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1 RELAÇÕES DE TRABALHO E PATRIARCADO EM SANTA MARIA-RS NA DÉCADA DE 1950 NARA ZARI LEMOS BUDIÑO Universidade Federal de Santa Maria-RS [email protected] 1. Introdução Através da análise de processos judiciais trabalhistas encontramos relações de gênero que permeavam as relações de trabalho. Nesse sentido abordamos a violência nas relações de trabalho, porém com fulcro na violência física contra a mulher. Outra questão abordada é a visão do trabalho feminino como libertação e/ou necessidade econômica. Sempre com vistas àquilo que a sociedade da época pensava do trabalho feminino, com vistas a “duas mulheres” da época estudada. 2. Gênero ou patriarcado? Para alguns autores o conceito de gênero é aberto, pois quando se fala em violência, afirmam que ela se dá entre homens e mulheres independente do autor(a) da violência. Ou seja, quando um homem é vitimado por uma mulher há uma violência de gênero. Diante disso defendem que a violência contra a mulher advém do patriarcado, que sob o ponto de vista histórico vem da antiguidade (Roma). A sociedade na qual vivemos é patriarcal, logo o mais correto seria afirmar que a violência provém do patriarcado. Patriarcado que se consolidou ao logo da História. Ainda que não haja preocupação em falar sobre violência doméstica, convém referir que muitas vezes ela advém de um comportamento incentivado e consentido dentro do lar. Logo, os comportamentos de homens que enxergam a mulher como um ser inferior não inicia no ambiente de trabalho, mas é a reprodução das vivências do lar. A expressão violência doméstica costuma ser empregada como sinônimo de violência familiar e, não raramente, também de violência de gênero. Esta, teoricamente, engloba tanto a violência homens contra mulheres quanto a de mulheres contra homens, uma vez que o conceito de gênero é aberto, sendo este o grande argumento das críticas do conceito de patriarcado, que, como o

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RELAÇÕES DE TRABALHO E PATRIARCADO EM SANTA MARIA-RS NA

DÉCADA DE 1950

NARA ZARI LEMOS BUDIÑO

Universidade Federal de Santa Maria-RS

[email protected]

1. Introdução

Através da análise de processos judiciais trabalhistas encontramos relações de

gênero que permeavam as relações de trabalho. Nesse sentido abordamos a violência

nas relações de trabalho, porém com fulcro na violência física contra a mulher. Outra

questão abordada é a visão do trabalho feminino como libertação e/ou necessidade

econômica. Sempre com vistas àquilo que a sociedade da época pensava do trabalho

feminino, com vistas a “duas mulheres” da época estudada.

2. Gênero ou patriarcado?

Para alguns autores o conceito de gênero é aberto, pois quando se fala em

violência, afirmam que ela se dá entre homens e mulheres independente do autor(a) da

violência. Ou seja, quando um homem é vitimado por uma mulher há uma violência de

gênero. Diante disso defendem que a violência contra a mulher advém do patriarcado,

que sob o ponto de vista histórico vem da antiguidade (Roma).

A sociedade na qual vivemos é patriarcal, logo o mais correto seria afirmar que

a violência provém do patriarcado. Patriarcado que se consolidou ao logo da História.

Ainda que não haja preocupação em falar sobre violência doméstica, convém referir que

muitas vezes ela advém de um comportamento incentivado e consentido dentro do lar.

Logo, os comportamentos de homens que enxergam a mulher como um ser inferior não

inicia no ambiente de trabalho, mas é a reprodução das vivências do lar.

A expressão violência doméstica costuma ser empregada como sinônimo de

violência familiar e, não raramente, também de violência de gênero. Esta,

teoricamente, engloba tanto a violência homens contra mulheres quanto a de

mulheres contra homens, uma vez que o conceito de gênero é aberto, sendo

este o grande argumento das críticas do conceito de patriarcado, que, como o

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nome indica, é o regime da dominação-exploração das mulheres pelos homens.

(SAFFIOTI. 2007, p.44).

