Relaçoes Perigosas - Choderlos De Laclos-

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LIGAES PERIGOSASCHODERLOS DE LACLOS

TTULO ORIGINAL: LES LIAISONS DANGEREUSES TEXTO INTEGRAL: EDITORES ASSOCIADOS TRADUO: JOO PEDRO DE ANDRADE E ALFREDO AMORIM

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PREFCIO DO REDATOR Esta obra, ou antes, esta coleo, que o pblico achar talvez ainda volumosa em demasia, no contm, todavia mais do que um pequeno nmero das cartas* que compunham a totalidade da correspondncia de onde foi extrada. Encarregado de p-la em ordem pelas pessoas a cujas mos chegou, e que eu sabia terem a inteno de public-la, pedi apenas, como prmio dos meus cuidados, a permisso de suprimir tudo o que me parecesse intil; e de fato conservei apenas as cartas que me pareceram necessrias, quer para a compreenso dos acontecimentos, quer para o desenvolvimento dos caracteres. Se acrescentarmos a este ligeiro trabalho o de repor por ordem as cartas que deixei ficar, ordem para a qual eu prprio quase sempre segui a das datas, e, enfim, algumas notas curtas e raras, e que, na sua maior parte no tm outro objetivo seno o de indicar a origem de algumas citaes ou de motivar alguns cortes que me permiti fazer, ter-se- inteiramente idia da parte que tive nesta obra. A minha misso no ia mais longe. Eu tinha proposto alteraes mais considerveis, quase todas relativas pureza de dico ou de estilo, contra a qual se encontraro muitas faltas. Desejei tambm ser autorizado a cortar diversas cartas demasiado longas, e das quais algumas tratam separadamente, e quase sem transio, assuntos absolutamente estranhos uns aos outros. Este trabalho, que no foi aceito, no seria bastante sem dvida para dar mrito obra, mas ter-lhe-ia pelo menos tirado parte dos defeitos. Foi-me objetado que eram as prprias cartas que se pretendia. ...dar a conhecer, e no apenas uma obra feita segundo as cartas; que seria tanto contra a verossimilhana como contra a verdade que, de oito dez pessoas que colaboraram nesta correspondncia, todas escrevessem com igual pureza. E minha rplica de que, longe disso, no havia, pelo contrrio, nenhuma que no tivesse cometido erros graves, foi-me respondido que todo o leitor razovel esperaria seguramente encontrar erros numa coleo de cartas de alguns particulares, visto que em todas as que se tm publicado de diferentes autores estimados, e mesmo de alguns acadmicos, no se encontrava nenhuma totalmente ao abrigo desta censura. Estas razes no me persuadiram e achei-as, como as acho ainda, mais fceis de dar que de receber; mas no me competia mandar, e submeti-me. Somente me reservei o direito de protestar e de declarar que no era essa a minha opinio; o que fao neste momento. Quanto ao mrito que esta obra possa ter, talvez me no caiba explic-lo, pois a minha opinio no deve nem pode ter influncia sobre

*Devo prevenir tambm que suprimi ou mudei todos os nomes das pessoas que intervm nestas cartas; e que, se no nmero daqueles que lhes substitu, se encontrarem nomes que pertenam a algum, ter sido unicamente por erro da minha parte, e do qual no se dever tirar qualquer concluso. (N. do A.)

a de ningum. Entretanto, todos os que, antes de comear uma leitura, ficam satisfeitos por saber aproximadamente com o que podem contar, esses, dizia eu que continuem, os outros faro melhor em passar imediatamente para a obra em si; sabem j o que lhes basta. O que posso dizer antes do mais que se a minha inteno foi, como reconheo, der a conhecer estas cartas, estou, todavia muito longe de esperar da um xito: e que no se tome esta sinceridade da minha parte pela modstia fingida de um autor; pois declaro com a mesma franqueza que, se esta coleo no me tivesse parecido digna de ser oferecida ao pblico, eu no me teria ocupado dela. Tratemos de conciliar esta aparente contradio. O mrito de uma obra compe-se da sua utilidade ou do agrado que desperta, e mesmo duma coisa e doutra, quando disso suscetvel; mas o xito, que no prova sempre o mrito, deve-se frequentemente mais escolha do assunto que sua execuo, ao conjunto dos motivos que apresenta do que maneira como eles so tratados. Ora contendo esta coleo, como o seu ttulo anuncia, as cartas de toda uma sociedade, reina nela uma diversidade de interesse que enfraquece o do leitor. Alm disso, sendo quase todos os sentimentos que a se exprimem fingidos ou dissimulados, deixam de poder mesmo excitar um interesse que no seja o de curiosidade sempre muito abaixo do de sentimento, e que, sobretudo, conduz menos indulgncia e deixa tanto mais a perceber as faltas que se encontram nos pormenores, quanto estes se opem constantemente ao desejo que unicamente se quer satisfazer. Estes defeitos so talvez resgatados, em parte, por uma qualidade que do mesmo modo tem origem na natureza da obra; a variedade dos estilos; mrito que um autor atinge dificilmente, mas que se apresentava aqui por si prprio, e que ao menos exclui o aborrecimento da uniformidade. Algumas pessoas podero ainda esperar encontrar para seu proveito um nmero assaz grande de observaes, ou novas ou pouco conhecidas, e que se encontram dispersas nestas cartas. E nisso se resume, segundo creio, tudo que se pode esperar como motivos de agrado, usando, alis, de um juzo extremamente favorvel. A utilidade da obra, que porventura ser ainda mais contestada, parece-me, todavia fcil de estabelecer. Julgo pelo menos que prestar um servio aos costumes divulgar os meios que empregam os que os tm maus para corromper os que os tm bons, e creio que estas cartas podero concorrer eficazmente para esse fim. Encontrar-se- tambm nelas a prova e o exemplo de duas verdades importantes que dir-se-ia serem desconhecidas, to pouco elas so praticadas: a primeira, que toda a mulher que consente em

receber no seu meio um homem sem moral acaba por se tornar a sua vtima; a outra, que pelo menos imprudente toda a me que admita que outra pessoa alm dela tenha a confiana de sua filha. Os jovens de um e de outro sexo poderiam tambm aprender aqui que a amizade que as pessoas de maus costumes parecem dedicar-lhes to facilmente no mais que uma perigosa cilada, to fatal sua felicidade como sua virtude. Parece-me, no entanto, muito de temer aqui o abuso, que anda sempre to perto da medida justa; e, longe de aconselhar esta leitura mocidade, parece-me mais importante afastar dela todas as deste gnero. A poca em que tal leitura pode deixar de ser perigosa e tornar-se til parece-me ter sido bem escolhida, para o seu sexo, por uma boa me no apenas inteligente, mas de inteligncia bem guiada. "Julgo", me dizia ela, depois de ter lido o manuscrito desta correspondncia, "que prestarei um bom servio a minha filha, dando-lhe este livro no dia do seu casamento." Se todas as mes de famlia pensarem isto da obra, felicitar-me-ei eternamente por t-la publicado. Mas, partindo ainda desta suposio favorvel, afigura-se-me sempre que esta coleo deve agradar a pouca gente. Os homens e as mulheres de costumes depravados tero interesse em denegrir uma obra que pode ser-lhes prejudicial; e como no lhes falta astcia, talvez se lembrem de pr do seu lado os rigoristas, alarmados pelo quadro de maus costumes que no houve receio de apresentar-lhes. Os que se julgam espritos fortes no tero qualquer interesse por uma mulher devota, que por isso mesmo ser para eles uma mulher sem importncia, enquanto que os devotos ficaro descontentes por verem sucumbir a virtude, queixando-se do fraco poder com que mostrada a religio. Por sua vez, as pessoas de gosto delicado ho-de enfastiar-se com o estilo demasiado simples e defeituoso de algumas destas cartas, enquanto que o comum dos leitores, seduzido pela idia de que tudo o que impresso o fruto de um trabalho, julgar ver em algumas outras a maneira dificilmente conseguida de um autor que se mostra por detrs da personagem que fala a seu mandado. Enfim, talvez venha a dizer-se, na generalidade, que cada coisa no vale seno no lugar onde est colocada; e que, se ordinariamente o estilo demasiado castigado dos autores tira de fato toda a graa s cartas de sociedade, as negligncias destas se tornam verdadeiros erros e as tornam insuportveis, uma vez entregues publicao. Confesso com sinceridade que todas estas censuras podem ter fundamento; creio tambm que me seria impossvel responderlhes, e mesmo sem ir alm da extenso de um prefcio. Mas deve compreender-se que, se me fosse necessrio responder a tudo, seria isso sinal de que a obra no responderia a nada; e que, se eu assim o pensasse, teria suprimido ao mesmo tempo o prefcio e o livro.

PRIMEIRA PARTE

CARTA I CECLIA VOLANGES A SOFIA CARNAY* No convento das Usulinas de... Bem vs, minha boa amiga, que cumpro a minha palavra, e que as toucas e laos no ocupam todo o meu tempo; sempre me h de ficar algum para ti. Mas olha que s hoje vi mais adereos do que nos quatro anos que passamos juntas; e creio que a orgulhosa Tanvillel ter maior aborrecimento com a minha primeira visita, em que eu conto perguntar por ela, do que ela pensou que nos causaria todas as vezes que vinha ver-nos em Fiorch. A Mam consultou-me sobre todos os pormenores; trata-me muito menos como pensionista do que noutro tempo. Tenho uma criada de que disponho, e escrevo-te em uma secretria muito bonita, de que possuo a chave, e onde posso fechar tudo o que quiser. A Mam disse-me que a verei todos os dias logo que ela se levante; que bastar que eu esteja penteada para jantar, porque estaremos sempre ss, e que ento ela me dir a hora em que devemos juntar-nos tarde. O resto do tempo est minha disposio, e tenho a minha harpa, o meu desenho e livros como no convento; s no estar a madre Perptua para ralhar comigo, e depender apenas de mim estar sempre sem fazer nada: mas como no tenho a minha Sofia para conversar e para rir, prefiro ento ocupar-me dela. Ainda no so cinco horas; no devo estar com a Mam seno s sete: ora aqui est um grande intervalo, para o caso em que tivesse alguma coisa a dizer-te! Mas ainda no me falaram de nada; e sem os preparativos que vejo fazer, e a quantidade de costureiras que vm por minha causa, julgaria que ningum pensa em casar-me, e que mais um disparate da boa Josefina. Mas a verdade que a Mam me disse tantas vezes que uma menina deve ficar no convento at casar, que julgo que Josefina tem razo, visto que ela me fez sair de l. Acaba de parar uma carruagem porta, e a Mam mandoume que fosse ter com ela imediatamente. Se fosse o senhor? Ainda no estou vestida, a minha mo treme e o meu corao bate. Perguntei criada de quarto se sabia quem estava com minha me: "Ora", disse ela, " o senhor C..." e ria. Oh! Creio que ele. Voltarei com certeza a contar-te o que se passou. O nome j eu sei. No devo *Pensionista do mesmo convento. fazer esperar. Adeus, at daqui a um momento. Como te vais rir da pobre Ceclia! Oh! Como fiquei envergonhada!

Mas tu terias cado como eu. Quando entrei nos aposentos da Mam, vi um senhor vestido de preto, de p, por detrs dela. Cumprimentei-o o melhor que pude e fiquei sem me poder mexer do meu lugar. Podes imaginar como eu o examinava! "Senhora", disse ele a minha me, saudando-me, "trata-se na verdade de uma menina encantadora, e sinto melhor do que nunca o valor dos vossos obsquios". A estas palavras to positivas tomoume um tal tremor que no me podia suster; deparei com uma poltrona e sentei-me nela, toda vermelha e confusa. Mal eu me tinha sentado, eis que o homem se lana a meus ps. Ento a tua pobre Ceclia perdeu a cabea; eu estava, como disse a Mam, verdadeiramente espavorida. Levantei-me lanando um grito agudssimo;... Olha, como naquele dia do trovo. A Mam soltou uma gargalhada e disse-me: "Ento, que tem? Sente-se e d o seu p a esse senhor." Na verdade, minha querida amiga, o senhor era um sapateiro. No posso dizer-te como fiquei envergonhada; por felicidade s ali estava a Mam. Julgo que, quando for casada, no voltarei a servir-me daquele sapateiro. Hs-de convir que j sei muitas coisas! Adeus. So perto de seis horas, e a minha criada de quarto disse-me que tenho de me vestir. Adeus, minha querida Sofia; gosto tanto de ti como quando estava no convento. P. S. - No sei por quem enviar esta carta; por isso espero que Josefina venha. Paris, 3 de Agosto de 17* *.

