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RELATORIAS EM DIREITOS HUMANOS: fortalecimento de uma cultura de direitos no Brasil Plataforma Dhesca Brasil l Curitiba 2012

Relatorias em Direitos Humanos: fortalecimento de uma cultura de direitos no Brasil

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Revista do mandato 2009-2012 das Relatorias em Direitos Humanos da Plataforma Dhesca Brasil.

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RELATORIAS EMDIREITOS HUMANOS:fortalecimento de uma cultura de direitos no Brasil

Plataforma Dhesca Brasil l Curitiba 2012

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RELATORIAS EMDIREITOS HUMANOS:fortalecimento de uma cultura de direitos no Brasil

PUBLICAÇÃO:

Plataforma Dhesca Brasil

COORDENAÇÃO:

Alexandre Ciconello, Andressa Caldas, Darci Frigo e Maria Luísa Pereira de Oliveira

ORGANIZAÇÃO E REDAÇÃO:

Laura Bregenski Schühli e Jackeline Danielly Freire Florêncio

COLABORAÇÃO:

Anderson Luiz Moreira

PROJETO GRÁFICO:

Saulo Kozel Teixeira

DIAGRAMAÇÃO E EDITORAÇÃO:

SK Editora Ltda.

REVISÃO:

Silmara Krainer Vitta

APOIO INSTITUCIONAL:

EED, ICCO, Fundação Ford e HBS

IMPRESSÃO:

Maxigráfica

TIRAGEM:

1.000 exemplares

Agradecemos a todos(as) os(as) relatores(as) e assessores(as) que, com muito afinco,nesses últimos dois anos, lutaram para investigar, denunciar e propor soluções para diversas

violações de direitos humanos identificadas em todo o país nesse período.

É permitida a reprodução deste material, desde que citada a fontee que não seja utilizada para fins comerciais.

Relatorias em Direitos Humanos: fortalecimentode uma cultura de direitos no Brasil

ISBN: 978-85-62884-07-8

1. Direitos Humanos; 2. Relatores Nacionais.

CONTATO:

Plataforma Dhesca Brasil

Rua Des. Ermelino de Leão, 15, cj. 72, Centro 80410 230 l Curitiba – PR

www.dhescbrasil.org.br l [email protected]

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Plataforma Dhesca Brasil

Curitiba l 2012

RELATORIAS EMDIREITOS HUMANOS:fortalecimento de uma cultura de direitos no Brasil

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Apresentação 6

Sobre a Plataforma Dhesca 8

10 anos das Relatorias em Direitos Humanos 9

Entrevista com Jean Pierre Leroy ................................................................... 12

Composição das Relatorias em Direitos Humanos – 2009/2011 14

Mapa e quadro das missões realizadas 17

Relatoria do Direito Humano à Cidade 23

Grandes empreendimentos urbanos e megaeventos esportivos no Brasil: dilemas e desafios do direito à cidade ........................................................... 23

As missões da Relatoria do Direito à Cidade – 2009 a 2011 ......................... 29

Entrevista com Marcelo Braga Edmundo: O direito à moradia e as consequências trazidas pelos megaeventos esportivos ................................ 34

Relatoria do Direito Humano à Educação 36

A garantia do direito à educação de qualidade: o desafio persistente das iniquidades ............................................................ 36

Relatoria contribui com informe sobre gênero e educação do Cladem ........ 41

As muitas faces do racismo ........................................................................... 44

Intolerância religiosa e a atuação da Relatoria de Educação ........................ 45

Entrevista com Antonio Bispo dos Santos: Os desafios das comunidades quilombolas na luta pela terra ................................................. 48

Relatoria do Direito Humano ao Meio Ambiente 50

Modelo de desenvolvimento e matriz energética ............................................... 50

O trabalho da Relatoria frente às violações de direitos humanos ...................... 52

Flexibilidades em licenciamento ambiental reforçam violações de direitos humanos ........................................................................... 54

Índice

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Missão em Belo Monte, no Pará ......................................................................... 55

Missão nas usinas de Santo Antonio e Jirau, em Rondônia ............................... 56

Relatório denuncia violações de direitos humanos no ciclo de produção de urânio .......................................................................... 58

