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Relato de experiência: contribuições do pensamento freireano para o trabalho com a inclusão e o respeito à diversidade em um curso de licenciatura Raquel Angela Speck Universidade Federal do Paraná (UFPR), Setor Palotina Resumo: O texto apresenta um relato de experiência que tem como objetivo descrever a experiência com a disciplina “Leituras Dirigidas de Paulo Freire”, no curso de Licenciatura em Ciências Exatas, da Universidade Federal do Paraná, no Setor Palotina, no ano de 2017. A partir da leitura e do debate de sua obra, buscou-se identificar os principais conceitos freireanos que permitem situar este importante educador brasileiro na perspectiva de uma pedagogia da inclusão e do respeito à diversidade. A disciplina foi encerrada com a produção e a socialização de poemas pelos acadêmicos, envolvendo esta temática. Ao final, conclui-se que a experiência foi importante para a formação dos licenciandos, na medida em que permitiu perceber a escola como um espaço privilegiado de construção de valores e de vivências democráticas. Palavras-chave: Paulo Freire; Inclusão; Diversidade; Formação docente. Introdução “Não sou esperançoso por pura teimosia, mas por imperativo existencial e histórico”. Paulo Freire Este relato de experiência tem por objetivo compartilhar as atividades desenvolvidas junto à disciplina intitulada “Leituras Dirigidas de Paulo Freire”, na Universidade Federal do Paraná, no Setor Palotina, no ano de 2017. A disciplina contou com vinte e cinco alunos matriculados, que se reuniam semanalmente. Em cada encontro estudava-se uma obra de Paulo Freire. Cada estudo foi dirigido por um aluno, que socializava a leitura realizada. Em círculo e de forma dialogada, buscou-se compreender os princípios, concepções e fundamentos do pensamento do autor, assim como conhecer as linhas mestras de sua visão pedagógica, especialmente no que diz respeito à sua visão de educação democrática no sentido da inclusão e da valorização da diversidade. Em sua elaboração teórica, Paulo Freire sempre destacou a histórica opressão sofrida pelas classes menos favorecidas, originadas de um contexto de desigualdade econômica e de exploração por parte de elites dominantes. Ao mesmo tempo, a experiência que o autor teve diretamente com as massas e com a educação popular permitiu-lhe assinalar que a educação

Relato de experiência: contribuições do pensamento ... · Um momento bastante marcante da disciplina foi a leitura de um trecho do livro que relembrou o triste episódio onde cinco

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Relato de experiência: contribuições do pensamento freireano para o trabalho com a

inclusão e o respeito à diversidade em um curso de licenciatura

Raquel Angela Speck

Universidade Federal do Paraná (UFPR), Setor Palotina

Resumo: O texto apresenta um relato de experiência que tem como objetivo descrever a

experiência com a disciplina “Leituras Dirigidas de Paulo Freire”, no curso de Licenciatura em

Ciências Exatas, da Universidade Federal do Paraná, no Setor Palotina, no ano de 2017. A

partir da leitura e do debate de sua obra, buscou-se identificar os principais conceitos freireanos

que permitem situar este importante educador brasileiro na perspectiva de uma pedagogia da

inclusão e do respeito à diversidade. A disciplina foi encerrada com a produção e a socialização

de poemas pelos acadêmicos, envolvendo esta temática. Ao final, conclui-se que a experiência

foi importante para a formação dos licenciandos, na medida em que permitiu perceber a escola

como um espaço privilegiado de construção de valores e de vivências democráticas.

Palavras-chave: Paulo Freire; Inclusão; Diversidade; Formação docente.

Introdução

“Não sou esperançoso por pura teimosia,

mas por imperativo existencial e histórico”.

Paulo Freire

Este relato de experiência tem por objetivo compartilhar as atividades desenvolvidas

junto à disciplina intitulada “Leituras Dirigidas de Paulo Freire”, na Universidade Federal do

Paraná, no Setor Palotina, no ano de 2017. A disciplina contou com vinte e cinco alunos

matriculados, que se reuniam semanalmente. Em cada encontro estudava-se uma obra de Paulo

Freire. Cada estudo foi dirigido por um aluno, que socializava a leitura realizada. Em círculo e

de forma dialogada, buscou-se compreender os princípios, concepções e fundamentos do

pensamento do autor, assim como conhecer as linhas mestras de sua visão pedagógica,

especialmente no que diz respeito à sua visão de educação democrática no sentido da inclusão

e da valorização da diversidade.