CARTA II A MARQUESA DE MERTEUIL AO VISCONDE DE VALMONT No castelo de... Volte meu caro Visconde, volte; que faz o senhor, que pode o senhor fazer em casa de uma velha tia cujos bens lhe esto garantidos? Parta imediatamente; -me preciso aqui. Tive uma excelente idia, e desejo confiar-lhe a execuo. Estas palavras deveriam bastar-lhe; e, muito honrado pela minha escolha, devia vir, com solicitude, receber de joelhos as minhas ordens. Mas o senhor abusa das minhas bondades, mesmo depois que deixou de aproveit-las; e na alternativa de um dio eterno ou de uma excessiva indulgncia, a sua felicidade quer que a minha bondade a conduza. Desejo pois instru-lo sobre os meus projetos: mas jure-me que como fiel cavaleiro no correr nenhuma aventura sem que esta seja levada ao fim. Ela digna de um heri: o senhor servir o amor e a vingana; ser enfim uma astcia a mais a pr nas

suas memrias: sim, nas suas memrias, pois eu quero que elas sejam publicadas um dia, encarrego-me de escrev-las. Mas deixemos isso, e voltemos ao que me preocupa. Madame de Volanges vai casar a filha: ainda um segredo; mas desde ontem que estou na posse dele. E quem julga que ela escolheu para genro? O Conde de Gercourt. Quem diria que eu viria a ser prima de Gercourt? Sinto-me possuda de tal furor!... Pois bem! No adivinhou ainda? Oh, inteligncia lenta! J lhe perdoou, pois, a aventura da Intendente*? E eu, no tenho razes para me queixar dele mais ainda, seu monstro? Mas vou-me acalmar, e a esperana de me vingar lana a serenidade na minha alma. Decerto j se tem aborrecido cem vezes, tal como eu, com a importncia que Gercourt atribui sua prxima conquista, e com a tola presuno que o dispe a crer que evitar a sorte inevitvel. Conhece as suas ridculas prevenes a favor das educaes claustrais, e o seu preconceito, ainda mais ridculo, em relao modstia das louras. Eu apostaria, de fato, que, apesar das sessenta mil libras de renda da pequena Volanges, ele nunca faria esse casamento se ela fosse morena, ou se no tivesse estado no convento. Provemos-lhe, pois que apenas um tolo; com certeza h de s-lo um dia, no isso que me preocupa: mas o agradvel seria que ele comeasse por a. Como ns nos divertiramos no dia seguinte ouvindo-o gabar-se, pois ele h de gabar-se; e depois, se o Visconde chegar a instruir essa rapariguinha, ser preciso muito pouca sorte se o Gercourt no se tornar como qualquer outro, a fbula de Paris. Alis, a herona deste novo romance merece todos os seus cuidados: na verdade bonita; tem apenas quinze anos, um boto de rosa; acanhada, de fato, como j se no usa, e de modo nenhum afetada: mas vs, os homens, no temeis isso; alm do mais, senhora de certo olhar langoroso que na verdade promete muito. Acrescente a tudo isto que sou eu que a recomendo: no tem mais que agradecer-me e obedecer. Receber esta carta amanh de manh. Exijo que amanh s sete horas da tarde esteja em minha casa. No receberei ningum*Para entender esta passagem, deve saber-se que o Conde de Gercourt tinha deixado a Marquesa de Merteuil pela Intendente de..., que lhe tinha sacrificado o Visconde de Valmont, e que foi ento que a Marquesa e o Visconde se ligaram um ao outro. Como esta aventura muito anterior aos acontecimentos de que tratam estas cartas julgou-se dever suprimir toda a correspondncia que com ela se liga. (N. do A.)

seno as oito, nem mesmo o Cavaleiro reinante: esse no tem cabea para tamanha empresa. Bem v que o amor no me cega. s oito horas outorgo-lhe a liberdade, e as dez voltar para cear com o belo objeto, pois a me e a filha ceiam sempre em minha casa. Adeus; passa do meio-dia, em breve deixarei de me ocupar do Visconde. Paris, 4 de Agosto de 17* *.

CARTA III CECLIA VOLANGES A SOFIA CARNAY Ainda no sei nada, minha boa amiga. A Mam tinha ontem muita gente a cear. Apesar do interesse que tinha em examinar, os homens principalmente, aborreci-me muito. Toda a gente, homens e mulheres, olhava muito para mim, e depois punham-se a falar ao ouvido; e eu bem via que era de mim que falavam. Isto fazia-me corar; era coisa em que eu no tinha mo. Bem queria impedi-lo, pois reparei que, quando olhavam para as outras mulheres, elas no coravam; ou talvez fosse a pintura que no me deixava ver o seu embarao, pois deve ser muito difcil deixar de corar quando um homem nos olha fixamente. O que mais me inquietava era no saber o que pensavam a meu respeito. Creio, no entanto ter ouvido duas ou trs vezes a palavra bonita; mas ouvi muito distintamente dizer acanhada. E isso deve ser verdade, pois a senhora que pronunciava essa palavra parente e amiga de minha me. Pareceu-me mesmo que de repente tinha sentido amizade por mim. Foi a nica pessoa que falou comigo um pouco durante toda a noite. Amanh ceamos em casa dela. Ouvi ainda, depois da ceia, um homem que estou certa que falava de mim, e que dizia a outro: " preciso deixar amadurecer, veremos este Inverno." Talvez seja esse que deve casar comigo; mas sendo assim, no ser antes de quatro meses! Bem desejaria saber de que se trata. Chegou agora Josefina, e diz-me que est com pressa. Mas quero contar-te ainda uma das minhas acanhezas. Oh, creio que essa senhora tem razo! Depois da ceia puseram-se a jogar. Eu fiquei perto da Mam; no sei como isso aconteceu, mas adormeci quase a seguir. Acordou-me uma estrepitosa gargalhada. No sei se riam de mim, mas assim o creio. A Mam permitiu que me retirasse, e com isso deu-me grande prazer. Imagina que passava das onze horas. Adeus, minha querida Sofia; ama sempre muito a tua Ceclia. Podes estar certa de que a sociedade no to divertida como a imaginvamos. Paris, 4 de Agosto de 17* *.

CARTA IV O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL

Em Paris As suas ordens so encantadoras; e a sua maneira de d-las mais amvel ainda. A minha amiga poderia fazer amar o despotismo. No a primeira vez, como sabe, que eu lamento no ser j o seu escravo; e por muito monstro que diga que eu sou, no recordo nunca sem prazer o tempo em que me honrava com eptetos mais doces. Muitas vezes mesmo desejo voltar a merec-los, e acabar por dar, a seu lado, um exemplo de constncia ao mundo. Mas outros interesses mais altos nos chamam: conquistar o nosso destino. preciso segui-lo. Talvez ao fim do caminho voltemos a encontrar-nos; pois, seja dito sem que se zangue, minha bela Marquesa, a verdade que a senhora me segue com um passo pelo menos igual. E visto que, separando-nos para a felicidade do mundo, cada um de ns prega por seu lado a sua f, parece-me que, nesta misso de amor, a minha amiga faz mais proslitos do que eu. Conheo o seu zelo, o seu ardente fervor. E se Deus nos julgasse segundo as nossas obras, a senhora seria um dia a padroeira de alguma grande cidade, enquanto que o seu amigo seria quando muito um santo de aldeia. Admira-se desta linguagem, no verdade? Mas h oito dias que eu no ouo nem falo outra; e para me aperfeioar nela que me vejo forado a desobedecer-lhe. No se zangue e oua-me. Depositria de todos os segredos do meu corao, vou confiar-lhe o maior projeto que jamais formei. Que me prope a minha amiga? Seduzir uma jovem que no viu nada, que no conhece nada; que, por assim dizer, me seria entregue sem defesa; que com certeza se embriagar com uma primeira homenagem, e que ser levada mais pela curiosidade do que pelo amor. H vinte homens que nessa empresa seriam to bem sucedidos como eu. J no acontece o mesmo com a empresa que me preocupa; o seu xito valer-me- tanto prazer como glria. O amor que prepara a minha coroa hesita ele prprio entre a mirta e o loureiro, ou antes os reunir para honrar o meu triunfo. At a minha boa amiga ser tomada de um santo respeito, e dir com entusiasmo: " este o homem segundo o meu corao." A minha amiga conhece a mulher do Presidente Tourvel, a sua devoo, o seu amor conjugal, os seus princpios austeros. Eis o alvo do meu ataque; eis o inimigo digno de mim; eis o fim que eu pretendo atingir: Et si de l'obtenir ce n'emporte le prix, J'aurais du moins !honneur de l'avoir entrepris.* permitido citar maus versos, quando so de um grande poeta. Como deve saber, o Presidente de Tourvel est em Borgonha, seguindo um grande processo (espero fazer-lhe perder outro mais importante). A sua inconsolvel metade deve passar aqui todo o tempo desta aflitiva viuvez. Uma missa por dia, algumas visitas aos pobres da regio, oraes de manh e noite, passeios solitrios, piedosas conversas com a minha velha tia, e uma vez por outra um

triste jogo de whist, deviam ser as suas nicas distraes. Estou-lhe preparando outras mais eficazes. O meu anjo bom conduziu-me aqui para a sua felicidade e para minha. Insensato! Eu lamentava as vinte e quatro horas que ia sacrificar em considerao aos respeitos familiares que so de uso. Como eu seria castigado se me obrigassem a voltar a Paris! Felizmente so precisas quatro pessoas para jogar o whist; e como no h aqui mais ningum alm do prior do lugar, a minha eterna tia instou muito comigo para que eu lhe sacrificasse alguns dias. J adivinhou que acedi. No imagina os mimos que ela me prodigaliza desde esse instante, e principalmente como ela est impressionada por me ver assistir regularmente s suas oraes e missa. Nem por sombras lhe passa pela cabea qual a divindade que eu ali vou adorar. E aqui estou eu, h quatro dias, entregue a uma paixo forte: A minha amiga sabe com que fora eu sei desejar, e como os obstculos pesam pouco para mim; mas o que ignora quanto a solido vem reforar o ardor dos desejos. Apenas uma idia me ocupa; penso nela de dia, sonho com ela de noite. -me absolutamente necessrio possuir essa mulher, para me salvar do ridculo de estar apaixonado por ela; pois aonde no conduz um desejo contrariado? delicioso prazer! Eu te imploro para a minha felicidade, mas principalmente para o meu descanso. Como ns os homens somos felizes por as mulheres se defenderem to mal! Sem isso, seramos junto delas apenas tmidos escravos. Neste momento sinto-me possudo de reconhecimento pelas mulheres fceis, o que, naturalmente, me conduz a seus ps. Ante eles me ajoelho para obter o meu perdo, e nessa postura termino esta longa carta.*E se eu no conseguir o prmio obter, Terei ao menos a honra de o haver tentado. La Fontaine. (N. do A.)

Adeus, minha amiga: longe de mim qualquer reserva. Do castelo de..., 5 de Agosto de 17 * *.

CARTA V A MARQUESA DE MERTEUIL AO VISCONDE DE VALMONT Sabe, Visconde, que a sua carta de uma insolncia rara, e que eu poderia ter-me zangado? Contudo, ela provou-me claramente que o Visconde perdeu a cabea e s isso o salvou da minha indignao. Amiga generosa e sensvel, esqueo a injria que me dirige para me ocupar apenas do perigo que corre; e embora seja muito aborrecido raciocinar, cedo necessidade que tem neste momento dos meus raciocnios.