Entrevista com Antonia Melo: A Amazônia continua sendo espaço de usurpação pelo capital ............................................ 62

Relatoria do Direito Humano à Saúde Sexual e Reprodutiva 65

Relatoria estuda mortes maternas e situação de mulheres privadas de liberdade .......................................................................................... 65

Mortes maternas: evitáveis, porém existentes ................................................... 66

Mulheres em privação de liberdade e o direito à saúde sexual e reprodutiva .... 68

Como as missões foram feitas? .......................................................................... 69

Mulheres em situação de privação de liberdade ................................................ 70

Morte materna ..................................................................................................... 71

Entrevista com Beatriz Galli: Aborto e morte materna ....................................... 75

Relatoria do Direito Humano à Terra, Território e Alimentação 77

A luta pela terra e território em um contexto de mercado de commodities ....... 77

Missão ao território indígena de Maró, oeste do Pará ........................................ 81

Missão à região do sertão do Rio São Francisco, Pernambuco ........................ 83

Entrevista com Cleber Folgado: O uso de agrotóxicos e a agroecologia como modelo viável ................................................................. 86

Relatorias Nacionais em Direitos Humanos e as dimensões de gênero e raça na sociedade brasileira 90

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Conhecido por ser o maior país megadiverso do mundo e, atualmente, também asexta maior economia, o Brasil é marcado por desigualdades estruturantes que fazem com queparte de sua população viva em situação de pobreza, violência ou discriminação. O Brasil ocupaa 84ª posição de um total de 187 países, quando se trata de distribuição de renda. Além disso,o crescimento econômico observado nos últimos anos é pautado por um modelo dedesenvolvimento insustentável e que concentra a renda e o poder na mão de poucos. Ou seja,apesar da melhora dos indicadores sociais dos últimos anos, o Brasil preserva traços deprofundas desigualdades sociais, raciais, de gênero e de renda, e demonstra que as políticaspúblicas não estão sendo capazes de universalizar direitos, reduzir a violência e garantir apreservação ambiental.

Esta publicação, que conta com uma síntese do trabalho desenvolvido pelas RelatoriasNacionais em Direitos Humanos no mandato de 2009 a 2011, tem o intento de trazer à bailaquestões prementes para a realização de direitos no Brasil atualmente. Demonstra ascontradições do discurso e prática governamentais, que afirma promover políticas públicas deerradicação da pobreza e ao mesmo tempo implementa um modelo de desenvolvimentoexcludente e violador de direitos. Porém, mais do que apresentar um resumo das realizações edos desafios do período, esta revista constata o longo trajeto que o país precisa ainda percorrera fim de melhorar a qualidade de vida e o acesso a direitos por parte de sua população.

Além disso, em 2012 completam-se dez anos desde que a Plataforma Dhesca Brasiliniciou o projeto das Relatorias Nacionais em Direitos Humanos, o que traz para esta revista umsignificado ainda mais especial. Na primeira parte da revista, Relatorias em Direitos Humanos:

fortalecimento de uma cultura de direitos no Brasil, encontra-se um panorama das atividadesdesenvolvidas pelas Relatorias nos últimos dois anos e um quadro das missões por elasrealizadas. Apresentamos, também, uma entrevista com Jean Pierre Leroy, reconhecidomilitante das causas ambientais, que foi o primeiro relator para a área do Direito Humano aoMeio Ambiente, nos anos de 2003 e 2004.

Na segunda parte, cada uma das cinco Relatorias (Cidade, Educação, Meio Ambiente,Saúde Sexual e Reprodutiva e Terra, Território e Alimentação) sistematiza, num conjunto detextos, sua atuação desenvolvida desde 2009, as missões realizadas, os resultados do trabalhoe os desafios a serem enfrentados nos próximos anos. A terceira e última parte traz artigosproduzidos pela coordenação da Plataforma, que abordam questões relacionadas à política edireitos humanos e a redução das desigualdades de gênero e raça, apontando para umhorizonte dos direitos humanos no brasil.

