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RELAÇÕES INTERPESSOAIS NA ESCOLA: CULTURA ESCOLAR, CONFLITOS E PROCEDIMENTOS DIDÁTICOS No campo de estudos sobre cultura escolar, um conceito correlato refere-se às relações interpessoais, espontâneas e rituais, construídas permanentemente em conexão com o ensino/aprendizado, formando subjetividades docentes e discentes e, não raro, gerando de conflitos. Este painel apresenta três artigos sobre os temas “relação professor-aluno e (in)disciplina”, buscando vinculações destes com procedimentos didáticos dos docentes. O primeiro Os conflitos escolares nos anos finais do ensino fundamental , faz um recorte bibliográfico, abordando perspectivas de diferentes autores para compreender o porquê de mudanças comportamentais de indisciplina e da ocorrência de conflitos em classes de 9o ano de ensino fundamental, as quais dificultam o trabalho docente, em uma escola pública estadual da Grande São Paulo. A segunda As manifestações do Professor Mediador Escolar e Comunitário (PMEC) acerca da resolução de conflitos , foi realizada em escolas públicas estaduais da capital do Estado de São Paulo e na Diretoria Regional de Ensino correspondente. Expõe como se constituiu a função do PMEC, apresenta conceitos de violência, conflito e mediação e destaca conflitos comuns nas escolas e ações de mediação do PMEC. A terceira A relação professor- aluno: entre (in)disciplina e procedimentos didáticos , subproduto de pesquisa coletiva desenvolvida no âmbito de uma instituição privada de ensino superior da cidade de São Paulo, busca responder à questão: Quais explicações diferentes pesquisadores encontraram quanto às facilidades/dificuldades de professores e alunos se relacionarem visando alcançar o objetivo da escolarização? Analisa quatro dissertações de mestrado resultantes de pesquisas de campo realizadas em escolas públicas de ensino fundamental e médio, em diferentes estados da federação. Identifica a uso das tarefas escolares para demonstração de poder, vigilância e controle de corpos e mentes como aspectos comuns aos quatro trabalhos. PALAVRAS-CHAVE: Cultura Escolar, Relação Professor-Aluno, (In)Disciplina E Mediação XVIII ENDIPE Didática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira 4132 ISSN 2177-336X

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RELAÇÕES INTERPESSOAIS NA ESCOLA: CULTURA ESCOLAR,

CONFLITOS E PROCEDIMENTOS DIDÁTICOS

No campo de estudos sobre cultura escolar, um conceito correlato refere-se às relações

interpessoais, espontâneas e rituais, construídas permanentemente em conexão com o

ensino/aprendizado, formando subjetividades docentes e discentes e, não raro, gerando

de conflitos. Este painel apresenta três artigos sobre os temas “relação professor-aluno e

(in)disciplina”, buscando vinculações destes com procedimentos didáticos dos docentes.

O primeiro – Os conflitos escolares nos anos finais do ensino fundamental –, faz um

recorte bibliográfico, abordando perspectivas de diferentes autores para compreender o

porquê de mudanças comportamentais de indisciplina e da ocorrência de conflitos em

classes de 9o ano de ensino fundamental, as quais dificultam o trabalho docente, em

uma escola pública estadual da Grande São Paulo. A segunda – As manifestações do

Professor Mediador Escolar e Comunitário (PMEC) acerca da resolução de conflitos –,

foi realizada em escolas públicas estaduais da capital do Estado de São Paulo e na

Diretoria Regional de Ensino correspondente. Expõe como se constituiu a função do

PMEC, apresenta conceitos de violência, conflito e mediação e destaca conflitos

comuns nas escolas e ações de mediação do PMEC. A terceira – A relação professor-

aluno: entre (in)disciplina e procedimentos didáticos –, subproduto de pesquisa coletiva

desenvolvida no âmbito de uma instituição privada de ensino superior da cidade de São

Paulo, busca responder à questão: Quais explicações diferentes pesquisadores

encontraram quanto às facilidades/dificuldades de professores e alunos se relacionarem

visando alcançar o objetivo da escolarização? Analisa quatro dissertações de mestrado

resultantes de pesquisas de campo realizadas em escolas públicas de ensino fundamental

e médio, em diferentes estados da federação. Identifica a uso das tarefas escolares para

demonstração de poder, vigilância e controle de corpos e mentes como aspectos comuns

aos quatro trabalhos.

PALAVRAS-CHAVE: Cultura Escolar, Relação Professor-Aluno, (In)Disciplina E

Mediação

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AS MANIFESTAÇÕES DO PROFESSOR MEDIADOR ESCOLAR E

COMUNITÁRIO (PMEC) ACERCA DA RESOLUÇÃO DE CONFLITOS

Eixo temático 1: Didática e prática de ensino: desdobramentos em cenas na educação pública.

Sub-tema 1.3: Modos do ensinar e aprender em experiências.

Patrícia Paloma Gonçalves Soares

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo/PUC-SP

Resumo

O foco desta pesquisa foi investigar alguns elementos que definem a atuação do

Professor Mediador (de conflitos) Escolar e Comunitário (PMEC), função criada pela

Secretaria da Educação do Estado de São Paulo (SEE-SP) no ano de 2010. Procurou-se

descrever e analisar as manifestações acerca de como deve ser e de como acontece a

ação desses professores na mediação de conflitos que surgem no cotidiano escolar. Para

isso foram realizadas entrevistas com professores mediadores e com supervisores de

ensino de uma Diretoria Regional, bem como o exame de documentos oficiais que

regulamentam e orientam as ações e as funções desses novos profissionais. O objetivo

foi analisar o que define e como se constitui a mediação de conflitos na legislação e em

outros documentos, como também na ação do PMEC, descrevendo os elementos

presentes na mediação de conflitos que levam à adaptação do sujeito à sociedade, na

perspectiva de Adorno (2006c; 2006d). A hipótese formulada foi que a criação da

função do PMEC foi a estratégia encontrada pela SEE-SP para lidar com determinadas

situações problemáticas na escola, visando não a busca de solução, mas a criação de

mecanismos que possibilitem a convivência com tais situações, especialmente com os

conflitos e a violência que ocorrem no interior da escola. A análise dos documentos,

assim como dos relatos dos sujeitos entrevistados, pautada nas proposições do autor

citado – principalmente as que se referem à formação, à adaptação e à barbárie –,

possibilitou a confirmação da hipótese. Constatou-se que a mediação exercida pelos

PMECs encontra-se assentada no propósito da adaptação dos alunos à ordem escolar; a

intenção é a de conduzir os conflitos, tendo em vista seu apaziguamento e a conciliação

entre as partes envolvidas com base na justiça restaurativa.

Palavras-chave: Violência na escola; Mediação de conflitos; Justiça restaurativa.

INTRODUÇÃO

O presente trabalho teve por meta investigar o trabalho do Professor Mediador

Escolar e Comunitário (PMEC), profissional que atua nas escolas públicas estaduais

paulistas desde o segundo semestre de 2010 e cuja função é vinculada ao programa

Sistema de Proteção Escolar, implementado pela Secretaria de Educação do Estado de

São Paulo (SEE-SP). A função do PMEC é definida no próprio nome: mediar os

conflitos que acontecem na escola e envolve também a criação de condições de diálogo

com outros agentes da comunidade externa à escola.

Tal meta nos levou aos seguintes problemas: O que se entende por violência, por

conflito e por mediação? Porque e para que foi criada essa função no Sistema Estadual

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de Ensino de São Paulo? Qual a relação estabelecida entre o Sistema de Proteção

Escolar e as atribuições do PMEC?

Neste sentido, o objetivo desta pesquisa foi descrever e analisar como se

constituiu a ação de mediação do PMEC, de modo a entender, na perspectiva dos

conceitos de formação, adaptação e barbárie (ADORNO, 2006c; 2006d), quais

tendências surgem na mediação realizada por esse profissional.

PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

A pesquisa se caracteriza por ser documental e empírica. Inicialmente foram

levantadas informações no site da SEE, a fim de explorar os documentos legais sobre o

tema. Encontrou-se uma sequência de resoluções que extinguem normas anteriores, se

completam, definem e dão corpo ao Sistema de Proteção Escolar, bem como

normatizam a função do PMEC: Resoluções SE no 19/2010, nº 1/2011 e nº 7/2012. Tais

resoluções criam os dispositivos legais do Sistema de Proteção Escolar e do Professor

Mediador Escolar e Comunitário, assim como define a atuação desse profissional (carga

horária e atividades a serem desenvolvidas). As atividades são pautadas no sistema de

Justiça Restaurativa, a qual implica na utilização de procedimentos restaurativos,

entendidos como qualquer processo no qual a vítima e o ofensor, e quando apropriado,

quaisquer outros indivíduos envolvidos ou membros da comunidade afetada pelo crime,

participam em conjunto e ativamente na resolução dos problemas nascidos do crime,

geralmente com ajuda de um facilitador (Resolução 2002/12 do Conselho Social e

Econômico da ONU).

Dois manuais publicados pela SEE foram incorporados à pesquisa documental.

Um, com o título de Manual de Proteção Escolar e Promoção da Cidadania, onde

encontramos a definição de vários conceitos que cercam questões do cotidiano escolar.

O primeiro é o de cidadania, entendida como “o conjunto de direitos e deveres a que o

indivíduo está sujeito em relação à sociedade em que vive” (SÃO PAULO, 2009, p. 9).

Outras definições são abordadas como paz, cultura de paz e violência. O manual possui

83 páginas e é destinado ao corpo docente da instituição escolar; escrito de forma bem

direta e pontual, apresenta os conflitos como geradores da violência; logo a necessidade

de mediar tais conflitos.

O outro manual, publicado no mesmo ano, Normas Gerais de Conduta Escolar,

Sistema de Proteção Escolar (2009), traz normas e regras de condutas que o aluno deve

seguir para garantir o bom andamento escolar. Começa apresentando os direitos que os

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alunos possuem em relação à instituição escolar; em seguida, apresenta seus deveres e

finaliza com um texto tratando das condutas no ambiente escolar, pontuando as

estratégias que melhor constroem e promovem um ambiente harmonioso.

No Manual de Proteção Escolar e Promoção da Cidadania (SÃO PAULO, 2009),

temos todos os itens organizados e contextualizados em situações de conflitos, que são

definidos nos seguintes termos:

Os conflitos originam-se da diferença de interesses, desejos, valores e aspirações

no convívio com a diversidade social (CHRISPINO & CHRISPINO, 2002). Os

conflitos não constituem obstáculos à paz, porém a resposta dada aos conflitos

pode 4orna-los negativos ou positivos, construtivos ou destrutivos, razão pela

qual suas formas de resolução ou mediação tornam-se foco de atenção e

intervenção (GUIMARÃES, 2003). A violência decorre da não resolução dos

conflitos ou de sua resolução de forma inadequada (SÃO PAULO, 2009, p. 11).

No mesmo manual, tem-se a definição de violência pautada na Organização

Mundial de Saúde (OMS):

Violência é o uso intencional da força física ou o poder, real ou por ameaça,

contra a pessoa mesma, contra outra pessoa, ou contra um grupo ou comunidade

que possa resultar em ou tenha alta probabilidade de resultar em morte, lesão,

dano psicológico, problemas de desenvolvimento ou privação (SÃO PAULO,

2009, p. 11).

Percebe-se ao longo do texto, de forma indireta, a preocupação da SEE-SP em

proteger a escola da atual situação conflituosa que vem desencadeando a violência em

seu interior. Tal situação é reconhecida pelos agentes que gerenciam tal instituição,

tanto que organizaram um grande projeto (Sistema de Proteção Escolar) a partir do qual

se vislumbra amenizar as consequências negativas da violência presente na sociedade e

nos estabelecimentos de ensino.