O Visconde, possuir a Presidente de Tourvel! Mas que ridculo capricho! Reconheo bem a sua m cabea que no sabe desejar seno o que cr no poder obter. Que tem pois essa mulher? Traos regulares, se quiser, mas nenhuma expresso; sofrvel de corpo, mas sem graa; vestida sempre de modo que faz rir! Com os seus molhos de lacinhos no pescoo e o corpete que lhe chega ao queixo! Digolho como amiga, no lhe seria preciso ter duas mulheres como aquela para perder toda a minha considerao. Lembre-se do dia da festa de caridade em Saint-Roch, em que o Visconde tanto me agradeceu por eu lhe ter proporcionado tal espetculo. Parece que ainda a estou vendo, dando a mo quele trangalhadanas de cabelos compridos, pronta a cair a cada passo, tendo sempre o cesto de quatro varas em cima da cabea de algum, e corando cada vez que a cumprimentavam. Quem lhe diria ento que chegaria a desejar essa mulher? Vamos, Visconde, tenha a bondade de corar e voltar a si. Prometo-lhe guardar segredo. E depois, veja a srie de coisas desagradveis que o esperam! Que rival ter a combater? Um marido! No se sente humilhado s ante esta palavra? Que vergonha se for mal sucedido! E mesmo no caso de triunfar, que pequena glria o espera! Digo-lhe mais: no conte tirar dali nenhum prazer. isso possvel com as mulheres recatadas? Quero dizer com as que o so de, boa f: reservadas at no meio do prazer, no podem oferecer seno meios gozos. O abandono inteiro de si mesma, o delrio da volpia em que o prazer se depura pelo seu excesso, estas vantagens do amor no so conhecidas por tais mulheres. Aqui lho profetizo: na mais feliz das suposies, a sua Presidente julgar ter feito tudo pelo Visconde tratando-o como seu marido, e na intimidade conjugal, mesmo a mais terna, h sempre dois. Neste caso muito pior ainda; essa virtuosa senhora devota, e a sua devoo das que condenam a uma eterna infncia. possvel que o Visconde venha a saltar o obstculo, mas no se gabe de vir a destru-lo: vencedor do amor de Deus, no o ser do medo do Diabo; e quando, tendo a sua amante nos braos, tivesse conhecido mais cedo essa mulher, possvel que fizesse dela qualquer coisa; mas tem j vinte e dois anos e h cerca de dois que casada. Creia-me, Visconde, quando uma mulher se encondeu a tal ponto, preciso abandon-la sua sorte; nunca h de passar de uma espcie. No entanto, por esse belo objeto que o Visconde recusa obedecer-me; que se enterra no tmulo de sua tia, e que renuncia aventura mais deliciosa e mais de molde a proporcionar-lhe honrarias. Por que fatalidade ser que Gercourt tem sempre qualquer vantagem sobre o Visconde? Falo-lhe sem m disposio, acredite: mas,neste momento,estou tentada a crer que o senhor no merece a sua reputao; estou tentada principalmente a retirar-lhe a minha confiana. Nunca poderei acostumar-me a dizer os meus segredos ao amante de Madame de Tourvel.

Saiba no entanto que a pequena Volanges j fez andar uma cabea roda.O jovem Danceny est louco por ela; e na verdade ela canta melhor do que dado a uma pensionista de convento. quase certo que ensaiam muitos duetos e ia jurar que de bom grado ela se prestaria ao unssono; mas este Danceny uma criana que perder o seu tempo em galanteios sem chegar a nada de positivo. Pelo seu lado a pequenota bastante arisca; e, seja o que for que acontea, sempre h de ser menos divertido do que se o Visconde se resolvesse a intervir. Por isso estou aborrecida e com certeza o Cavaleiro ouvir ralhar sua chegada. Eu aconselho-o a ser submisso, pois neste momento no me custaria nada romper com ele. Estou certa de que, se eu tivesse a boa lembrana de o deixar neste momento, ele ficaria cheio de desespero; e nada me diverte tanto como um desespero amoroso. Chamar-me-ia prfida, e essa palavra sempre me deu prazer; depois da palavra "cruel", a mais doce para os ouvidos de uma mulher, e a que d mais trabalho a merecer. Falando srio vou ocupar-me deste rompimento. Aqui est um acontecimento de que o Visconde ser o causador! Ponho-o sobre a sua conscincia. Adeus. Recomende-me s oraes da sua Presidente. Paris, 7 de Agosto de 17* *.

CARTA VI O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL pois certo no existir mulher alguma que no abuse do ascendente que conquistou! E mesmo a senhora, a quem tantas vezes chamei indulgente amiga, deixou enfim de o ser, e no receia atacar-me no objeto das minhas afeies! Com que traos ousou pintar Madame de Tourvel!... Que homem no teria pagado com a vida essa insolente audcia? Que outra mulher que no fosse a Marquesa teria podido enunci-la sem suscitar da minha parte uma pequena vingana? Por favor, no me submeta a to rudes provas; no garanto que as possa suportar. Em nome da amizade, espere que eu possua essa mulher, se quiser dizer mal dela. No sabe que s a volpia tem o direito de dissipar a cegueira do amor? Mas que digo eu? Acaso Madame de Tourvel tem necessidade de iluso? No; para ser adorvel basta-lhe ser ela prpria. Censura-a a Marquesa por se vestir mal; estou de acordo: todos os vesturios a prejudicam; tudo o que a esconde a desfeia. no abandono do trajo caseiro que ela verdadeiramente encantadora. Graas aos calores opressivos que sofremos, um simples roupo de pano deixa-me ver as suas formas redondas e flexveis.

Uma ligeira musselina cobre-lhe a garganta; e os meus olhares furtivos, mas penetrantes, descobriram-lhe j as linhas sedutoras. O seu rosto, diz a Marquesa, no tem nenhuma expresso. E que poderia exprimir, nos momentos em que nada lhe fala ao corao? No, sem dvida, ela no tem, como as presumidas mulheres do nosso meio, aquele olhar mentiroso que nos seduz algumas vezes e nos engana sempre. No sabe cobrir o vazio de uma frase com um sorriso estudado; e embora tenha os mais belos dentes do mundo, no costuma rir seno do que a diverte. No entanto preciso ver como, nos jogos engraados, ela oferece a imagem de uma alegria ingnua e franca! Como, junto de um infeliz que ela se apressa a socorrer, o seu olhar anuncia o contentamento puro e a bondade compadecida! preciso ver, principalmente menor palavra de elogio ou de afago, desenhar-se, no seu rosto celeste, o comovente embarao de uma modstia que no fingida. Modesta e devota, -o sem dvida, mas da a julg-la fria e inanimada!... O que penso dela bem diferente. Que extraordinria sensibilidade no deve ter para beneficiar com ela o marido, e para amar sempre um ser sempre ausente! Que prova mais forte se pode desejar? Todavia, consegui descobrir mais uma. Quando h dias samos a passear, arranjei as coisas de maneira que nos foi necessrio transpor um barranco; e, embora muito lesta, Madame de Tourvel ainda mais tmida. fcil de ver que uma mulher virtuosa tem sempre receio de saltar o barranco. Foi-lhe necessrio confiar-se minha pessoa. Tive nos meus braos essa mulher modesta. Os nossos preparativos e a passagem da minha velha tia tinham feito rir s gargalhadas a jovial devota: mas, no momento em que a agarrei, por um movimento propositadamente desastrado, os nossos braos enlaaram-se mutuamente. Apertei o seu seio contra o meu; e, nesse curto intervalo, senti o seu corao bater mais rpido. O rosto coloriu-selhe de uma adorvel vermelhido, e no seu pudibundo embarao pude ver que o seu corao tinha palpitado de amor e no de receio. Entretanto minha tia enganou-se como a minha amiga - e disse: "A criana teve medo"; mas a encantadora ingenuidade da criana no lhe permitiu a mentira, e fez que ela respondesse singelamente: Oh! No, mas.... Esta simples palavra esclareceu-me. Desde aquele momento, a doce esperana substitui a cruel inquietao. Possuirei esta mulher; hei-de arrebat-la ao marido, que a profana: ousarei roub-la ao prprio Deus que ela adora. Que delcia ser alternadamente o objeto e o vingador dos seus remorsos! Longe de mim a idia de destruir os preconceitos que a rodeiam! Serviro para aumentar a minha felicidade e a minha glria. Que creia na virtude, mas que a sacrifique por mim; que as suas faltas a aterrem sem poder evit-las; e que, agitada de mil terrores, ela no possa esquec-los, venc-los seno nos meus braos.

Consentirei ento que ela me diga: "Adoro-te" ; ela s, entre todas as mulheres, ser digna de pronunciar essa palavra. Eu serei, verdadeiramente, o Deus que ela prefere. Falemos de boa f: nas nossas combinaes to frias como fceis, aquilo a que chamamos felicidade apenas prazer. Poderei confessar-lho? Pensava eu que o meu corao estava gasto, e, encontrando em mim apenas os sentidos, lastimava a minha velhice prematura. Madame de Tourvel restituiu-me as encantadoras iluses da juventude. Junto dela, no tenho necessidade de prazer para ser feliz. A nica coisa que me mete medo o tempo que me vai tomar esta aventura; pois no ouso deixar nada ao acaso. Muito embora me lembrem as minhas audcias bem sucedidas, no posso resolver-me a p-las em prtica. Para que eu seja verdadeiramente feliz; preciso que ela se d; e no pequena empresa. Estou certo de que a Marquesa admiraria a minha prudncia. Ainda no pronunciei a palavra amor; mas j chegamos s palavras confiana e interesse. Para a enganar o menos possvel, e principalmente para prevenir o efeito das murmuraes que poderiam chegar aos seus ouvidos, descrevi-lhe eu prprio, como acusando-me, alguns dos meus defeitos mais conhecidos. A Marquesa havia de rir se visse a candura com que ela me faz sermes. Diz ela que quer converter-me. Nem ela imagina ainda o que lhe vir a custar tal tentativa. Est longe de pensar que defendendo, como ela diz, as infortunadas que eu levei perdio, advoga de antemo a sua prpria causa. Esta idia veio-me ontem no meio de uma das suas prdicas, e eu no pude recusar-me ao prazer de a interromper, para lhe afirmar que falava como um profeta. Adeus, minha bela amiga. Bem v que no estou perdido sem recurso. P. S . - A propsito, esse pobre Cavaleiro, matou-se de desespero? Em boa verdade, a Marquesa uma pessoa cem vezes pior do que eu, e sentir-me-ia humilhado se tivesse amor-prprio. Do Castelo de..., 9 de Agosto de 17 * *.

CARTA VII CECLIA VOLANGES A SOFIA CARNAY Se nada te disse do meu casamento, porque no estou mais adiantada do que no primeiro dia. Acostumo-me a no pensar nisso e sinto-me muito bem no meu gnero de vida. Estudo muito canto e harpa; parece-me que gosto mais desses estudos desde que no tenho professor, ou antes, desde que tenho um professor melhor. O Cavaleiro Danceny, aquele senhor de que falei, e com quem cantei

em casa de Madame de Merteuil, tem a bondade de vir aqui todos os dias, e de cantar comigo horas inteiras. extremamente amvel. Canta como um anjo, e compe lindas msicas para as quais escreve tambm as palavras. pena que ele seja Cavaleiro de Malta! Acredito que, se ele se casasse, a mulher seria muito feliz... cativante a doura do seu trato. Diz coisas sem ar de galanteio, e no entanto tudo o que ele diz agrada. Conversa muito comigo, sobre a msica e sobre outras coisas; mas sabe insinuar nas suas crticas tanto interesse e animao, que impossvel no lhe agradecer. Simplesmente, quando olha para ns, tem o ar de dizer qualquer coisa que nos prende. Alm de tudo isto, muito paciente. Ontem, por exemplo, tinha sido convidado para um grande concerto; preferiu ficar todo o sero comigo e com a Mam. Isto deu-me muito prazer, pois, quando ele no est, ningum fala comigo e aborreo-me; ao passo que quando ele est presente, cantamos em conjunto e conversamos. Tem sempre alguma coisa para me dizer. Ele e Madame de Merteuil so as duas nicas pessoas amveis que encontrei. Mas tenho de dizer-te adeus, minha querida amiga: prometi que teria hoje estudada uma arieta de acompanhamento muito difcil, e no quero faltar minha palavra. Vou lanar-me ao estudo at que ele venha. 7 de Agosto de 17 * *.

