Reginaldo Prandi: Mitologia dos orixás · PDF filecubano (documentadas, p.ex., nas obras de Cabrera, Aróstegui e Lachatañeré) e relembra aqueles autores, tanto acadêmicos como

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  • Reginaldo Prandi: Mitologia dos orixs

    Andreas Hofbauer

    Com Mitologia dos orixs, Reginaldo Prandi apresenta a maior coleo de

    mitos iorubanos e afro-americanos j publicada at hoje. Esta obra resultado

    de um trabalho meticuloso de mais de 10 anos, que envolveu uma vasta

    pesquisa bibliogrfica (cerca de 100 ttulos) e tambm uma longa experincia de

    campo. Nada menos do que 42 histrias mticas foram colhidas pelo autor. No

    total, Prandi conseguiu reunir 301 mitos - dos quais 106 seriam originrios da

    frica, 126 do Brasil e 69 de Cuba.

    A partir de um sbio critrio estabelecido pelo autor, a histria reproduzida no

    texto sempre a verso mais antiga que o pesquisador conseguiu levantar.

    Cada mito leva um nmero de registro e relacionado com aquela divindade

    que nele se destaca. Nas notas bibliogrficas, Prandi no apenas oferece todas

    as referncias em relao fonte citada, mas tambm comenta outras verses

    do mesmo mito, muitas vezes epecificidades regionais, o que permite ao

    interessado acompanhar a trajetria do mito na literatura. Preocupado com a

    apresentao de um padro esttico homogneo do corpo mitolgico, Prandi

    prope seguir o modelo dos poemas dos babalas africanos: busca combinar o

    uso de versos livres com o uso de uma linguagem sinttica, sem, porm, alterar

    o contedo original das fontes (cf. p. 35).

    Num glossrio, no fim do livro, o autor rene alfabeticamente todas as

    palavras iorubanas que aparecem nos mitos e explica o significado e a

    importncia cultural e religiosa de cada um dos termos citados. Dispersas no

    interior da obra, que pode ser lida ao mesmo tempo como um estudo acadmico

    e como um manual de consulta, acham-se belas figuras iconogrficas de Pedro

    Rafael. Elas ilustram insgnias e caractersticas tpicas dos orixs. O projeto

    iconogrfico do livro complementado com 32 pranchas de fotos coloridas, de 5

    fotgrafos diferentes, que enfatizam a riqueza ritual do candombl, mostrando o

    momento em que as divindades se manifestam nos seus filhos.

    No Prlogo, Prandi fornece ao leitor como introduo uma reviso

    bibliogrfica dos trabalhos mais relevantes que trazem transcries de mitos

    iorubanos. Parte das primeiras referncias em frica, encontradas em escritos

    de missionrios (Baudin) e militares (Ellis) do sculo XIX, contemplando ainda

    os escritos mais importantes dos vrios estudiosos que pesquisaram entre os

    iorubs (Frobenius, Bascom, Verger, Beier, Abimbola) e na dispora. Chama a

    ateno para algumas das caractersticas especficas do mundo religioso afro-

    cubano (documentadas, p.ex., nas obras de Cabrera, Arstegui e Lachataer)

  • e relembra aqueles autores, tanto acadmicos como adeptos do candombl,

    que, em terras brasileiras, se empenharam em documentar e compilar mitos dos

    orixs (Nina Rodrigues, Artur Ramos, Roger Bastide, Ren Ribeiro, Pierre

    Fatumbi Verger, Agenor Miranda Rocha, Mestre Didi, Jlio Braga, Juana Elbein

    dos Santos, Monique Augras, Rita Laura Segato, Me Stella, Rita de Cssia

    Amaral, entre outros).

    Destaca ainda a histria de um documento de autoria de Prof. Agenor que,

    para Prandi, representa a mais rica fonte primria brasileira de mitos.

    Diferentemente de Cuba, onde era frequente os babalas guardarem os mitos

    de If em cadernos, na tradio religiosa afro-brasileira fazer anotaes de

    histrias mticas era algo bastante incomum at pouco tempo atrs. Segundo o

    prprio Prof. Agenor, foi Me Aninha Ob Bi, filha-de-santo da Casa Branca e

    fundadora do Il Ax Ap Afonj, quem lhe ditou os mitos documentados em

    seu caderno. Terminado em 1928, o manuscrito comeou a circular, annimo,

    no meio de sacerdotes e estudiosos. Prandi relata que vrios escritos

    acadmicos reproduziram mitos tirados deste caderno sem que a origem da

    fonte tivesse sido revelada. Demoraria at 1999, quando o caderno foi

    finalmente publicado na ntegra sob o ttulo Caminhos de Odu, para que a

    autoria do texto fosse finalmente creditada a Agenor Miranda Rocha.

    Ainda no prlogo, Prandi - que especialista no tema e tem inmeros

    trabalhos publicados sobre o assunto (cf. p.ex. Os Candombls de So Paulo;

    Herdeiras do Ax) - resume em poucas palavras os aspectos mais importantes

    que caracterizam e diferenciam a religio dos orixs de outros credos religiosos.

    O autor frisa que a dinmica existente dentro do mundo dos orixs tem o seu

    espelho na vida dos seres humanos. "Os orixs, escreve ele, alegram-se e

    sofrem, vencem e perdem, conquistam e so conquistados, amam e odeiam. Os

    humanos so apenas cpias esmaecidas dos orixs dos quais descendem" (p.