Um fato interessante é que, em ambos os manuais, não existe qualquer menção

direta sobre a função do PMEC, entretanto foi detectado no Manual de Proteção Escolar

e Promoção da Cidadania (2009) a presença de um texto que focaliza a prática da

mediação dos conflitos, indicada como a melhor solução preventiva da violência na

escola. A ênfase dada à mediação é tão destacada no manual que deu surgimento à já

mencionada Resolução SE no 19/2010, a SEE publica instaura legislativamente o

Sistema de Proteção Escolar. E é nesta resolução que surge a função do Professor

Mediador Escolar e Comunitário (PMEC).

A escolha do lugar pesquisado se fez diante da leitura dos Relatórios dos

Observatórios do Núcleo de Estudo de Violência (NEV) da USP (2000, 2002). Em tais

relatórios, constatava-se que, na cidade de São Paulo, duas regiões concentram altos

índices de violência na escola, Zonas Leste e Sul. Diante disso, optamos por concentrar

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a pesquisa na zona sul. Fazendo o cotejamento entre as informações dos Relatórios dos

Observatórios do NEV com consultas às Diretorias de Ensino (DEs), foi escolhida a DE

Sul 2 por contemplar no seu atendimento três distritos tidos como de alto índice de

violência, que repercute na escola: Capão Redondo, Jardim São Luís e Jardim Ângela.

Assim, ainda na fase de elaboração do projeto de pesquisa, realizou-se visitas à DE Sul

2, a fim de aprofundar informações acerca dos PMEC, sua função e formação e definir o

campo empírico. Os responsáveis pela supervisão forneceram informações importantes,

que permitiram a definição da trajetória desta pesquisa. Além disso, apresentaram outro

manual: Manual Prático de Introdução a Justiça Restaurativa para Professores

Mediadores Escolares e Comunitários, básico para a formação inicial dos PMEC.

A perspectiva teórica escolhida foi a Teoria Crítica da Sociedade,

principalmente, as discussões trazidas por Adorno, em especial os conceitos formação,

adaptação e barbárie. Sendo o tema – a ação dos PMEC e mediação de conflitos –

expressão de um fenômeno que extrapola a educação escolar, que é o da violência,

entendeu-se que a escolha desta perspectiva teórica é coerente ante as considerações e

discussões referentes às condições que produzem e reproduzem a barbárie, pois Adorno

(2006e) discute os elementos constitutivos da violência nas relações humanas.

A relevância acadêmica desta pesquisa está no fato de se tratar de um tema (a

função do PMEC) pouco estudado até o presente. Outra justificativa da relevância é que

não encontramos trabalhos dedicados a indagar se a ação de mediação de conflitos feita

pelo PMEC, na prática, se dá na perspectiva de formação do indivíduo, tal como

definida por Adorno (2006a), ou se predomina a tendência à adaptação.

Na pesquisa de campo, o instrumento utilizado foi a entrevista. Foram feitas

entrevistas com 18 PMECs e dois supervisores da DE Sul 2. As entrevistas se

apresentam de forma bem distinta: alguns PMEC foram bastante extensos nas suas

respostas, outros mais sucintos. Considerando o contexto de todas as entrevistas, ficou a

sensação de que as respostas mais sucintas estavam atreladas ao descrito nos

documentos, e aqueles que mais ousaram se expor trouxeram elementos que os

documentos não abordam.

A organização dos dados coletados

Os dados foram organizados, à luz do que Adorno (2006f) discute sofre

formação e emancipação, uma tipologia das respostas dadas pelos entrevistados e das

informações encontradas nos documentos no que se refere aos conceitos de mediação,

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conflito e violência. Tal organização foi baseada justamente no que se encontrou na

pesquisa empírica, inspirada pelo referencial teórico.

Da leitura das entrevistas e das fichas de registro de informação documental foi

possível perceber algumas características recorrentes. A primeira é referente ao modo

como são definidos os conceitos de violência, conflito e mediação. Nos documentos e

nas entrevistas os três termos são descritos de modo semelhante ao dicionário. Essa

característica, quando verificada, foi tipificada como operacional: ligada à função

específica e ao fato da definição estar atrelada diretamente à ação prática. A

nomenclatura “operacional” foi definida por representar aquilo que de forma clara

aparece nos dados: a partir de uma dada acepção, a preocupação incide em como fazer

uso dela para resolver ou atuar sobre a situação que se avalia problemática. Tal modo de

pensamento parece reproduzir a lógica que orienta o trabalho nas indústrias e empresas:

mais importante do que qualquer reflexão sobre o problema ou a tarefa que se apresenta,

é a busca de soluções e a execução do trabalho imposto exteriormente aos indivíduos.

No caso em questão, tal modo de operar o pensamento é condicionado pela ação

imediata, sem que seja estabelecida qualquer relação, seja com o entorno, seja com a

estrutura social mais ampla.

Outro tipo criado, ante o encontrado nos dados, foi a de definição preconcebida

ou reproduzida do senso comum. Este tipo de resposta apresenta algumas semelhanças

com o tipo operacional, porém se distingue por não se constituir em uma definição

propriamente dita, mas a reprodução clara de estereótipos e clichês como, por exemplo,

relacionar problemas escolares com desestruturação familiar. Não são expostas

quaisquer referências que sustente a opinião emitida.

Por fim, o último tipo criado congrega as definições assentadas ou que recorrem

às condições sociais – nessas situações os termos expressariam que conflito, mediação e

violência são fenômenos que estão diretamente vinculados à realidade brasileira, ao

capitalismo ou à modernidade.

Os dados foram organizados em quadros. Além dos elaborados com base na

tipologia criada, outras informações também foram apresentadas em forma de quadros,

que se referem às funções do PMEC e aos conceitos que permitem o cotejamento entre

o que aparece nos documentos e o que os entrevistados expressaram. Quanto às

informações sobre as ações dos PMEC, pôde-se perceber quatro tipos: projetos,

parcerias, “apaziguamento”/mediação e trabalho burocrático (preenchimento de

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relatórios sobre o trabalho desenvolvido na escola e a ser encaminhado aos

supervisores).

Os conceitos

Foram investigados três conceitos: mediação, conflito e violência. A ideia foi

examinar como, em cada fonte consultada, aparecem tais conceitos. Nesse sentido,

pode-se dizer que nos documentos prevalecem definições operacionais. Claro que a

legislação que regulamenta algo e os manuais que ditam regras de como esse algo deve

acontecer, têm essa finalidade, porém, como se trata de ação concebida no âmbito da

política educacional e proposta para a implementação em toda a rede, esperava-se

encontrar elementos que pudessem ser orientadores do debate público sobre a questão,

envolvendo os professores, os alunos e suas famílias etc. Não é o que se verifica: os

princípios e fundamentos filosóficos (ou de outra natureza) são brevemente

apresentados. Em outros termos, aquilo que poderia levar a um processo de formação

dos professores, de fato não é concebido para isso. Trata-se de ação que pressupõe a

adesão acrítica do docente, que lidará com a prática da mediação de conflitos que,

juntamente com a violência, são definidos sem qualquer possibilidade de discussão.

Já os supervisores e PMECs entrevistados, além de oferecerem definições

operacionais, conforme os tipos identificados, se valem de grande quantidade de noções

preconcebidas. Vale a pena refletir sobre como isso está relacionado com a prática da

mediação. Talvez os cursos de formação para não sejam tão efetivos, pois os PMECs

incorporam conteúdos que são transmitidos, mas utilizam recursos que já possuem

como, por exemplo, o fato de ser professor conhecido na escola e na comunidade.

Dessa perspectiva foram organizados os Quadros 1, 2 e 3 que trazem as

informações coletadas sobre mediação, a fim de comparar e contrastar como as

diferentes fontes de informação se manifestam sobre ela. A ideia foi a de identificar

nuances.

Quadro 1. Informações sobre mediação oferecidas por documentos

A mediação é uma forma de resolução de conflitos que consiste na busca de um acordo pelo

diálogo, com o auxílio de um mediador, favorecendo a reorientação das relações sociais para

formas de cooperação, confiança e solidariedade. (Manual-PEPC, 2009, p. 54-55)

Vamos nominar mediação quando envolver apenas as pessoas diretamente conflitantes e o

mediador. (Justiça Restaurativa-PMEC, 2012, p. 48)

Quadro 2. Informações sobre mediação oferecidas por Supervisores de Ensino

“Tem aquela mediação mais simples, de você se colocar entre duas partes que estão em

conflito e tentar resolver. No caso deles é mais do que isso; é tentar antever a situação de

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conflitos. Então, a primeira grande atividade deles é fazer o mapeamento do que tem na

escola, o que tem de recursos humanos e de recursos materiais”. (SUPERVISORA 1)

“Mediação é você lidar com uma situação conflituosa antes que ela se torne violência,

trabalhar através do diálogo para que solucione um problema que virá adiante se

transformar em violência. Isso é mediar”. (SUPERVISORA 2)

Quadro 3. Informações sobre mediação oferecidas por PMECs

“Mediar é dialogar. É você tentar dialogar com as duas partes o conflito e tentar, pela justiça

restaurativa, amenizar ou eliminar a situação”. (PMEC 1)

“Na verdade pra mim, mediar não é agitar, se mediação é apaziguar, entender os dois lados,

eu venho aqui pra ter entendimento com os dois lados, não é punir, é entender resolver a

situação entre os dois, e fazer que os dois lados recuem... e fazê-los conversar, fazer as pazes,

ficarem de boa, de mãos dadas. É a minha visão”. (PMEC 2)

“Ser imparcial, não levar para um lado, pois aí eu acabo me identificando com um grupo, ser

sempre imparcial, pegar as opiniões, verificar, pegar a ocorrência, conversar e, depois, eu

tomando uma atitude, que eu consiga conciliar as duas partes, não vou dizer quem é certo ou

errado; é sempre imparcial”. (PMEC 6)

“Bom, a necessidade surge em 2010, ela surge na resolução de conflitos, pelo alto índice de

conflitos que estavam acontecendo nas escolas, então, houve a necessidade da criação desse

profissional, de ter essa incumbência, de trazer... para... da resolução dos conflitos, pois,

assim desafoga o pedagógico, da direção, vice e coordenação”. (PMEC 17)

“Mediação, para mim, seria uma forma de apaziguar... Seria organizar, fazer parte do

ambiente, fazer com que as coisas fluam de maneira positiva sem confusão”. (PMEC 14)

“E essa formação que eles dão lá, pra mim, não quer dizer nada... A minha vivência, a minha

realidade, eu sempre procurei passar para os meus alunos, o que me aconteceu, eu venho

partindo de tudo isso aí, experiência própria, experiência de vida”. (PMEC 2)

“Primeiro os valores familiares são esquecidos, segundo as informações que os jovens

recebem hoje são muito rápidas e eles são muito questionadores”.(PMEC 15)

“Uma assistente social, com asas de psicologia e coração de mãe, é uma mistura que não se

consegue separar, mesmo não tendo o diploma dessas profissões. Usa-se o coração de mãe, o

profissionalismo do assistente social e a psicologia que Deus te dá”. (PMEC 11)

“Uma família carente de tudo, por parte do governo, por parte das pessoas que não

compreendem, é muito fácil olhar para o próximo e não olhar para si”. (PMEC 16)

“Então, se vamos falar das questões sociais dentro da escola, existe um desconforto, vejo em

uma perspectiva política, e a violência que os governos exercem conosco, então os

professores não são bem remunerados, as escolas fisicamente estão deterioradas, as salas,

sujas, também são violências, não está agradável para os alunos... Se vamos falar de

justificativas sociais, é importante pensar nisso, que eles já trazem problemas de casa. O

mediador precisa conhecer os problemas sociais nos quais seus alunos estão inseridos, para

entender melhor esse aluno”. (PMEC 18)

“Eu acho que na verdade este está sendo um cargo de extrema importância, porque quando

temos problemas com o aluno e chamamos a família, nós descobrimos que o problema não é o

aluno e sim a família... O problema deles aqui é totalmente social, então isso me incomoda, eu

estou vendo muita coisa e eu não estou conseguindo resolver tudo, porque, na verdade, eu não

vou resolver nunca, pois o problema é a família e eu estou de mãos atadas, pois na família eu

não posso me meter”. (PMEC 3)

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Tanto nos documentos como nos relatos verificou-se uma variedade de aspectos

mobilizados para definir ou conceber do que se trata a prática de mediar conflito. Nos

documentos e manuais o procedimento é a definição seguida de explanação baseada em

autores estudiosos da temática. Mas chama atenção o fato de os supervisores e os

PMECs ora recorrerem ao que está disposto nos documentos, ora citarem as situações

cotidianas que os educadores, em geral, enfrentam na escola (especialmente aquelas

ligadas ao que definem como indisciplina dos alunos). Assim, mencionam estratégias de

resolução dos conflitos – o próprio ato de mediar – que foram pensadas a partir da

necessidade imediata de colocar em prática a mediação; dessa forma, parecem

reproduzir o que está nos manuais que orientam o trabalho. Também parecem se

inspirar no que o senso comum oferece de recursos para que certos litígios ou atos de

agressão não tenham graves consequências para os envolvidos. Seja com for, os

entrevistados consideram, em termos gerais, que mediar é fazer com que as partes em

conflito cheguem a um entendimento, seja com a reparação dos danos causados, seja

com o restabelecimento da harmonia perdida.

