIM SIM NÃO

Grau de intervenção do Estado

ALTO ALTO ALTO BAIXO ALTO ALTO

Centralidade do poder Executivo

SIM SIM SIM NÃO SIM SIM

Participação do poder Legislativo na regulação

BAIXA BAIXA BAIXA BAIXA BAIXA BAIXA

Marco regulatório implementado antes da privatização

NÃO SIM NÃO SIM SIM SIM

Fonte: Elaboração própria.

Nota-se, em todos os casos, a existência de um conjunto de órgãos públicos organizados hierarquicamente e com atribuições distintas, mas complementares no exercício da atividade regulatória. Tal cadeia regulatória presente na administração dos países analisados revela a proeminência do Poder Executivo central nos processos de formulação, implementação e fiscalização da política para o setor elétrico. O Poder Legislativo, ao qual poderia caber uma ou mais dessas atribuições, em geral não é mencionado na legislação, o que indica que lhe foi reservado um papel apenas residual. Tal fato é expressivo da cultura política e administrativa da região, na qual o centralismo do Poder Executivo é vastamente observado.

O fato de a América do Sul contar atualmente com governos democráticos também deveria favorecer a participação do Poder Legislativo no processo regulatório, proporcionando mais transparência e legitimidade às políticas para o setor. Porém, o que as análises recentes têm observado é que este é um aspecto ainda por se desenvolver12. Na verdade, o próprio modelo regulatório adotado, além de sua interpretação ideal da burocracia como campo neutro, desprestigia o Poder Legislativo e afasta-o por enxergá-lo como um espaço exclusivamente de disputas e conflitos de interesses.

A centralidade do Poder Executivo está diretamente relacionada a dois outros aspectos que permeiam os marcos regulatórios sul-americanos, impactando a segurança jurídica

12 Para mais informações sobre a interação e os conflitos de interesses envolvendo agências reguladoras e o poder Legislativo no Brasil ver Cruz (2007) e sobre a fiscalização das agências pelo Legislativo ver Lima e Boschi (2002).

Page 22: Regimes Regulatórios na América do Sul: uma análise ...paperroom.ipsa.org/papers/paper_3578.pdf · um dos países selecionados o estudo aponta o padrão regulatório existente

22

regional: o grau de intervenção do Estado no setor e o grau de independência do ente regulador. A transferência de propriedade das empresas para o setor privado e a restrição do Estado a fiscalizador do setor não encerram as incertezas para os investidores; é preciso mais do que isto.

A proeminência dos Executivos indica que governos, em busca de votos, popularidade ou no atendimento de suas clientelas, podem mudar subitamente as leis ou mesmo desrespeitar a regulação, afugentando investimentos. O mesmo ocorre em relação à imprecisão ou à falta de limites quanto à atuação do Estado na economia. Sobre estes dois aspectos, nota-se que Chile e Venezuela correspondem a dois extremos no qual o primeiro país é destacado tanto por conter a ênfase do seu Poder Executivo central quanto por limitar claramente a atuação do Estado na atividade econômica, enquanto na análise do arcabouço regulatório da Venezuela estes fatores se revelam distantes.

Quanto à autonomia do ente regulador, observou-se que sob a forma organizacional de agência reguladora, comissão, direção ou superintendência, os países analisados, cada um a seu modo, buscou inserir na estrutura administrativa um órgão específico destinado a regular o setor elétrico de acordo com a orientação internacional, que recomenda organismos independentes para o exercício da atividade regulatória. Conforme estabelecido por autores como Wald e Moraes (1999), a independência dos órgãos reguladores é determinada a partir da observação de quatro critérios: independência financeira, independência de instrumentos, independência decisória e independência de objetivos. Tais critérios podem variam de país para país nos casos analisados, mas nos permitem identificar claramente a fragilidade do quesito autonomia do ente regulador na região.

A princípio, as leis que deram origem aos órgãos reguladores nos seis países analisados lhes asseguram a independência de objetivos, na medida em que estes órgãos dispõem de alguns objetivos a serem perseguidos. Todavia, deve-se atentar para o fato de que objetivos dispersos e imprecisos não constituem claramente o escopo a ser perseguido pelo órgão regulador, mas sim ambições gerais – como, por exemplo, o bem-estar do consumidor -, que dificilmente serão alcançadas sem definições mais precisas de conceitos e estratégias pelo regulador.

Quanto à independência financeira, observa-se que Argentina, Brasil, Bolívia e Chile asseguraram a autonomia, fazendo com que estes órgãos dispusessem de recursos próprios para o exercício de suas funções, com dotações originárias dos orçamentos da união, além dispor dos recursos originados de taxas e multas. Contudo, esses orçamentos podem ser contigenciados pelos núcleos executivos aos quais os órgãos reguladores estão vinculados, ou seja, os mistérios ou a própria Presidência da República, a depender do controle de gastos públicos continuamente observado nas economias da região.