Não podemos deixar de concordar com a autora no que diz respeito ao conceito

de patriarcado e de como ele se estruturou ao longo da história. Porém, o termo

“gênero” representou um avanço nas pesquisas históricas, mormente naquelas que

diziam respeito à História das mulheres. Louise Tilly, citando Davis na “Conferência de

Berkshire sobre a História das Mulheres” afirmou que nascia ali uma nova forma de ver

a significação dos sexos no passado histórico. A utilização conceitual de “gênero”

passou a ser feita com uma abordagem sócio-histórica com vistas a um engajamento

político promovendo a igualdade dos gêneros e o acesso das mulheres à sua autonomia

individual e ao poder político e econômico (1994, p.42). Diante disso concluímos que

os dois termos tem sua importância, entretanto o termo “gênero” constituiu um avanço

para as mulheres. Além do que este é o termo mais utilizado nos trabalhos acadêmicos,

demonstrando que, de forma majoritária a palavra “gênero” foi acolhida pelos

historiadores.

3. Violencia moral nas relações de trabalho, imaginário e construção social de

identidades.

As mulheres trabalhadoras, especialmente quando vitimadas pela violência, na

época abordada (1950), eram invisíveis aos olhos da sociedade, e tal violência

justificada diante de uma sociedade patriarcal. A violência contra a mulher perpassa por

uma análise histórica, não só justificando o porquê da sua existência, mas também

pensando na conivência da sociedade como um todo. Ela advém da inferiorização de

uma classe social pela outra: a classe dominante sobre a classe dominada. Nesse

sentido, não se pode dizer que a luta das mulheres se dá apenas enquanto trabalhadoras,

dentro das relações de trabalho, mas dentro de um todo social, inclusive no lar. Sendo

assim, trata-se de uma luta de classes.

A sociedade é machista e sexista, por essa razão as ideologias machistas são e

foram lançadas desde sempre, sem que a sociedade percebesse tal coisa. Ideologia que

vemos presentes entre homens e mulheres, por isso poucas mulheres questionavam sua

inferioridade social. Havia, portanto, uma gama de mulheres machistas. O sexismo

refletia uma estrutura de poder, onde a distribuição era desigual (SAFFIOTI, 2007,

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p.35). Por tal motivo entendemos que a violência encontrada nos processos judiciais

advém de algo maior do que simples discussões entre colegas de trabalho e seus

empregadores. Tratava-se de uma ideologia que pairava sobre toda a sociedade da

época.

Ideologias e identidades culturais são construídas ao longo do tempo, onde há

um processo de assimilação/submissão de um sujeito a outro ou de uma comunidade

sobre outra. A comunidade “maior” assimila a “menor” que se apropria dos valores do

grupo dominantes (MARTINS, 2007, p.40). Talvez isso explique a razão de algumas

mulheres acharem “normal” viverem sob a chancela masculina, aceitando e

reproduzindo imagens construídas ao longo do tempo.

As imagens construídas pela sociedade sempre foram e são muito fortes, na

década de 1950 se construía uma imagem de mulher, que na verdade eram “duas

mulheres”. Aquela para a qual o trabalho era imposto pelas condições socioeconômicas

da época e, outra cujo destino seria o casamento tradicional. A imprensa da época,

representada nacionalmente pela revista “O Cruzeiro”, trazia anúncios de cosméticos

para moças casadoiras e mulheres casadas; matérias sobre como seria difícil manter o

casamento e a vida profissional, alertavam as jovens sobre os ‘impulsos” de seus

namorados, sem, porém, falar da sexualidade feminina (MARTINS, 2011, p. 156).

O surgimento de uma mulher mais independente e as ideias feministas, que

chegavam de outros recantos do mundo surgido com o fim da Segunda Guerra, parecia

aterrorizar a sociedade brasileira como um todo.

No Brasil estava sendo construído um novo ideal feminino. A mulher havia

conquistado o direito ao voto em 1934, e o viu de fato implementado a partir das

eleições de 1946, ela buscava ser, também, senhora do seu destino. Apesar da forte

estratégia da imprensa era o momento de pretender mais, e nesse sentido havia uma

mulher consciente de seus direitos. Era o momento de se emancipar, e o trabalho que

outrora era uma questão de sobrevivência tornou-se um fator de liberdade. Entretanto,

há quem defenda que as relações de trabalho nem sempre abriram as portas para a

emancipação feminina, existindo um efeito contrário: As relações de trabalho no

capitalismo são permeadas de ideias onde se defendia que ele abriria as portas para a

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emancipação feminina, porém para Saffioti era o contrário do que ocorria. Seguindo tal

entendimento Renata Gonçalves faz a seguinte referência:

Na contramão dos que entendiam que o capitalismo abria portas para a

emancipação feminina por meio da entrada das mulheres no mercado de

trabalho, Saffioti advertiu que era o contrário que ocorria. O modo de produção

capitalista alija força de trabalho do mercado, especialmente a feminina. Os caracteres raciais e de sexo operam como “ marcas sociais que permitem

hierarquizar, segundo uma escala de valores, os membros de uma sociedade

historicamente dada (p.60). Isto não significa que estes caracteres contém em si

a explicação da totalidade ou as determinações de um sistema. São subalternos.