Em sua elaboração teórica, Paulo Freire sempre destacou a histórica opressão sofrida

pelas classes menos favorecidas, originadas de um contexto de desigualdade econômica e de

exploração por parte de elites dominantes. Ao mesmo tempo, a experiência que o autor teve

diretamente com as massas e com a educação popular permitiu-lhe assinalar que a educação

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tem um papel muito mais relevante que meramente alfabetizar (entendido como o simples

aprendizado de técnicas de ler e escrever), mas, sobretudo, conscientizar para libertar.

A educação como afirmação da liberdade e como promotora do respeito à pluralidade

humana

A visão sobre “liberdade” que se pode encontrar nas obras de Paulo Freire assume

posição de destaque na compreensão de sua perspectiva de inclusão e valorização da

diversidade. Em verdade, a liberdade configura-se como um dos requisitos para que se

estabeleça a relação dialógica, tão defendida e incentivada por Freire.

A leitura da obra “Educação como prática da liberdade” (FREIRE, 1967), permitiu

aos licenciandos a compreensão de que é a partir do respeito à liberdade do educando que se

construirá toda a base das práticas pedagógicas, e sem a qual não será possível construir

relações democráticas no processo de ensino e de aprendizagem. Neste sentido, a liberdade é

concebida como o próprio modo de ser, o destino do homem, e por isto mesmo só pode ter

sentido na história que os homens vivem (FREIRE, 1967).

Descartando uma concepção puramente formal de liberdade, mas inserida em uma

perspectiva existencial, Freire defendia a educação como possibilidade de afirmação da

liberdade e como meio de alcançar o respeito à pluralidade humana. Entretanto, destacava que

este conceito, assim entendido, possui implicações políticas e sociais importantes pois,

“quando alguém diz que a educação é afirmação da liberdade e toma as palavras a sério [...]

se obriga, neste mesmo momento, a reconhecer o fato da opressão, do mesmo modo que a luta

pela libertação” (FREIRE, 1967, p.6). É nesta direção que se pode compreender o sentido de

liberdade como prática, já que a sua conquista não se faz apenas pela assimilação de seu

significado.

Paulo Freire empenhava-se em assinalar o caráter plural dos homens, indicando esta

pluralidade como algo essencialmente humano. Logo, preocupava-se em destacar também que

as relações construídas entre os homens e entre estes com o mundo devem respeitar esta

natureza. Desta forma,

O conceito de relações, da esfera puramente humana, guarda em si, como

veremos, conotações de pluralidade, de transcendência, de criticidade, de

conseqüência e de temporalidade. As relações que o homem trava no mundo

com o mundo (pessoais, impessoais, corpóreas e incorpóreas) apresentam

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uma ordem tal de características que as distinguem totalmente dos puros

contatos, típicos da outra esfera animal. Entendemos que, para o homem, o

mundo é uma realidade objetiva, independente dele, possível de ser

conhecida. É fundamental, contudo, partirmos de que o homem, ser de

relações e não só de contatos, não apenas está no mundo, mas com o mundo.

Estar com o mundo resulta de sua abertura à realidade, que o faz ser o ente de

relações que é (FREIRE, 1967, p. 39).

A compreensão de que a pluralidade marca a essência humana e permeia as relações

que o homem estabelece com outros homens e com o mundo não pode significar somente o

entendimento de que o homem é um ser de relações. Tal compreensão traz em si a concepção

de homem como ser inacabado e em permanente construção, que se torna tanto mais possível

quanto maior for a sua abertura para esta realidade.

É por este motivo que Freire argumentava que “não há educação fora das sociedades

humanas e não há homem no vazio” (FREIRE, 1967, p35). Argumenta que é preciso libertar-

se do que chamou de “visão unidimensional”, que impede o homem de perceber a sua inserção

no tempo, na história e na cultura. Logo, a busca pelo sentido da existência humana recorre ao

reconhecimento de que não apenas se está no mundo, mas com o mundo.