    24). No fundo existe uma espcie de relao recproca entre o "orum" (espao

    habitado pelos orixs) e o "ai" (mundo terreno), uma vez que, em ltima

    instncia, a fora dos orixs se constri a partir dos cultos e ritos promovidos

    pelos humanos (cf. tb. Barber 1989:166-7). por esta razo inclusive que as

    histrias que revelam e comentam as guerras, brigas, paixes, amores,

    espertezas, conquistas e derrotas dos orixs assumem um papel de suma

    importncia dentro da cosmoviso iorubana.

    Portanto, no um exagero afirmar que o mundo dos mitos constitui um dos

    pilares das religies dos orixs. Na sociedade iorubana "tradicional", que Prandi

    qualifica como "no histrica", o mito a chave para "alcanar" no apenas o

  • passado, mas tambm o presente e o futuro (p. 24). Neste contexto cultural sem

    escrita, as histrias criadas, lembradas, selecionadas e relembradas pelos

    ancios e por adivinhos legitimados pelas instituies de poder local constituem

    a prpria histria desses povos. Aqui o mito no representa apenas uma forma

    literria arcaica que fala de um imaginrio localizado num passado remoto.

    Na concepo iorubana tradicional do mundo, as histrias mticas oferecem

    uma orientao importantssima, uma espcie de referncia ltima para a vida

    terrestre. por meio delas que os sacerdotes buscam avaliar o mundo da

    concretude. Os mitos servem para interpretar a realidade: eles afirmam e

    reafirmam as verdades iorubanas e do dicas de como deve se comportar para

    ter sucesso. A cosmologia iorubana expressa nos mitos apresenta-se tanto

    como princpio quanto como meio e como fim: est na origem do mundo e

    instrumento tanto para interagir com o mundo como para mant-lo tal como

    descrito nos mitos. Ao afirmar que "para os iorubs antigos, nada novidade,

    tudo o que acontece j teria acontecido antes" (p. 18), Prandi enfatiza esta fora

    ontolgica intrnseca concepo mtica dos iorubs.

    As histrias, escritas em ritmo leve e linguagem agradvel, contm muitas

    informaes curiosas. Pode-se detectar, muitas vezes nas entrelinhas, detalhes

    geogrficos e referncias a dados histricos e culturais importantes da vida dos

    iorubs em frica. No mito da criao do mundo, p. ex., a fundao da cidade

    mais antiga dos iorubs, If, ganha destaque (cf. mito n 285). Em outras

    passagens transcritas, h menes a guerras entre reinos locais e mudanas

    dinsticas que so atribudas a reis divinizados. Num mito Xang citado como

    quarto rei de Oi, noutro Oxssi recebe o ttulo de "Alaketu" (mitos n 159 e n

    59, respectivamente). Vrias expresses at hoje usadas no cotidiano

    ritualstico e at nomes de orixs tornam-se mais "inteligveis" para o leitor a

    partir de um episdio mtico especfico e/ou a partir de uma aluso raiz

    etimolgica de um determinado conceito iorubano (cf. p. ex. "Ians" - mitos n

    166 e n 175; Xang, rei de "Coss" - mito n 127 e n 157). A importncia

    civilizatria que os prprios iorubs atribuem descoberta da fundio do ferro

    se expressa em vrios mitos dedicados figura de Ogum. E o efeito desastroso

    da varola e o pavor que esta doena causou em frica perceptvel nas vrias

    histrias que falam do orix Obalua, etc.

    Uma grande parte dos mitos comenta, em detalhes, histrias de amor e de

    paixo, e tambm de animosidades e rivalidades entre os orixs. A briga entre

    Xang e Ogum parece assim eterna. Do lado feminino, Ians e Oxum aparecem

    frequentemente como rivais. Na tentativa de atrair a ateno de um parceiro

    sexual, os orixs transformam-se em animais, transvestem-se de outras figuras

  • divinas ou recorrem ao uso de foras mgicas. As mesmas "tcnicas maliciosas"

    so empregadas quando se quer conquistar um favor de outro orix. Os orixs

    so causa e efeito ao mesmo tempo. Um mito conta que Oxumar

    transformado em arco-ris; outro apresenta o mesmo orix como responsvel

    pelo surgimento deste fenmeno da natureza. Numa passagem mtica, relata-se

    a transformao de Ians em vento; noutra Ians criadora do sopro do ar (cf.

    mitos n 113, n 109; n 169, n 173). De forma semelhante, Obalua temido

    como orix da varola, mas aparece tambm como deus da cura dessa mesma

    doena (cf. mito n 101). Xang, por sua vez, incendia sua prpria cidade, Oi,

    por engano, mas ensina tambm aos seres humanos a tcnica de dominar o

    fogo e o preparo de comida cozida (mitos n 146, n 138). Ou seja, revela-se

    assim nos mitos uma regra sbia: o mesmo princpio que provoca tambm

    aquele que resolve.

    E tambm nos mitos que se acham as razes pelos "eu" ("quizilas"), os

    vrios tabus, que tm de ser seguidos tambm no "ai" (cf. p.ex. mito n 146). O

    cumprimento ou rompimento de um tabu, um "eb" oferecido no momento certo,

    a reverncia oferecida a um determinado orix ou o esquecimento da mesma

    podem ser decisi