CARTA VIII A PRESIDENTE DE TOURVEL A MADAME DE VOLANGES Ningum pode ser mais sensvel do que eu, senhora, confiana que me testemunhais, nem ter maior interesse do que eu pelo futuro casamento de Mademoiselle de Volanges. De toda a minha alma lhe desejo uma felicidade da qual no duvido que ela seja digna, e para a qual contribuir sem dvida a prudncia de que tendes dado prova. No conheo o senhor Conde de Gercourt; mas, honrado com a vossa escolha, s posso ter dele uma idia muito lisonjeira. Limito-me, senhora, a desejar para esse casamento um resultado to feliz como o do meu, que igualmente obra vossa, e pela qual cada vez sinto maior reconhecimento. Que a felicidade de vossa filha seja a recompensa da que conseguistes para mim; e possa a melhor das amigas ser tambm a mais feliz das mes! Sinto-me verdadeiramente penalizada por no poder oferecervos de viva voz a homenagem deste voto sincero, nem travar conhecimento com Mademoiselle de Volanges to cedo como desejais. Depois de ter beneficiado das vossas bondades verdadeiramente maternais, tenho o direito de esperar dela a amizade terna de uma irm. Rogo-vos, senhora, que lhe faais este pedido da minha parte, esperando estar altura de merec-la.

Conto ficar no campo durante todo o tempo da ausncia do Senhor de Tourvel. Serve-me esse tempo para gozar e aproveitar da companhia de Madame de Rosemonde. Esta senhora mantm sempre o seu encanto; a idade nada lhe fez perder. Conserva toda a sua memria e animao. S o seu corpo tem oitenta e quatro anos; o esprito tem apenas vinte. O nosso isolamento alegrado por seu sobrinho, o Visconde de Valmont, que teve a bondade de nos sacrificar alguns dias. Conhecia-o apenas pela sua reputao, a qual me no fazia desejar conhec-lo melhor; mas parece-me que vale mais do que ela. Aqui, onde turbilho do mundo no o prejudica, diz coisas razoveis com uma espantosa facilidade e acusa-se do mal que tem praticado com uma candura rara. Fala-me sempre com muita confiana e eu prego-lhe os meus sermes com muita severidade. Vs, que o conheceis, devereis convir que seria uma bela converso a fazer: mas eu no tenho dvidas de que, apesar das suas promessas, oito dias de Paris lhe faam esquecer todas as minhas prdicas. A sua estada aqui ser pelo menos um intervalo na sua conduta habitual: e eu creio que, atendendo sua maneira de viver, o que ele pode fazer de melhor no fazer nada. Sabendo que estou ocupada a escrevermos, encarregou-me de vos apresentar as suas homenagens respeitosas. Aceitai tambm as minhas com a bondade que vos conheo, e no duvideis nunca dos sentimentos sinceros com que tenho a honra de ser, etc. Do castelo de..., 9 de Agosto de 17 * *.

CARTA IX MADAME DE VOLANGES A PRESIDENTE DE TOURVEL Nunca duvidei nunca, minha jovem e bela amiga, nem da amizade que tendes por mim, nem do interesse sincero que tomais em tudo que me diz respeito. No para esclarecer esse ponto, que espero esteja assente para sempre entre ns, que respondo vossa resposta: mas julgo que no poderei dispensar-me de conversar convosco a respeito do Visconde de Valmont. Confesso que no esperava vir a encontrar o nome desse senhor nas vossas cartas. De fato, que pode haver de comum entre vs e ele? V-se bem que no conheceis esse homem; pois onde podereis ter aprendido a fazer idia do que a alma dum libertino? Falais-me da sua rara candura. Ah, sim: a candura de Valmont deve ser de fato muito rara. Ele ainda mais falso e perigoso do que amvel e sedutor, e nunca, desde que atingiu a idade viril, nunca deu um passo ou disse uma palavra sem ter um projeto, e nunca teve um projeto que no fosse criminoso ou desonesto.

Minha amiga, conheceis-me bem; bem sabeis que, entre as virtudes que me empenho em adquirir, a indulgncia no daquelas que mais prezo. Por isso, se Valmont fosse arrastado por paixes ardentes; se, como tantos outros, ele tivesse sido seduzido pelos erros da juventude, embora censurasse a sua conduta, eu lamentaria a sua pessoa, e esperaria, em silncio, a hora em que um regresso feliz o fizesse reconquistar a estima das pessoas honestas. Mas Valmont no capaz de tal: o seu comportamento o resultado dos seus princpios. Sabe fazer o clculo do que um homem pode permitir-se de horrores sem se comprometer; e para ser cruel e mau sem perigo, escolheu por vtimas as mulheres. No perderei tempo a contar as que ele seduziu; mas quantas delas lanou na perdio? Essas escandalosas aventuras no chegaram ao vosso conhecimento, na vida recatada e simples que tendes levado. Poderia contar-vos coisas que vos fariam estremecer; mas os vossos olhos, puros como a vossa alma, seriam conspurcados por semelhantes quadros. Estou certa de que Valmont no ser para vs um perigo, e por isso no tendes necessidade de semelhantes armas para vos defenderdes. A nica coisa que tenho a dizer-vos que, de todas as mulheres que ele distinguiu, com xito ou no, nenhuma deixou de ter motivo de queixa. S a Marquesa de Merteuil faz exceo a esta regra geral; s ela soube resistir-lhe e desarmar a sua maldade. Confesso que esse momento da vida da Marquesa o que mais a honra a meus olhos: chega para justificar plenamente aos olhos de todos de algumas inconseqncias que haveria a censurarlhe quando do princpio da sua viuvez. Seja como for, minha boa amiga, o que a idade, a experincia e principalmente a amizade me autorizam a dizer-vos, que na sociedade se comea a notar a ausncia de Valmont; e que, caso se venha a saber que ele ficou algum tempo como terceiro entre sua tia e vs, a vossa reputao ficar entre as mos dele. E esta ser a maior desgraa que pode acontecer a uma mulher. Aconselho-vos pois a conseguir da tia que o no retenha por mais tempo; e, se ele teimar em ficar, creio que no deveis hesitar em ceder-lhe o lugar. Mas por que h de ele ficar a? Que faz ele no campo? Se tivsseis algum a espiar os seus passos, estou certa de que descobrireis que ele apenas escolheu um asilo mais cmodo, para algumas negras aes que pensa praticar por esses lugares. Mas, na impossibilidade de remediar o mal, contentamo-nos em preservar-nos dele. Adeus, minha boa amiga. O casamento de minha filha est um pouco retardado. O Conde de Gercourt, que espervamos de um dia para o outro, mandou-me dizer que o seu regimento vai para a Crsega; e, como h ainda alguma agitao devido guerra, ser-lhe impossvel ausentar-se antes do Inverno. Isso contraria-me; mas autoriza-me a esperar que teremos o prazer de vos ver na boda, e aborrecia-me que tal acontecimento no tivesse a vossa presena. Adeus; estou, para alm das convenes e sem reserva, inteiramente ao vosso dispor.

P. S . - Lembranas minhas para Madame de Rosemonde, a quem aprecio tanto como ela merece. 1 de Agosto de 17* *.

CARTA X A MARQUESA DE MERTEUIL AO VISCONDE DE VALMONT Est amuado comigo, Visconde? Ou dar-se- o caso que tenha morrido? Ou, o que se pareceria muito com isso, no vive seno para a sua Presidente? Essa mulher, que o faz reviver as iluses da juventude, dentro em pouco o far reviver tambm os ridculos preconceitos dessa idade. Eis o Visconde tmido e escravo; o que vale tanto como estar apaixonado. Renunciou s suas felizes temeridades. Ei-lo pois a conduzir-se sem princpios, deixando tudo ao acaso, ou antes, ao capricho. No lhe ocorreu que o amor , como a medicina, somente a arte de ajudar a Natureza? Bem v que estou a bat-lo com as suas armas; mas no me sinto orgulhosa por isso, pois bater num homem cado. preciso que ela se d, diz-me o Visconde; oh !, sem dvida, preciso. Ela h de entregar-se como as outras, com a diferena de que o far de m vontade. Mas, para que ela acabe por se entregar, o verdadeiro meio comear por obrig-la. A que ponto esta ridcula distino um verdadeiro despropsito do amor! Eu digo do amor: porque o Visconde est apaixonado. Falar-lhe de maneira diferente seria tra-lo; seria esconder-lhe a sua doena. Diga-me, pois, langoroso amante, julga ter violado as mulheres que possuiu? Mas, por muito desejo que uma mulher tenha de se entregar, por muito apressada que esteja, ainda lhe preciso um pretexto; e haver algum mais cmodo para ns do que aquele que nos d a aparncia de ceder fora? Por mim, confesso-o, uma das coisas que mais me lisonjeiam um ataque vivo e bem feito, no qual tudo se sucede com ordem embora com rapidez; que no nos pe nunca naquela penosa confuso de termos ns prprias um desacerto de que ao contrrio devamos aproveitar; que sabe manter o ar de violncia at nas coisas que concedemos, e lisonjear com habilidade as nossas duas paixes favoritas, a glria da defesa e o prazer da derrota. Convenho que esse talento, mais raro do que se supe, me deu sempre prazer, mesmo quando no chegou a seduzir-me, e que algumas vezes me aconteceu render-me unicamente como recompensa. Tal como nos nossos antigos torneios, a Beleza dava o prmio do valor e da destreza. Mas o senhor, o senhor que j no o mesmo, conduz-se como se tivesse medo de vencer. Oh! Desde quando que viaja por

pequenas jornadas e por amigo, quando se quer chegar, empregamse cavalos de posta e toma-se a estrada principal! Mas deixemos esse assunto, que me aborrece tanto mais quanto me priva do prazer de o ver. Pelo menos escreva-me mais vezes do que o faz, e ponha-me ao corrente dos seus progressos. J reparou que h mais de quinze dias que esta ridcula aventura o preocupa, e que abandonou todo o convvio? A propsito, o Visconde parece-se com aquelas pessoas que mandam regularmente saber notcias dos seus amigos doentes, mas que nunca esperam pela resposta. No final da sua ltima carta, perguntava-me se o Cavaleiro tinha morrido. No respondi, e o Visconde no se inquietou mais por isso. Esqueceu porventura que o amante seu amigo nato? Mas tranquilize-se, no morre; ou, se tivesse morrido, seria por excesso de alegria. Aquele pobre Cavaleiro, como ele terno! como ele feito para o amor! como ele sabe sentir vivamente! Isto pe-me a cabea roda. Falando srio, a felicidade perfeita que ele encontra em ser amado por mim liga-me verdadeiramente a ele. No mesmo dia em que lhe escrevi dizendo que ia provocar o rompimento, a que ponto o tornei feliz! No entanto, estava-me ocupando dos melhores meios de o fazer desesperar, quando mo anunciaram. Fosse capricho ou raciocnio, nunca ele me pareceu to bem. Recebi-o entretanto de mau humor. Ele esperava passar duas horas comigo, antes que a minha porta se abrisse para toda a gente. Disse-lhe que ia sair; perguntou-me aonde ia; recusei-me a dizer-lho. Ele insistiu. Onde o senhor no estiver, repliquei-lhe eu, com azedume. Felizmente para ele, ficou petrificado com esta resposta; pois, se ele tivesse dito uma palavra, seguir-se-ia infalivelmente uma cena que teria precisamente o rompimento que eu projetava. Admirada com o seu silncio, lancei os olhos sobre ele sem outro projeto, juro-lhe, que o de ver a expresso com que ficara. Tornei a ver naquele rosto encantador uma tristeza, ao mesmo tempo profunda e terna, qual o prprio Visconde tem de concordar que difcil resistir. A mesma causa produziu o mesmo efeito; fui vencida pela segunda vez. Desde esse momento, s me ocupei da maneira de evitar que ele pudesse achar nas minhas palavras qualquer agravo. "Saio para tratar de um assunto", disse-lhe eu com um ar um pouco mais doce, "e esse assunto diz-lhe respeito; mas no me interrogue. Ceio em minha casa; volte, e saber de que se trata." Foi ento que ele recuperou a palavra: mas no lhe permiti que fizesse uso dela. "Estou com muita pressa", continuei. "Deixe-me; at logo noite." Beijou-me a mo e saiu. Nesse momento, para o recompensar, ou talvez para me recompensar a mim prpria, resolvi dar-lhe a conhecer a minha casinha, de cuja existncia ele no suspeita. Chamo a minha fiel Vitria. Veio-me a enxaqueca; deito-me para todos os meus criados; e, ficando enfim s com a verdadeira, enquanto ela se vestia de