Nos casos de Brasil e Argentina também é garantido pela lei a permanência nos cargos de diretores, presidentes, coordenadores dos órgãos reguladores, não podendo os mesmos serem afastados dos cargos por autoridades superiores a fim de assegurar-lhes a independência decisória. Tais procedimentos para a nomeação e demissão de dirigentes, associados com a fixação de mandatos longos, escalonados e não coincidentes com o ciclo eleitoral, são arranjos que procuram isolar interferências indesejáveis.

Page 23: Regimes Regulatórios na América do Sul: uma análise ...paperroom.ipsa.org/papers/paper_3578.pdf · um dos países selecionados o estudo aponta o padrão regulatório existente

23

Porém, estes mesmos arranjos se revelam insuficientes, uma vez que os órgãos reguladores obedecem à vinculação institucional aos ministérios correspondentes ou à Presidência da República dos países analisados. Esta vinculação, decorrente da impossibilidade administrativa de haver núcleos burocráticos fora da esfera dos três poderes, é por si só expressão da proeminência do Poder Executivo na região, que inibe qualquer atuação mais autônoma por parte dos órgãos reguladores, uma vez que como órgãos de controle poderiam estar vinculados aos Legislativos locais.

Ante o exposto, esta análise considera que não cabe a atribuição de autônomo aos órgãos reguladores dos países analisados. A operação destes entes reguladores, ainda que sejam denominados autônomos ou independentes, ocorre de forma regular, muito próxima de outros núcleos burocráticos. Mesmo em países como o Chile, cuja análise da reestruturação do setor aponta uma ampla pré-disposição em desobrigar o Estado de um papel central, nota-se que seus órgãos reguladores seguem os mesmos padrões e são dotados de características semelhantes às de países que não afastaram tanto o Estado.

Finalmente, o estudo destaca que, mesmo compartilhando muitos aspectos institucionais no setor elétrico, os países analisados ainda possuem arcabouços regulatórios bastante distintos, especialmente no que se refere à temas específicos – como novos entrantes, a questão ambiental e as regras de interconexão ou compartilhamento de infra-estrutura –, o que dificulta a ação dos agentes econômicos nas operações de comercialização, importação e exportação e as decisões de investimentos em projetos. Esta interpretação do arcabouço regulatório do setor elétrico, juntamente com a de outros setores de energia, como a nuclear, de petróleo e gás e ainda a de biocombustíveis, caracteriza a heterogeneidade regulatória da região, desfavorecendo aquele que é atualmente o maior projeto regional: a integração energética sul-americana.

Considerações finais

No caso dos seis países sul-americanos analisados, vimos que a rationale das reformas institucionais implementadas nestes países é basicamente a mesma. Dotados de um vasto arcabouço legal e de uma estrutura administrativa destinada a operacionalizar a regulação estes países, do ponto de vista institucional, parecem reunir dos mecanismos necessários para fazer avançar o setor. Todavia, conforme sustenta a teoria baseada no conceito de path dependency, as escolhas do passado limitam ou influenciam as escolhas do presente. Conforme colocado por Pierson (2000), na medida em que o tempo passa os benefícios relativos de se preservar certas características dos sistemas aumentam.

A análise do arcabouço legal e organizacional do setor elétrico mostrou que, ao contrário do que estabeleciam as reformas, na maioria dos países a ênfase do Poder Executivo na atividade regulatória foi preservada, comprometendo a independência dos entes reguladores. Em razão desta proeminência, não é possível atribuir autonomia comme il faut aos entes reguladores. Ainda que eles sejam denominados autônomos ou independentes e que sejam observados em seu arcabouço legal arranjos institucionais voltados para garantir sua atuação autônoma no ambiente regulatório, na prática esta atuação não ocorre.

Contudo, isto não anula por completo o esforço das reformas no setor elétrico na região. A reforma permitiu que os países avançassem sobre importantes aspectos relativos ao desempenho setorial, como o planejamento, vital para a prevenção de racionamentos e

Page 24: Regimes Regulatórios na América do Sul: uma análise ...paperroom.ipsa.org/papers/paper_3578.pdf · um dos países selecionados o estudo aponta o padrão regulatório existente

24

de crises, e também o uso racional dos recursos energéticos. Vários países também não se limitaram a transferir a propriedade das empresas estatais para os agentes privados. Atualmente, os governos preocuparam-se também em promover concorrência em algumas etapas da cadeia produtiva. Ficou evidente que a transferência de propriedade para os agentes do mercado e o estabelecimento de órgãos reguladores apenas não traz os benefícios proporcionados pela segurança jurídica. Vários outros aspectos institucionais requerem aperfeiçoamento ou ainda sua implementação, a fim de tornar a estrutura regulatória do setor energético de fato segura, tais como o direito de propriedade, a definição dos papéis dos poderes Legislativo e Judiciário na atividade regulatória, a definição das parcerias entre o setor público e o privado, a questão do accountability e da transparência, o direito dos consumidores e o direito ambiental.