E, como tais, “operam segundo as necessidades e conveniências do sistema

produtivo de bens e serviços, assumindo diferentes feições de acordo com a

fase de desenvolvimento do tipo estrutural da sociedade (p.60).

(GONÇALVES, 2013, p.17)

A mulher ao ingressar no mercado de trabalho o fazia por dois motivos:

complementar a renda familiar e/ou tornar-se mais independente, emancipar-se. Ocorre

que a visão da mulher reclusa no lar, cuidando da casa e dos filhos foi bastante

valorizada na década de 1950. Por tal motivo a mulher trabalhadora foi amplamente

marginalizada, e, de forma contrária, se deu uma valorização/idealização daquela que

ficava em casa. Vários grupos sociais como sindicalistas, industriais, assistentes sociais

contribuíram ativamente para a criação dessas duas imagens antagônicas da mulher

(WENSTEIN, 1995, p.143).

Existindo duas imagens femininas há margem para a violência, seja moral ou

física. Ora, se existia uma imagem “cultuada” daquela mulher que ficava em casa,

qualquer violência praticada contra a mulher trabalhadora era justificável e aceita pela

sociedade. Tratava-se de simbologia oriunda de uma sociedade patriarcal, símbolos

aceitos e difundidos pela imprensa da época, como na revista feminina “Revista

Querida”. Lá encontramos frases que condenavam o empoderamento da mulher. Sendo

assim, pode-se dizer que toda violência se justificava ou se justifica, no momento em

que o ‘outro” era ou é visto como “menor”.

Obviamente não se está dizendo que a mulher que não estava no mercado de

trabalho não sofria violência. A violência doméstica fez parte, e faz parte da vida da

mulher, e, naquele momento, não era diferente para aquelas que trabalhavam dentro do

lar. Porém, o que se afirma é que a violência, oriunda do patriarcado, deixava os lares e

se reproduzia no ambiente de trabalho. A violência que nos referimos tem sentido

amplo, logo nas relações de trabalho ela é de ordem moral, pois, neste trabalho

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utilizamos processos judiciais trabalhistas. A violência física foi encontrada contra as

trabalhadoras em processos criminais, porém eles serão analisados em um trabalho

futuro. Naquele momento não se pensava na questão da violência moral nas relações de

trabalho, este tema é novo para aqueles que operam o Direito e atualmente recebe o

nome de “assédio moral”. Porém, tentamos demonstrar que embora sem nomenclatura

própria, o assédio moral já ocorria nas relações de trabalho. Contra a mulher tratava-se

de uma violência de gênero, com origem no patriarcado.

A ideologia dominante estava presente sobre as questões referentes ao

patriarcado, e a forma que as relações de gênero eram colocadas para a sociedade da

época. Porém, a história das mulheres não deve ser vista apenas como uma história de

opressão seja qual for o recorte escolhido pelo historiador. Nesse sentido não

concordamos com Saffioti, pois a conscientização da mulher como sujeito de direitos a

torna protagonista de sua história. Embora o capitalismo tenha trazido para a mulher um

acúmulo de tarefas diárias, não podemos vê-las, tão somente, como um ser oprimido.

Historiadores como Thompson e Hobsbawn se preocuparam em analisar as

relações sociais de baixo para cima, abandonando o enfoque opressor-oprimido, e

pensando os sujeitos da história. Nesse sentido a história das mulheres, sua luta e suas

conquistas devem ser vistas além da opressão, pura e simples, mas a partir das

estratégias pensadas para vencer a opressão (MARTINS, 1997/98, p.141). Tratava-se da

palavra, da luta e das ações das mulheres para viverem sob os sistemas opressores. A

Historiadora citada entende que o trabalho de Thompson foi bastante importante para

entender a questão do trabalho da mulher e sua importância no processo de formação da

classe operária.

