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Regina Schöpke A A V V E E R R D D A A D D E E S S O O B B R R E E A A V V E E R R D D A A D D E E

Regina Schopke [=] A verdade sobre a verdade

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  • RRRReeeeggggiiiinnnnaaaa SSSScccchhhhppppkkkkeeee

    AA VVEERRDDAADDEE

    SSOOBBRREE AA

    VVEERRDDAADDEE

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    Ao dizer que o esprito humano semelhante a um

    espelho que distorce todas as imagens que recebe, o

    filsofo ingls Francis Bacon (1561-1626) aproxima-se

    perigosamente do ceticismo grego de Pirro de lis, para

    quem o conhecimento verdadeiramente impossvel.

    Pirro chama de acatalepsia essa compreenso de que

    nada podemos conhecer da natureza real das coisas.

    claro que muitas guas rolaram desde Pirro, e tambm

    desde Francis Bacon. Nietzsche, por exemplo, coroou esta

    tendncia perturbadora da filosofia com sua crtica feroz

    da verdade e da prpria razo. Mas sem querermos

    zombar desta acatalepsia (que Kant elevou categoria de

    um a priori, com sua distino entre a coisa em si e a

    coisa tal como nos aparece), pode-se dizer que os cticos

    mais radicais tinham, ao menos, uma certeza para

    defender. Sim, pelo menos uma coisa verdadeira: Sei

    que nada sei. E uma verdade melhor do que nenhuma,

    sobretudo esta, que nos liberta (com certa justificativa) de

    pensar, j que nosso juzo, com isso, suspenso; e

    tambm de agir, pois se de nada temos certeza, como

    tomar decises?

    Bem, brincadeiras parte, o que vale ressaltar aqui

    que a questo da verdade, que est implcita nesta

    discusso, parece cada vez menos importar ao nosso

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    mundo, que se sente, por fim, liberto desta incmoda

    necessidade de se conformar a ideias preconcebidas e at

    mesmo s exigncias de uma lgica qualquer de

    pensamento. Enfim, ser que agora que nos sentimos to

    livres desta senhora inconveniente chamada verdade o

    homem caminha para o melhor?

    Bem, para comear, quem quer que se sinta feliz

    com a concluso de que, partindo de Pirro e, sobretudo,

    depois de Nietzsche, no existe verdade alguma e que

    desta maneira, portanto, estaramos livres de toda uma

    presso moral e tica indesejvel que nascia desta busca

    no tem a menor ideia de que Pirro e Nietzsche nunca

    negaram a realidade das coisas (ou a verdade sobre elas);

    eles negam apenas as verdades absolutas, ou seja, as

    certezas universais, os assentimentos inquestionveis que

    so prprios e apropriados ao mundo mgico-religioso.

    Mesmo Pirro, que negava poder chegar a uma certeza

    total sobre o mundo, jamais abandonou a filosofia e o

    pensamento por isso. da natureza da filosofia continuar

    buscando entender o mundo e criar conceitos que o

    tornem mais compreensvel, que possam dar conta

    melhor do seu aspecto cambiante, mas nem por isso to

    incognoscvel quanto pensavam os cticos herdeiros da

    Academia de Plato. Trata-se muito mais de um

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    perspectivismo, maneira de Nietzsche. Ou seja, o que

    existe, de fato, so apenas interpretaes possveis das

    coisas, mas se elas so possveis, ou melhor, para que

    sejam possveis e no meras elucubraes, preciso que

    elas se aproximem de algum modo da coisa a ser

    interpretada. Ento, de algum modo tocamos as coisas.

    Bem, certo que Nietzsche dedicou-se mais a

    esmiuar (e a derrubar sobretudo) as verdades

    produzidas pelo campo social, at porque ele sabia, como

    ningum, que estas verdades tm sua funo e que

    dependem de uma guerra que se trava entre as foras que

    dominam este campo social. Independente da veracidade

    destas verdades (isso parece contraditrio, mas no ), o

    convvio entre os homens no se d sem estas

    convenes, sem um acordo de cavalheiros: eis porque,

    no nosso mundo, estamos entregues aos mais incrveis

    simulacros e fices, ao crermos nesta ideia descabida de

    que cada um tem sua prpria verdade ou mesmo de que

    possvel pensar a poltica e a vida humana, na sua

    coletividade mais bsica, sem a verdade, sem os

    consensos, sem os acordos.