Uma parcela dos entrevistados faz alusão às condições sociais como fator

desencadeador dos conflitos e da violência. O curioso foi que apenas um sujeito indicou

a natureza da estrutura social como promotora dos problemas relacionados com a

violência na escola. A maior parte reconhece que as condições objetivas de vida

determinam os comportamentos dos alunos, mas sem fazer menção que tais condições

também são determinadas socialmente. Assim, associam problemas familiares de toda

ordem com a agressividade dos alunos. Mas, ao fazer isso, definem que a mediação é

uma espécie de terapia, a qual poderia amenizar ou compensar as carências vividas no

lar. Em outros termos, estando mais preocupados com o exercício do controle e com a

manutenção da ordem no ambiente escolar, não se verificou que o trabalho dos PMEC é

concebido como uma oportunidade de intervenção que efetivamente se constitua, para

os envolvidos, em experiência de formação (ADORNO, 2006d). Apelam para o

compromisso, sem que isso signifique verdadeiramente a experiência com o outro.

É plausível para o entendimento humano sadio evocar compromissos que

detenham o que é sádico, destrutivo, desagregador, mediante um enfático “não

deves”. Ainda assim considero ser uma ilusão imaginar alguma utilidade no

apelo a vínculos de compromissos ou até mesmo na exigência de que se

reestabeleçam vinculações de compromisso para que o mundo e as pessoas

sejam melhores. A falsidade de compromissos que se exige somente para que

provoquem alguma coisa – mesmo que esta seja boa –, sem que eles sejam

experimentados por si mesmo como sendo substanciais para as pessoas,

percebe-se prontamente (ADORNO, 2006c, p. 124).

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Nas fontes e pessoas consultadas sobre mediação, conflito e violência observou-

se que a tendência é a de considerar e destacar aquilo que permite colocar em prática a

proposta governamental – o Sistema de Proteção Escolar. Nesse sentido, temos um

movimento que é orientado no sentido de promover a adaptação dos profissionais e da

própria escola às políticas educacionais emanadas dos agentes superiores da rede de

ensino estadual. E essa adaptação parece acontecer sem que qualquer possibilidade de

debate e reflexão seja gerada. Se a educação – incluindo a ação dos professores e o

modo como a planejam – for reduzida a mera adaptação, então a formação, nos termos

definido por Adorno (2006a; 2006d) jamais se realiza. Educação, para o autor, envolve

mais do que a modelagem de pessoas, mais do que a transmissão de conhecimento;

implica na “produção de uma consciência verdadeira” (ADORNO, 2006d, p. 141).

DISCUSSÃO E RESULTADOS

Depois do percurso trilhado nesta pesquisa, é preciso destacar alguns pontos a

fim de evidenciar as relações entre a produção acadêmica e os dados empíricos.

A discussão toma como ponto de partida a situação de violência na escola. A

análise das obras que tratam dessa temática evidencia o quanto essa questão vem sendo

pesquisada por profissionais de outras áreas, e que, curiosamente, os educadores pouco

aparecem. Este foi um ponto de destaque, mesmo não sendo o foco da pesquisa. Como

falar de violência na escola, uma vez que os pesquisadores do tema não são os próprios

educadores? Não está se desconsiderando a necessidade e a importância de uma visão

mais ampliada sobre o assunto, porém, acredita-se que a discussão, ou melhor, a atuação

dos educadores seria outra, caso dedicassem mais estudos sobre esse problema.

De qualquer modo, é nítido o quanto a temática se desenvolveu nos últimos

trinta anos. A violência e sua relação com a educação foi cada vez mais destrinchada e

especificada: violência da escola, violência na escola e violência à escola. Isso permitiu

compreender como e de que maneira o espaço escolar vira palco das situações de

violência das mais variadas espécies. Conflito e mediação de conflitos são dois

elementos usados para se conhecer e caracterizar a tensão presente no espaço escolar.

Foi dessa perspectiva que se focalizou o Professor Mediador Escolar e

Comunitário (PMEC) e sua atuação na rede das escolas estaduais. Assim, a proposta de

pesquisa foi compreender como a mediação de conflitos se tornou uma peça da política

educacional, tendo em vista o combate à violência na escola.

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A exploração do fenômeno não se constituiu de forma estática. Intenso e

complexo foi o esforço para sua descrição e conceituação e, ainda, a necessidade de

associá-lo ao contexto histórico e social. Verificou-se, como na legislação e nos

manuais, as definições e conceitos são apresentados de forma simplista. Este foi o

primeiro contraponto encontrado, antes mesmo da pesquisa empírica: a descrição

estática dos conceitos nos documentos que orientam o trabalho do professor mediador.

A coleta dos dados em campo permitiu a discussão, a análise e a reflexão acerca de

como as manifestações de violência são percebidas e compreendidas pelos educadores,

no caso os PMECs (e os supervisores de ensino). A análise do trabalho de mediação foi

feita à luz do conceito de formação de Adorno (2006a, 2006d). Verificou-se que os

sujeitos de pesquisa assimilam e se apropriam dos conceitos de forma pouco refletida ou

sem nenhuma reflexão: ora reproduzem o que está disposto nos documentos oficiais, ora

pautam-se no cotidiano em que estão imersos. Pouco é abordada a questão social e seus

condicionantes como componente da situação que contribui ou define a manifestação da

violência; muitos são os que não compreendem as condições e a estrutura social para

explicar o que acontece nas escolas. As manifestações sobre a prática da mediação

indicam que esta se caracteriza, predominantemente, em adaptação dos alunos e trato

dos conflitos que produzem, nos quais estão envolvidos.

Também é necessário tecer alguns comentários sobre o modo como a família é

encarada, questão que surgiu durante a pesquisa, principalmente com os PMECs

atribuindo responsabilidade a ela pelos problemas causados e vividos pelos alunos na

escola. Observou-se a perpetuação da crise da família no imaginário docente. Essa é

uma questão que merece ser pensada como futura proposta de investigação, uma vez

que a família é compreendida abstratamente: o contexto em que vive, a desigualdade, a

violência, a exploração econômica, enfim, aquilo que a constitui não é levado em conta.

Do mesmo modo, a tendência é a de só enxergar a violência “visível”: a falta de

condições básicas de existência pouco é pensada e sequer discutida. Desse modo, a

violência da falta de moradia, de saneamento, de saúde e de acesso à cultura não é

percebida; o que ocorre é a discussão sobre seu reflexo.

Outro dado que surgiu e que merece maior exploração é a existência do “tio”,

que trabalha “na boca”, lugar do tráfico de drogas, causa imediata da dependência

química e psicológica e da violência. Em comunidades periféricas das grandes cidades,

a socialização de crianças e jovens é pautada por essa espécie de instituição paralela.

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

4142ISSN 2177-336X

12

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por fim, mais algumas palavras sobre a questão central da pesquisa, pautada no

quanto os conceitos que se referem a uma dada realidade são formulados de forma

estática, isto é, sem que seja possível, por seu emprego, divisar a complexidade social.

Os dados indicam que há uma forma de pensar que evoca a uniformidade, característica

da própria cultura escolar, que tende a tratar todos como iguais, desconsiderando as

diferenças existentes entre eles. Não há compreensão de que as manifestações de

violência dos alunos na escola possuem elementos próprios, mas que ao mesmo tempo

são exteriores a ela, assim como que tais elementos não são anulados uns pelos outros,

que há um nexo entre o todo e as partes que deve ser considerado. Sendo assim, o

máximo que se encontrou foi a tentativa de adaptar um sujeito particular, enquadrando-

o à totalidade expressa na ordem escolar, e isso a fim de se “solucionar”, de forma

imediata, os conflitos surgidos. Percebe-se não a busca de solução, mas sim do

apaziguamento dos ânimos, a (re)mediação de conflitos entre as partes.

Constata-se, por outro lado, que a “mediação” é tomada como “panaceia”

passível de curar uma doença social muito mais profunda causada, em última instância,

pela pobreza e pela desigualdade social e econômica. Concluir não é a palavra adequada

para descrever o que se propôs nestas considerações, pois esse não é o fim, mas parte do

percurso de discussão sobre violência que tem lugar na escola.

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XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

4144ISSN 2177-336X

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A RELAÇÃO PROFESSOR-ALUNO: ENTRE (IN)DISCIPLINA E

INTERVENÇÕES DIDÁTICAS

Eixo temático 1: Didática e prática de ensino: desdobramentos em cenas na educação pública.

Sub-tema 1.3: Modos do ensinar e aprender em experiências.

Profa Dr

a Ana Maria Falsarella

Centro Universitário de Araraquara (Uniara).

Resumo

Em minha trajetória profissional pude observar e vivenciar inúmeras e variadas

situações e relatos de indisciplina e agressões de alunos contra professores, funcionários

e outros alunos, bem como de arbitrariedades e discriminações, explícitas e implícitas,

perpetradas pela escola. Situações em que laços relacionais positivos abriam caminho

para a aprendizagem eram igualmente presentes. Aprofundar o estudo sobre relações

interpessoais e aprendizagem justifica a apresentação deste texto, que partiu do seguinte

problema: Quais explicações diferentes pesquisadores encontraram quanto às

facilidades/dificuldades de professores e alunos se relacionarem de modo a alcançar a

escolarização? Meu objetivo foi investigar como, em escolas públicas brasileiras, as

equipes escolares associam relações interpessoais à aprendizagem. O procedimento

metodológico utilizado foi a investigação documental, sendo analisadas quatro

dissertações de mestrado, cujo critério de seleção foi o de serem pesquisas qualitativas

voltadas ao ensino fundamental e médio em diferentes estados da federação. Da leitura

detalhada dos trabalhos surgiram as chaves de análise: a) Modernidade, pós-

modernidade, disciplinamento; b) Exercício do poder, cultura disciplinar, tarefa,

vigilância; c) Constituição de sujeitos, cultura disciplinar, exercício do poder; d)

Formação docente, conteúdos curriculares, violência e fracasso escolar. Os principais

aportes teóricos indicados pelos autores das quatro dissertações foram: Lyotard (2000),

Bauman (2003), Foucault (1979, 1987), Bourdieu (2002) e Certeau (2001). De minha

parte, para analisar as pesquisas, vali-me de Marin (1996 e 2015) e Pimenta (2015),

dentre outros autores. Como resultado destaca-se que a relação professor-aluno é

marcada pelo controle de corpos e mentes, o qual, em classe, se dá pela fiscalização do

professor sobre a execução das tarefas e para manutenção da ordem. Cabe esclarecer

que este trabalho é subproduto de pesquisa coletiva desenvolvida em Instituição de

Ensino Superior (IES) privada, localizada na cidade de São Paulo e envolveu

pesquisadores de várias IES.

Palavras-chaves: Relação professor-aluno; Disciplina e indisciplina; Intervenções

docentes.