Neste momento, de encerramento de mandato e de uma década de formação dasRelatorias em Direitos Humanos, é fundamental reconhecer e agradecer todo o trabalho eesforço dos(as) seis Relatores(as) e Assessores(as) que atuaram no último período, bem como

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Apresentação

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todos(as) os(as) Relatores(as) e Assessores(as) que já passaram por esse lugar, cuja dedicação foifruto da crença na importância que essa iniciativa adquiriu ao longo dos seus dez anos decriação e por compreender a necessidade de criação de instrumentos que garantam a promoção,o monitoramento e a exigibilidade dos direitos humanos no Brasil.

Queremos agradecer também a colaboração das agências internacionais EvangelischerEntwicklungsdienst (EED), Organização Intereclesiástica de Cooperação para oDesenvolvimento (ICCO), Fundação Ford e Fundação Heinrich Böll (HBS). O apoio dessasorganizações tem auxiliado e permitido, ao longo dos últimos anos, a realização das ações daPlataforma Dhesca e das Relatorias. Além desses parceiros, também têm sido fundamentaispara o trabalho das Relatorias os organismos que compõem o Conselho de Seleção eAcompanhamento: Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC), a Organização dasNações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO), o Programa de Voluntários da ONU(UNV), o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), a Organização dasNações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), a Entidade das Nações Unidaspara a Igualdade de Gênero e o Empoderamento das Mulheres (ONU Mulheres), o Fundo daONU para a Infância (Unicef), o Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA), a Secretariade Direitos Humanos (SDH), o Ministério das Relações Exteriores (MRE), a Comissão deDireitos Humanos e Legislação Participativa do Senado e a Comissão de Direitos Humanos eMinorias da Câmara dos Deputados.

Por fim, agradecemos enormemente aos movimentos sociais e organizações locais,regionais ou nacionais, que estiveram presentes em todos os momentos da atuação dasRelatorias, seja no envio de denúncias e informações sobre violações de direitos humanos, sejano apoio às missões, acompanhamento das Audiências Públicas e difusão dos Relatórios finaisdas visitas.

A continuada parceria com todos(as) foi imprescindível para a realização do trabalhodas Relatorias Nacionais em Direitos Humanos, que são uma iniciativa inovadora da sociedadecivil brasileira e constituem instrumento de grande valia para impulsionar as mudanças sociaisa que todos(as) almejamos.

Curitiba, junho de 2012A Coordenação

Apresentação l 7 l

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APlataforma dos Direitos Humanos Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais– Plataforma Dhesca Brasil – é uma rede nacional formada por 34 entidades da sociedade civil,que desenvolve ações de promoção, defesa e reparação de direitos humanos, visando aofortalecimento da cidadania e à radicalização da democracia.

A Plataforma Dhesca foi criada em 2001 como Capítulo Brasileiro da PlataformaInteramericana de Direitos Humanos, Democracia e Desenvolvimento (PIDHDD) e se articuladesde os anos 1990 para promover a troca de experiências e a soma de esforços na luta pelaimplementação dos direitos humanos, integrando organizações da sociedade civil de diversospaíses, em especial do Peru, Equador, Argentina, Chile, Bolívia, Colômbia, Paraguai eVenezuela.

O objetivo geral da Plataforma Dhesca Brasil é contribuir para a construção efortalecimento de uma cultura de direitos, desenvolvendo estratégias de exigibilidade ejusticiabilidade dos direitos humanos, bem como incidindo na formulação, efetivação e controlede políticas públicas sociais.

Juntamente com o Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH), o Processo deArticulação e Diálogo (PAD) e Parceiros de Misereor no Brasil, a Plataforma Dhesca compõea Coordenação do Projeto Monitoramento de Direitos Humanos no Brasil. Esse Projeto articulaos Contrainformes ao cumprimento do Pidesc, os Relatórios Periódicos da situação dosdireitos humanos no Brasil e a pressão para que o Estado brasileiro ratifique o ProtocoloFacultativo ao Pidesc.

Além disso, a Plataforma também atua para o fortalecimento de iniciativas nos camposda formação e difusão das experiências em Dhesca, o monitoramento do cumprimento doscompromissos assumidos pelo Estado brasileiro para a garantia de direitos, a incidência naformulação e monitoramento das políticas públicas de direitos humanos, como o ProgramaNacional de Direitos Humanos III (PNDH3) e a contribuição para que o Brasil adote um padrãode respeito aos direitos humanos, por meio da implementação e fortalecimento das RelatoriasNacionais em Direitos Humanos.

