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RELAÇÕES ENTRE CRISTÃOS E MUÇULMANOS NA HISTORIA RODERICI Alinde Gadelha Kühner PEM-PPGHC-UFRJ [email protected] O presente artigo tem como finalidade apresentar considerações parciais acerca da análise de uma narrativa do final do século XII: a Historia Roderici. O texto latino em prosa, escrito em Nájera, 1 tem como protagonista o cavaleiro castelhano nascido em torno de Burgo - Rodrigo Díaz de Vivar, posteriormente conhecido como El Cid. No texto, examinarei brevemente como as relações entre muçulmanos e cristãos foram representadas na narrativa destacada estudo que faz parte da minha pesquisa de doutorado. Rodrigo Díaz de Vivar viveu no século XI, tendo nascido perto de Burgos (Castela), durante o reinado de Fernando I. Não há dados precisos para a totalidade da sua história, o que torna os estudos de obras sobre sua vida alvos de intensos debates. Neste texto, é apresentada a sua biografia de acordo com a Historia Roderici. Posteriormente conhecido como El Cid, 2 começou sua trajetória como vassalo de Sancho II - filho de Fernando I. Pouco depois da morte do rei, Rodrigo jura lealdade a Afonso VI, seu irmão. Algum tempo de serviço depois, é desterrado pelo monarca como resultado de intrigas da corte. Neste primeiro período de exílio, serviu como mercenário ao rei muçulmano da taifa de Saragoça, Mu´tamin. Segundo a Historia, alcançou grande destaque no reino. Serve ao rei até a sua morte, e depois serve ao seu filho, Musta´in, por alguns meses. Volta a Castela e é recebido com honras por Afonso VI. Serve fielmente ao rei castelhano e novamente é alvo de intrigas da corte. É novamente exilado e não volta mais a Castela. Ao longo desse período, teria realizado pilhagens em castelos muçulmanos - sempre respeitando as populações locais após o domínio. A última de suas conquistas é a cidade de Valencia - consegue manter a defesa da cidade até o fim da sua vida. 1 Nájera situa-se na região de La Rioja, norte da Península Ibérica. 2 A Historia não usa este epíteto.

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RELAÇÕES ENTRE CRISTÃOS E MUÇULMANOS NA HISTORIA RODERICI

Alinde Gadelha Kühner

PEM-PPGHC-UFRJ

[email protected]

O presente artigo tem como finalidade apresentar considerações parciais acerca

da análise de uma narrativa do final do século XII: a Historia Roderici. O texto latino em

prosa, escrito em Nájera,1 tem como protagonista o cavaleiro castelhano – nascido em

torno de Burgo - Rodrigo Díaz de Vivar, posteriormente conhecido como El Cid. No

texto, examinarei brevemente como as relações entre muçulmanos e cristãos foram

representadas na narrativa destacada – estudo que faz parte da minha pesquisa de

doutorado.

Rodrigo Díaz de Vivar viveu no século XI, tendo nascido perto de Burgos

(Castela), durante o reinado de Fernando I. Não há dados precisos para a totalidade da

sua história, o que torna os estudos de obras sobre sua vida alvos de intensos debates.

Neste texto, é apresentada a sua biografia de acordo com a Historia Roderici.

Posteriormente conhecido como El Cid,2 começou sua trajetória como vassalo de Sancho

II - filho de Fernando I. Pouco depois da morte do rei, Rodrigo jura lealdade a Afonso

VI, seu irmão. Algum tempo de serviço depois, é desterrado pelo monarca como resultado

de intrigas da corte. Neste primeiro período de exílio, serviu como mercenário ao rei

muçulmano da taifa de Saragoça, Mu´tamin. Segundo a Historia, alcançou grande

destaque no reino. Serve ao rei até a sua morte, e depois serve ao seu filho, Musta´in, por

alguns meses. Volta a Castela e é recebido com honras por Afonso VI. Serve fielmente

ao rei castelhano e novamente é alvo de intrigas da corte. É novamente exilado e não volta

mais a Castela. Ao longo desse período, teria realizado pilhagens em castelos

muçulmanos - sempre respeitando as populações locais após o domínio. A última de suas

conquistas é a cidade de Valencia - consegue manter a defesa da cidade até o fim da sua

vida.