lacaio, disfarcei-me de criada de quarto. Em seguida ela mandou vir um fiacre porta do jardim, e partimos juntas. Chegada quele templo de amor, escolhi o roupo mais galante. um vesturio delicioso, de minha inveno: no deixa ver nada, e faz adivinhar tudo. Prometo dar-lhe o modelo para a sua Presidente, quando o Visconde a tiver tornado digna de o usar. Depois destes preparativos, enquanto Vitria se ocupava de outros pormenores, li um captulo do Sof, uma carta de Heloisa e dois contos de La Fontaine, para recordar os diferentes tons que eu queria tomar. Entretanto o Cavaleiro chega minha porta, com a pressa que tem sempre. O porteiro no o deixa entrar, e diz-lhe que adoeci: primeiro incidente. Entrega-lhe ao mesmo tempo um bilhete meu, mas no com a minha letra, segundo a minha regra de prudncia. Ele abre-o, e encontra escrito pela mo de Vitria: "s nove em ponto, no Boulevard, em frente dos cafs." Dirige-se para l; e, ali, um pequeno lacaio que ele no conhece, que ele julga pelo menos no conhecer, pois sempre Vitria, vem-lhe anunciar que preciso mandar embora a carruagem e segui-lo. Todas estas peripcias romanescas lhe esquentavam a cabea, e uma cabea esquentada nada prejudica. Por fim chega, e a surpresa e o amor causam nele um verdadeiro encantamento. Para lhe dar tempo a recompor-se passeamos um momento no parque; depois encaminho-o para casa. Ele v primeiro dois talheres postos; depois uma cama feita. Passamos ao quarto de vestir, que estava em todo o seu esplendor. Ali, metade por reflexo, metade por sentimento, passei os meus braos em volta dele e deixei-me cair a seus ps: " meu amigo!", disse-lhe eu, "para poder preparar-te a surpresa deste momento, censuro-me por te ter afligido com a aparncia do meu mau humor; por ter um instante velado o meu corao aos teus olhares. Perdoa-me os agravos; quero expi-los fora de amor." O Visconde julgar do efeito deste discurso sentimental. O feliz Cavaleiro levantou-me, e o meu perdo foi selado sobre aquela otomana onde o Visconde e eu selamos to alegremente e da mesma maneira a nossa eterna separao. Como tnhamos seis horas para passarmos juntos e eu tinha resolvido que todo esse tempo fosse para ele igualmente delicioso, moderei os seus transportes, e a amvel coqueteria veio substituir a ternura. Julgo que nunca pus tanto empenho em agradar, e que nunca estive to satisfeita de mim prpria. Depois da ceia, alternadamente criana e razovel, folgaz e sensvel, por vezes mesmo libertina, aprouve-me consider-lo como um sulto em meio do serralho, do qual eu era de cada vez uma favorita diferente. Na verdade, ao passo que ele repetia as suas homenagens, se elas eram sempre dirigidas mesma mulher, era sempre uma nova amante que as recebia. Enfim, ao raiar do dia foi preciso separarmo-nos; e o que ele me disse, o que ele fez mesmo para me provar o contrrio, tudo

mostrava que a necessidade era maior que o desejo. No momento em que saamos e por ltimo adeus, tomei a chave daquele feliz refgio, e pondo-lha entre as mos, disse: " s para si que a tenho. justo que seja o seu dono. O sacrificador deve dispor do templo." Com esta habilidade preveni as reflexes que ele poderia fazer sobre a propriedade, sempre suspeita, duma casa pequena. Conheo-o bastante para estar certa de que no se servir dela seno para mim; e se eu tivesse a fantasia de l ir sem ele, sempre me restava outra chave. Ele queria viva fora marcar data para l voltarmos; mas eu amo-o ainda demasiado para querer gast-lo to depressa. S devemos permitir-nos excessos com as pessoas que cedo queremos deixar. Ele no o sabe; mas, felizmente para ele, eu sei-o por dois. Reparo agora que so trs da manh, e que escrevi um volume, quando formara o projeto de escrever apenas uma palavra. Tal o encanto da amizade confiante: ela que faz que seja o Visconde quem amo mais; mas, na verdade, o Cavaleiro quem mais me agrada. 12 de Agosto de 17* *.

CARTA XI A PRESIDENTE DE TOURVEL A MADAME DE VOLANGES A vossa severa carta ter-me-ia assustado, senhora, se, por felicidade, eu no encontrasse aqui mais motivos de tranqilidade do que os de temor que me ofereceis. Esse temvel senhor de Valmont, que deve ser o terror de todas as mulheres, parece ter deposto as suas armas mortferas antes de entrar neste castelo. Longe de vir aqui formar os seus projetos, nem mesmo trouxe quaisquer pretenses; e a qualidade de homem amvel, que at os seus inimigos lhe concedem, quase desaparece aqui, para no deixar seno a de bom rapaz. Foi aparentemente o ar do campo que produziu este milagre. O que posso assegurar-vos que, estando constantemente ao p de mim, parecendo mesmo que isso lhe agrada, no lhe escapou ainda uma palavra que se parea com o amor, nem uma dessas frases que todos os homens se permitem, sem ter, como ele, o que necessrio para as justificar. Nunca ele obriga quela reserva na qual hoje obrigada a manter-se toda a mulher que se respeita, para conter os homens que a rodeiam. Sabe no abusar da animao que inspira. talvez um pouco prdigo em louvores; mas com tanta delicadeza que o faz, que obrigaria a prpria modstia a habituar-se ao elogio. Enfim, se eu tivesse um irmo, desejaria que ele fosse tal como o senhor de Valmont se mostra aqui. Talvez muitas mulheres desejassem da sua parte uma galanteria mais marcada; e confesso que lhe estou

infinitamente grata por ele me julgar de uma forma que lhe permite no me confundir com elas. Este retrato difere muito sem dvida do que me fizestes; e, apesar disso, ambos podem estar parecidos, se fixarmos as pocas. Ele prprio concorda ter cometido muitos erros, e com certeza lhe tero atribudo alguns outros. Mas at agora encontrei poucos homens que falassem de mulheres honestas com mais respeito, direi quase entusiasmo. Sob esse aspecto, vs mesma me fizeste saber que ele no engana. A sua conduta em relao a Madame de Merteuil disso prova. Fala-nos muito dela; e sempre com tantos elogios e dando mostras de uma dedicao to verdadeira, que cheguei a crer, antes da recepo da vossa carta, que aquilo que ele chamava amizade entre os dois fosse realmente amor. Acuso-me desse julgamento temerrio, o qual foi tanto mais errneo quanto certo que ele mesmo tomou a seu cargo, por vrias vezes, o cuidado de a justificar. Confesso que tomei por delicadeza o que da sua parte era sinceridade autntica. No sei; mas parece-me que aquele que capaz de uma amizade to contnua por uma mulher to estimvel, no um libertino sem resgate. Ignoro, no entanto, se o comportamento reto que ele mantm aqui se deve a alguns projetos por estes lugares, conforme a vossa suposio. certo que por estas cercanias h algumas mulheres interessantes; mas ele sai pouco, exceto de manh, e ento diz que vai caar. verdade que raramente traz caa; mas assegura que desastrado nesse exerccio. Demais, o que ele faz l por fora inquieta-me pouco; e se eu desejasse sab-lo, seria apenas para ter mais um motivo que me aproximasse da vossa opinio ou que vos conduzisse minha. Acerca da vossa proposta de trabalhar no sentido de abreviar o tempo que o senhor de Valmont conta aqui estar, parece-me muito difcil ousar pedir a sua tia que no tenha o sobrinho junto dela, tanto mais que gosta muito dele. Prometo-vos, todavia, mas somente por deferncia e no por necessidade, aproveitar a primeira ocasio para fazer esse pedido, quer a Madame de Rosemonde, quer a ele prprio. Quanto a mim, o senhor de Tourvel conhecedor do meu projeto de ficar aqui at ao seu regresso, e havia de admirar-se, com razo, da ligeireza que me fizesse mudar de projeto. So bem longos, senhora, estes esclarecimentos; mas julguei dever verdade um testemunho favorvel para o senhor de Valmont, e do qual ele me parece ter grande necessidade junto de vs. Nem por isso sou menos sensvel amizade que ditou os vossos conselhos. a ela que fico devendo tambm as vossas penhorantes informaes sobre a demora do casamento de vossa filha. Agradeovos muito sinceramente: mas, embora me d prazer a idia de passar esses momentos convosco, sacrific-los-ia de bom grado ao desejo de saber Mademoiselle de Volanges mais cedo feliz, se que ela pode vir a s-lo mais do que junto de uma me to digna de toda a sua ternura e do seu respeito. Partilho com ela os doces sentimentos que me prendem a vs, e peo-vos que aceiteis a expresso deles com bondade.

Tenho a honra de ser, etc. 13 de Agosto de 17* *.

CARTA XII CECLIA VOLANGES A MARQUESA DE MERTEUIL A Mam est incomodada, minha senhora; no pode sair hoje, e eu tenho de fazer-lhe companhia. Por esse motivo no terei a honra de vos acompanhar pera. Asseguro-vos que lamento bem mais no estar convosco do que o espetculo. Peo-vos que acrediteis. Tenho por vs tanta amizade! Tereis a bondade de dizer ao Cavaleiro Danceny que no tenho a coleo de que ele me falou, e que se ma puder trazer amanh me dar grande prazer. Se ele vier hoje, dir-lhe-o que no estamos; mas a Mam que no quer receber ningum. Espero que ela amanh esteja melhor. Tenho a honra de ser, etc. 13 de Agosto de 17 * *.

CARTA XIII A MARQUESA DE MERTEUIL A CECLIA DE VOLANGES Fiquei muito aborrecida, minha linda, por ser privada do prazer de a ver, bem como pelo motivo dessa privao. Espero que outra ocasio se encontrar. Desempenhar-me-ei da sua comisso junto do Cavaleiro Danceny, que certamente ficar muito aborrecido por saber sua Mam doente. Se ela amanh me quiser receber, irei fazer-lhe companhia. Faremos um ataque, ela e eu, ao Cavaleiro de Belleroche ao piquet, e, alm de lhe ganharmos o seu dinheiro, teremos, por acrscimo de prazer, o de a ouvirmos cantar com o seu amvel mestre; encarrego-me de lhe fazer o pedido. Se isso convier a sua Mam e a si, respondo por mim e pelos meus dois Cavaleiros. Adeus, minha linda; os meus cumprimentos minha querida Madame de Volanges. Beijo-a muito ternamente. 13 de Agosto de 17* *.