Na verdade, já é quase um lugar comum afirmar-se que a posição normal do

homem no mundo, visto como não está apenas nele mas com ele, não se esgota

em mera passividade. Não se reduzindo tão somente a uma das dimensões de

que participa — a natural e a cultural — da primeira, pelo seu aspecto

biológico, da segunda, pelo seu poder criador, o homem pode ser

eminentemente interferidor. Sua ingerência, senão quando destorcida e

acidentalmente, não lhe permite ser um simples espectador, a quem não fosse

lícito interferir sobre a realidade para modificá-la. Herdando a experiência

adquirida, criando e recriando, integrando-se às condições de seu contexto,

respondendo a seus desafios, objetivando-se a si próprio, discernindo,

transcendendo, lança-se o homem num domínio que lhe é exclusivo — o da

História e o da Cultura (FREIRE, 1967, p.41).

Na direção de afirmar-se como “homem no mundo”, a liberdade é a chave que

garante a integração do homem ao seu contexto, que permite que se perceba como sujeito (e

não objeto) de relações, que amplia a noção de existência para além de o simples estar no

mundo, que possibilita criar e recriar, interferindo e modificando a realidade. No caminho desta

auto-afirmação, a educação desempenha papel altamente importante na medida em que elucida,

reflete, explicita, integra, democratiza, conscientiza.

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A construção de consciências democráticas, inclusivas e capazes de perceber a

pluralidade e a diversidade como componentes propriamente humanos necessita ser também

democrática, inclusiva, dialogal e ativa, assentada na responsabilidade social e política, e

preocupada com a interpretação crítica dos problemas.

Indignar-se contra toda forma de injustiça e opressão

Paulo Freire argumentava que as verdadeiras ações éticas e genuinamente humanas

nascem sempre de dois sentimentos contraditórios e antagônicos: o amor e a raiva (FREIRE,

2000). No amor, que se manifesta na forma de compaixão, solidariedade, fé na humanidade e

na raiva, que se manifesta na forma de indignação com toda forma de injustiça, de opressão,

de exclusão, de discriminação.

No decorrer da disciplina os licenciandos puderam ter contato com a obra

“Pedagogia da Indignação” (FREIRE, 2000), momento em que puderam ter contato com a

postura defendida pelo autor de não conformar-se com as investidas em favor da

desumanização do homem, promovidas por aqueles que ao invés de buscarem o que chamou

de “uma ética universal do ser humano” preocupam-se antes com uma “ética do mercado,

insensível a todo o reclamo das gentes e apenas aberta à gulodice do lucro” (FREIRE, 2000,

p.12).

Um momento bastante marcante da disciplina foi a leitura de um trecho do livro que

relembrou o triste episódio onde cinco adolescentes queimaram vivo o índio pataxó Galdino,

em Brasília, no ano de 1997. A reflexão em torno do assunto levou os acadêmicos a

manifestarem preocupação com a forma como são trabalhados os valores atualmente,

especialmente no que diz respeito à falta de imposição de limites na educação de filhos.

Partindo do pressuposto de que o futuro não é algo inexorável, Freire afirma acreditar

no poder transformador do “sonho viável” das classes populares. Posiciona-se a favor do que

chamou de “boniteza da vida”, e reafirma o dever da educação de preocupar-se com a

afetividade e com a amorosidade, de não permitir que se perca a esperança e de trabalhar no

sentido contrário ao da interpretação mecanicista e determinista da história. Para tanto, enfatiza

a necessidade de uma pedagogia crítica e que também possa ser também libertardora.

Uma das primordiais tarefas da pedagogia crítica radical libertadora…. é

trabalhar contra a força da ideologia fatalista dominante, que estimula a

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imobilidade dos oprimidos e sua acomodação à realidade injusta, necessária

ao movimento dos dominadores. É defender uma prática docente que em que

o ensino rigoroso dos conteúdos jamais se faça de forma fria, mecânica e

mentirosamente neutra (FREIRE, 2000, p.13).

A pedagogia crítica e libertadora problematizada na obra, além de não permitir

interpretações mecânicas e fatalistas sobre as injustiças e as desigualdades, viabilizará o

aperfeiçoamento da democracia com vistas à recusa a comportamentos que reforcem a

condição de opressão e discriminação dos injustiçados e que promovam as condições de sua

superação, baseado num movimento de resistência.