1 Nájera situa-se na região de La Rioja, norte da Península Ibérica. 2 A Historia não usa este epíteto.

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A Historia Roderici é um texto latino anônimo em prosa composto no final do

século XII, possivelmente na região de La Rioja. O manuscrito original foi perdido, e o

texto foi transmitido em dois documentos, um do século XIII e outro do século XV.3 Nos

manuscritos medievais, a titulação é Gesta Roderici Campidoctor. Ramón Menéndez

Pidal, um dos principais editores do texto, porém, usou esta nominação - Historia

Roderici. Sendo um clássico entre os especialistas em literatura medieval castelhana, o

título usado em sua edição passou a ser o mais utilizado para se referir ao texto. Sendo

assim, foi adotada a denominação de Menéndez Pidal.

Para o estudo dos texto, usamos a técnica da "análise da narrativa", conforme

definido por Andreia Frazão:

Esta técnica é indicada para textos narrativos e/ou descritivos. Nela, busca-se identificar

e analisar os diversos elementos que configuram a narrativa e que a tornam um todo de

sentido, tais como o gênero literário (épico, drama, lírico) e a forma literária (romance,

novela, conto, crônica) em que foi composta, o enredo, as personagens e sua

caracterização, a presença ou ausência de um narrador e a sua forma de inserção a

narração, se há indicações temporais e/ou espaciais etc. (SILVA, 2002, p.198)

Neste sentido, identificaremos e analisaremos os elementos constitutivos da

narrativa: gênero, enredo, personagens, adjetivações e subjetivações. O exame do enredo

e os personagens, de como se relacionam entre si e suas caracterizações, é fundamental

para a compreensão de como são representadas as relações entre muçulmanos e cristãos

nas obras selecionadas. Será também utilizada a técnica de análise lexicográfica, com a

finalidade de compreender quais os termos usados para denominar os muçulmanos, ver

quais são e os contextos de seus usos para que se compreenda como foram representados.

Metodologicamente, como se percebe, a análise do discurso se fará presente

através destas duas técnicas, e elas serão utilizadas como forma de se chegar à análise,

que se insere teoricamente na História Cultural. Dentro deste campo, o trabalho se dará

tendo como aporte teórico a noção de representação, tal como formulada por Roger

Chartier: “classificações, divisões e delimitações que organizam a apreensão do mundo

3 Manuscrito I, encontra-se atualmente na Biblioteca da Real Academia de la Historia. “I” por

originalmente ter feito parte da Biblioteca del Convento de San Isidoro de León. Data do final do século

XIII. O segundo manuscrito, S, também encontra-se atualmente na Biblioteca da Real Academia de la

Historia. Descoberto em um tomo da Colección Salazar, é datado de finais do século XV. Esses dois

manuscritos não têm relação entre si.

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social como categorias fundamentais de percepção e de apreciação do real” (CHARTIER,

1988, p. 17).

Segundo o autor, essas apreensões do social de forma alguma podem ser

consideradas neutras: elas produzem estratégias e práticas (sociais, escolares e

discursivas), que tendem a impor uma autoridade à custa de interesses alheios ao grupo

produtor dessas representações. Assim, podem justificar um projeto reformador ou

legitimar, para os próprios produtores das representações, as suas escolhas e condutas.

Neste caso em particular, não é um projeto reformador a ser legitimado, mas autenticar

as escolhas e condutas cristãs face aos muçulmanos e, em alguns casos, mesmo diante de

outros cristãos.

O estudo das representações é fundamental para compreender os mecanismos

pelos quais um grupo impõe, ou tenta impor, a sua concepção de mundo social, os seus

valores, o seu domínio – de forma a interferir na organização social, de acordo com seus

interesses. Dentre essa concepção do mundo social, está a questão identitária – a

construção da própria identidade e a inteligibilidade do outro (CHARTIER, 1988, p. 17).