CARTA XIV

CECLIA VOLANGES A SOFIA CARNAY Ontem no te escrevi, minha querida Sofia; mas no foi o prazer o motivo, posso jurar-te. A Mam esteve doente, e no a deixei em todo o dia. noite, quando me retirei, no tive cabea para nada; e deitei-me muito depressa, para ter a certeza de que o dia tinha acabado. Nunca tinha passado nenhum to comprido. No que eu no goste da Mam, mas no sei o que era. Devia ir pera com Madame de Merteuil; o Cavaleiro Danceny devia l estar. Bem sabes que so as duas de quem eu mais gosto. Quando chegou a hora em que devia ir ter com eles, senti o corao apertado, contra minha vontade. Tudo me aborrecia, e chorei, chorei, sem conseguir impedilo. Felizmente a Mam estava deitada, e no podia ver-me. Estou bem certa de que o Cavaleiro Danceny tambm ficou aborrecido; mas deve ter-se distrado com o espetculo e com toda agente que o rodeava. Foi muito diferente. Por felicidade, a Mam est hoje melhor, e Madame de Merteuil vir com outra pessoa e com o Cavaleiro Danceny; mas chega sempre muito tarde, Madame de Merteuil; e quando se esteve tanto tempo sozinha, muito aborrecido. So apenas onze horas. verdade que tenho de tocar harpa; e depois levarei algum tempo a vestir-me e a arranjar-me, pois hoje quero estar muito bem penteada. Parece-me que madre Perptua tem razo e que uma pessoa se torna garrida quando vive em sociedade. Nunca tive tanto desejo de ser bonita como de h alguns dias para c, e acho que no o sou tanto como pensava; e depois, junto de mulheres que se pintam, fica-se a perder muito. Madame de Merteuil, por exemplo: vejo bem que todos os homens a acham mais bonita do que eu. No me importo muito, porque ela minha amiga. E alm disso ela afirma-me que o Cavaleiro Danceny me acha mais bonita do que ela. muito honesto da sua parte ter-mo dito! At parece que estava contente em mo dizer. A est uma coisa que eu no compreendo. porque ela gosta muito de mim! E ele!... Oh!, foi uma coisa que me deu muito prazer! Por isso, at,me parece que s de olhar para ele uma pessoa fica bonita. Eu estaria a olhar sempre para ele, se no tivesse receio de encontrar os seus olhos: pois, todas as vezes que tal me acontece, fico confusa, e parece que me d pena; mas isto nada quer dizer. Adeus, minha querida amiga. Vou-me pr diante do espelho. Continuo a gostar de ti como sempre. Paris, 14 de Agosto de 17 * *.

CARTA XV O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL

muito honesto da sua parte no me abandonar minha triste sorte. A vida que levo aqui realmente fatigante, pelo excesso de repouso que me proporciona e pela sua inspida uniformidade. Lendo a sua carta e os pormenores do seu dia encantador, estive vinte vezes tentado a pretextar um negcio, voar a seus ps e pedir-lhe, em meu favor, uma infidelidade ao seu Cavaleiro, que, no fim de tudo, no merece a felicidade de que desfruta. Sabe a Marquesa que me ps ciumento dele? Por que me fala da eterna separao? Renego esse juramento, pronunciado em delrio: no seramos dignos de o fazer, se fssemos obrigados a mant-lo. Ah! Que eu possa um dia vingar-me nos seus braos do cime involuntrio que me causou a felicidade do Cavaleiro! Estou indignado, confesso, s de pensar que esse homem, sem raciocinar, sem se dar ao menor trabalho, limitando-se a seguir totalmente o instinto do seu corao, encontra uma felicidade que eu no atingirei nunca. Oh! Hei-de perturb-la... Prometa-me que serei eu a perturb-la. A Marquesa mesmo no se sente humilhada? Tem trabalho para o enganar, e ele dos dois o mais feliz. Julga que o tem preso nas suas malhas! a Marquesa que o est nas dele. Enquanto vela pelos seus prazeres, ele dorme tranquilamente. Que faria de mais se fosse sua escrava? Saiba-o, minha bela amiga, enquanto se divide entre vrios, no sinto o mnimo cime: no vejo ento nos seus amantes seno os sucessores de Alexandre, incapazes de conservar, todos juntos, aquele imprio onde eu reinei s. Mas que se entregue inteiramente a um deles! Que exista outro homem to feliz como eu! No posso sofr-lo; no espere que eu o sofra. Ou readmita-me, ou pelo menos arranje outro; e no queira trair, por um capricho exclusivo, a amizade inviolvel que nos juramos mutuamente. o momento, sem dvida, de lhe confessar as minhas queixas amorosas. Bem v que me presto s suas idias, e que confesso os meus erros: Na verdade, se estar apaixonado no poder viver sem possuir o que se deseja, sacrificar a essa idia o tempo, os prazeres; a vida, ento certo que estou realmente apaixonado. No estou mais avanado do que estava. No teria mesmo mais nada a contar-lhe a esse respeito se no fosse um acontecimento que me d muito que pensar, e que no sei ainda se deve inspirar-me receio ou esperana. A Marquesa conhece o meu criado, tesouro de intriga e verdadeiro lacaio de comdia: e bem pode imaginar que entre as suas atribuies cabe a de se apaixonar pela criada de quarto, e a de perturbar as pessoas. O patife mais feliz do que eu: j conseguiu uma vitria. Acaba de descobrir que Madame de Tourvel encarregou uma criatura sua de tirar informaes sobre a minha conduta, e mesmo de me seguir nos meus passeios de manh, at onde possa, sem que

algum se aperceba. Que pretende esta mulher? Assim pois a mais modesta de todas ousa arriscar-se a um ponto que ns mal ousaramos permitir-nos! De que serve protestar?. . Antes de pensar em vingar-me desta astcia feminina, ocupemo-nos do meio de a pr ao nosso servio. At agora esses passeios de que se suspeita no tinham qualquer objetivo; preciso dar-lhes um. Isto merece toda a minha ateno, e vou findar para pensar nisso. Adeus minha bela amiga. Sempre do Castelo de. . ., 15 de Agosto de 17 * *.

CARTA XVI CECLIA VOLANGES A SOFIA CARNAY Ah, minha Sofia, tenho novidades a dar-te! Talvez no devesse dizer: mas preciso que eu fale nisto a algum; mais forte do que eu. Esse Cavaleiro Danceny... Estou to perturbada que no posso escrever. No sei por onde comear. Depois que te contei o lindo sero que passei com ele e com Madame de Merteuil junto da Mam, no voltei a falar-te a seu respeito: que eu no queria falar dele a ningum; mas era nele que eu pensava sempre. Depois, tinhase tornado to triste, mas to triste, to triste, que me fazia pena. E quando eu lhe perguntava porqu, dizia-me que no: mas eu bem via que sim. Enfim, ontem ainda estava mais triste que de costume. Isso no impediu que tivesse a gentileza de cantar comigo, como das outras vezes; mas, sempre que olhava para mim, eu sentia apertarse-me o corao. Depois de termos acabado de cantar, foi fechar a minha harpa no estojo; e, quando me trouxe a chave, pediu-me que tocasse ainda naquela noite, logo que me encontrasse s. Eu no desconfiei de nada; nem mesmo queria: mas ele pediu-me tanto, que lhe disse que sim. Ele tinha as suas razes. Efetivamente, quando me retirei para o meu quarto, e assim que a criada saiu, fui buscar a harpa. Encontrei nas cordas uma carta, simplesmente dobrada, e no lacrada; era dele! Ah! Se tu soubesses o que me diz! Depois de a ter lido senti tanto prazer que nem posso pensar noutra coisa. Reli-a quatro vezes seguidas, e depois fechei-a na minha secretria. J a sabia de cor; e depois de deitada repeti-a tantas vezes que nem pensava em dormir. Assim que fechei os olhos vi-o ao p de mim, dizendo-me tudo quanto eu acabara de ler. S adormeci muito tarde; e mal tinha acordado (era ainda muito cedo), fui logo buscar a carta para a tornar a ler minha vontade. Levei-a para a cama e depois beijei-a como se... Talvez seja mal feito beijar uma carta como esta, mas a verdade que no pude impedir-me de o fazer. Agora, minha querida amiga, sinto-me muito feliz, mas tambm muito embaraada; pois certo que no devo responder a

esta carta. Sei bem que isso no se deve fazer, no entanto ele pedemo; e se eu no responder, estou certa de que se vai pr ainda mais triste. uma desgraa para ele! Que me aconselhas tu? claro que a este respeito no sabes mais do que eu. Tenho muita vontade de falar nisto a Madame de Merteuil, que to minha amiga. Bem gostaria de o consolar; mas no quero fazer nada que seja mal feito. Recomendam-nos tanto que tenhamos bom corao! E depois probem-nos de seguir o que ele nos inspira, quando se trata de um homem! Isto tambm no justo. Por acaso um homem no o nosso prximo, como uma mulher ou mais ainda? Pois enfim, no temos ns um pai, tal como uma me, um irmo, tal como uma irm? Alm disso ainda fica o marido. Mas se eu fosse fazer qualquer coisa que no fosse bem feita, talvez o prprio senhor Danceny no ficasse com boa idia a meu respeito! Oh! Isso ento era o que me faltava. Prefiro que fique triste. E depois, enfim, estou sempre a tempo. L porque ele escreveu ontem, no sou obrigada a escrever-lhe hoje. Esta noite verei Madame de Merteuil, e se tiver coragem conto-lhe tudo. Se fizer s o que ela me disser, nada terei a censurarme. Talvez ela me diga que lhe responda poucochinho, para que ele no fique to triste! Oh! Estou num momento muito difcil. Adeus, minha boa amiga. Diz-me sempre o que pensas. 19 de Agosto de 17 * *.

*A carta em que se fala deste sero no foi encontrada. Devemos supor que o que Madame de Merteuil prope no seu bilhete, e de que tambm se fala na precedente carta de Ceclia Volanges.

CARTA XVII O CAVALEIRO DANCENY A CECLIA VOLANGES Antes de me entregar, Mademoiselle, quilo que chamo o prazer ou a necessidade de lhe escrever, comeo por lhe suplicar que me oua. Sinto que, para ousar declarar-lhe os meus sentimentos, tenho preciso de indulgncia; se apenas tivesse de justific-los, ela ser-me-ia intil. Que vou eu fazer, afinal, seno mostrar-lhe o meu ntimo? E que tenho eu a dizer-lhe que os meus olhares, o meu embarao, a minha conduta e mesmo o meu silncio lhe no tenham dito antes de mim? Por que se havia pois de zangar por um

sentimento que fez nascer? Emanado de si, sem dvida digno de lhe ser oferecido; se ardente como a minha alma, tambm puro como a sua. Seria um crime ter sabido apreciar a sua figura encantadora, os seus talentos sedutores, as suas graas fascinantes, essa comovente candura que acrescenta um preo inestimvel a qualidades j to preciosas? No, sem dvida. Mas, mesmo no se sendo culpado, pode ser-se infeliz. E a sorte que me espera, se se recusar a aceitar a minha homenagem. a primeira que o meu corao at hoje a ofereceu. Se a no tivesse visto eu seria ainda, no feliz, mas tranqilo. Vi-a; o repouso fugiu para longe de mim, e o meu corao est inquieto. Admira-se da minha tristeza; pergunta-me a causa. Algumas vezes julguei ver que ela a afligia. Ah! Diga uma palavra, e a minha felicidade ser obra sua. Mas, antes de a pronunciar, pense que uma palavra pode ser tambm o cmulo da minha tristeza. Seja pois o rbitro do meu destino. Por si vou ser eternamente feliz ou infeliz. Em que mos mais queridas poderia eu depositar um interesse maior? Acabarei, como comecei, por implorar a sua indulgncia. Pedi-lhe que me ouvisse; ousarei mais, pedir-lhe que me responda. Recus-lo, seria deixar-me crer que ficou ofendida, e o meu corao garantia de que em mim o respeito iguala o amor. P. S. - Poder servir-se, para me responder, do mesmo meio de que me sirvo para fazer chegar esta carta s suas mos; parece-me igualmente seguro e cmodo. 18 de Agosto de 17* *.