    A verdade, para l da concepo platnica e

    matemtica, no uma coisa, mas um assentimento, uma

    certeza que temos. Se esta certeza uma crena ou tem

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    fundamento real, no importa. O que importa que sem

    uma certeza, sem um norte, sem uma consonncia entre

    nossas ideias e nossas prticas (porque nisto que, no

    fundo, redunda a prpria ideia de verdade) no h sequer

    o homem como espcie, porque, em ns, querendo ou no,

    as ideias e as coisas se misturam. claro que a ideia da

    verdade inseparvel do discurso; mas o que a filosofia

    contempornea no tem entendido bem que o discurso

    no algo parte do mundo, da vida. No existe o mundo

    de um lado e as ideias do outro. No homem, isso se

    confunde. As ideias so criaes humanas, mas tambm

    nos precedem, numa circularidade vertiginosa. No

    princpio, eram as coisas Depois surgem as ideias, mas,

    uma vez institudas em ns, as ideias so as coisas e as

    coisas so as ideias.

    Em suma, a negao da verdade ou da realidade em

    si mesma nos faz mergulhar inexoravelmente na

    escurido sem fim de um mundo sem sentido, sem razo;

    num mundo que poderamos chamar, tal como os

    existencialistas, de absurdo. Mas mesmo que isso fosse

    verdadeiro (verdadeiro?), teramos, para sobreviver em

    um mundo sem leis ou regras, que criar as ideias e as

    verdades de qualquer maneira. Verdades que, ainda

    assim, no poderiam ser de um s; precisariam ser frutos

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    de um debate social (se que ele ainda possvel depois

    da plis grega). Verdades que precisariam ser de todos ou

    no seriam de ningum. Esse o sentido da verdade,

    mesmo sabendo que dificilmente haver um consenso

    geral sobre as coisas. At porque, no fundo, da verdade

    mesmo, ningum nunca quis saber, j dizia Nietzsche.

    Pois bem, tudo isso um prembulo para nos

    introduzir na histria da verdade (Altheia, para os

    gregos) que, evidentemente, s comea a interessar

    quando sai do territrio da crena absoluta de um cu

    imutvel e mergulha no campo social humano. De fato, a

    despeito de todas as crticas que se possa fazer ao Imprio

    da Verdade (que nasceu, sem dvida, numa esfera das

    mais metafsicas, naquele territrio que Marcel Detienne,

    em seu belo e fascinante livro, Mestres da verdade na

    Grcia Arcaica, chama de mundo mgico-religioso),

    reiteramos que sem a busca da verdade (que, para ns, se

    resume na busca de uma compreenso maior da

    realidade) mergulhamos, tanto individual quanto

    socialmente, num caos conceitual e existencial sem

    precedentes, que exatamente o do nosso mundo

    contemporneo. Colocar em dvida o que se aprendeu a

    condio para vencer os atavismos sociais que impedem a

    potencializao do homem, mas contestar o valor das

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    prprias ideias e de sua consonncia com as prticas,

    instaurar uma desconfiana e um estranhamento sobre o

    que, em tese, no pode ser dissociado. Mesmo os sofistas,

    que mais negaram a Altheia em sua forma mtica e

    tradicional, sempre viveram em conformidade com as

    suas ideias. Resumindo: a verdade uma questo de

    consonncia, e no apenas da linguagem com as coisas. A

    consonncia maior a do ser consigo mesmo, do homem

    com sua prtica. aqui que a verdade atinge sua

    existncia e potncia mximas.

    Quanto ao livro do historiador e helenista belga

    Marcel Detienne, trata-se, sem dvida, de uma obra das

    mais valiosas, exatamente no que tange compreenso da

    verdade como noo essencial para a construo do

    mundo humano. Se ela tem um sentido pleno no mundo

    mgico-religioso (que o mundo da realeza e dos

    sacerdotes e mestres da verdade), ela ganha ainda

    maior relevncia por ser posta em discusso e debate no

    posterior universo da plis, no mundo democrtico da

    chamada palavra-dilogo (que recebe esse nome por

    ser passvel de refutao).

    Em termos bem gerais, o que se entende por

    mundo mgico-religioso o que Detienne chama de

    mundo da enunciao, o mundo da palavra eficaz, da

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    palavra que diz a verdade necessariamente. Mas ela diz a

    verdade porque enunciada por quem pode diz-la: os

    mestres da verdade (que, diferentemente dos filsofos,

    so os donos da verdade ou, no mnimo, os escolhidos

    pelos deuses para enunci-la). Dentre esses mestres,

    Detienne cita os reis, os adivinhos e os aedos que eram

    os poetas cantores neste mundo de oralidade plena dos

    antigos gregos.