O presente estudo relaciona-se a este conceito por ter como objetivo perceber

como as representações das relações entre muçulmanos e cristãos na obra destacada

relacionam-se aos interesses cristãos de hegemonia sobre a Península Ibérica e a sua

forma de tornar o outro a quem se quer subordinar – o muçulmano – inteligível. Almeja-

se compreender quais são os sistemas de classificação e apreensão do real presentes na

obra, e como essas representações podem ser compreendidas no sentido de justificar os

anseios cristãos.

Para que essa compreensão seja possível, foram elaborados três eixos de análise.

O primeiro diz respeito às relações inter-religiosas: como foram representados os

encontros entre pessoas de religiões diferentes. O segundo refere-se às relações intra-

religiosas, referindo às relações entre pessoas de mesma religião, dado que nem sempre

são harmoniosas. Por último, como o personagem Rodrigo o Campeador insere-se na

dinâmica política e religiosa da Península Ibérica - suas relações com cristãos e com

muçulmanos.

Para melhor desenvolver a análise dentro destes eixos, está sendo elaborada uma

tipologia das representações das relações inter e intra-religiosas tais como aparecem ao

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longo do enredo. Até agora, foram tipificadas dezesseis desses tipos de relação, sendo dez

deles inter-religiosas. Dado o reduzido espaço deste artigo, cinco formas desses encontros

serão brevemente apresentadas, sendo uma análise inicial do texto destacado. As cinco

são: disputas entre entre cristãos e muçulmanos, disputas intra-religiosas com aliados de

outra religião, disputas entre cristãos, alianças entre cristãos e muçulmanos contra um

cristão, relações de tributação entre cristãos e muçulmanos (parias, pagas aos cristãos).

Como forma de apresentação, foi escolhido realizar o desenvolvimento tendo como ponto

de apoio o enredo, ao invés da escolha temática. Ao final do artigo, a tipologia será

retomada a fim de se deixar claro qual a ênfase dessas relações por ora analisadas.

A narrativa

A Historia Roderici é modernamente dividida em setenta e sete capítulos. Os seis

primeiros dedicados aos primeiros 30 anos da vida do Rodrigo Diaz, desde seu

nascimento no reinado de Fernando I e sua formação como cavaleiro no reinado de

Sancho II e sua vassalagem ao rei castelhano até a morte deste. No sétimo capítulo, inicia-

se a sua vassalagem a Afonso VI, que torna-se também rei de Castela em 1072 quando

do falecimento do irmão. No décimo capítulo, sofre intriga na corte e é exilado pela

primeira vez. No trecho que compreende os capítulos 12 a 24, o Campeador fica exilado

na taifa de Saragoça, sendo mercenário. Meses depois da morte do rei Mu´tamin, retorna

a Castela, em que fica pouco tempo até ser novamente exilado, por causa de nova intriga.

Neste exílio, não se fixa em nenhum lugar até conquistar Valencia, no capítulo 61. Morre

na cidade e o final da obra é o cerco e perda de Valencia para os muçulmanos e o translado

do corpo de Rodrigo para San Pedro de Cardeña.

O início da narrativa foca-se na origem de Rodrigo, a sua genealogia. Já no

terceiro capítulo é narrada uma disputa entre cristãos: o pai do protagonista, Diego Laínez,

luta contra navarros (não especifica quem são os combatentes) e conquista o castelo

chamado Ubierta, Urbel e La Piedra, que Rodrigo herda. É atribuída ao rei Sancho II a

criação de Rodrigo e o ato de lhe armar cavaleiro. Neste início do texto, são apresentadas

duas lutas de Sancho pelo domínio da Península Ibérica. A primeira batalha foi no reino

de taifa de Saragoça.4 Apesar de se passar num reino muçulmano, o embate foi contra o

4 Os reinos de taifas (ou facções) foram reinados curtos que sucederam a fragmentação do Califado de

Córdoba. Esses reinos constantemente guerreavam entre si e, com poderes centrais fracos, deviam tributos

aos cristãos (parias) em troca de ajuda militar e de não agressão.