INTRODUÇÃO

Quando professor e aluno se encontram frente a frente na sala de aula, um

intrincado sistema de relações se desencadeia. Cada qual traz a nível consciente e a

nível inconsciente, uma carga de valores, ideias e expectativas com relação ao outro. E

cada qual olhará a sala de aula, a si mesmo e ao outro sob essa ótica. Entre aluno e

professor jamais se formará uma relação de indiferença porque a escola, como local de

troca e de convivência humana, tem um objetivo principal: a transmissão do legado de

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

4145ISSN 2177-336X

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conhecimentos e valores considerados fundamentais pela sociedade. Essa relação que se

estabelece em torno do tripé professor-aluno-conhecimento, não raro é conflituosa

porque esses sujeitos portam diferentes culturas, não podem escolher-se por afinidade e

dificilmente podem retirar-se frente a dificuldades relacionais.

Meu interesse pelos temas “relação professor-aluno” e “disciplina/indisciplina

escolar” vem de longa data. A chance de aprofundar o entendimento sobre eles de modo

interligado com as práticas docentes, surgiu com minha participação na pesquisa

coletiva A escola fundamental e a didática: a produção acadêmica e sua contribuição

para o ensino (2000-2011) (coord. MARIN, 2013-2016), desenvolvida no âmbito de um

programa de estudos pós-graduados em educação de uma universidade privada situada

na cidade de São Paulo, que envolveu vários pesquisadores de diversas Instituições de

Ensino Superior (IES).

A pesquisa supra citada, de cunho empírico-documental, buscou verificar como

o ensino é focalizado em pesquisas acadêmicas e identificar a possível contribuição

destas para a construção do objeto de estudo da Didática e para a inovação de práticas

de ensino nas escolas. Foram mapeados 8388 resumos de pesquisas desenvolvidas em

cursos de pós-graduação de 176 IES do país e também trabalhos do acervo do Grupo de

Trabalho (GT) de Didática, e outros GTs afins, da Associação Nacional de Pós-

Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd), coberto o período entre 2000 e 2011. O

levantamento foi realizado no Banco de Teses da Coordenação de Aperfeiçoamento de

Pessoal de Nível Superior (CAPES), no sítio eletrônico da ANPEd, em repositórios

digitais de universidades e sistemas integrados de bibliotecas, além de variados bancos

de dados, que pudessem complementar as informações. Todos os níveis de ensino foram

contemplados, sendo que o grupo de pesquisadores selecionou os seguintes descritores

na efetivação da pesquisa: prática pedagógica, formação docente, aprendizagem,

conteúdo didático, livro didático, alfabetização, método de ensino, saberes docentes,

material didático, intervenção didática, avaliação da aprendizagem, relação professor-

aluno, disciplina/indisciplina escolar, técnica de ensino, planejamento de ensino.

O presente artigo é um subproduto da pesquisa acima descrita em rápidas

palavras. Dos descritores elencados, discorro a respeito da relação professor-aluno e da

disciplina/indisciplina escolar, considerando as ligações destas com as intervenções

didáticas do professor. Sobre relação professor-aluno, 283 trabalhos foram encontrados

(2,2% das produções) e sobre disciplina/indisciplina escolar, 219 (1,7% das produções).

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

4146ISSN 2177-336X

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Posso apontar como justificativa para a eleição desses focos: a observação e a

vivência, em minha trajetória profissional no ensino público e na universidade privada,

da estreita conexão – positiva ou negativa – entre o relacionamento professor-alunos e o

processo de ensino-aprendizagem. Ouvi e vi casos e mais casos de agressões de alunos

contra professores, funcionários e outros alunos, de arbitrariedades e discriminações

explícitas ou implícitas perpetradas pela escola contra alunos, bem como de situações

em que relações de confiança abriram caminho para a aprendizagem. Um caso

emblemático é o ocorrido em uma escola pública de ensino fundamental onde trabalhei:

Adriano mostrou-se rebelde desde a 1a série. O pai, bandido, foi morto a tiros

pela polícia na frente do menino. A mãe, empregada doméstica, só ganhava o

suficiente para a sobrevivência da família. Encaminhar o menino para

acompanhamento psicológico que o ajudasse a superar o trauma, nem pensar.

Em classe, Adriano agredia constantemente os colegas. Certa vez, quando

repreendido, chegou a jogar a carteira na professora, embora ela se mostrasse

bastante paciente e tentasse compreender o menino de todas as formas. Assim

se passaram dois anos. Quando chegou à 3a série, Adriano encantou-se pela

nova mestra. Um ano transcorreu sem que se ouvisse uma queixa sequer. O

menino sentava-se na primeira carteira, estava constantemente na mesa da

professora e fazia as tarefas. Caso Adriano se irritasse com algum colega,

bastava um olhar da professora para acalmá-lo. (FALSARELLA, 1996, p.5)

Casos como o de Adriano me levaram ao seguinte problema: Quais explicações

diferentes pesquisadores encontraram quanto às facilidades/dificuldades de professores

e alunos se relacionarem de modo a alcançar o objetivo da escolarização? Hipóteses não

foram formuladas, haja visto que, quando observada “ao vivo”, a relação professor-

aluno permite múltiplas e complementares entradas, por conta de diferentes vertentes

teóricas que a abordam (cognitivista, sócio-histórica e outras).

Investigar, em pesquisas desenvolvidas na área da educação, o que os

profissionais de escolas públicas brasileiras pensam e como lidam com as questões,

intimamente imbricadas, da relação interpessoal professor-aluno, da disciplina e

indisciplina e dos procedimentos didáticos adotados no trato com o conhecimento,

constituiu, assim, o objetivo primário deste trabalho. Dele decorreram os objetivos

secundários: 1. Discutir como alunos e professores se constituem como sujeitos na

relação pedagógica; 2. Levantar fatores que levam à instauração da disciplina ou da

indisciplina em classe; 3. Levantar aspectos da formação docente que contribuem para a

constituição das percepções sobre disciplina e indisciplina; 4. Contribuir para o

estabelecimento de uma visão crítica sobre como intervenções didáticas interferem

positiva ou negativamente na relação professor-aluno, levando o aluno à aprendizagem

ou à indisciplina, ao fracasso e à exclusão.

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PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

A abordagem do tema se deu por meio da busca das conclusões a que chegaram

outros pesquisadores que o investigaram. Trata-se, portanto, de uma pesquisa

documental com base empírica. A partir de uma leitura flutuante de 28 resumos de

pesquisas acadêmicas relacionadas aos descritores relação professor-aluno e

disciplina/indisciplina escolar (do total de 502 levantados inicialmente na citada

pesquisa coletiva), selecionei quatro dissertações de mestrado, as quais foram

exploradas com mais acuidade. Foram critérios de seleção: serem pesquisas qualitativas

e de campo, abarcarem os ensinos fundamental e médio de redes públicas e

relacionarem questões de disciplina/indisciplina e de relação professor-aluno às

intervenções didáticas do professor. Tomei um cenário diversificado, elegendo

pesquisas elaboradas em diferentes estados da federação e envolvendo variados sujeitos.

Romero (Sorocaba-SP, 2005) selecionou como sujeitos, professores, pais, coordenadora

pedagógica, inspetora de alunos e alunos de ensino médio de uma escola estadual;

Castro (Rio de Janeiro-RJ, 2006) trabalhou com professores e outros participantes dos

conselhos de classe e, particularmente, com os alunos e a professora de um 4o

ano de

uma escola de ensino fundamental; Paiva (Uberlândia-MG, 2005) tomou por sujeitos

professores e alunos de 1o ano do ensino fundamental de uma escola municipal; os

sujeitos selecionados por Santos (Belém-PA, 2011) eram professores de matemática de

escolas estaduais (ensino fundamental e médio) que estavam frequentando um curso de

formação continuada.

As próprias palavras-chave das pesquisas deram ensejo à seleção das chaves de

análise: a) Modernidade, pós-modernidade, disciplinamento; b) Exercício do poder,

cultura disciplinar, tarefa, vigilância; c) Constituição de sujeitos, cultura disciplinar,

exercício do poder; d) Formação docente, conteúdos curriculares, violência e fracasso

escolar. Os itens: relação professor-aluno, disciplina/indisciplina escolar, controle,

procedimentos didáticos e formação docente perpassam todas as categorias.

Em última instância, o que está em jogo é “a didática como disciplina específica

de formação docente, multifacetada e aglutinadora de um conjunto de dimensões, mas

que tem sido negligenciada ou tratada apenas como técnica de ensino”. (MARIN, 1996,

p. 13) Uma visão mais abrangente entende que a relação professor-aluno e a

disciplina/indisciplina são sim aspectos ligados aos estudos sobre a didática, “uma vez

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consideram a vida do aluno em suas particularidades, características e necessidades e

analisam os papéis da escola e do professor”. (MARIN, 1996, p. 13)

APORTES TEÓRICOS

Apresento, a seguir, uma visão geral sobre o pensamento dos autores mais

citados nas quatro pesquisas, a saber: Lyotard (2000), Bauman (2003), Foucault (1979,

1987), Bourdieu (2002) e Certeau (2001). Mesmo sem um aprofundamento maior, em

função dos limites de extensão do texto, entendo que essa apresentação contribuirá não

apenas para melhor entendimento daquilo que proponho, como também para indicar

pistas a futuros pesquisadores que venham a explorar tal temática.

Lyotard (2000) discute a questão da produção do saber na contemporaneidade,

que seria decorrente da morte das grandes narrativas, da perda das visões totalizantes da

história (os falsos universais), que prescreviam regras de conduta política e ética para a

humanidade. Um exemplo é o iluminismo, que entendia que a razão, o progresso

científico e a tecnologia libertariam o homem de dogmas, mitos e superstições, levando-

o à felicidade. A história mostrou, na prática, que a teoria não funcionou conforme o

previsto, pois se as condições de vida de uma parte da humanidade melhoraram,

também houve a criação de armas de destruição nunca antes imaginadas e o aumento da

degradação do planeta, ameaçando a sobrevivência de todos os seres vivos.

Para Bauman (2003), a pós-modernidade não passa de uma extensão da

modernidade; ele propõe a nova categoria de modernidade líquida, em contraposição à

modernidade sólida, que era definida pela sociedade industrial e pela guerra-fria, em

que dois núcleos de produção de julgamentos distintos e antagônicos se apresentavam: o

capitalista e o comunista. Com o fim da guerra fria, sedimentou-se a primazia do

consumo e das ferramentas virtuais de socialização. Na modernidade líquida as relações

são fluidas e frágeis. Parece que há maior liberdade, o que é um engano. O mal-estar

psíquico agravou-se entre os homens e a globalização trouxe um nova forma de

exclusão, a do não-consumidor: o estranho que mostra condições errantes e não têm

lugar no espaço social reservado aos consumidores e gastadores compulsivos.

Foucault (1979, 1987) discorre sobre as instituições modernas, dentre elas a

escola, como mecanismos práticos de confinamento, vigilância e punição. A partir do

século 19 uma sociedade disciplinar organizou meios de confinamento de pessoas em

espaços classificatórios e hierarquizados. Passa-se de um espaço fechado a outro: da

família para a escola, desta para a fábrica ou a universidade; eventualmente, para a

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

4149ISSN 2177-336X

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prisão ou o hospital. A ideia subjacente é a de conversão do homem em máquina,

tornando-o útil, dócil e disciplinado para o trabalho. Mais recentemente, a sociedade

disciplinar estaria sendo substituída pela sociedade do controle, em que a nova estratégia

de dominação seria o poder à distância. Foucault chama de microfísica do poder a um

tipo específico de poder que se expande por toda a sociedade por meio de técnicas de

dominação que se inscrevem no inconsciente, adestrando corpos e mentes dos

indivíduos, controlando minuciosamente gestos, hábitos, comportamentos e atitudes. O

poder disciplinar precisa de pouco: olhar hierárquico, exame permanente e castigo

normalizador. Suas técnicas são feitas de minúcias, detalhes mínimos, pequenas ações

dotadas de grande poder e fáceis de constatar, por exemplo, em salas de aula: um olhar,

um psiu, a batida do apagador na mesa, o nome escrito no quadro. As relações de poder

não se restringem à sala de aula; pelo contrário, formam uma cadeia de disciplinamento

e controle nas várias instâncias do sistema educativo.