O trabalho histórico-conceitual de Thompson deu suporte teórico para

os estudos sobre a participação política das mulheres no processo de formação

da classe operária, assim como contribuiu para o alargamento da noção de

política, com seus estudos sobre a racionalidade das ações coletivas e de

práticas culturais, que até então eram consideradas reações instintivas ou

exemplos do atraso e da barbárie das classes baixas- como os motins de

subsistência e venda de esposas, por exemplo. As historiadoras marxistas viam

no trabalho de Thompson um grande aliado para o entendimento das

experiências femininas na história, bem como um efetivo aporte teórico para analisar os sistemas de exploração sem cair no determinismo econômico (idem,

p.146).

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Quando se escolheu abordar o trabalho feminino, o patriarcado e a violência

houve o seguinte pensamento: nem todas as mulheres que trabalhavam o faziam apenas

por necessidade material. Afinal o mundo não se move apenas por questões econômicas,

existe a consciência do ser humano, e, sobretudo o direito de ser protagonista da sua

história.

Na década de 1950 o trabalho fora do lar, apesar da manipulação midiática da

época, também era um fator de liberdade, de determinação. Era um desejo que ia além

das necessidades econômicas. Perrot ao analisar o movimento operário e as greves

femininas na França do século XIX comprovou que a mulheres estavam presentes nas

greves buscando direitos, apesar de serem taxadas de loucas ou devassas pela sociedade

de época (PERROT, p.164). Ora, embora Perrot tenha seu trabalho em outro recorte de

tempo, pode-se comparar a luta das mulheres no que tange a busca por direitos e a luta

por reconhecimento como sujeitos da sua história. Nesse sentido abordaremos duas, de

muitas histórias, que encontramos nos processos judiciais trabalhistas em Santa Maria-

RS da década de 1950.

4. O cantar e a opressão!

Ela era jovem, tinha dezenove anos. Trabalhava como chapeleira, no mesmo

lugar desde 1953, e gostava de cantar! Cantava enquanto se debruçava sobre a máquina

de costura da confecção na qual trabalhava. Isso de nada atrapalhava o seu trabalho,

pois estava com as mãos livres e estas continuavam a trabalhar, a produzir mais e mais

chapéus. Nesse processo, que tramitou entre os anos de 1958/1959, vemos uma jovem,

que trabalhava por um parco salário, reprimida por um “chefe” que lhe impunha o

silêncio, impedindo-a de cantar. Ora, mas se ela usava as mãos para trabalhar, por que

não poderia cantar? O chefe da sua secção era implacável e lhe deu duas suspensões

sendo a primeira por quinze dias e a outra por trinta dias sem direito à remuneração.

Retornou ao trabalho após a segunda suspensão e foi demitida sem nada receber,

ingressou na Justiça do Trabalho, no mesmo ano.

A reclamante alegava que não havia justificativa para a sua demissão, porém

durante a instrução processual sua superior imediata alegou que após retornar da

primeira suspensão a jovem passou a chamá-la de “velha”. Afirmou que a moça

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cantarolava: “a velha não quer que eu cante”. Disse ainda que a reclamante teria

ficado insuportável, pois além de cantar e, cantava muito mal, lhe ofendia, chamando-a

de velha. A decisão da Justiça do Trabalho foi contrária à reclamante, mantida a

demissão e os dias suspensos não lhe foram pagos. O juiz entendeu que ela dera causa à

demissão, forte no art. 482, h, da CLT, pois a empregada havia infringido o artigo já

mencionado, agindo com indisciplina ou insubordinação. Em 2ª instância teve ganho de

causa e recebeu pelos dias suspensos, férias vencidas e salários impagos.

Ao analisar a fonte verificamos que a indisciplina ou insubordinação se deram

após a proibição de cantar enquanto trabalhava. Claro que uma pessoa jovem iria se

rebelar contra a atitude do patrão e de sua superior. Mas, sobretudo devemos lembrar

que independente de ser jovem, havia na reclamante a consciência de seus direitos, uma

consciência de classe. Ela não só se via trabalhadora, mas sentia-se dessa forma. A

reclamante sabia que não podia ser tratada assim, e por isso afrontou sua superior

imediata.