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rei Ramiro de Aragão, cristão. Se os muçulmanos participaram da batalha – e

possivelmente estariam nela – isso foi completamente omitido na Historia: só a disputa

cristã importou para o narrador. Ao se narrar a próxima batalha, fratricida de Sancho II

contra Afonso VI, Rodrigo é nomeado Campeador (campi doctus), o único epíteto que

será usado para se referir ao personagem: Cid, sua alcunha mais conhecida, não foi

utilizada nesta narrativa. Campeador significa “vencedor no campo de batalha”, e foi um

epíteto usado tanto por cristãos como por seus adversários muçulmanos – a despeito de

não admirarem o cavaleiro, escreveram como foi bem sucedido em suas lutas

(PORRINAS GONZÁLEZ, 2003). A última batalha narrada de Rodrigo enquanto vassalo

de Sancho II é a última batalha do rei: o cerco a Zamora. Não é descrita a morte do

suserano, apesar dela ter sido neste cerco. Narra-se apenas os sucessos do Campeador –

até de forma exagerada, pois teria vencido quinze soldados sozinho. Uma de suas vitórias

campais tem o perdedor nomeado: Jimeno Garcéz, “um dos melhores de Pamplona”

(H.R., 5). Um morto por Rodrigo, muçulmano de Medinaceli, não tem seu nome

mencionado. Essa diferença de tratamento entre os adversários cristãos – nomeados,

valorizados – e os muçulmanos, que não são nomeados – não é única na narrativa, como

se perceberá ao longo deste artigo.

Após a misteriosa morte de Sancho II,5 Afonso VI torna-se rei de Castela e Leão

e Rodrigo passa a ser seu vassalo. Segundo a Historia, o cavaleiro foi agraciado com

grande estima e admiração na corte. Rodrigo casa-se com Jimena, sobrinha do novo rei e

filha do conde Diego de Oviedo. Tiveram filhos, não nomeados na crônica. Sendo

prestigiado, nosso protagonista recebe a incumbência de receber as parias (tributos) dos

reinos de taifa de Sevilha e Córdoba. Granada, reino muçulmano rival de Sevilha, ataca

o último. Rodrigo tenta convencer os cristãos aliados do reino de Granada a não atacarem,

em respeito ao rei Afonso VI: sendo Sevilha tributária de Castela, atacar o reino

muçulmano é incorrer em desagravo ao rei castelhano. A batalha se dá, Rodrigo vence e

faz cativos. São listados apenas nobres cristãos. Alberto Montaner Frutos, que tem

dedicado seus estudos a verificar a veracidade e os anacronismos dos textos cidianos,

elencou diversos anacronismos presentes na Historia: a lista de cativos desta batalha é

um deles (2011, p. 170). Mesmo não sendo correta, a listagem apresentada corrabora

para a fama de Campeador do herói: são guerreiros experimentados os capturados.

5 Não se sabe até o momento quem exatamente o matou e se foi a mando de Afonso VI. Possivelmente sim,

mas não há documentação suficiente para se confirmar.

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Certamente, numa batalha em que são envolvidos cristãos e muçulmanos, os últimos

também seriam feitos cativos, para que pagassem por sua liberdade. Mas nessa batalha, e

em outras, essa probabilidade é apenas intuída, já que apenas prisioneiros cristãos são

listados – demonstrando novamente o destaque aos da sua religião pelo cronista.

Pouco depois Rodrigo retornar a Castela, Afonso VI se dirige a uma batalha contra

sarracenos que viviam em seu reino, pois estes se rebelaram. Rodrigo, doente, não

comparece. Pouco depois, o castelo de Gomaz é alvo de assalto muçulmano, e Rodrigo

decide ir recuperar o castelo e o botim. É bem sucedido, e intrigas na corte o acusam de

querer provocar a ira dos adversários para que estes por final vençam Afonso VI. O rei

acredita nas intrigas e exila o cavaleiro pela primeira vez. Como pode-se perceber, em

termos narrativos não importava muito se os adversários de Rodrigo eram cristãos ou

muçulmanos: cristãos também rivalizavam e o elemento principal do relato era o exílio,

sendo a batalha apenas um pretexto.