Bourdieu (2003) desenvolve o conceito de habitus em várias obras, sendo a sua

construção explicada como...

(...) o produto de um trabalho social de nominação e de inculcação ao término

do qual uma identidade social instituída por uma dessas linhas de demarcação

mística, conhecidas e reconhecidas por todos, que o mundo social desenha,

inscreve-se em uma natureza biológica e se torna um habitus, lei social

incorporada. (BOURDIEU, 2003, p. 64)

Tal trabalho de inculcação, desenhado pelo mundo social, tem início na infância,

inscreve-se na natureza biológica e, ao término, institui a identidade social de cada

sujeito. Habitus é a lei social incorporada, formada por modelos interiorizados de modo

inconsciente por meio das ações familiar e escolar.

A abertura da escola a todos oculta a manutenção do favorecimento aos já

favorecidos: basta à escola ignorar as desigualdades culturais existentes entre alunos de

diferentes camadas sociais. Há, então, a produção de portadores de um “mal-estar

crônico” provocado pelo fracasso escolar. Para Bourdieu, hoje a escola exclui como

sempre, mas mantém entre seus muros aqueles que exclui, relegando-os à não

aprendizagem. São os excluídos do interior, situação paradoxal em que estão

encurralados os alunos das famílias mais pobres, portadores de desigualdades iniciais

diante da cultura, o que explica atitudes negligentes dos alunos e provocações aos

professores e colegas. (BOURDIEU, 2002)

Certeau (2001), por sua vez, mostra como a cultura popular inventa “mil

maneiras“ de jogar e/ou desfazer o jogo da cultura dominante. No espaço instituído pelo

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

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dominante toma forma uma atividade sutil e, ao mesmo tempo resistente, daqueles que,

não tendo espaço próprio, atuam dentro de uma rede de forças e de representações pré-

estabelecidas, mas alterando as regras do espaço do opressor. Há astúcia nas ações dos

dominados para reagir e driblar o poder instituído, valendo-se das falhas que se abrem

na vigilância. Afinal, se há um poder que é dominante, ele não é único. Essa concepção

pode ser levada para a educação, onde o poder dominante seria representado pelas

instâncias superiores do sistema, sendo que professores e alunos, como as partes fracas

desse sistema, utilizam artimanhas para esquivar-se da dominação dos fortes sem

afrontá-los diretamente.

DISCUSSÃO

a) Modernidade, pós-modernidade, disciplinamento

Romero (2005) aponta o caráter bifronte da disciplina/indisciplina escolar,

expresso, de um lado, pelas limitações impostas aos alunos pelas normas estabelecidas

pelo Conselho Escolar e, de outro, pelo fato de as escolas estarem inseridas, hoje, em

um contexto cultural e social de flexibilidade, mobilidade e transformação. Suas

observações a levaram à conclusão de que os alunos são limitados por inúmeras

proibições, de modo que o papel fundamental da educação acaba sendo o de formar as

subjetividades discentes por meio de práticas de disciplinamento e controle que fazem

parte das tradições escolares. A busca por intervenções didáticas criativas e dinâmicas

por parte do professor ficam em segundo plano. Mesmo imersa no contexto

sociocultural pós-moderno, a escola se aferra ao conservadorismo, à imposição, ao

imobilismo e ao não-diálogo, descuida-se do cultivo da criatividade e do preparo para o

viver em uma sociedade mutante.

Para finalizar, Romero (2005), aponta a relevância de “entrar em contato com a

materialidade da indisciplina escolar através de um conjunto de vozes” (p.6), quais

sejam, professores, pais, coordenadores, diretores, inspetores de alunos e os próprios

alunos, para se contrapor ao forte controle da direção observado na escola pesquisada.

b) Exercício do poder, cultura disciplinar, tarefa, vigilância

Em sua pesquisa, Castro (2006) identificou um padrão de recorrência de forma

hierárquica de exercício do poder na escola., que privilegia o controle sobre os alunos.

A autora observou dois contextos: o da sala de aula e o do conselho de classe.

Especificamente na sala de aula, o controle do corpo é permeado pela execução da

tarefa, com cada aluno sentado em sua carteira fazendo a mesma lição. O olhar atento

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

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do professor aos movimento corporais demonstra a internalização de regras e normas

por parte dele próprio. Os procedimentos de controle objetivam a execução da tarefa,

que é o “ofício” do aluno que o professor deve fazer cumprir, perante a vigilância da

direção. Seguem trechos da pesquisa, em que a professora se dirige aos alunos.

Profa: “Vamos sossegar aí? Gerson (erra o nome do aluno)... vamos parar com

a necessidade de se aparecer! Vamos sentar.Eu quero vocês sentados”.(p. 89).

Gerson (que não se chama Gerson): Mas eu tô sentado”. (p. 89)

Profa: “Felipe, você já fez sua tarefa? Senta no seu lugar! Olha só, não quero

ninguém em pé. Senão não consigo ver.” (Nesse momento todos os alunos

estão sentados) (p. 89)

Profa: “Marcelo, vai sentar no seu lugar.” (p. 90)

Marcelo: “Não quero sentar não.” (p. 90)

Profa: “Você não quer ficar sentado não? Então vou tirar sua cadeira e vou te

deixar em pé até o final! Tá bom assim?”(Ela arrasta a cadeira para a frente da

sala. Ele fica passeando pela sala).”Mas também você vai ficar parado aí!”(Ela retoma o texto e Marcelo deita no chão, colocando a mochila como apoio).

”Marcelo, você vai parar de palhaçada ou vou ter que tirar você da sala de

aula?” (agora o aluno está de joelhos e apoiado na mesa). “Pega sua cadeira!

Vai lá.” (o aluno não se levanta e a professora pega a cadeira) (p. 90)

A autora reflete: A não submissão à ordem de sentar acarretou a retirada da cadeira e o aluno,

recebendo a ordem de permanecer em sua carteira, deita no chão apoiando a

cabeça na mochila e retomando a atividade proposta. Ao sugerir que o tiraria da

sala de aula, o mesmo se apoia nos joelhos e volta a escrever sobre a mesa.

Qual o sentido de tal punição? No entendimento da professora, o sentido

residiria no fato de que ao retirar a cadeira, o aluno permaneceu no espaço

destinado a ele. De outra forma, ao terminar suas tarefas, ele se levantaria e

ficaria andando pela sala. (CASTRO, 2006, p. 91)

Nas observações em classe, Castro (2006) anotou que, regularmente, a tarefa se

inicia com um exercício escrito na lousa, que deve ser copiado e resolvido pelos alunos:

Durante a cópia do exercício do quadro os alunos conversam entre si e andam

pela sala. A professora, ao notar a dispersão, ameaça que irá apagar o quadro.

Os alunos, em coro, dizem que “ainda não copiaram” e retornam para a

atividade em suas carteiras. Encerrada a cópia do quadro, os alunos se

dispersam novamente ao invés de iniciaram a resolução dos exercícios. (p. 91)

Diz a autora:

Percebemos que a tarefa é utilizada pela professora como uma forma de

controle pela ameaça. Ela, ao perceber que os alunos não estão copiando, alerta-

os dizendo que apagará o quadro. Assim, o controle da tarefa é obtido, uma vez

que a professora também possui tarefas a serem cumpridas. Ela controla a

turma pela tarefa e controla a tarefa dela mesma para cumprir sua obrigação.

(CASTRO, 2006, p. 95)

Castro (2006) conclui lembrando que educar pelo controle leva à exclusão, uma

vez que impossibilita a construção de uma escola que compreende e acolhe as

diferenças dos que escapam à padronização. Assim, há uma forte incoerência entre o

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4152ISSN 2177-336X

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discurso de educação emancipatória, aquela que desenvolve a consciência crítica, e

práticas pedagógicas elitistas e unificadas, iguais para todos.

c) Constituição de sujeitos, cultura disciplinar, exercício do poder

Paiva (2005) destaca os papéis relevantes que professor e aluno têm na

constituição de ambos como sujeitos, pois experimentam na escola, e na sala de aula em

particular, situações sociais significativas, que marcam suas histórias sociais e

individuais. Porém, essa relevância parece não ser devidamente reconhecida pela escola.

As ações da professora observada por ela voltavam-se em grande medida para a

manutenção da disciplina, estranhamente mesmo em uma turma que não apresentava

comportamentos indisciplinados. A explicação foi encontrada na cultura da escola. A

autora constatou a vigência de uma cultura disciplinar, desde a organização institucional

até a relação entre professores e alunos. A lógica disciplinar dominava a relação

professor-aluno-conhecimento, marcada pelo exercício de poder do docente sobre os

discentes e atingia também os procedimentos didáticos, que se mostravam repetitivos e

desatualizados, mas que a professora seguia, para obedecer às orientações da escola.

A professora desenvolvia em sua sala com os alunos, de forma predominante,

atividades na forma de folhas xerocadas, acompanhamento do livro-texto, ou

cópia do quadro, conteúdos contemplados no planejamento da escola. A

necessidade de cumprir o programa era bastante presente no modo como a

professora desenvolvia suas aulas, pois o trabalho docente tem que seguir

algumas orientações institucionais. (PAIVA, 2005, p.133)

Mesmo parecendo disciplinados, os alunos criavam mecanismos para escapar ao

controle da professora, da mesma forma que esta também apresentava um modo

peculiar para lidar com a organização institucional.

Percebíamos que as crianças obedeciam às exigências da professora, embora

constatássemos que, paralelamente, realizavam determinadas atividades

escondidas, esqueciam-se de regras e foram desenvolvendo um jeito de lidar

com a professora, aspectos esses mais marcantes na relação das crianças com

ela. (PAIVA, 2005, p. 87)

A relação da professora com a escola e com o grupo de colegas mostrou ser

tranquila. Sua forma de administrar as questões relacionadas ao comportamento

dos alunos e de lidar com as questões institucionais da escola era séria,

procurava dizer o que pensava, no entanto, notamos que, no caso das colegas de

trabalho, empenhava-se em não despertar intrigas quanto à divergência de

pensamento. Demonstrava sua opinião, porém não entrava em discussões

discrepantes. (PAIVA, 2005, p. 112)

Paiva (2005) observa que, mesmo em uma classe em que os alunos são

disciplinados e atendem ao que pede a professora, esta se mostra extremamente

preocupada com o controle disciplinar. Ao mesmo tempo, em que se mostravam

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

4153ISSN 2177-336X

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cordatos, os alunos criavam meios dissimulados para escapar ao que lhes era imposto,

assim como também a professora apresentava um modo peculiar para lidar com a

organização institucional, participando com suas opiniões, porém sem entrar em

confrontos diretos. Para lidar com os donos do poder, professora e alunos “obedecem

sem obedecer”.

d) Formação docente, conteúdos curriculares, violência e fracasso escolar

Santos (2011) chama a atenção para a formação acadêmica dos professores (no

caso, docentes de matemática dos ensinos fundamental II e médio), que é voltada para

ministrar o conteúdo, mas não os prepara para lidar com questões complexas

vivenciadas no cotidiano das escolas, como é o caso da violência. A formação do

professor em torno de um currículo fechado e não reflexiva a respeito de questões do

próprio currículo e das relações interpessoais, leva à fixação de um habitus que

contribui para uma postura rígida diante do componente curricular que ministra e para o

exercício do poder pela imposição e pela coação.

Ao tocar na questão do habitus, Santos (2011) aponta a necessidade de uma

formação que leve os docentes a perceber que ser professor não é simplesmente

reproduzir conteúdos, pois o mais relevante é trabalhar com um currículo mais aberto e

flexível, adaptado à realidade da escola e dos alunos. Caso contrário, o ensino

permanecerá contribuindo para a existência de professores conteudistas, autoritários e,

eles próprios, propagadores de violência.