A verdade é que houve uma sucessão de erros por parte de todos, que culminou

com a demissão da jovem. Salientando que o comportamento da jovem foi de reação, ou

seja, reagir contra aqueles que a oprimiam. Porém ao rebelar-se no trabalho, talvez de

forma incorreta, ofendendo sua superior imediata, o fez isentando o empregador de

culpa. Expressando toda a sua indignação contra outra trabalhadora, tão subordinada

quanto ela. Nesse sentido se depreende que as relações patriarcais estavam presentes de

forma a dominar, simbolicamente, a sociedade da época.

Os fatos devem, portanto, receber uma análise mais pontual, senão vejamos: A

primeira suspensão se deu pelo fato dela cantar, e a segunda por ofender sua superior.

Mas, por que não deixar a moça cantar? Cantar durante o trabalho não poderia ser visto

como indisciplina. Suspender o empregado era uma forma de “preparar” uma futura

demissão por justa causa ou fazer com que o empregado se adequasse às normas

impostas pelo patrão. No caso em tela o objetivo precípuo foi fazê-la mudar de atitude.

Para tanto foi tomada contra ela uma atitude disciplinadora para não dizer repressora

e/ou punitiva.

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A demissão é uma forma de punir, realmente tem o caráter punitivo. Resta saber

se a moça foi demitida por que cantava ou pela afronta aos demais, que, no

entendimento do patrão, merecia uma punição. Lembrando, ainda que a jovem foi

suspensa sem perceber o salário, ora essa é a forma mais vil de tratar o trabalhador,

pois, lhe tiram do trabalho e lhe retiram a forma de sustento. Infelizmente não se pode

afirmar com base na fonte pesquisada qual era a situação dessa jovem, ou seja, se era a

única responsável pelo sustento de seu lar ou não. Porém o caráter punitivo da demissão

e o fato da norma legal ser exemplificativa, dava e dá margens para várias

interpretações.

As normas contidas na CLT, em seu artigo 482, tinham por objetivo moldar o

trabalhador, determinando como ele deveria se comportar no ambiente de trabalho.

Gize-se que o texto legal tem caráter exemplificativo, afinal quando a lei usa a

expressão “ato de indisciplina ou insubordinação”, quem determina quais atos se

enquadram nesse artigo de lei é o empregador, ou seja, ele poderia desconsiderar a

cantoria, mas não o fez. Esses enunciados legais eram vistos de forma mais ou menos

fortes conforme as tensões sociais do tempo no qual eram aplicados pelos juízes. O

objetivo era moldar um trabalhador padrão, um “bom trabalhador” (SCHMIDT, 2013,

p. 174).

Aqui vemos como as relações de gênero tem importância para a história da

Justiça do Trabalho, pois vemos um homem determinando a uma mulher operária, o que

seria bom ou não para o trabalho. Lembrando que em nenhum momento foi feito

referência à falta de rendimento no trabalho da reclamante, apenas alegavam que era um

ato de insubordinação. Tratava-se, portanto, de uma forma de repressão.

A mulher sempre sofreu as condições impostas por uma sociedade patriarcal, ou

seja, o modo de ser, viver ou pensar imposto pelos homens, considerados seres

superiores desde sempre. A violência era comum, vista como algo justificável, e,

infelizmente ainda hoje nos deparamos com atitudes similares, mas nos anos de 1950

poucas mulheres tinham coragem de se levantar contra isso. Fazemos tal afirmação com

base no número de processos trabalhistas movidos por mulheres, que são inferiores

àqueles movidos por homens.

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A moça que gostava de cantar, embora tenha buscado seus direitos e isso deve

ser visto como consciência de classe, não se rebelou contra aquele que o oprimia, ou

seja, seu “chefe” (palavra utilizada na fonte pesquisada). Promoveu, sim, um ato de

rebeldia, porém escolheu outra mulher, silenciando com relação ao chefe de secção, que

era um homem. A reclamante se negou a resiliência, mas atacou outra mulher. Como se

pode ver, as relações de patriarcado estão inseridas em nossa sociedade. O patriarcado

tem seu apoio nas relações familiares onde um homem é hierarquicamente superior a

qualquer mulher da casa, e tais relações de subordinação ultrapassam as relações

domésticas e contaminam toda a sociedade. Trata-se de um tipo de relação que invade

todos os espaços da sociedade (SAFFIOTI, 2007, p. 40).