Exilado, o burgalês busca inicialmente refúgio no condado de Barcelona, não

logrando êxito. Direciona-se então ao reino taifa de Saragoça, onde consegue seu intento.

De acordo com a cronologia de vida do cavaleiro proposta por Richard Fletcher

(FLETCHER, 2002), Rodrigo fica refugiado por cinco anos. Neste período, torna-se

mercenário e, de acordo com a crônica, recebe grande destaque na corte de Mu'tamim. O

castelhano se envolve nas disputas locais em que cristãos e muçulmanos estão

imbricamente envolvidos. São narradas batalhas em que nobres das duas religiões estão

envolvidos: em nenhuma delas apenas sarracenos são opositores.

Os reinos de taifa de Saragoça e Denia eram rivais, cada qual com seus aliados

cristãos. Rodrigo, mercenário, envolve-se na disputa e participa de uma batalha em que

Berenguer, conde de Barcelona, luta a favor de Al-Hayib de Denia. Berenguer é um dos

cativos (novamente só se listam cativos cristãos) e começa-se a rivalidade entre os dois,

que permanece na maior parte da narrativa. Na volta do embate, o cavaleiro teria sido

ovacionado pelos muçulmanos, e o agradecimento de Mu'tamin teria sido tão grande a

ponto de favorecer mais o Campeador do que o próprio filho. Dificilmente este trecho

não é exagerado, já que a tônica geral das relações inter-religiosas na península, seja qual

for a religião predominante, era de rígida hierarquia – a religião predominante

demarcando bem a escala social (GLICK, 1994, p. 229).

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Afonso VI é envolvido brevemente por seus vassalos nos problemas internos de

Saragoça (eram nobres aliados a nobres muçulmanos locais). Visita a região, tem uma

breve conversa com Rodrigo e este se recusa a voltar a Castela, pois percebe que será

mais bem-vindo em Saragoça do que no reino cristão: o rei é acusado, na narrativa, de ter

inveja do cavaleiro.

No capítulo seguinte, é narrado brevemente a tomada de Toledo por Afonso VI.

Toledo era uma cidade especialmente simbólica, por ter sido a última capital visigótica.

(RUCQUOI, 1995, p. 163). Não é de se surpreender, portanto, a interrupção do enredo

para demarcar essa “concessão da clemência divina” (H.R., 20). Note-se que o mesmo

personagem invejoso do trecho anterior é louvado por conquistar uma cidade muçulmana:

os seus supostos defeitos não o fazem menos merecedor diante dos rivais religiosos.

Al-Hayib de Denia e Sancho de Aragão voltam-se contra Rodrigo, para facilitar a

conquista de Saragoça, e perdem. O curioso desse trecho é que se aliam contra um

cavaleiro, e não contra o reino. Pouco depois, Mu'tamin morre e o Campeador fica mais

nove meses sob comando de seu filho, então retorna a Castela. ApesarApesar da “inveja”

anteriormente assinalada, Afonso VI teria recebido Rodrigo muito bem. Teria realizado

doações, e selado que as conquistas feitas pelo cavaleiro em terras serracenas ficariam

sobre o domínio do nobre, sendo conquistas hereditárias aos seus filhos.

O narrador atribui a Rodrigo uma forte lealdade a Afonso: faz embaixada com

Albarracín a fim de promover paz e deixa de lutar contra Berenguer por ser parente do

rei. Ao mesmo tempo em que defendia os interesses de seu suserano, não deixou de travar

suas próprias batalhas. Dois muçulmanos tornaram-se tributários seus: Al-Qadir de

Valência e o alcaide de Murviedro, não nomeado.