    Falando mais especificamente apenas dos aedos,

    podemos dizer que as obras de Homero e de Hesodo

    representam o pice, mas tambm o fim desta oralidade,

    que tinha por meta narrar a vida e as glrias dos antigos

    aqueus e, sobretudo, da esfera guerreira nmade, que foi

    a nica a escapar, em sua dinmica interna, da Altheia

    em sua forma mais metafsica e religiosa.

    Neste ponto, alis, onde reside a maior

    contribuio do livro de Detienne. O captulo sobre o

    processo de laicizao da palavra realmente

    imprescindvel para entendemos de que maneira

    possvel traar uma conexo entre o universo guerreiro do

    sculo XII a.C. e a plis dos sculos VI e V. Afinal, tanto os

    guerreiros hoplitas espartanos quanto o universo de

    discusses polticas na gora de Atenas, so herdeiros do

    mundo de Aquiles ou, mais exatamente, do mundo a que

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    pertence este personagem meio humano meio mtico que

    lutou contra a Troia de Heitor. Se h uma coisa que

    impossvel negar que todos estes personagens foram

    fundamentais para a expanso de certos ideais jamais

    veiculados em qualquer outra sociedade: os ideais de

    igualdade, de liberdade e de fraternidade. Os guerreiros

    eram chamados de os iguais e deliberavam em crculo,

    onde o meio e o cetro representavam respectivamente

    o lugar e o smbolo daquele que podia falar. E este

    guerreiro podia falar porque era um homem de valor real,

    e sua palavra instaurava o dilogo. O dilogo, o debate, a

    forma instaurada pelo governo dos iguais. O debate

    poltico, portanto, tal como vemos na democracia

    ateniense, tem suas razes a, na laicizao destas

    prticas ritualsticas dos nmades guerreiros.

    Voltando aos poetas, eles tiveram um papel

    fundamental neste processo de laicizao. que,

    entusiasmados pelas musas (como ressalta Plato, no

    dilogo Ion), eles tinham um duplo registro: eles

    celebravam os imortais e os feitos dos heris guerreiros.

    Eles contavam a verdade imemorial e atemporal, a

    verdade de todos os tempos, do presente, passado e

    futuro, do que , foi e ser. Mas eles tambm eram

    responsveis pela imortalizao dos homens de valor. Era

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    atravs do canto do poeta que o heri se mantinha vivo na

    memria coletiva. A glria imorredoura era, portanto,

    presenteada aos que eram capazes de feitos grandiosos, e

    nada era mais grandioso do que viver e morrer de acordo

    com seus princpios e valores.

    O helenista Jean-Pierre Vernant, em um texto

    magnfico intitulado A bela morte e o cadver ultrajado

    (que pode servir como complemento ao livro de Detienne),

    nos mostra bem o tipo de fascnio que exercia sobre os

    antigos guerreiros aqueus a ideia de morrerem jovens e

    belos nos campos de batalha para serem eternizados na

    palavra dos poetas. assim que a mitologia acaba

    tomando corpo e vida nos sculos clssicos, onde se v os

    hoplitas espartanos tambm sonhando com a bela morte,

    ainda que neste novo mundo o poder dos poetas j no

    fosse mais o mesmo. Alis, muito pelo contrrio; segundo

    Detienne, inaugura-se com Simonides a dessacralizao

    da palavra do poeta, assim como a plis passa a ser a

    esfera democrtica de uma verdade que precisa ser, ela

    prpria, colocada no centro, como bem pblico, ou como

    algo que deve ser posto em discusso e debate. No antigo

    mundo grego dos aedos, Altheia (a verdade) se ope a

    Lthe (o esquecimento); mas, na nova configurao da

    cidade-estado, a filosofia nos mostrar que a verdade e o

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    esquecimento muitas vezes aparecem juntos, em acordos

    provisrios, mas, sobretudo, numa batalha sem fim para

    que o homem triunfe sobre a sua prpria escurido e se

    recrie continuamente.

    Regina Schpke Doutora em Filosofia pela

    Unicamp, Mestre em Filosofia pela UFRJ e em Histria

    Medieval pela UFF. Autora dos livros Por uma filosofia da

    diferena: Gilles Deleuze, o pensador nmade

    (Edusp/Contraponto), Matria em movimento: a iluso do

    tempo e o eterno retorno (Martins Fontes) e Dicionrio

    filosfico (Martins Fontes). Tambm tradutora e

    colaboradora dos jornais O Globo e O Estado de S. Paulo.

    FONTE: http://wmfeditora.com.br/blogwmf/?p=1029

    APEDEUTEKA GUINEFORT 2014 0003