Segundo Freire, a inclusão grupos minoritários e de toda ordem de desfavorecidos,

deve ser viabilizada por meio de práticas educativas capazes eticizar o mundo, de ensinar o

inconformismo e de não aceitar que o “todos são iguais perante a lei” possa continuar existindo

somente no papel (FREIRE, 2000). Desta forma, a centralidade de uma pedagogia da

indignação é a capacidade de produzir a inconformidade contra as injustiças e, ao mesmo

tempo, tornar possível acreditar e ter esperança em um mundo melhor.

Por isso é, que toda prática educativa libertadora, valorizando o exercício da

vontade, da decisão, da resistência, da escolha; o papel das emoções, dos

sentimentos, dos desejos, dos limites; a importância da consciência na

história, o sentido ética da presença humana no mundo, a compreensão da

história como possibilidade jamais como determinação, é substantivamente

esperançosa e, por isso mesmo, provocadora da esperança (FREIRE, 2000,

p.23).

Ensinar a capacidade e o desejo de se inconformar, ensinar a capacidade e o desejo de

decidir, de resistir, de transformar. Esta é em essência a especificidade da uma prática educativa

preocupada com a inclusão dos excluídos e com a promoção dos discriminados. Freire é tocante

quando relata a paixão pela liberdade de índios, escravos, negros e mamelucos, a sua rebeldia

e vontade de brigar pela vida, e afirma que estes gestos se repetem hoje na luta dos sem-terra,

dos sem-teto, dos sem-escola, dos sem-casa, dos favelados, na luta contra a discriminação

racial, contra a discriminação de classe e de sexo (FREIRE, 2000).

Outra importante leitura realizada no decorrer da disciplina foi a obra “Pedagogia da

Esperança” (FREIRE, 1992), que ensina que, em tempos de intolerância e negação de

diferenças, ganha importância a busca por manter a unidade na diversidade, isto é, que as

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minorias não lutem umas contra as outras, mas sim, umas com as outras, na busca por seus

direitos fundamentais. Desta forma, afirma o autor:

As chamadas minorias, por exemplo, precisam reconhecer que, no fundo, elas

são a maioria. O caminho para assumir-se como maioria está em trabalhar as

semelhanças entre si e não só as diferenças e assim, criar a unidade na

diversidade, fora da qual não vejo como aperfeiçoar-se e até como construir-

se uma democracia substantiva, radical (FREIRE, 1992, p. 78).

A busca pela unidade na diferença torna-se uma condição para a união e para a força,

elementos que reforçam a esperança na democracia, na inclusão e no respeito a toda diferença.

Este caminho não é, contudo, natural e espontâneo. Ao contrário, é algo que se constrói, é

processo histórico, é luta e resistência, é movimento, é criação.

É na direção desta compreensão que Freire insere o conceito de multiculturalidade,

definindo-a como algo não se resume à “justaposição de culturas, muito menos no poder

exacerbado e uma sobre as outras, mas liberdade conquistada, no direito assegurado de

moverem-se cada cultura no respeito uma à outra, correndo risco livremente de ser diferente”

(FREIRE, 1992, p, 79). Afirma que ela é “uma criação histórica que implica decisão, vontade

política mobilização, organização de cada grupo cultural com vistas a fins comuns” e

complementa dizendo que “demanda, portanto, certa prática educativa coerente com esses

objetivos [...] que demanda uma nova ética fundada no respeito às diferenças” (FREIRE, 1992,

p. 80).

Uma situação interessante que o estudo desta obra permitiu, foi o relato de um dos

acadêmicos que afirmou que, antes de ler a Pedagogia da Esperança, não acreditava que a

cultivar a esperança e ensiná-la pudesse ter um papel tão importante na transformação da

realidade. Um de seus colegas, ao ouvi-lo, mencionou a seguinte passagem da obra:

O essencial [...] é que ela (a esperança), enquanto necessidade ontológica,

precisa de ancorar-se na prática. Enquanto necessidade ontológica a esperança

precisa da prática para tornar-se concretude histórica, É por isso que não há

esperança na pura espera, nem tampouco se alcança o que se espera na espera

pura, que vira, assim, espera vã. Sem um mínimo de esperança não podemos

sequer começar o embate mas, sem o embate, a esperança, como necessidade

ontológica, se desarvora, se desendereça e se torna desesperança que, as

vezes, se alonga em trágico desespero. Daí a precisão de uma certa

importância em nossa existência, individual e social, que não devemos

experimentá-la de forma errada, deixando que ela resvale para a desesperança

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e o desespero. Desesperança e desespero, conseqüência e razão de ser da

inação ou do imobilismo. (FREIRE, 1992, p.5).