RESULTADOS

No início deste trabalho me propus levantar em quatro pesquisas desenvolvidas

na área da educação, como escolas públicas brasileiras lidam com as questões da relação

professor-aluno, da disciplina/indisciplina e dos procedimentos didáticos. Apresentei a

seguinte questão: Quais explicações diferentes pesquisadores encontraram quanto às

facilidades/dificuldades de professores e alunos se relacionarem de modo a alcançar o

objetivo da escolarização? Apresento a seguir algumas conclusões, considerando o

observado nesses quatro trabalhos.

1a. Em dissonância com uma sociedade que passa por profundas mudanças, tornando-se

mais fluida e flexível, a escola permanece aferrada a uma rígida cultura disciplinar e,

secundariamente, a uma proposta didática ultrapassada;

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2a. O controle disciplinar e a manutenção da ordem são quase obsessões para a escola;

cheia de proibições e regras, a escola limita a criatividade e a espontaneidade dos

alunos, bem como a cooperação entre eles;

3a. A curiosidade discente, por sua vez, é cerceada por procedimentos didáticos

rotineiros, repetitivos, tediosos... que levam à indisciplina e à desordem;

4a. O exercício do poder se faz pelo controle, pela imposição e cobrança das tarefas, das

lições; não se aventa a hipótese de que elas sejam desinteressantes; não se busca

intervenções didáticas mais envolventes e dinâmicas;

5a. A imposição e a cobrança das tarefas é uma das formas que a escola utiliza para

formar e controlar corpos e mentes dos alunos; mas é possível fugir a esse controle,

desobedecendo às escondidas, sem afrontar os donos do poder.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para finalizar, destaca-se que a relação professor-aluno e a (in)indisciplina

aparecem, nos trabalhos examinados, relacionadas ao controle de corpos e mentes que a

escola pretende exercer sobre os alunos (e professores). São “indisciplinados” os alunos

que não se adaptam às regras impostas; por isso são discriminados e deixados de lado,

excluídos do direito à escolarização, mesmo permanecendo no ambiente escolar. Na

sala de aula, em especial, o controle se dá pela fiscalização que o professor faz sobre a

execução das tarefas e sobre a manutenção dos alunos em seus lugares, sem conversas.

Quando a preocupação com a ordem suplanta a preocupação com a

aprendizagem, uma relação saudável entre professor e aluno, que possibilite o aprender,

é impedida. No entanto, cabe considerar que nessa relação não apenas “o professor com

seus alunos” estão envolvidos, porque eles representam grupos sociais e culturas

distintas que têm a instituição escolar como ponto de encontro.

Outro aspecto a destacar é a formação docente. Pimenta (2015) aponta a

tendência observada, especialmente em cursos de licenciatura, de reduzir o espaço da

didática nos currículos, fato preocupante porque a atividade própria do professor, o

ensino, é desconsiderada, “o que contribui para a desqualificação dos resultados da

escolaridade, em especial da escola pública, uma vez que esse fenômeno, em suas

múltiplas determinações, é o objeto de estudo da didática”. (PIMENTA, 2015, p. 81)

O observado nas quatro pesquisas analisadas mostra a escola e a docência

orientadas por um modelo desgastado: pouco crítico e reprodutivo, acomodadas às

condições concretas do cotidiano, ausente uma visão ampliada sobre os fatores que

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influenciam a instituição escolar e o exercício docente, ausente também uma reflexão

profícua sobre possíveis procedimentos e intervenções didáticas alternativas, que

possibilitem a professores e alunos se relacionarem mais positiva e produtivamente.

Por fim, cabe lembrar as influências cruzadas que atravessam a pesquisa

acadêmica e a prática escolar. A pesquisa é marcada pelas concepções, valores e crenças

que se originam na dinâmica social mais ampla, investigando a escola em função destas.

Os profissionais da escola, por sua vez, incorporam resultados de pesquisas dentro de

suas próprias concepções, valores e crenças. Daí a relevância de aproximar e integrar os

dois modos de pensamento e atuação, ambos legítimos e igualmente importantes, sobre

o mesmo objeto: a educação escolar. (MARIN, 2015, p. 33)

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XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

4157ISSN 2177-336X

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OS CONFLITOS ESCOLARES NOS ANOS FINAIS DO ENSINO

FUNDAMENTAL: ALGUNS ELEMENTOS PARA COMPREENSÃO

Eixo temático 1: Didática e prática de ensino: desdobramentos em cenas na educação pública.

Sub-tema 1.3: Modos do ensinar e aprender em experiências.

Osana Barbosa de Abreu Pinheiro

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP)

Resumo

O presente texto apresenta uma discussão que visa contribuir para a compreensão de

conflitos escolares comuns nos anos finais do ensino fundamental, com base em

conceitos apresentados pelos seguintes autores: Jares (1997), Charlot (2005), Dubet

(1994, 2003), Dubet e Martucelli (1998), Fanfani (2000) e Gimeno Sacristán (1998).

Trata-se de um recorte da pesquisa Os conflitos escolares nos anos finais do ensino

fundamental: alguns elementos para compreensão, de natureza qualitativa. A pesquisa

teve por objetivo investigar os frequentes conflitos que ocorrem no interior de salas de

aula de 9o ano de uma escola pública estadual da Região Metropolitana de São Paulo.

Tendo por base sua própria experiência vivida no cotidiano escolar como professora,

esta pesquisadora constatou que os alunos, na faixa etária entre 12 e 14 anos, quando

passam para o Ensino Fundamental II, apresentam visíveis mudanças de comportamento,

tornando-se mais indisciplinados e agressivos, o que acentua consideravelmente as

dificuldades dos professores no desenvolvimento do currículo, pois grande parte do

tempo é utilizado na solução de conflitos e no restabelecimento das relações

interpessoais. Tais mudanças de comportamento, que parecem decorrentes de alterações

na maneira de pensar dos alunos com relação à escola e aos colegas, preocupam

gestores, professores e pais, e apresentam um grande desafio a ser enfrentado. O foco

principal da pesquisa foi compreender o porquê da ocorrência de tantos conflitos

escolares envolvendo os jovens estudantes, os quais acabam por excluir muitos alunos

do acesso ao conhecimento. Para atingir o foco partiu-se do estudo de produções dos

autores supra citados, que tratam da relação dos alunos com os saberes escolares e as

organizações institucionais, e que constituíram os principais aportes teóricos da

investigação sendo, por isso, aqui apresentados.

Palavras-chave: Anos finais do Ensino Fundamental II; Indisciplina, agressividade, e

conflito; Relação dos alunos com saberes escolares.

Introdução

Aprofundar estudos sobre conflitos escolares envolvendo alunos dos anos finais

do ensino fundamental II foi o objetivo da pesquisa que deu origem a este texto. Com a

inquietação sobre o baixo nível de aprendizagem, expresso em resultados alcançados

nas avaliações da e na escola alvo da pesquisa, foi possível observar como os alunos

concluem o ensino fundamental após nove anos de escolaridade. Muitos o finalizam

com sérias defasagens, fortalecendo cada vez mais, a exclusão social e cultural. As

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

4158ISSN 2177-336X

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leituras realizadas sobre a problemática da indisciplina e sobre currículo possibilitaram

melhor aprofundamento do tema. A pesquisa foi realizada em uma escola de ensino

fundamental II, situada em um município da Grande São Paulo.

A pesquisa, de natureza qualitativa, foi levada a efeito com o uso da análise

documental e entrevistas, permitindo constatar que os alunos, na faixa etária entre 12 e

14 anos, ao ingressarem no Ensino Fundamental II apresentam, em sua maioria, uma

mudança visível no comportamento. A maneira como agem e reagem no cotidiano

escolar é muito diferente de quando ingressaram na escola. Nos anos finais, o problema

disciplinar é mais perceptível e as dificuldades enfrentadas pelos educadores se

acentuam consideravelmente. Mudanças de comportamento e na maneira de pensar têm

preocupado gestores, professores e pais, deixando para a escola, em geral, um grande

desafio a ser enfrentado. Na sala dos professores e em reuniões pedagógicas o foco é

sempre o mesmo: a indisciplina dos alunos e os conflitos escolares envolvendo essa

faixa da escolaridade. Nessa situação, pode-se observar a evasão de muitos alunos, antes

de concluírem a escolaridade. Entende-se por evasão, não somente o abandono da

escola pelos alunos, mas, sobretudo, a presença dos alunos no interior da escola sem o

devido interesse pelas atividades desenvolvidas.

Tais problemas levaram a questionamentos referentes aos conflitos escolares;

especificamente foram explorados os 9ºs anos, considerando a seguinte questão: Por que

os alunos dos anos finais do ensino fundamental, em especial os do 9º ano, perdem o

interesse pela aquisição do saber e passam a protagonizar os principais conflitos no

interior da escola? Outras questões decorrentes desta questão central também nortearam

a pesquisa: Quais são os conflitos escolares mais comuns envolvendo esses principais

atores desse momento da escolaridade básica? A escola está planejada para atender às

características dos alunos matriculados nos anos finais do Ensino Fundamental e às

necessidades formativas e de ação de seus professores? Como se manifestam a respeito

dos conflitos escolares alunos, professores e gestores da escola?

A pesquisa procurou compreender a visão de alunos, professores, gestores e pais

de alunos. Autores como François Dubet (1994, 2003), François Dubet e Danilo

Martucelli (1998), Emílio Fanfani (2000), Bernard Charlot (2005) e Xésus R. Jares

(1997) – que tratam dos conflitos escolares e da relação dos alunos com os saberes e as

organizações escolares – foram os principais apoios teóricos para a pesquisa. Também

Gimeno Sacristán (1998) foi considerado por seus estudos sobre currículo. Para este

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texto, o recorte específico consiste em apresentar as discussões e conceitos trazidos por

esses autores.

A escola como espaço de conflitos, segundo Jares

Jares (1997, p.60) define conflito como “(...) un tipo de situación en la que las

personas o grupos sociales buscan o perciben metas opuestas, afirman valores

antagónicos o tienen intereses divergentes”. Ou seja, o conflito é um fenômeno de

contradição entre pessoas ou grupos. Eles não são casuais ou neutros, mas estão

diretamente ligados a determinados tipos de ideologia, em especial à ideologia

tecnocrática-positivista, que “(...) niega y estigmatiza la existencia del conflicto” (p. 56).

O autor se refere a três tipos de visões ideológicas para explicar a existência de

conflitos na escola: a visão tecnocrática-positivista; a hermenêutico-interpretativa e a

crítica. Na visão tecnocrática-positivista de conflito, predomina a concepção tradicional

e conservadora de conflito, que o qualifica como algo negativo, não desejável, sinônimo

de violência, disfunção ou patologia “(...) y, en consecuencia, como una situación que

hay que corregir, y, sobre todo, evitar” (JAREZ, 1997, p. 58). Nessa perspectiva a

gestão dos conflitos tem a ver com mecanismos de controle da escola sobre professores

e alunos. Na perspectiva hermenêutico-interpretativa do conflito, em contraposição à

racionalidade tecnocrática, a visão mecanicista e a ideologia de controle são substituídas

pelas noções científicas e interpretativas de compreensão, significado e ação. Trata-se

de uma perspectiva eminentemente psicologicista da motivação humana do ponto de

vista individual e não no sentido sociológico. Os membros da escola são vistos em

termos de suas necessidades individuais, mais do que por suas adesões ao grupo ou por

suas ideologias compartilhadas. Assim o conflito não é negado, ao contrário, é

considerado como algo inevitável e positivo para estimular a criatividade do grupo:

“(...) um grupo armonioso, tranquilo, pacífico y cooperativo tiende a volverse estático,

apático e indiferente a la necesidad de cambiar e innovar” (JARES,1997, p.58). No que

se refere à perspectiva crítica, o conflito é visto como algo natural e inerente a todo tipo

de organização, à própria vida social e se constitui em um elemento necessário para a

mudança social: “(...) un elemento tan necesário para la vida social como el aire para

la vida humana” (JARES,1997, p. 61). Desse ponto de vista, os conflitos podem levar a

uma tomada de consciência coletiva dos membros da organização, levando o grupo a

“(...) detectar las contradicciones implícitas en la vida organizativa y a descubrir las

formas de falsa conciencia que distorsionan el significado de las condiciones

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

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organizativas y sociales existentes” (JARES,1997, p.62) Além disso, o enfrentamento

aberto dos conflitos pode favorecer os processos colaborativos de gestão escolar para

que

(...) las escuelas, como organizaciones sociales, se conviertan en un entorno

cultural en el que se promuevan valores de comunicación y deliberación social,

interdependencia, solidaridad, colegialidad en los procesos de toma de

decisiones educativas y desarrollo de la autonomía y capacidad institucional de

los centros escolares” (JARES,1997, p. 63).