Quando analisamos o processo da “moça que cantava” verificamos que as

relações de poder iam além da luta de classes, por excelência, ou seja, da relação

patrão/empregado. Como já dissemos existia algo muito maior, qual seja a subordinação

que era imposta à mulher em relação à figura masculina. Relação que ultrapassava

aquelas impostas dentro do lar, da casa das pessoas, por que homens, geralmente,

detinham a maioria dos postos de comando. Como já citamos relações de natureza

patriarcal contaminavam a sociedade como um todo. No mais verificamos, ainda, que as

relações opressão eram incentivadas pelas outras mulheres, e pela própria reclamante,

pois ao afrontar alguém superior a ela o fez contra outra mulher.

Podemos dizer ainda que ingressar com o processo foi um ato de coragem e

rebeldia por parte da jovem. Processos vistos sob o ponto de vista da História devem ser

analisados segundo o momento vivido pela sociedade, e o Brasil havia saído de um

período ditatorial, a mulher teve o direito ao voto efetivado, enfim era a busca pela

cidadania, um exercício de cidadania.

5. A mulher e o trabalho, uma relação contraditória: As duas mulheres da época.

Durante a década de 1950 surgem publicações com reportagens direcionadas ao

público feminino, todos girando em torno da mulher esposa/mãe/dona de casa. A

sociedade se esforçava para reforçar tal padrão, incentivando a mulher a ler, aprender a

tocar piano, bordado, casar-se e ser uma ótima esposa. De outra banda as mulheres das

classes mais pobres eram incentivadas a trabalhar devido à sua condição

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socioeconômica, muitas delas eram as únicas responsáveis pela manutenção dos filhos.

Sendo assim temos duas mulheres em nossa sociedade (GOMINHO, 2009).

Quando dizemos que há uma relação contraditória entre a mulher e trabalho nos

referimos ao entendimento antagônico sobre o tema. A sociedade ao mesmo tempo em

que incentivava o trabalho da mulher, também o reprimia com os conceitos ou

preconceitos da época.

No caso de São Paulo, entre as décadas de 1910 e 1950, se pode observar uma

diminuição de papéis trabalhistas aceitáveis com relação às mulheres,

ativamente promovida por representantes de diversos grupos, a tal ponto que só

permanece legítimo o papel de "dona de casa". Ainda que os empregadores,

dirigentes sindicais, educadores e assistentes sociais, não sejam aqueles que

inventaram a categoria "mulher trabalhadora", é evidente que contribuíram

ativamente para a criação de duas imagens antagônicas da mulher: a imagem

marginalizada da mulher que trabalha por dinheiro e a idealização da dona de

casa. Os industriais e particularmente os educadores desempenharam um papel

ativo na formulação dos programas e regulamentações que serviram para

estabelecer definitivamente os papéis adequados à mulher. (WEINSTEIN, 1995, P.144)

Exemplos como esse também foram encontrados nos processos pesquisados,

senão vejamos: A bordadeira e a mulher “bem casada”. A bordadeira foi admitida, pela

mulher “bem casada” em fevereiro de 1953, trabalhava em domicilio e por produção,

em abril de 1954 foi demitida sem receber indenização e o salário mensal. Ingressou

com o pedido na Justiça do Trabalho de Santa Maria no mesmo ano. Após a primeira

audiência a reclamante, depois de ouvir a defesa proferida pelo Advogado da reclamada

desistiu do processo, não esclarecendo o motivo.

O processo não foi adiante, porém dele se pode extrair a visão de parte da

sociedade sobre a mulher e o trabalho. O advogado da reclamada disse que a sua cliente

era esposa de um renomado médico da cidade, por tal motivo “a sua função era no

recesso do lar” e, se fosse trabalhar como comerciante seria imprescindível a

autorização do marido. Realmente a autorização do marido era requisito legal para o

exercício do comércio, porém a forma como foi colocado nos autos nos leva a crer que

o trabalho fora do lar era motivo de desonra para mulheres “bem casadas”. Cruzando as

fontes pesquisadas fica claro que o trabalho feminino era visto de forma ambígua.

Ao se referir às bordadeiras o advogado afirma que todas eram tarefeiras

desqualificando a mulher trabalhadora e a relação de trabalho, tornando-a ocasional de

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forma a descaracterizar a existência de vínculo trabalhista. A defesa apresentada vai

além das questões jurídicas, refletindo o pensamento da elite sobre o trabalho e as

mulheres. No caso analisado o exercício de uma profissão por parte da “mulher bem

casada” parece ser ofensivo a ela, e à sua condição na sociedade. O trabalho para a

“mulher bem casada” era motivo de desonra, e a venda de artigos bordados era visto

como um passatempo, jamais como um trabalho.