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Sobre aPlataforma Dhesca

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Relatorias em Direitos Humanos: 10 anos de construção e fortalecimento de uma cultura de direitos no Brasil

Em 2012, as Relatorias Nacionais em Direitos Humanos completam uma década. Foramcriadas em 2002, inspiradas na atuação dos Relatores Especiais das Nações Unidas, e surgiramcomo experiência extremamente inovadora e ferramenta com grande potencial de exigência emonitoramento de direitos humanos no Brasil.

Iniciativa original e exitosa, as Relatorias Nacionais surgiram no Brasil com o objetivode contribuir para que o país adote um padrão de respeito aos direitos humanos, com base naConstituição Federal de 1988, no Programa Nacional de Direitos Humanos e nos tratadosinternacionais de proteção dos direitos humanos ratificados pelo Brasil, por meio daimplementação de mecanismos de controle da sua exigibilidade.

Ao todo, o projeto contou até abril de 2012 com 22 Relatores(as) Nacionais1 e 24Assessores(as) para seis áreas específicas: Direito Humano ao Meio Ambiente, ao Trabalho, àEducação, à Saúde, à Moradia e à Terra Urbana e Direito Humano à Alimentação, Água e TerraRural. A partir de 2009, as áreas passaram a ser cinco: Direito Humano à Cidade, à Educação,ao Meio Ambiente, à Saúde Sexual e Reprodutiva e à Terra, Território e Alimentação. Deoutubro de 2002 a março de 2012, as Relatorias realizaram 124 missões para verificação dedenúncias de direitos humanos em mais de 100 municípios brasileiros.

Foram dez anos de transformações sociais, econômicas e políticas no Brasil. Enquanto oProjeto Relatores era criado, o país vivia o período eleitoral que culminaria com a vitória doPartido dos Trabalhadores, historicamente aliado dos movimentos sociais na luta por direitos noBrasil. Havia, portanto, por parte dos movimentos e organizações sociais, uma grandeexpectativa. No início do mandato, em 2003, o governo federal criou três secretarias especiais,ligadas à Presidência da República, com status de ministério: Secretaria Especial dos DireitosHumanos (SEDH), Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR) eSecretaria Especial de Políticas para Mulheres (SPM), ligadas às demandas da política de direitoshumanos, e criou também o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS).

10 anos de Relatorias em Direitos Humanos l 9 l

10 anos de Relatoriasem Direitos Humanos

1 Neste período três Relatores(as) foram reconduzidos(as) para mais um mandato e uma Relatoria teve substituição durante oprimeiro mandato (Direito Humano ao Trabalho).

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A despeito disso, a análise dos Planos Plurianuais do período demonstra que oinvestimento do governo em programas de transferência de renda, sob a gestão basicamente doMDS (como o Bolsa Família), foi muito maior que os recursos destinados para políticas promotorasda igualdade, como a igualdade racial, de gênero e para as populações vulneráveis ou comhistórico de discriminação,2 muito mais interligadas às recém-criadas Secretarias Especiais.

Reduziu-se, sim, a pobreza, mas não se alterou estruturas políticas e econômicas quealimentam a desigualdade e a exclusão: não se alterou a injusta estrutura tributária que fazcom que as pessoas com menor renda paguem proporcionalmente mais impostos no país; nãofoi realizada uma reforma política que permita uma verdadeira democratização dos espaços depoder e nada se avançou na democratização dos meios de comunicação e do Poder Judiciário.

Nos últimos dez anos, o governo e o mercado financeiro exultaram o “crescimentoeconômico” brasileiro, que colocou o país entre as seis maiores potências do mundo, mas nãofoi suficiente para diminuir substancialmente a desigualdade social no país, o que se percebepela análise dos dados do último Censo (2010) e pela atuação das Relatorias em DireitosHumanos no período. Ainda que nos últimos anos tenha havido esforços por parte do Estadobrasileiro para a redução de tal desigualdade, o contingenciamento de recursos das áreassociais, em benefício da consecução de uma política macroeconômica ainda ortodoxa econservadora, chamada por alguns inclusive de “reedição” do Consenso de Washington,contribui para agravar tal cenário. A opção por um modelo de desenvolvimento que propugnao crescimento econômico sem diminuir a desigualdade aumenta o fosso entre as classes e, talqual rolo compressor, viola direitos de milhares de pessoas.