CARTA XVIII CECLIA VOLANGES A SOFIA CARNAY Pois qu, Sofia! Tu censuras de antemo o que eu vou fazer! Tinha j bastantes inquietaes; vieste tu agora aument-las. claro, dizes tu, que no devo responder. Falas disto com todo o vontade; mas a verdade que no sabes ao certo do que se trata: no ests aqui para ver. Estou certa de que se estivesses no meu lugar, farias como eu. Com certeza que, de maneira geral, no se deve responder; e tu bem viste, pela minha carta de ontem, que eu prpria no queria faz-lo. Mas que no creio que algum se tenha visto alguma vez na situao em que me encontro. E ainda ser obrigada a decidir-me sozinha! Madame de Merteuil, que eu contava ver ontem noite, no veio. Tudo conspira contra mim: foi ela quem teve a culpa de eu o conhecer. Foi quase sempre na presena dela que eu o vi, que lhe falei.

claro que no lhe quero mal por isso: mas o que certo que me abandona no momento mais difcil. Oh! Sou na verdade digna de lstima! Imagina que ontem ele veio como de costume. Eu estava to perturbada que nem ousei olh-lo. Ele no podia falar comigo, porque a Mam estava presente. Tinha quase a certeza de que ele se zangaria, quando visse que eu no lhe tinha escrito. Eu no sabia o que havia de fazer. Um momento depois perguntou-me se eu queria que fosse buscar a minha harpa. O corao batia-me to fortemente que tudo quanto pude fazer foi responder-lhe que sim. Quando ele voltou que foi pior. S o olhei por um momentinho. Ele nem sequer olhou para mim; mas tinha um aspecto que toda a gente diria que estava doente. Isto dava-me muita pena. Ps-se a afinar a harpa e, depois, quando ma trouxe, disse-me: "Ah! Mademoiselle!..." No disse mais do que essas duas palavras; mas disse-as num tal tom que fiquei completamente transtornada. Pus-me logo a tocar sem saber bem o que fazia. A Mam perguntou-me se no cantvamos. Ele desculpou-se dizendo que estava adoentado; e eu, que no tinha qualquer desculpa, tive de cantar. Desejei ento nunca ter tido voz. Escolhi de propsito uma msica que no sabia, pois estava certa de que no poderia cantar nada, e assim daria a perceber que havia qualquer coisa. Felizmente entrou uma visita; e, logo que ouvi o rudo de uma carruagem, deixei de cantar e pedi-lhe que fosse arrumar a harpa. Tive muito medo que ele se fosse embora ao mesmo tempo; mas voltou. Enquanto a Mam e a senhora que veio visit-la conversavam juntas, quis olhar para ele ainda um instante. Encontrei os seus olhos, e foi-me impossvel desviar os meus. Um momento depois vi as suas lgrimas correram, e foi obrigado a voltar-se para no ser visto. Nesse momento no tive mo em mim; senti que ia chorar tambm. Sa, e imediatamente escrevi a lpis, num pedao de papel: "No esteja to triste, peo-lhe; prometo que lhe responderei." Com certeza no podes dizer que haja algum mal nisto; e depois, foi mais forte do que eu. Pus o papel nas cordas da harpa; como estava a carta dele, e voltei sala. Sentia-me mais tranqila. J me tardava que a senhora se fosse embora. Felizmente; foi uma visita curta; deixou-nos pouco depois. Logo que ela saiu, eu disse que queria outra vez a minha harpa, e pedi-lhe que a fosse buscar. Vi bem, pelo seu aspecto, que no desconfiava de nada. Mas quando voltou, oh!, como ele estava contente! Ao pr a harpa na minha frente, colocou-se de maneira que a Mam no podia v-lo, e tomou-me a mo, que apertou... mas de uma maneira!... Foi apenas um momento; mas eu sou incapaz de te dizer o prazer que isso me deu. No entanto, retirei a mo; por isso no tenho nada a censurar-me. Agora, minha boa amiga, bem vs que no posso dispensarme de lhe escrever, visto que lho prometi. E depois, no quero que

volte a estar triste, pois eu sofreria mais do que ele. Se fosse alguma coisa de mal, eu no a faria. Mas que mal pode haver em escrever, principalmente quando para impedir que algum seja infeliz? O que me aborrece saber que no sou capaz de fazer uma carta bem feita. Mas ele h de perceber que a culpa no minha. E depois estou bem certa de que s por ser minha lhe dar prazer. Adeus, minha querida amiga. medida que se aproxima o momento de lhe escrever, o meu corao bate de uma maneira inconcebvel. No entanto preciso, visto que o prometi. Adeus. 20 de Agosto de 17* *.

CARTA XIX CECLIA VOLANGES AO CAVALEIRO DANCENY Estava ontem to triste, senhor, e isso causava-me tanta pena, que no resisti a prometer-lhe que responderia carta que me escreveu. No que eu sinta hoje menos que no o devia fazer; mas, como lhe prometi, no quero faltar minha palavra, e isso deve provar-lhe a amizade que sinto pelo senhor. Agora que j sabe, espero que no volte a pedir-me que lhe escreva mais. Espero tambm que no diga a ningum que lhe escrevi, porque com certeza me censuravam e isso podia causar-me muitos desgostos. Espero principalmente que no fique a fazer m idia de mim, o que seria o maior desgosto que eu podia ter. Posso dar-lhe a certeza de que no teria essa complacncia para outro que no fosse o senhor. Desejaria que tivesse a bondade de no estar triste como estava, o que me tiraria todo o prazer que sinto em o ver. Bem v que lhe falo com toda a sinceridade. S peo que a nossa amizade dure sempre; mas, suplico-lhe, no torne a escrever-me. Tenho a honra de ser, etc. 20 de Agosto de 17* *.

CARTA XX A MARQUESA DE MERTEUIL AO VISCONDE DE VALMONT Ah, tratante, faz-me festas porque receia a minha troa! Vamos, consinto em perdoar: escreve-me tantas loucuras, que realmente preciso que eu lhe desculpe a prudncia do seu procedimento em relao sua Presidente. No creio que o meu Cavaleiro usasse de tanta indulgncia como eu; seria homem para no aprovar a renovao do nosso contrato e para no achar nada

de divertido na sua louca idia. No entanto fez-me rir muito, e sentime verdadeiramente aborrecida de ser obrigada a rir tanto sozinha. Se o Visconde estivesse prximo, no sei onde me poderia ter levado essa alegria: mas tive tempo para refletir e armei-me de severidade. No o caso de recusar para sempre; mas vou adiando, e tenho razo. Poria nisso talvez vaidade, e, uma vez entrada no jogo, no se sabe onde se vai parar. Serei mulher para o prender de novo, para lhe fazer esquecer a sua Presidente; e se eu, ser indigno, o afastasse da virtude, veja que escndalo! Para evitar esse perigo, eis as minhas condies. Assim que tenha possudo a sua devota e me possa fornecer uma prova, venha, e serei sua. Mas no ignora que, nos negcios importantes, no se recebem provas seno por escrito. Por esta combinao, serei, por um lado, uma recompensa em vez de ser uma consolao, e essa idia agrada-me mais; por outro lado, o seu xito ser mais excitante. Venha pois, venha o mais cedo possvel trazerme o penhor do seu triunfo: semelhante aos nossos esforados cavaleiros, que vinham depor aos ps das suas damas os frutos brilhantes da vitria. Seriamente, estou curiosa de saber o que pode escrever uma mulher virtuosa depois de um tal momento, e que vu por nas suas palavras, depois de no ter deixado nenhum sobre a sua pessoa. Ao Visconde cabe avaliar se eu me coloco num preo muito alto; mas previno-o de que no farei qualquer abatimento... At l, meu caro Visconde, achar bem que eu fique fiel ao meu Cavaleiro e que me divirta a torn-lo feliz, apesar do pequeno desgosto que isso causa. Entretanto, se os meus costumes no fossem to regrados, creio que teria, neste momento, um rival perigoso; a pequena Volanges. Estou louca por essa pequena; uma verdadeira paixo. Ou eu me engano, ou ela vir a ser uma das nossas mulheres da moda. Vejo o seu coraozinho desenvolver-se, e um espetculo encantador. j com furor que ela ama o seu Danceny; mas por enquanto no percebe destas coisas. Quanto a ele, embora muito apaixonado, tem ainda a timidez da sua idade e no ousa ensinar-lhe demasiado. Os dois permanecem em adorao na minha frente. Principalmente a pequena tem grande desejo de me dizer o seu segredo; desde h alguns dias, em particular, vejo-a verdadeiramente sufocada por ele, e eu prestar-lhe-ia um grande servio se a ajudasse um pouco. Mas no esqueo que uma criana, e no quero comprometer-me. Danceny falou-me um pouco mais claramente, mas, para ele, o meu partido est tomado, no quero ouvi-lo. Quanto pequena, sinto-me muitas vezes tentada a fazer dela minha discpula; um servio que tenho vontade de prestar a Gercourt. Ele d-me tempo para isso, porque est na Crsega at ao ms de Outubro. Tenho em mente empregar todo esse tempo, de modo a podermos dar-lhe uma mulher inteiramente formada, em lugar da sua inocente pensionista. Na verdade, em que se baseia a insolente

confiana desse homem, que ousa dormir tranqilo, enquanto uma mulher, que dele tem motivos de queixa, no se vingou ainda? Creia, se a pequena estivesse aqui neste momento, nem eu sei o que lhe diria. Adeus, Visconde; boa noite e bom xito: mas, por Deus, veja se avana. Pense que, se no possuir essa mulher, as outras tero vergonha de terem sido possudas. 20 de Agosto de 17 * *.

CARTA XXI O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL Enfim, minha bela amiga, dei um passo em frente, mas um grande passo, e que, se no me conduziu at ao fim, me fez pelo menos conhecer que estou no bom caminho, e dissipou o receio em que estava de me ter perdido. Declarei enfim o meu amor; e embora me tenha respondido o silncio mais obstinado, obtive a resposta talvez menos equvoca e mais lisonjeira; mas no antecipemos os acontecimentos e voltemos mais atrs. A Marquesa recorda-se que os meus passos eram espiados. Pois bem! Decidi que esse meio escndalo servisse para a edificao do pblico, e aqui est o que eu fiz. Encarreguei o meu confidente de me encontrar, nos arredores, qualquer infeliz que tivesse necessidade de auxlio. Essa misso no era difcil de cumprir. Ontem de tarde, deume ele a notcia de que hoje, de manh, deviam ser penhorados os mveis de uma famlia inteira que no podia pagar a derrama. Assegurei-me de que nessa casa no havia nenhuma mulher ou rapariga cuja idade pudesse tornar suspeita a minha ao; e, logo que fiquei bem informado, declarei ceia o meu projeto de ir caa no dia seguinte. Devo aqui fazer justia minha Presidente: sem dvida teve ela alguns remorsos das ordens que deu; e, no tendo fora de vencer a sua curiosidade, teve pelo menos a de contrariar o meu desejo. Devia haver calor em excesso; arriscava-me a ficar doente; no apanharia nenhuma caa e fatigar-me-ia em vo; e, durante este dilogo, os seus olhos, que falavam talvez mais do que ela queria, davam-me a conhecer que ela desejava que eu tomasse por boas as suas ms razes. Como pode crer, eu no pensava em me render a tais razes, e resisti do mesmo modo a uma pequena diatribe contra a caa e os caadores, e a uma pequena nuvem de mau humor que obscureceu, durante todo o sero, esta figura celeste. Por um momento receei que as suas ordens fossem anuladas e que a sua delicadeza acabasse por me prejudicar.