Com relação à tese apresentada pela defesa da reclamada no que tange a

autorização do marido para o trabalho pode-se dizer o seguinte: O Advogado da

empregadora ao afirmar que ela necessitaria da autorização marital para trabalhar ou

exercer o comércio tinha a sua tese amparada na legislação da época. Porém, a fonte

analisada nos leva a crer que a reclamada comercializava peças bordadas, e contratava

bordadeiras para a execução de tal trabalho. Ou seja, embora “bem casada” trabalhava e

pode-se arriscar a dizer que talvez o fizesse para exercitar a “liberdade” e não ser

dependente do marido. Ou movida pelas ideias feministas advindas do pós-guerra. Mas

havia a legislação que minorava a mulher, especialmente a “mulher casada”. O artigo 6º

do Código Civil de 1916 declarava a mulher relativamente incapaz para certos atos da

vida civil ou a maneira de exercê-los. Nesse sentido a mulher casada tinha o mesmo

status legal do maior de 16 anos e menor de 21 anos, tal aberração jurídica foi corrigida

somente em 1962 com a Lei n° 4121 de 27 de agosto daquele ano (REQUIÃO, 2005.p.

86). Ora, diante disso se depreende que as questões de gênero permeavam as relações

sociais como um todo e a legislação da época corrobora tal entendimento.

O exercício de uma profissão pela mulher casada passava pela autorização

marital, e no caso em tela fica claro que este era o pensamento da época. Ou seja,

embora exercesse função remunerada, ela o fazia dentro do lar sem prejuízo das suas

atribuições de esposa de um “renomado médico da cidade”, como é salientado pela

defesa. Não se pode afirmar, mas pode-se pensar que o comércio de bordado era uma

forma de buscar liberdade!

6. Conclusão

As relações trabalhistas, quando envolviam mulheres, estão permeadas pelas

ideias e ideais da sociedade patriarcal. O tratamento dado aos trabalhadores, mesmo

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após o advento da positivação da legislação trabalhista, sempre foi pautada no

autoritarismo. Os empregadores ao exercerem a sua autoridade o faziam com

autoritarismo, o texto legal dava margem para tanto. Isso ficou claro no processo da

moça que cantava, pois o seu canto em nada atrapalhava o trabalho, mas de certa forma

demonstrava liberdade por parte dela. A irritação do chefe se pautava na liberdade de

agir e de ser daquela moça.

A sociedade da época não via o trabalho da mulher com bons olhos, tanto que

aquelas que tinham boa situação financeira não trabalhavam fora do lar. Afinal o

trabalho masculinizava a mulher!

Não se pode pensar que as mulheres foram vítimas passivas, pois de alguma

forma tentaram subverter e modificar as estruturas patriarcais. Exercendo funções

decorrentes da vida doméstica ou partindo para a luta operária.

Na década de 1950 a Justiça do Trabalho era “jovem”, não existindo, ainda, um

repertório de jurisprudência que fundamentasse os julgados. Ora, o patriarcado era

antigo, velho e desbotado, e a Justiça do Trabalho jovem e por vezes inexperiente. Uma

Justiça que era “feita” por homens, aplicando uma lei feita por homens. O velho

patriarcado permeava as relações sociais, naturalizando as atitudes repressoras contra a

mulher, por isso trouxemos duas situações: o trabalho como necessidade, incentivado,

porém somente justificado para a mulher das classes baixas, bem como a visão do

trabalho para aquelas das classes sociais abastadas. As mulheres de classe média ou alta

tinham o trabalho como algo que masculinizava, apenas isso. As tarefas domésticas

eram sublimes, cuidar do lar e dos filhos pequenos era nobre. Esse era o imaginário da

época, que permeava a consciência da sociedade e as decisões judiciais nada mais são

que um reflexo do seu tempo. Ao final lembramos, ainda, que não havia nas fontes

pesquisadas nenhuma mulher Advogada ou que exercesse função no Poder Judiciário,

juízes, escrivães e membros do Ministério Público eram homens, bem como os

dirigentes e proprietários das empresas.

7. Fontes primárias

Fundo da Justiça do Trabalho de Santa Maria-RS: Br MJTSM RS FPJ 73; Br MJTSM

RS FPJ 70.

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8. Referências bibliográficas

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