Essa é, para o autor, a forma de se enfrentar o que ele designa como a natureza

conflitiva das escolas. Nessa perspectiva, as escolas são consideradas como “(...) campos

de lucha, divididas por conflictos en curso o potenciales entre sus miembros, pobremente

coordinadas e ideologicamente diversas” (JARES, p.64). Os diversos conflitos na

instituição escolar, suas causas, origens e manifestações são divididos pelo autor em

quatro categorias, fortemente ligadas entre si e dificilmente separáveis: as ideológico-

científicas, as relacionadas com o poder, as relacionadas com a estrutura da escola e as

relacionadas com questões pessoais e de relações interpessoais (JARES, 1997, p. 67). O

conflito está posto em todas as instituições sem exceção. Eles se apresentam, em um

processo de diversas naturezas e intensidades. Podem aparecer entre professores, alunos,

gestores, comunidade. Longe de ser casual ou neutra, essa situação reflete um tipo de

ideologia – a tecnocrática-positivista – que nega e estigmatiza a existência do conflito.

É preciso não ignorar a existência dos conflitos. Eles requerem uma tomada de

posição política, fundamentada em valores públicos democráticos e coletivos. A

existência do conflito não pode ser banalizada, por eles são inevitáveis na escola. Eles

são “(...) um tipo de situação em que as pessoas ou grupos sociais buscam ou percebem

metas opostas, afirmam valores antagônicos ou apresentam interesses divergentes”

(JARES, 1991, p.108). Ele é necessário para que as mudanças ocorram. Ou seja, o

conflito é instrumento essencial para a transformação das estruturas educativas.

A relação com o conhecimento na escola, segundo Charlot

Bernard Charlot (2005) traz para esta discussão a formação dos professores e as

suas relações com os alunos e o saber. Para esse autor, o professor é aquele que deve

mobilizar a aprendizagem e o desejo de aprender no aluno. Enfatiza a importância da

organização do trabalho não somente para a sala de aula, onde a responsabilidade de

ensino e aprendizagem está mais centrada no professor, mas, focaliza também a

responsabilidade do trabalho gestor, na organização da instituição.

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

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Segundo Charlot (2005) a escola age de forma homogeneizada, com o

argumento da igualdade para todos. Dessa forma, não se articula de maneira adequada

para lidar com a diversidade, origem dos fracassos, conflitos, preconceitos. Não

conseguindo atender à diversidade dos alunos de meios populares, a escola devolve para

eles a responsabilidade pelo fracasso, se eximindo de responsabilidades e

compromissos. Nessa perspectiva, o saber deixa de ter importância, já que, importa

estudar para ter um futuro adequado e promissor na sociedade capitalista – o que faz

com que o saber deixe de ser instrumento para que os alunos exerçam os seus direitos e

a convivência humanizada com dignidade. A aquisição do saber, por ser hierarquizada

pela escola, deixou de ser interessante e prazerosa para ser uma situação obrigatória e

impositiva. Quando a escola hierarquiza as relações, principalmente as que se referem à

aquisição do conhecimento, não consegue trabalhar com a heterogeneidade dos alunos.

Para Charlot (2005), a definição de ser humano e de aluno se encontra em jogo

nas escolas, atualmente, e as transformações que propõe na forma de ensinar e na

formação dos professores dependem de uma escola que corresponda aos anseios e

necessidades dos alunos. Charlot (2005) nos remete a reflexões sobre o ensino e a

aprendizagem na escola: Por que é necessário levar em conta o sujeito? A resposta é

assustadora, quando se trata de refletir sobre as desigualdades sociais, principalmente

quando, se constata que a posição que a família ocupa na sociedade faz toda a diferença

na vida das crianças, ou seja, o sucesso ou o fracasso escolar dos alunos estão marcados

por sua classe social e condições financeiras. Para responder a essa pergunta o autor

identifica os processos pelos quais as crianças constroem a relação com o saber e a

escola, verificando que essa lógica não é a mesma nas diferentes classes sociais.

Dependendo da forma como a criança se relaciona, quer individual ou socialmente e

como se articula nessa relação com o saber, poderá definir sua aprendizagem. O

interesse em aprender determina a relação com o saber.

Para Charlot, alguns alunos estudam para passar de ano, outros para aprender,

outros ainda porque querem aprender sempre mais, para terem um diploma, um

emprego, etc. Estudar para passar é o processo dominante na maioria dos alunos de

classe popular. Tais alunos não entendem porque estão na escola porque não

compreenderam a importância de desenvolver uma boa relação com o saber. Mesmo

presentes estão ausentes na escola. Assim, aprender passa a ser o que o professor pede

para fazer e não adquirir conhecimentos e compreender melhor o mundo – o que leva à

seguinte percepção da responsabilidade de cada um nesse processo: a do professor é

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

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ensinar e a do aluno é ir à escola e ouvir o professor. Esse aluno não é ativo na

aprendizagem e acha que o professor é culpado pela sua não aprendizagem. Para o

autor, o aluno deve ser mobilizado a aprender e não motivado. A motivação é exterior

ao processo de relação com o saber, enquanto que a mobilização remete ao desejo, a

uma dinâmica interna. Pelo desejo de aprender, o aluno é capaz de se mobilizar. Assim,

a aquisição das competências cognitivas exige engajamento, dedicação nos estudos, que

se engaje em uma atividade intelectual, mas antes disso, responder a um desejo.

O autor trata também de conflitos instalados nos bairros populares e nas escolas,

questionando se a violência é um fenômeno novo. Sua resposta é que, na escola o fato

não é novo, mas as formas de violência sim, pois aparecem de maneiras diferenciadas

em quatro pontos: a) hoje se manifestam de formas mais graves que no passado (ataques

aos professores, insultos que causam angustia social); b) os jovens envolvidos em caso

de violência são cada vez mais jovens; c) entradas de bandos e gangues nos espaços

escolares para resolverem conflitos que se originaram fora da escola ou até mesmo, um

pai ou mãe que vem brigar na escola por algum motivo ou injustiça que o seu filho

sofreu. Assim, a escola não se apresenta mais como um lugar sagrado e protegido, mas,

está aberta às agressões externas.

Categorizar fenômenos como violência não é fácil. Ao contrário, as distinções

são necessárias e difíceis. É preciso fazer a distinção entre: a) a violência na escola, que

é aquela que se produz dentro do espaço escolar sem estar ligada à atividade a

instituição; vem de fora e o espaço escolar é usado por bandos para acertos de contas; b)

a violência à escola que se dá quando essa ação está ligada à instituição, quando é

pichada, incendiada, destruída etc. Os professores são agredidos bem como seus bens.

Essa violência deve ser analisada junto com a violência da escola. É uma violência

simbólica que está ligada ao modo como os agentes são tratados pela escola.

Se a escola é impotente à violência na escola é porque ela também provoca a

violência contra quem está se rebelando. Se os jovens são os principais autores da

violência, eles certamente são as principais vítimas também. Na maioria das vezes são

jovens fragilizados e excluídos, com dificuldades familiares, sociais e escolares.

A relação dos alunos com a escola, segundo Dubet e Dubet & Martuccelli

O texto Sociologia da Experiência Escolar (DUBET & MARTUCCELLI, 1998)

trata da experiência de alunos desde o inicio da escolarização até o seu término. Os

autores trazem os resultados de dez anos de pesquisa e analisam o sistema educacional

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francês e suas mudanças. Os autores analisam o sistema educacional francês da década

de 1990, marcado pela crise geral e desarticulações decorrentes do que denominam

massificação escolar.

O texto traz informações a respeito do efeito das diferenças sociais no interior do

sistema escolar. Referindo-se à distribuição social dos indivíduos, Dubet e Martucelli

(1998) afirmam que a competitividade torna a escola muito mais injusta, na medida em

que é na própria escola que se formam as desigualdades. A falta de qualificação escolar

se reflete na desqualificação social, causando assim, a exclusão escolar e a exclusão

social. Segundo os autores, sob as perspectivas dos alunos, o colégio (6ºs aos 9ºs anos)

é o ponto mais frágil da escolaridade. Os alunos não têm o sentimento de pertencimento

ao espaço escolar e a certeza do valor dos estudos desaparecem.

Para Giovanni (2011), em texto no qual analisa especificamente o

conceito de experiência escolar segundo Dubet, esse novo público de alunos e de

professores oriundos da massificação escolar descrito por Dubet (1994) e por Dubet e

Martucelli (1998) tem levado a um “(...) sentimento de distância cultural e

estranhamento dos alunos em relação às normas e regras escolares e dos professores

em relação aos alunos” (GIOVANNI, 2011, p.95). Segundo a autora, nos estudos de

Dubet “(...) a escola deixa de ser uma instituição, passando a obedecer a uma

racionalização centrada nos atores que, por sua vez, constroem um novo perfil da

escola ao construírem sua própria experiência escolar” (grifos da autora, p. 95). Para

Giovanni (2011), os resultados de estudos realizados por Dubet e Martucelli permitem

traçar o seguinte perfil da experiência escolar no percurso dos estudantes pelo ensino

elementar, colégio e liceu do sistema de ensino francês, que correspondem,

respectivamente, ao ensino fundamental I e II e ao ensino médio no Brasil:

1) A escola elementar (anos iniciais do ensino fundamental no Brasil) se

caracteriza pelo primado da lógica da integração: a escola primária permanece

sob o domínio da atração dos alunos pelo professor e da unidade da classe; a

construção da experiência escolar se dá pela identificação com o professor,

interiorização das normas e expectativas escolares e aceitação da autoridade dos

adultos; a socialização é cumprida com o processo de subordinação das crianças

às expectativas dos adultos; a experiência de subjetivação das crianças na escola

primária se dá por processos de distanciamento ou aproximação do aluno em

relação ao professor; a principal diferença na experiência escolar das crianças está

na forma como os alunos com diferentes origens sociais sentem as tensões

escolares: as crianças das classes populares percebem essas tensões como

“violência” e as da classe média as percebem sob a forma de stress, de cobranças

por desempenho.

2) O colégio (ensino fundamental II no Brasil) é o momento da dissociação entre

os processos de socialização e de subjetivação: a obediência natural dos alunos é

substituída pela exigência de reciprocidade; os alunos encontram “aliados” e

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“adversários” entre os professores e demais adultos da escola; o significado dos

estudos perde sua evidência e a utilidade dos diplomas está muito distante e

incerta para motivar os alunos; o interesse intelectual pelos estudos é muito frágil;

a motivação precisa ser coletivamente construída; uma “cultura adolescente” se

constitui paralelamente à cultura escolar, gerando uma ruptura entre “ser

adolescente” e “ser aluno”; no grupo de pares a regra é a submissão às

características do grupo; as pressões/tensões entre ele próprio (o adolescente), as

expectativas da família, as regras escolares e o que dizem os pares obrigam o

adolescente a lançar mão de um “jogo de máscaras” para escapar às rotulações

impostas.

3) O liceu (ensino médio no Brasil) é o lugar dos ritos de exclusão: a indiferença

dos alunos se dissolve: ou o indivíduo emerge plenamente da socialização na

escola ou sua identidade é marcada pelo fracasso escolar e desvalorização

pessoal; a ideia de Projeto é dominante e, com ela, a experiência escolar sofre a

influência crescente das lógicas estratégicas em função da utilidade social dos

estudos e dos diplomas, das esperanças de carreira e inserção profissional; no

liceu o aluno é confrontado com a necessidade de encontrar motivação escolar

autônoma; as situações dos alunos se diversificam: os alunos destinados às

escolas de renome, os “bons alunos” da futura classe média, os “novos alunos”

oriundos da massificação escolar e os alunos destinados às escolas profissionais;

nessa etapa da escolaridade a experiência escolar é construída por meio das

tensões entre as diferentes lógicas da ação (integração, estratégias, subjetivação);

a construção da experiência se dá, essencialmente, no cruzamento de dois ideais:

a performance escolar e o apelo à autenticidade. (GIOVANNI, 2011, p. 96 - 98).