Apesar disso, é possível considerar avanços no cenário dos direitos humanos no Brasil. Arealização de conferências estaduais e nacionais, que culminaram, em 2009, com a publicação do 3ºPrograma Nacional de Direitos Humanos, incorporando o pleito da sociedade civil brasileira e osprincípios da universalidade, transversalidade e interdependência dos direitos humanos é semdúvida uma grande vitória. Alvo de fortes críticas dos setores conservadores da sociedade, o PNDH-3 trouxe à tona o debate sobre direitos humanos, cujas discussões influenciaram sobremaneira aseleições de 2010, tendo sido inclusive modificado posteriormente pelo governo federal. Cedendo àspressões conservadoras, ações programáticas como o apoio ao projeto de lei que descriminaliza oaborto, a supressão de símbolos religiosos em repartições públicas e a regulação dos meios decomunicação foram suprimidas. Apesar disso, o PNDH-3 preservou deliberações importantes dasconferências que o originaram e continua sendo diretriz política fundamental a ser seguida peloEstado brasileiro e exigida pela sociedade e pelas próprias Relatorias.

Durante todo esse período, as Relatorias em Direitos Humanos pautaram situaçõesemblemáticas de violação aos direitos humanos e, muitas vezes, anteciparam grandesconfrontos. Missões realizadas em quilombos, territórios indígenas, comunidades urbanasdespejadas ou prestes a sê-lo, escolas, hospitais, presídios, assentamentos de Reforma Agrária,locais impactados pelo Programa de Aceleração do Crescimento, grandes obras de

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2 CICONELLO, Alexandre. Os avanços e contradições das políticas de direitos humanos no governo Lula. In: PAULA, Marilene de.Nunca antes na história desse país...?: um balanço das políticas públicas do Governo Lula. Rio de Janeiro, RJ: Fundação Heinrich Böll, 2011.

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infraestrutura e megaeventos, etc., além de diversas reuniões em órgãos públicos, promoção eparticipação de Audiências Públicas por todo o Brasil fazem das Relatorias Nacionaisimportante sujeito político para efetivação dos direitos humanos.

As Relatorias em Direitos Humanos

As Relatorias em Direitos Humanos possuem centralidade na atuação da PlataformaDhesca Brasil e têm sua razão de ser na exigibilidade e justiciabilidade dos Dhesca no Brasil.Configuram-se em importante instrumento de ampliação da exigibilidade dos direitoshumanos em território nacional, atualmente, mediante o diagnóstico e visibilização dosprocessos de violações de direitos no âmbito local.

Por meio das missões (visitas in loco), audiências públicas, reuniões e pronunciamentos,contando o envolvimento  de centenas de organizações e movimentos sociais, assim comorepresentantes do Poder Executivo, Legislativo e do Sistema de Justiça, as Relatorias pautam aagenda pública, ao mesmo tempo em que propõem recomendações e  medidas que devem sertomadas pelo poder público para garantir a dignidade e proteção das pessoas em situação deviolação de direitos e de vulnerabilidade.

A intervenção dos relatores é o que, muitas vezes, permite que comunidades,organizações e movimentos sociais identifiquem seus problemas dentro de um contexto maiorde violações, o que amplia também a capacidade de mobilização. Não são poucos os relatos depessoas e grupos que, a partir da intervenção dos(as) Relatores(as), conseguem pela primeiravez dialogar com os poderes públicos – o que demonstra a imaturidade da nossa democraciae a importância de projetos como as Relatorias para a superação de tal problema.

Dessa forma, as Relatorias almejam também contribuir para o fortalecimento dacapacidade organizativa da sociedade civil, no que tange ao controle social das políticaspúblicas e ao monitoramento social dos direitos humanos, fortalecendo a sociedade civil comosujeito político autônomo e fortalecido.

Quem são os(as) relatores(as)?