Rodrigo tem notícias de que Yusuf, rei dos almorávidas,6 dentre outros reis

sarracenos cercaram a fortaleza de Aledo. Afonso pede ao cavaleiro que vá ao local.

Suserano e vassalo se desencontram durante o cerco vitorioso para os cristãos. Novamente

o burgalês é alvo de intrigas na corte. Afonso o exila novamente, depois de prender e

soltar Jimena e seus filhos, e apesar de carta de Rodrigo rogando por julgamento em

combate. A crônica retrata a atitude muçulmana no embate de forma pejorativa: eles

6 Almorávida foi um império muçulmano que teve origem no Magreb. Em 1090, um ano depois da batalha

de Aledo, conquistaram os reinos de taifas e ficaram na Península Ibérica até 1144, quando foram vencidos

pelos almôadas, outra dinastia muçulmana de origem magrebina.

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teriam perdido ao fugir da batalha. Pouco provável, já que pouco depois Yusuf volta e

conquista os reinos de taifas, só sendo limitados pela ação do Campeador no Levante

(VIGUERA MOLÍNS, 1992, p. 175). Note-se aqui uma distinção que acompanhará o

restante do texto: apesar de ambos serem muçulmanos, o epíteto “almorávidas” é usado

para os norte-africanos, enquanto “sarracenos” é usado para denominar os que já estavam

na Península. Não há descrição das diferenças, mesmo porque não caberia em um texto

que provavelmente teria a finalidade de ser lido oralmente (HIGASHI, 2010). Mas a

distinção é clara: ao se ler o texto, percebe-se claramente que são dois grupos.

Percebe-se claramente que o foco da narrativa são as ações do Campeador no seu

segundo exílio: metade do texto é dedicado às ações de Rodrigo no que podem ter sido

seus últimos dez anos de vida. Neste período, a história pode ser dividida em duas fases:

antes e depois da conquista da cidade de Valência. Na primeira fase, não fica por muito

tempo em nenhum lugar; na segunda, apesar da posse, não deixou de fazer excursões por

praças muçulmanas. A segunda parte do manuscrito consiste principalmente na narrativa

das batalhas do Campeador, e serão aqui apresentadas as formas pelas quais elas se

apresentam, ao invés de descrevê-las uma a uma.

Rodrigo, a se confiar na narrativa, saqueou ou tomou temporariamente onze

castelos – alguns desocupados, outros ocupados por muçulmanos. Embora a maioria das

pilhagens tenham sido em terras dos adversários religiosos, saqueou também as terras de

García Ordónez, seu rival na corte castelhana (H.R., 50). Esta foi uma das duas vezes em

que a violência usada por Rodrigo foi notada na obra; a segunda foi o saque a Murviedro,

fortaleza muçulmana. Destaque-se a maior ênfase negativa na agressividade usada contra

cristãos.

As boas relações com o reino de taifa de Saragoça continuam: Rodrigo e Musta´in

não se atacam e o muçulmano chega a alertar o Campeador quando este estava prestes a

ser atacado por Al-Hayib (Denia) e Berenguer (Barcelona). O castelhano intermedia um

acordo de paz entre Musta´in e Sancho de Aragão. Não é mencionado o pagamento de

paria de Musta´in ao burgalês, ao contrário da outras relação harmoniosas que este

mantém com muçulmano: Al-Qadir de Valencia.

As relações de Rodrigo com outros cristãos são destacadas nesta segunda parte do

enredo: especialmente com Berenguer de Barcelona, Afonso VI e Sancho I de Aragão

(assim como seu filho Pedro I de Aragão). Algumas conflitivas, outras não. Em primeiro

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lugar, destaca-se a conexão entre o barcelonês e o burgalês. Como assinalado acima, o

primeiro encontro entre eles se deu no campo de batalha, com o primeiro sendo

prisioneiro do segundo. Na região do Levante, Berenguer era aliado de Al-Hayib, - depois

de uma troca de cartas, novamente lutaram com nova vitória do Campeador. Pouco

depois, selam a paz. Outro conflito que perdura é com Afonso VI. O rei visita a região, e

Rodrigo tenta novamente, em vão, o perdão real. Pela segunda vez, o rei é retratado como

tendo inveja de seu antigo vassalo e não o perdoa. O capítulo 45 é o último em que Afonso

VI é mencionado. As únicas relações harmoniosas com outros cristãos são as com os reis

de Aragão: Sancho I e Pedro I. Como já se assinalou, o primeiro aceitou conselho

diplomático. Seu filho, Pedro I, travou algumas batalhas contra muçulmanos na condição

de aliado do nosso protagonista.