A reflexão em torno da questão da esperança foi longa, alguns dizendo que já foram

mais esperançosos, outros dizendo que hoje em dia está cada vez mais difícil mantê-la, mas de

alguma maneira todos concordaram que é preciso acreditar que algo é possível para que se

possa mover-se, para que se busque o desejado, por mais difícil e improvável que esta busca

se apresente. Talvez seja justamente na educação que esta reflexão tenha um significado ainda

mais importante, principalmente quando o objetivo buscado é o da inclusão e o reconhecimento

das diferenças.

Pedagogia da Autonomia: o respeito à identidade cultural e a rejeição a qualquer forma

de discriminação

Outra importante fonte de reflexão para o tema da inclusão do respeito à diversidade

se pode encontrar na obra “Pedagogia da Autonomia” (FREIRE, 1996). Por sua leitura os

licenciandos puderam conhecer alguns dos saberes que se requerem na prática educativa, dentre

os quais àqueles considerados por Freire como fundamentais a uma pedagogia mais inclusiva

e democrática.

Nesta obra, Paulo Freire contextualiza a prática docente como componente

constitutivo da dimensão social da formação humana. Faz o alerta constante aos educadores

para que estejam vigilantes contra toda a forma de desumanização e apregoa a necessidade da

dimensão estética no fazer pedagógico. Segundo Freire, “faz parte do pensar certo a rejeição

mais decidida a qualquer forma de discriminação. A prática preconceituosa de raça, de classe,

de gênero ofende a substantividade do ser humano, e nega radicalmente a democracia”

(FREIRE, 1996, p.17). Ainda, o autor defende que “qualquer discriminação é imoral e lutar

contra ela é um dever por mais que se reconheça a força dos condicionamentos a enfrentar”

(FREIRE, 1996, p. 25).

Seguindo na linha deste pensamento, os acadêmicos puderam compreender que

embora seja fundamental o bom preparo científico de um professor, esta não é única e talvez

não seja a mais importante qualidade a ser perseguida. Trabalhar com educação é trabalhar com

pessoas, o que coloca o imperativo ético como elemento fundante das relações entre

professores e alunos. Inevitavelmente, no bojo dessa proposição, os acadêmicos buscaram

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memórias de sua própria experiência escolar onde vivenciaram ou testemunharam situações de

transgressão de princípios éticos, com consequentes exposições e constrangimentos. Um dos

licenciandos exclamou que pouco se lembra dos conteúdos que aprendeu na escola, mas que

não consegue esquecer os momentos em sofreu discriminações por sua cor. Relatou que sentiu

falta de um posicionamento mais firme e determinado da escola no sentido de combater as

ações discriminatórias de que era alvo, chegando a pensar que a falta de ação de seus

professores e da direção era motivada porque também tinham preconceito. A apresentação

deste relato durante a aula gerou um clima de grande comoção entre os colegas, que lamentaram

a permanência de situações como esta no contexto escolar. Apresentaram considerações de que

a formação ética do professor e a luta da escola contra toda e qualquer forma de manifestação

discriminatória deveria ser assunto tratado com maior importância na formação inicial e

continuada de professores.

A ética de que falo é a que se sabe afrontada na manifestação discriminatória

de raça, de gênero, de classe. É por esta ética inseparável da prática educativa,

não importa se trabalhamos com crianças, jovens ou com adultos, que

devemos lutar. E a melhor maneira de por ela lutar é vivê-la em nossa prática,

é testemunhá-la, vivaz, aos educandos em nossas relações com eles.[...] O

preparo científico do professor ou da professora deve coincidir com sua

retidão ética. É uma lástima qualquer descompasso entre aquela e esta.

Formação científica, correção ética, respeito aos outros, coerência,

capacidade de viver e de aprender com o diferente (FREIRE, 1996, p.10).

Uma prática educativa inclusiva e acolhedora da diversidade é necessariamente uma

prática ética. É responsabilidade exercê-la e também ensiná-la. Trata-se de uma prática que

pode ser considerada educativa e também formadora, na medida em que inspira e motiva a sua

vivência.