A atração de investimentos também não estará garantida se fatores políticos relacionados à estrutura de governança não forem estabilizados, como é o caso do Chile que, mesmo com uma ampla reforma do setor elétrico, só passou a atrair investimentos após instaurar a democracia. Do ponto de vista normativo, todos os países analisados ainda podem fazer ajustes regulatórios, mesmo porque a regulação deve acompanhar as mudanças setoriais, seja para assegurar o amplo suprimento dos serviços ou ainda no campo tecnológico ou financeiro.

A despeito do reconhecimento do importante papel desempenhado pelo setor privado, esta análise indica como uma tendência que desponta na região o estabelecimento de parcerias do Estado com os agentes do mercado a fim de impulsionar o setor elétrico, que requer investimentos substanciais para garantir o suprimento adequado de energia e manter a economia em níveis desejáveis. Como perspectiva regional, espera-se que os governos locais busquem, com novas reformas, eliminar as heterogeneidades regulatórias, uma vez que o sucesso da integração regional depende basicamente da compatibilidade entre as regulamentações domésticas e a regional.

Certamente, este estudo dos padrões regulatórios em países sul-americanos não esgota todas as questões referentes à regulação do setor elétrico na região. Faltam estudos que tragam respostas sobre o comportamento econômico das empresas, sobre a evolução dos investimentos privados no setor – e também investimentos públicos quando houver -, sobre a interação dos agentes privados com o ente regulador e sobre o papel que o Estado propriamente vem cumprindo. Uma análise que ajude a desvendar estes temas é premente não apenas porque estes são alguns dos principais nós regulatórios na América do Sul, mas também porque deles depende a consolidação da segurança jurídica na região.

Referências Bibliográficas

AUGUSTE, S. El Sector Eléctrico en Chile. Novedades Regulatorias, n.2. mar. 1999, Documento Elaborado por el Departamento de Estúdios Regulatórios de FIEL, Fundacion de Investigaciones Econômicas Latinoamericanas.

BALBONTÌN, P. R. La crisis eléctrica em Chile: antecedentes para uma evaluación de la institucionalidad regulatória. Serie Recursos naturais e Infra-estrutura, n.5, 1999, Cepal. Disponível em: ‹www.cepal.org/publicaciones/ xml/0/4370/lcl1284e.pdf›

BOLETINES INTERCONEXIONES, n.29, 2004. Cámara Venezolana de la Industria Eléctrica CAVEINEL. Disponível em: ‹http://www.caveinel.org.ve/ Interconexiones/29.pdf›

Page 25: Regimes Regulatórios na América do Sul: uma análise ...paperroom.ipsa.org/papers/paper_3578.pdf · um dos países selecionados o estudo aponta o padrão regulatório existente

25

BONIFAZ, J. L. Distribución Eléctrica en el Peru: regulación y eficiencia. Consorcio de Investigación Económica y Social (CIES) / Universidad del Pacífico, 2001. Centro de Investigación (CIUP). Disponível em: ‹http://cies.org.pe/files/ active/0/diagnostico3.pdf›

BOUILLE, D. Lineamientos para la regulación del uso eficiente de la energía en Argentina. Serie Medio Ambiente y Desarrolo, n.16, 1999. Santiago, Chile. Proyecto CEPAL/Comisión Europea “Promoción del uso eficiente de la energía em América Latina”.

COUTINHO, M. Crises institucionais e mudanças política na América do Sul. Rio de Janeiro. Tese (Doutorado em Ciência Política). Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro – IUPERJ, 2005.

CRUZ, V. Agências Reguladoras: entre legados políticos e mudanças institucionais. Tese (Doutorado em Ciência Política). Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro – IUPERJ, 2007.

CRUZ, V.; COUTINHO, M. Desenvolvimento e ambientalismo. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 9 dez. 2006. Caderno B2.

DEVOTO, A. E. Regulación y Control del Servicio de Electricidad en Argentina In: BARRIONUEVO, A.; LAHERA P., E. (eds.) ¿Que hay de nuevo en las regulaciones? Telecomunicaciones, electricidad y agua en América Latina. CLAD/Eudeba, 1998.

ESTACHE, A.; RODRÍGUEZ-PARDINA, M. In: MANZETTI, L. (ed.). Regulatory Policy in Latin America: Post-Privatization Realities. North-South Center Press, 2002.

EVANS, P.; RUESCHEMEYER, D.; SKOCPOL, T. Bring the State Back In. Cambridge: Cambridge University Press, 1985.

FRÓES, F. Infra-estrutura – privatização, regulação e financiamento. Belo Horizonte: Una Editora, 1999.