Depois da morte de Al-Qadir, que era tributário de Rodrigo, Valencia é tomada

pelos almorávidas. Depois de alguns meses de disputa, o burgalês toma a cidade e os que

não aceitam seu domínio tem permissão para se retirar. Yusuf tenta tomar a cidade,

sempre rechaçado por Rodrigo. A mesquita é transformada em igreja, consagrada à Santa

Maria Virgem. Essa é a segunda igreja erguida pelo cristão: a segunda, em Murviedro,

não foi uma mesquita transformada – e consagrada a São João Batista.

Rodrigo morre naturalmente em Valencia, e a cidade logo é cercada pelos

almorávidas. A viúva Jimena resiste o quanto pode mas é obrigada a deixar a cidade, e o

faz levando os restos mortais do Campeador para o mosteiro de San Pedro de Cardeña,

finalizando assim a narrativa.

Considerações parciais

Ao se refletir sobre os eixos de análise e tipologias de representações das relações

entre as religiões elencados no início do artigo, pode-se perceber a predominância das

narrativas em que muçulmanos e cristãos de alguma forma interagem. Também pode-se

perceber que os conflitos e as alianças são profundamente conectados com a religião, mas

não de forma unívoca: alianças, por mais frágeis que fossem, eram travadas entre pessoas

de religiões diferentes. Ao mesmo tempo, alguns conflitos travados por Rodrigo com

outros cristãos não chegaram a se resolver (Afonso VI e García Ordónez).

O que também se pode perceber é a diferença do tratamento das relações e

personagens. As convivências e embates com cristãos são geralmente tratadas de formas

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mais completas: são mais frequentemente nomeados, mesmo que apenas em listas de

prisioneiros; o desenvolvimento dos relacionamentos é geralmente maior; são de qualquer

forma melhor do que os muçulmanos (o invejoso Afonso VI é alvo de clemência divina

e conquista Toledo).

O “outro”, mesmo quando aliado, não merece elogios: os reis de Saragoça em

nenhum momento são adjetivados. A hierarquia normalmente aplicada nos reinos da

Península, em que a religião predominante demarca de forma inequívoca a diferenciação

social, é ignorada quando Rodrigo é mercenário em Saragoça: louvado como dificilmente

um cristão seria. Poucos muçulmanos são nomeados; quando o são, geralmente suas

aparições na narrativa são muito breves (com exceções: Mu’tamin, Musta’in , Al-Hayib

e Yusuf – os dois primeiros aliados e os últimos, rivais). Com exceção da relação entre

Mu’tamin e Rodrigo, todos parecem temer os cristãos – mesmo Yusuf, conquistador

posterior das taifas.

No livro “Racismos: das Cruzadas ao Século XX” Francisco Bethencourt (2018)

condensou o pensamento de parte dos pesquisadores recentes sobre a Península Ibérica

Medieval. A “convivência hierárquica das religiões” teria precedido o sentimento de

Guerra Santa entre os cristãos; Guerra Santa era algo apenas muçulmano, para depois ser

apropriado pelos cristãos. (2018, p. 44). Um dos objetivos da pesquisa do doutorado é me

posicionar em relação à questão. Como consideração parcial, se em algum momento os

cristãos desenvolveram a ideia de Guerra Santa, esta não se expressa ainda na Historia

Roderici: hierarquização sim – e precisa-se ainda estender a compreensão do nível de

hierarquização - mas não necessariamente um anseio cruzadístico de eliminação da

diferença.

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