Fiz um mau clculo sobre a curiosidade duma mulher; por isso me enganei. O meu criado tranquilizou-me nessa mesma noite, e deitei-me satisfeito. Ao romper do Sol, levanto-me e parto. Apenas a cinqenta passos do castelo, vejo que o meu espio me segue. Entro no terreno da caa e caminho atravs dos campos para a aldeia onde pretendia dirigir-me; sem outro prazer, na minha jornada, alm do de obrigar a correr o patife que me seguia, e que, no se atrevendo a deixar os caminhos, muitas vezes tinha de percorrer, a toda a velocidade, um espao triplo do meu. De tanto o pr prova, eu prprio ia cheio de calor, e sentei-me junto de uma rvore. Pois no teve ele a insolncia de deslizar para trs de uma moita, a menos de vinte passos de distncia, e de se sentar tambm? Por um momento estive tentado a mandar-lhe um tiro, que, embora fosse apenas de chumbo, lhe teria dado uma lio suficiente sobre os perigos da curiosidade. Felizmente para ele, tornei a lembrar-me de que estava sendo til e mesmo necessrio aos meus projetos; esta reflexo salvou-o. Entretanto chego aldeia; vejo que h movimento; avano; interrogo; contam-me o que se passa. Chamo o cobrador; e, cedendo minha generosa compaixo, pago nobremente cinqenta e seis libras, pelas quais cinco pessoas iam ser reduzidas indigncia e ao desespero. Depois desta ao to simples, no imagina o coro de bnos que se ergueu minha volta por parte dos assistentes! Que lgrimas de reconhecimento corriam dos olhos do velho chefe daquela famlia, e embelezavam a sua figura de patriarca, que um momento antes a contrao feroz do desespero tornava verdadeiramente hedionda! Eu examinava o espetculo e logo outro campons mais moo, conduzindo pela mo uma mulher e duas crianas, avana para mim a passos precipitados, dizendo-lhes: "Ajoelhemo-nos todos aos ps desta imagem de Deus!"; e no mesmo instante fui rodeado por toda a famlia, prosternada perante mim. Confessarei a minha fraqueza; os meus olhos tinham-se molhado de lgrimas, e senti em mim um movimento involuntrio, mas delicioso. Fiquei surpreendido do prazer que se experimenta ao fazer-se bem; e estive tentado a crer que aqueles a quem chamamos pessoas virtuosas no tm tanto mrito como geralmente se diz. Fosse como fosse, achei que era justo pagar quela pobre gente o prazer que acabava de me dar. Tinha comigo dez luses: deilhos. Aqui recomearam os agradecimentos, mas j no tinham o mesmo grau de pattico: o necessrio tinha produzido o grande, o verdadeiro efeito; o resto era apenas uma simples expresso de reconhecimento e de espanto por uma ddiva suprflua. Entretanto, no meio das bnos tagarelas daquela famlia, eu no deixava de me parecer um pouco com o heri de um drama, na cena do desenlace. Calcular decerto que entre a multido se mantinha a p firme o espio fiel. O meu fim fora atingido; separeime de todos, e voltei para o castelo. Deitados todos os clculos, felicito-me da minha inveno. Esta mulher vale bem, sem dvida, que eu me d a tais cuidados; eles sero um dia os meus ttulos junto dela; e tendo-lhe, de algum modo, pago assim de antemo, terei o

direito de dispor dela segundo a minha fantasia, sem ter de me censurar. Esquecia-me dizer-lhe que, para que tudo resultasse em meu favor, pedi quela boa gente que rogasse a Deus pelo bom xito dos meus projetos. A Marquesa ver se os seus rogos no foram j em parte atendidos... Mas anunciam-me que a ceia est servida e far-seia tarde para mandar esta carta se eu no a fechasse ao retirar-me. Assim, o resto no prximo nmero. Aborrece-me isso, pois o resto o melhor. Adeus, minha bela amiga. Acaba de me roubar um momento do prazer de v-la. 20 de Agosto de 17 * *.

CARTA XXII A PRESIDENTE DE TOURVEL A MADAME DE VOLANGES Ficareis sem dvida satisfeita, senhora, por conhecer um gesto do senhor de Valmont, que contrasta em muito, parece-me, com todos aqueles sob os quais vo-lo apresentaram. uma coisa to penosa pensar desfavoravelmente de quem quer que seja, to aborrecido encontrar apenas vcios naqueles que podem ter todas as qualidades necessrias para fazer amar a virtude! Enfim, gostais tanto de usar de indulgncia que dar-vos motivo para reparar um juzo demasiado rigoroso decerto servirvos. O senhor de Valmont parece-me ter as condies necessrias para esperar esse favor, direi quase justia; e vou dizer-vos porque o penso. Esta manh deu ele um daqueles passeios que poderiam levar a supor qualquer projeto da sua parte nos arredores, conforme a idia que vos veio; idia que me acuso de ter partilhado talvez com demasiada vivacidade. Felizmente para ele, e sobretudo felizmente para ns, pois isso nos salva de sermos injustas, um dos meus servidores tinha de ir para os mesmos lados que ele; e foi por a que a minha curiosidade repreensvel, mas feliz, foi satisfeita. Contou-nos o criado que o senhor de Valmont, tendo encontrado na aldeia de... uma infeliz famlia cujos mveis iam ser vendidos, por no poder pagar os impostos, no somente se apressara a solver a dvida daquela pobre gente, mas lhe dera at uma importncia em dinheiro bastante considervel. O meu criado foi testemunha daquela virtuosa ao, e mais me contou que os camponeses, conversando entre si e com ele, haviam dito que um criado que designaram, e que o meu julga ser o do senhor de Valmont, tinha ontem ido tirar informaes sobre quais os habitantes da aldeia que poderiam estar necessitados de auxlio. Se isto assim, se no unicamente uma compaixo passageira e que a ocasio determina, ento o projeto formado de fazer bem;

a solicitude da beneficncia; a mais bela virtude das mais belas almas. Mas, seja acaso ou projeto, sempre uma ao honesta e louvvel, e de que a simples narrao me enterneceu at s lgrimas. Acrescentarei ainda, e sempre por justia, que, quando lhe falei dessa ao, da qual ele no dizia palavra, comeou por se defender e mostrou atribuir-lhe to pouco valor que a sua modstia lhe redobrava o mrito. Dizei-me agora, minha respeitvel amiga, se o senhor de Valmont na verdade um libertino sem remisso? Se ele apenas isso e procede assim, que ficar para as pessoas honestas? Pois qu! Os maus partilhariam com os bons o prazer sagrado da beneficncia? Permitiria Deus que uma famlia virtuosa recebesse das mos dum celerado os socorros que teria de agradecer sua divina Providncia? E poderia ele sentir prazer em ouvir, de bocas puras, espalharem-se bnos sobre um rprobo? No. Prefiro acreditar que os erros, por durarem longo tempo, no so eternos; e no posso pensar que quem faz o bem seja inimigo da virtude. O senhor de Valmont talvez um exemplo mais do perigo de certas ligaes. Detenho-me nesta idia que me parece a melhor. Se, por um lado, ela pode servir a justific-lo no vosso esprito, por outro torna cada vez mais preciosa a terna amizade que me liga a vs por toda a vida. Tenho a honra de ser, etc. P. S. - Madame de Rosemonde e eu vamos, dentro de momentos, ver tambm a honesta e infeliz famlia, e juntar os nossos socorros tardios aos do senhor de Valmont. Lev-lo-emos conosco. Daremos ao menos a essa boa gente o prazer de tornar a ver o seu benfeitor; , creio eu, tudo o que ele deixou para ns fazermos. 20 de Agosto de 17 * *.

CARTA XXIII O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL Tnhamos ficado no meu regresso ao castelo: retomo a minha narrativa. Mal tive tempo de me arranjar um pouco, e regressei sala, onde a minha bela tecia um tapete, enquanto o cura lia a gazeta minha velha tia. Sentei-me junto do tear. Alguns olhares, mais doces ainda do que o costume, e quase acariciantes, depressa me fizeram adivinhar que o criado tinha j dado conta da sua misso. De fato, a minha amvel curiosa no pde guardar por muito tempo o segredo que me tinha roubado; e, sem receio de interromper um venervel pastor cuja prdica no entanto se parecia

com uma homilia, disse: "Tambm tenho as minhas novidades a dar"; e imediatamente contou a minha aventura com uma exatido que fazia honra inteligncia do seu historiador. A Marquesa pode imaginar como eu manifestei toda a minha modstia; mas quem poderia deter uma mulher que faz, sem o suspeitar, o elogio daquele que ama? Tomei pois o partido de a deixar continuar. Dir-se-ia que ela pregava o panegrico de um santo. Durante esse tempo eu observava, no sem esperana, tudo o que prometiam ao amor os seus olhares cheios de animao, os seus gestos agora mais livres, e principalmente aquele tom de voz que, pela sua alterao j sensvel, traa a emoo da sua alma. Logo que ela acabou de falar, Madame de Rosemonde disse-me: "Meu sobrinho, chegue ao p de mim; quero abra-lo." Imediatamente senti que a linda pregadora no poderia defender-se de ser abraada por sua voz. Quis fugir, entretanto; mais depressa a atra para os meus braos; e, longe de ter foras para resistir, apenas lhe restavam as bastantes para se manter de p. Quanto mais observo esta mulher, mais ela me parece desejvel. Apressando-se a voltar para junto do tear, simulou, para os presentes, recomear a sua tarefa; mas vi bem que a sua mo trmula no lhe permitia continula. Depois do jantar, as senhoras quiseram ir ver os infortunados que eu to piedosamente tinha socorrido; acompanhei-as. Poupo a minha boa amiga ao enfado desta segunda cena de reconhecimento e de louvores. O meu corao, impedido por uma recordao deliciosa, apressa o momento do regresso ao castelo. Pelo caminho, a minha bela Presidente, mais pensativa que de costume, no dizia palavra. Eu pensava em encontrar os meios de aproveitar o efeito que nela causara o acontecimento do dia, e por isso mantinha igualmente silncio. S Madame de Rosemonde falava e apenas obtinha de ns respostas curtas e raras. Era quase certo que a estvamos aborrecendo: era precisamente o que eu desejava, e fui bem sucedido. Ao descer da carruagem, minha tia dirigiu-se aos seus aposentos, e deixou-nos frente a frente, a minha bela e eu, numa sala mal iluminada: obscuridade doce, que torna ousados os amores tmidos. No tive o trabalho de orientar a conversao para o ponto em que desejava conduzi-la. O fervor da amvel pregadora serviume melhor do que no o teria feito a minha habilidade. "Quando se digno de fazer o bem", disse-me ela, detendo sobre mim o seu doce olhar, "como se pode passar a vida praticando o mal?" "No mereo", respondi-lhe, "nem esse elogio, nem essa censura; e no compreendo como, com a sua inteligncia, no me adivinhou ainda. Mesmo que a minha confiana viesse a prejudicarme, a senhora demasiado digna dela para que eu pudesse recusla. Encontrar a chave da minha conduta num temperamento infelizmente fcil em demasia. Rodeado de indivduos sem moral, dei-me a imitar os seus vcios; talvez tenha posto algum amorprprio em ultrapass-los. Da mesma forma, senti-me seduzido aqui pelo exemplo das virtudes, e, embora sem esperana de poder

igual-la, procurarei ao menos segui-la. Talvez o ato por que hoje me louva perdesse a seus olhos todo o valor, se conhecesse o seu verdadeiro motivo!" (A minha amiga bem v quanto eu estava perto da verdade.) "No a mim", continuei, "que esses infelizes devem o auxlio que lhes prestei. Onde julga ver uma ao meritria, procurei eu apenas um meio de agradar. Eu era apenas, foroso diz-lo, o frgil emissrio da divindade que adoro." (Aqui ela quis interromperme; mas eu no lhe dei tempo para tal.) "Neste momento mesmo", acrescentei, "o meu segredo escapa-me devido a uma fraqueza. Prometera a mim mesmo calar-me; era para mim uma felicidade oferecer s suas virtudes e aos seus encantos uma homenagem que ficaria ignorada para sempre; mas, incapaz de enganar, quando tenho debaixo dos olhos o exemplo da candura, no terei a censurarme uma culposa dissimulao. No creia que a ofendo por uma criminosa esperana. Serei infeliz, bem sei; mas os meus sofrimentos ser-me-o caros; provar-me-o o excesso do meu amor. a seus ps,