Na mesma direção, Paulo Freire destaca que a escola precisa valorizar a identidade

cultural dos seus alunos, viabilizando e permitindo que cada um possa se assumir como sujeito

no percurso de sua história. De acordo com o autor,

Uma das tarefas mais importantes da prática educativo-crítica é propiciar as

condições em que os educandos em suas relações uns com os outros e todos

com o professor ou a professora ensaiam a experiência profunda de assumir-

se. Assumir-se como ser social e histórico, como ser pensante, comunicante,

transformador, criador, realizador de sonhos, capaz de ter raiva porque capaz

de amar. Assumir-se como sujeito porque capaz de reconhecer-se como

objeto. A assunção de nós mesmos não significa a exclusão dos outros. É a

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“outredade” do “não eu”, ou do tu, que me faz assumir a radicalidade de meu

eu (FREIRE, 1992, p. 18).

A questão da valorização da identidade cultural é, como se evidencia, uma prática que

busca respeitar o educando na dimensão individual assim como na posição que ocupa de

aprendiz. No entender de Freire, permitir a assunção do aluno implica o reconhecimento de

que o “ser aprendiz” não significa “ser menos” e que, por essa razão, posturas autoritárias que

consideram alunos como objeto, refletem exclusão e obstáculos ao “assumir-se como sujeito”

(FREIRE, 1992).

Na esteira das reflexões originadas a partir do estudo desta obra, e especificamente

neste ponto relativo à valorização cultural do educando, houve um relato bem interessante de

um dos licenciandos a respeito de uma experiência que teve com um professor que o elogiou

perante a turma, quando da leitura de um texto que havia feito. O professor evidenciou, na

oportunidade, que o mesmo tinha boa escrita, bom vocabulário e que usava bem as palavras. O

elogio jamais foi esquecido. De acordo com o acadêmico, isto lhe serviu de motivação para

dedicar-se ainda mais a escrever, o que trouxe considerável contribuição à sua formação.

“Quando alguém diz: eu gostei do que você fez, isso foi muito bom! Você quer fazer de novo,

você se sente capaz! Eu nunca esqueci!”. Compartilhar esta experiência com a turma fez surgir

também outros comentários semelhantes, onde algo dito (ou feito) por um professor deixou

marcas na experiência escolar.

Este saber, o da importância desses gestos que se multiplicam diariamente nas

tramas do espaço escolar, é algo sobre que teríamos que refletir seriamente. É

uma pena que o caráter socializante da escola, o que há de informal na

experiência que se vive nela, de formação ou de deformação, seja

negligenciado. Fala-se quase exclusivamente do ensino dos conteúdos, ensino

lamentavelmente quase sempre entendido como transferência do saber. Creio

que uma das razões que explicam este descaso em torno do que ocorre no

espaço-tempo da escola, que não seja a atividade ensinante, vem sendo uma

compreensão estreita do que é educação e do que é aprender (FREIRE, 1992,

p.19).

Não se pode negar o peso que tem estas duas posturas antagônicas: por um lado, o

desvalor, o descaso, o desrespeito e, por outro, a atribuição de valor, o reconhecimento, o

respeito, a estima. Ambas dizem respeito às impressões e sentimentos que serão carregados por

toda a vida. Uma prática pedagógica democrática, inclusiva e que pretenda valorizar as

diferenças, portanto, não pode subestimar estas influências.

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O papel da prática educativa na busca pela superação da opressão, da exclusão e da

discriminação

A experiência que neste texto é relatada teve como último texto de estudo “Política e

Educação” (FREIRE, 2001). Nesta obra o autor estabelece as bases para a compreensão das

motivações que conduzem a comportamentos discriminatórios e dois aponta importantes

caminhos para a superação da opressão e da exclusão, bem como da passividade diante destes

comportamentos. Primeiro: Não é possível pensar na superação da opressão, da discriminação,

da passividade sem que se analise criticamente a história. Segundo: A superação da exclusão e

da discriminação não acontecerá sem que existam projetos de natureza político-pedagógica que

estejam voltados à transformação ou da reinvenção do mundo (FREIRE, 2001). Compreender

a história de maneira crítica significa, na visão do autor, percebê-la como tempo de

possibilidades e não de determinações. Daí a importância atribuída por Freire aos cursos de

formação de educadores, por meio das discussões em torno das diferentes maneiras de se

compreender a História “que nos faz e refaz enquanto a fazemos” (FREIRE, 2001, p. 18). A

perspectiva histórica é também uma perspectiva que assume que as relações sociais e

individuais são dialéticas, variando no tempo e no espaço. Não são estáticas, mas resultam do

movimento (resistências, tensões) entre os sujeitos históricos. “O tempo é fundante”, dizia