As relatoras e os relatores são especialistas em direitos humanos, escolhidos por umConselho de Seleção composto por órgãos do Poder Legislativo (Comissão de Direitos Humanos eMinorias da Câmara e Comissão de Direitos Humanos do Senado), Poder Executivo (Secretaria deDireitos Humanos e Ministério das Relações Exteriores), Sistema de Justiça (Procuradoria Federaldos Direitos dos Cidadãos – PFDC) e Agências da ONU (FAO, PNUD, Unesco, ONU Mulheres,UNV, Unicef, UNFPA) para o mandato de dois anos. Para a escolha, são tomados como base critériosde conhecimento e experiência profissional no campo dos direitos humanos; reconhecimentopúblico do compromisso com a promoção de tais direitos; legitimidade perante fóruns, redes eorganizações da sociedade civil e autonomia e independência perante os órgãos governamentais.As(os) relatoras(es) exercem sua função de forma voluntária, sem remuneração profissional. Emgeral, são ligados a redes de referência, que lhes dão suporte e sugestões de demandas.

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Ao fazermos uma reflexão sobre os 10 anos dasRelatorias em Direitos Humanos, não se poderia deixarde fora Jean Pierre Leroy. Vastamente conhecido pelosmilitantes da área ambiental, Jean Pierre participou daconstrução do projeto, de suas bases metodológicas e deseu formato de atuação. Foi o primeiro relator para oDireito Humano ao Meio Ambiente da PlataformaBrasileira de Direitos Humanos Econômicos, Sociais e

Culturais, nos anos de 2003 e 2004, período em que levantou violações de direitos humanosque, infelizmente, se perpetuam pelo país. Jean Pierre Leroy é filósofo e mestre em Educação,nascido na França, mas acolhido pelo Brasil desde 1971, quando desembarcou no Pará, ondeconviveu com pescadores do Salgado e moradores do subúrbio de Belém. Quatro anos maistarde, iniciou o seu trabalho na Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional(Fase), coordenando programas para pequenos agricultores e agroextrativistas – primeiro, emSantarém, e, em seguida, em Santa Luzia, no Maranhão. Em 1977, passou a fazer parte daequipe nacional da Fase, na qual chegou a assumir o cargo de coordenador nacional. Foi co-organizador dos relatórios do Fórum Brasileiro de ONGs e Movimentos Sociais (FBOMS) paraas Conferências Internacionais da Rio-92 e Rio+5. Membro da Rede Brasileira de JustiçaAmbiental, é autor de Uma chama na Amazônia e territórios do futuro: educação, meio ambiente e

educação coletiva – este último publicado em 2010 pela editora Lamparina. Confira abaixo suareflexão sobre direitos humanos, o papel das Relatorias e os desafios para o tema ambiental.

Quais potencialidades do Projeto Relatores você destacaria frente à necessária apropriaçãodos direitos humanos pela sociedade, tanto quanto de meios para a exigibilidade? O Projeto Relatores, a condição que ele esteja sustentado e apoiado por um leque amplo ediversificado de entidades e consiga localmente mobilização e visibilidade, é um poderosoinstrumento de conscientização sobre os direitos e de visibilidade dos grupos sociais queapresentam denúncias. Pode também constranger o poder local, inclusive o aparelho judiciário.

Entre todos os instrumentos usados pelos Relatores, como as missões, denúncias, relatório,audiências públicas, o que você avalia possuir maior efetividade frente ao desafio daimplementação dos direitos humanos no Brasil? As missões são um elemento central no Projeto Relatores. São elas que dão consistência e forçaàs denúncias e fazem com que os relatórios não sejam burocráticos. É nelas que se tem o contatocom as pessoas e grupos atingidos e se interage com eles.

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EntrevistaJean Pierre Leroy

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Você foi relator do mandato de 2003. À época, o que te motivou a apresentar a candidatura,e como viu o desafio de ser um relator nacional em direitos humanos?Eu fui o primeiro relator para o direito humano ao meio ambiente. À diferença das outrasRelatorias, parece que não havia candidato consistente para essa Relatoria e fui sondado.Acabávamos de criar a Rede Brasileira de Justiça Ambiental e me senti motivado, poisencontrava ou ouvia falar de muitas comunidades atingidas por questões ambientais e percebiaque não se fazia ou se fazia pouco a conexão entre as questões ambientais e os direitos humanos.