GILARDI, F. Institutional Change in Regulatory Policies: Regulating Through Independent Agencies and the Three New Institutionalisms. In: JORDANA, J.; LEVI-FAUR, D. The Politics of Regulation – Institutions and Regulatory Reforms for the Age of Governance. 2004.

GOMELSKY, R. Energía y desarrollo sostenible: posibilidades de financiamiento de lãs tecnologías limpias y eficiência energética en el Mercosur, Serie Recursos Naturales e Infraestructura, n.55, 2003. CEPAL/ECLAD, Santiago, Chile.

LEGISA, J. A. Paper: Los Problemas de Segunda Generacion en la Regulacion del Sector Electrico em Argentina, 18th World Energy Congress, Buenos Aires, out. 2001; Ente Nacional Regulador de la Electricidad (ENRE), Argentina, abr. 2001.

LEVY, B.; SPILLER, P. T. (eds.). Regulations, Institutions and Commitment - Comparative Studies of Telecommunications. Cambridge University Press, 1996.

LIMA, M. R. S.; BOSCHI, R. O Executivo e a Construção do Estado no Brasil: do desmonte da Era Vargas ao novo intervencionismo regulatório. IN: VIANNA, L. W. (org.). Democracia e os Três Poderes no Brasil. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.

MAI, L. A.; SANTOS, E. M.; MELDONIAN, N. L. Integração Energética no Mercosul: a dimensão nuclear. III Congresso Brasileiro de Planejamento Energético, Campinas, São Paulo, 1998. Disponível em: ‹www.iee.usp.br/biblioteca/producao/ 1998/trabalho/integracao1.pdf›

Page 26: Regimes Regulatórios na América do Sul: uma análise ...paperroom.ipsa.org/papers/paper_3578.pdf · um dos países selecionados o estudo aponta o padrão regulatório existente

26

MAJONE, G. From the Positive to the Regulatory State: causes consequences of changes in the mode of governance. Journal of Public Policy, v.17, parte 2, mai-ago, 1997.

MANZETTI, L. (ed.). Regulatory Policy in Latin America: Post-Privatization Realities. North-South Center Press, 2002.

OLIVEIRA, A.; LOSEKANN, L.; SZAPIRO M. Regulação e Infra-estrutura: uma comparação entre telecomunicações e energia elétrica. Encontro Nacional de Economia, Pará, Anais, Volume I, ANPEC, 1999.

OSZLAK, O.; FELDER, R. A Capacidade de Regulação Estatal na Argentina. RSP - Revista do Serviço Público, ano 51, n.1, jan/mar, 2000.

PALOMINO, R. G.; NEBRA, S. A.; S. BAJAY V.; SOUTO W. Galarza Política Pública, Regulação e Integração Energética de Gás Natural na América do Sul. II, Congreso Internacional de Científicos Peruanos, Lima, Peru, 2004. Disponível em: ‹www.rmcp-peru.org/IICICP/en/en.html›

PINHEIRO, A. C. Segurança Jurídica, Crescimento e Exportações. Texto para Discussão, Rio de Janeiro: IPEA, 2005.

PIERSON, Paul. Increasing Returns, Path Dependence, and the Study of Politics, 94 American Political Science Review 251, 2000.

PRÉCIS – DEPARTAMENTO DE EVALUACIÓN DE OPERACIONES DE EL BANCO MUNDIAL OED. La Reforma del Sector Eléctrico de Bolívia, n.192, 1999. Disponível em: ‹http://lnweb18.worldbank.org/oed/oeddoclib.nsf/a7a8a58cc87a6e288 5256f1900755ae2/08caccce5c23d9198525683c006b77d4/$FILE/192preSp.pdf›

ROCA, A. R.. Complementariedad: Hidroelectricidad Y Gas Natural. Perspectiva Energética de la Región. Organização Latino-Americana de Energia – OLADE, 2006. Disponível em: ‹www.olade.org/documentos2/articulos/2006-08-20/articulo%20ARR.pdf›

RUDNICK, H. Regulación del Sector Eléctrico en Chile, Perú y Venezuela. Chile: CEPAL, 1997.

RUESTA, A. C..; VALLE, C. C. La problemática del sector elétrico peruano. Lima, Peru: Asociación Peruana de Consumidores y Usuários, 2005. Disponível em: ‹www.consumidoresint.cl/biblioteca/detalleautor.asp?id=1137096147›

SANCHEZ, H. C. Las Reformas Estructurales del Sector Eléctrico Peruano y las Características de la Inversión - 1992-2000, 1999. Disponível em: ‹www.eclac.cl/publicaciones/xml/7/4547/lcl1209e.pdf›

WALD, A.; MORAES, L. R. Agências Reguladoras. Revista de Informação Legislativa, ano 36, n.141, jan/mar, 1999.