Freire (1992, p.9) e “o inédito viável” (1992, p.6). Por sua vez, construir projetos de natureza

político pedagógica a partir desta compreensão significa reconhecer também o potencial da

educação na construção de sujeitos mais conscientes.

Pensar a História como possibilidade é reconhecer a educação também como

possibilidade. É reconhecer que se ela, a educação, não pode tudo, pode

alguma coisa. Sua força, como costumo dizer, reside na sua fraqueza. Uma de

nossas tarefas, como educadores e educadoras, é descobrir o que

historicamente pode ser feito no sentido de contribuir para a transformação do

mundo, de que resulte um mundo mais “redondo”, menos arestoso, mais

humano (FREIRE, 2001, p. 20).

A contribuição possível da educação na construção de projetos políticos e pedagógicos

voltados à transformação e à reinvenção do mundo, encarna o objetivo de uma prática educativa

justa e ética, que não apenas reconhece a diversidade mas que também a valoriza. Requer

comprometimento com a luta contra qualquer forma de discriminação e preconceito (raça,

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gênero, classe), e crescente democratização das relações que se constroem na escola. Ensina a

tolerância.

Considerações finais

A experiência que a disciplina “Leituras Dirigidas de Paulo Freire” possibilitou foi

interessante pois permitiu a reflexão sobre todos estes pontos aqui descritos, problematizando

a prática educativa, a formação docente e também as próprias práticas, pensamentos e

comportamentos frente às diferenças.

O estudo da obra de Paulo Freire revela a construção de uma teoria e de uma proposta

de prática pedagógica assentada no respeito inequívoco ao ser humano e à diversidade, em uma

educação humanizadora e democrática, onde todos devem ter espaço para manifestarem-se

como sujeitos.

Freire condenava o que chamou de “a cultura do silêncio”, em que se nega o direito a

homens, mulheres e crianças de dizerem a sua palavra, de expressarem-se e afirmar suas

verdades. Defendia que toda a ação pedagógica, por ética e por estética, deveria contribuir para

encontrar o sentido, a natureza, os propósitos e a identidade entre os oprimidos, os rejeitados,

os excluídos, os marginalizados, os discriminados. Dizia que este silêncio e as práticas que o

reforçam não contribuem para a transformação e que, pelo contrário, geram uma ideologia de

acomodação (FREIRE, 1981). Romper com a cultura do silêncio, logo, fortalece uma

pedagogia problematizadora, crítica, dialógica e humanizadora.

Dessa forma, é possível concluir que as reflexões os conhecimentos alcançados por

todos os envolvidos nesta disciplina oportunizaram discutir alternativas para a sociedade, para

a existência humana e especialmente para a educação. Foi possível compreender que a tomada

de consciência não se dá de forma isolada, automática, mas através das relações que os homens

estabelecem entre si, mediados pelo mundo, momento em que a educação desempenha papel

fundamental como problematizadora da realidade e como organizadora de um projeto de ação

e de transformação. Estudar Paulo Freire é alimentar e realimentar a inquietude, o desejo de

mudar a nós mesmos e ao mundo. É não perder a esperança naquilo que se deseja melhor. É

querer ver concretizado o sonho de uma sociedade mais justa, inclusiva e democrática.

Vale registrar a declaração de um dos licenciandos que, no último encontro da

disciplina, enquanto se conversava sobre os aprendizados obtidos, exclamou que Paulo Freire

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“leva a gente a pensar em tantas coisas… a querer fazer tantas coisas… a gente fica com fome

de mudança… com fome de justiça”. Esta declaração traduz a própria essência do pensamento

de Freire, este educar cuja fome pela reinvenção do mundo e com sua crença inquestionável na

educação o fez dizer: “Se a educação sozinha não transforma a sociedade, sem ela tampouco a

sociedade muda” (FREIRE, 2000, p.31).

Referências Bibliográficas

FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967.

Disponível em

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