Assim, para essa autora, a análise das experiências dos atores escolares permite

constatar que a escola, do ensino fundamental ao ensino médio, constitui para alunos e

professores, uma “experiência de desigualdades” (GIOVANNI, 2011, p. 99). Nas

palavras de Giovanni (2011), a Sociologia da Experiência Escolar “(...) revela os efeitos

das desigualdades escolares a partir da diversidade de situações e das diferenças sociais

a que se veem confrontados dia-a-dia os alunos e os professores: em ambos prevalece o

sentimento de “uma escolaridade privada de sentido” (GIOVANNI, 2011, p. 99).

A cultura escolar e a cultura dos alunos, segundo Fanfani

O autor analisa a emergência de novos tempos e novos docentes e reflete sobre a

prática tradicional dos professores e a necessidade que os mesmos construam um novo

perfil profissional. Sobre a cultura da juventude, o autor alerta para o fato de que as

práticas autoritárias e disciplinadoras não fazem mais sentido para as novas gerações,

sendo responsáveis pelos conflitos e pela desarticulação do ensino e da aprendizagem.

Para o autor, a velha escola não corresponde mais às necessidades das novas gerações,

cujos sintomas mais evidentes são a exclusão e o fracasso escolar, o mal-estar, o

conflito e a desordem, a violência e, sobretudo, a ausência de sentido da experiência

escolar para uma porção significativa de jovens adolescentes latino-americanos, em

especial aqueles que provêm de grupos sociais excluídos.

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Segundo Fanfani (2000), os alunos parecem chegar numa escola que não foi

feita para eles e, dessa forma, não desenvolvem o senso de pertencimento à mesma. Tais

escolas não cumprem nenhuma função em seus projetos de vida – o que tem levado,

segundo o autor, a três problemas na escolarização massiva dos adolescentes e dos

jovens: a) distancia da identidade e cultura dos jovens em relação ao que é proposto pela

escola; b) modificações nos equilíbrios de poder entre as gerações; e c) fragilidade da

experiência escolar dos adolescentes e jovens. O fio condutor que relaciona esses três

problemas está posto na relação entre as condições de vida e cultura da população, de

um lado, e a escolarização e cultura própria das instituições escolares, de outro. Em

síntese, “(...) a escola para adolescentes deverá ser uma construção na medida em que a

própria adolescência é uma construção em plena transformação”. Para Fanfani, deve-se

pensar em escolas diversificadas e flexíveis para responder adequadamente às demandas

das novas gerações, já que uma escola para adolescentes é uma escola dos adolescentes,

onde esses alunos sejam os protagonistas do processo educativo.

Também citando os estudos de Dubet e Martuccelli, Fanfani (2000, p. 06) põe

em destaque o fato de que, um aluno do ensino médio é diferente de um aluno da escola

primária, por razões que vão além das determinações de gênero, classe social, etnia,

habitat, etc. Para Fanfani (2000), os adolescentes e jovens são portadores de uma cultura

social feita de conhecimentos, valores, atitudes, predisposições que não coincidem,

necessariamente, com a cultura escolar e, em particular, com o currículo do programa

que a instituição se propõe a desenvolver. Além disso, o autor discute a existência de

um novo equilíbrio de poder entre as gerações. Ou seja, a mudança de poder para

crianças, jovens, adolescentes e adultos também põe em crise a organização escolar,

onde a forma de desenvolver esse poder está focada na idade do aluno, já que o mundo

adulto monopoliza a instituição.

Hoje as crianças e os adolescentes são considerados sujeitos de direitos. Mesmo

assim, as instituições escolares ainda não estão atentas para essa nova configuração de

poder da instituição sobre os alunos. Os adolescentes e jovens precisam ser convidados

a participarem das decisões que vão organizar e melhorar a instituição. Garantir a escuta

do que dizem esses jovens fortalecerá a participação deles. Ou seja, recoloca-se aqui o

problema do sentido da escola. Nesse cenário, os professores precisam reconstruir o

cotidiano escolar. Os alunos devem ser ensinados a dar sentido à nova forma de

experiência escolar, na qual eles aprendam um porque ir à escola, que lhes faça sentido.

Que não seja uma obrigação, nem uma razão instrumental, mas, o amor ao

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conhecimento. Nessa perspectiva Fanfani (2000) propõe algumas características para

uma boa escola para os jovens e adolescentes: a) que valorize e considere os interesses,

conhecimentos e expectativas dos jovens e adolescentes; b) que favoreça e dê lugar ao

protagonismo juvenil; c) que não se limite a ensinar, mas que se proponha a mobilizar

os jovens para conhecimentos significativos; d) que se interesse pelos adolescentes e

jovens como pessoas totais; e) que seja flexível no tempo, na metodologia, nos modelos

de avaliação, no sistema de convivência e que leve em conta a diversidade cultural, de

gênero, religiosa, territorial etc.; f) que forme pessoas não para a esperteza, mas com

habilidades e competências úteis para a vida; g) que atenda a todas as dimensões do

desenvolvimento humano; h) que acompanhe e facilite a construção de um projeto de

vida para os jovens; i) que desenvolva o sentido de pertinência com a qual os jovens se

identifiquem. Para tanto, o autor ainda destaca quatro perigos prováveis a controlar: a

condescendência, o negativismo, a demagogia juvenil e o facilitarismo.

Finalmente, para o autor, uma das chaves para se alcançar êxito é compreender

que uma escola para os adolescentes é também, uma escola dos adolescentes, que eles

sejam não apenas uma população alvo, mas sim, protagonistas ativos com direitos

garantidos, o que nos leva à discussão sobre um currículo para os alunos e o papel dos

professores nesse processo.

Um currículo para os alunos e o papel dos professores, segundo Gimeno Sacristán

Destaca-se aqui a crítica à perspectiva segundo a qual os professores atuam

isolados uns dos outros, seguindo uma forma curricular não desenvolvida para alunos.

Certamente, essa desarticulação curricular resulta em um papel docente menos

autônomo e gerador de muitos descompassos no interior da escola.

Gimeno Sacristán (1998) salienta em seu texto questões relativas à organização

curricular e a como as propostas curriculares devem ser desenvolvidas para toda a

diversidade de alunos que há no interior de uma escola. Afirma ainda, a importância da

teoria como forma de esclarecer a prática. Apesar de haver boas propostas educativas,

ainda há uma grande dificuldade dos docentes em relação à aquisição de saberes

curriculares e à transposição desses saberes em práticas apropriadas às características

dos alunos. Os problemas básicos que o tratamento do currículo agrupa dependem,

segundo o autor, das respostas em torno de questões, como: Que objetivo o professor

deseja alcançar? Que valores, atitudes e conhecimentos estão implicados nos objetivos?

O que ensinar? Quem está autorizado a participar das decisões do conteúdo de

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escolaridade? Por que ensinar determinados conteúdos, deixando de lado muitas outras

coisas? Todos esses objetivos e conteúdos devem ser para todos os alunos ou somente

para alguns deles? Enfim, considerando que a escolaridade é um percurso, o currículo é,

para Gimeno Sacristán (1998), o guia para a caminhada estudantil do aluno. (G.

SACRISTÁN, 1998, p.126).

Em relação ao que os professores precisam transmitir, por exemplo, segundo o

autor, uma coisa é a visão que os professores expressam acerca desse processo, outra é o

que dizem e acham que ensinam, e outra mais diferente ainda, é o que, de fato, os

alunos aprendem. Ou seja, para Gimeno Sacristán (1998) é possível se detectar uma

distância muito grande entre o que está estabelecido para ensinar (currículo oficial,

regulamentado ou prescrito), o que os professores percebem e afirmam que fazem

(currículo manifesto), e o que se conseguem, de fato, ensinar (currículo real ou em

ação). Dessa distância podem se originar, muitas vezes, os conflitos escolares.

Assim, Gimeno Sacristán (1998) aborda o currículo como uma construção

histórica e social, ou seja, o currículo não é algo neutro e estático no tempo, ele não foi

sempre do modo que é hoje; sua constituição está repleta de conflitos, interesses,

objetivos, relações de poder e dominação entre os diferentes agentes envolvidos no

processo. É por esse motivo que o currículo precisa ser estudado tomando por base seu

contexto histórico e social, caso contrário não pode ser compreendido em sua totalidade.

Nas palavras do autor: “(...) o currículo não pode ser entendido à margem do contexto

no qual se configura e tampouco independentemente das condições em que se

desenvolve; é um objeto social e histórico e sua peculiaridade dentro de um sistema

educativo é um importante traço substancial” (GIMENO SACRISTÁN, 2000, p.107).

Para o autor, o currículo educacional deve ser entendido também como prática de

estudo do conteúdo de ensino, especialmente porque isso permite questionar o que deve

ser ensinado, já que a organização curricular pode ser o que Gimeno Sacristán chama de

denúncia da desorganização educativa, uma vez que, na escolarização, “(...) não se

aprende tudo, nem todos aprendem a mesma coisa, da mesma forma” (SACRISTÁN,

1998, p. 124). Assim, o autor traz à discussão, a importância do planejamento do

trabalho pedagógico para as reais necessidades sociais e políticas dos alunos, uma nova

forma de pensar sobre a política curricular.

Considerações finais

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Se, para os autores aqui citados, o saber traz prazer na aquisição de

conhecimento, a observação do dia a dia das escolas e o contato com seus agentes

revelam um aluno que, paulatinamente, vai perdendo o prazer em aprender devido a

uma organização escolar tecnocrata, cujas características são: escola de massa, que

avalia, onde o poder, o elogio e a punição estão sempre presentes.

Se podemos hoje, afirmar que estamos vivendo um período de muita dor,

barbárie e falta de humanidade, este é um cenário que a escola poderia se propor a

enfrentar com reflexões sobre a realidade, não como troca de experiências, mas como

formação – uma formação que desenvolva o estranhamento sobre as práticas autoritárias

naturalizadas em nossas escolas. Um estranhamento que resulte em conhecimento e

reflexão a respeito da escola, suas práticas e seus conflitos. Um movimento urgente e

necessário já que, nestes tempos de barbárie, a escola ainda lança mão de estratégias e

práticas de controle sobre os alunos e sobre os professores.

Referências

CHARLOT, B. Formação dos professores e globalização: questões para a educação

hoje. Porto Alegre: Artmed, 2005.

DUBET, F. Sociologia da Experiência. Lisboa: Instituto Piaget, 1994.

DUBET, F. e MARTUCELLI, D. Sociologie de l'experience scolaire. Revue

L'orientation scolaire et profissionelle. Paris: INETP, v.27, n.2, 1998, p. 169-187

(Tradução: Maria Angélia Pedra Minhoto).

FANFANI, E. T. Culturas jovens e cultura escolar. Brasília. MEC (Seminário), 2000.

Disponível em: unesdoc.unesco.org/images/0013/...134675so.pdf. Acesso em 16

fev.2016.

GIMENO SACRISTÁN, J. O Currículo: uma reflexão sobre a prática. Porto Alegre:

Artmed, 1998.

GIOVANNI, L. M. François Dubet: a experiência escolar em jogo. In: REGO, T.C.

(Org.) Educação, escola e desigualdade. Revista Educação. Rio de Janeiro/SãoPaulo:

Vozes / Segmento, 2011, p. 87-114 (Coleção Pedagogia Contemporânea).

JARES. X.R. El lugar del conflicto em la organización escolar. Revista

Iberoamericana de Educación. Madrid: OEI/CAEU, n.15, set-dez/1997, p.53-73.

Disponível em: http://www.rieoei.org/oeivirt/rie15.htm. Acesso em 16 fev.2016.

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