Enquanto você foi relator, alguma situação foi mais significativa que você recorda até hoje? Todas as missões que fizemos continuam extremamente presentes na minha memória e meparecem até hoje significativas. Como esquecer a ansiedade dos Cinta-largas e o misto deesperança e de desamparo dos Xavantes da terra Marawatsede? Os quilombolas despertandopara resgatar seus direitos e sua dignidade? A Irmã Dorothy e os lavradores de Anapú acuadospelos grileiros? E os moradores de Porto de Moz criando coragem para denunciar o entãoprefeito? As marisqueiras e pescadores do litoral cearense enfrentando a carcinicultura e osresorts? O povo das veredas mineiras frente ao eucalipto? A energia dita renovável e as empresaspúblicas de energia comportando-se frente aos atingidos como modernos senhores de escravos?

Em seu relatório de 2003, o primeiro caso apresentado como atuação da Relatoria naqueleano incluiu o complexo hidrelétrico de Belo Monte, que foi também um dos temas detrabalho da Relatoria de Meio Ambiente em 2010 e 2011. Como você avalia essapermanência de determinadas pautas no horizonte da sociedade civil?O ambiente político, econômico e ideológico coloca o desenvolvimento como a prioridadeabsoluta e faz acreditar que todos vão se aproveitar deles, e que é inevitável que haja algumaspessoas e comunidades que sejam afetadas. Além disso, a mentalidade predatória e de ocupaçãode terras pela força, que vem desde os tempos do Brasil Colônia, continua até hoje, combinando-se agora com a “modernidade”. Do outro lado, a permanência de certas pautas mostra que hácomunidades e grupos sociais que não desistem das suas lutas pelo reconhecimento dos seusdireitos.

Existe algum tema que você trabalhou quando relator e que considera já ter sido“resolvido”? O que mais se aproximou de uma solução? Os agroextrativistas de Porto de Moz conquistaram a sua Resex Verde para sempre e ospequenos produtores de Anapú a sua Reserva de Produção Sustentável, mas a violência, asameaças e a falta de políticas públicas continuam. No geral, no que diz respeito ao direitohumano ao meio ambiente, estimo que estamos conhecendo uma grave regressão. Talvezpossamos vislumbrar algum progresso na agenda marrom nas cidades.

O Brasil recebe em 2012 a Rio+20, num importante momento de debate sobre modelo dedesenvolvimento e de grandes acordos internacionais. Quais desafios você enxerga para asociedade civil neste momento?Para a sociedade civil organizada, construir um pensamento e propostas que não sejam atreladas esubordinadas às propostas oriundas do meio empresarial mundialmente dominante. Conseguir secomunicar e se fazer entender de boa parcela da sociedade. Enfim, influenciar o poder público.

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Relatoria Nacional do Direito Humano à CidadeE-mail: [email protected]

n Relator: Orlando Alves dos Santos JuniorProfessor do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da UniversidadeFederal do Rio de Janeiro (IPPUR/UFRJ). Possui mestrado e doutorado em PlanejamentoUrbano e Regional pela UFRJ, com experiência na área de Sociologia Urbana e atuaçãonos seguintes temas: planejamento urbano, política urbana, cidadania, democracia ecultura política e participação social. Atualmente coordena o projeto Metropolização e

megaeeventos: impactos dos Jogos Olímpicos/2016 e Copa do Mundo/2014, no âmbito da RedeObservatório das Metrópoles, da qual integra a coordenação nacional.

n Assessor: Cristiano MullerPossui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Pontifícia Universidade Católica doRio Grande do Sul (1996) e doutorado em Direitos Humanos e Desenvolvimento pelaUniversidad Pablo de Olavide (2007) de Sevilha, Espanha. Atuou como consultor jurídicodo Centro pelo Direito à Moradia contra Despejos (COHRE) (2007-2010) e comoconselheiro das cidades (2008-2010). Atualmente é coordenador jurídico do Centro deDireitos Econômicos e Sociais. Tem experiência na área do Direito, com ênfase em DireitoConstitucional, atuando principalmente nos seguintes temas: direitos humanos, direitosfundamentais, direito urbanístico e direito à cidade.

Relatoria do Direito Humano à EducaçãoE-mail: [email protected]

n Relatora: Denise CarreiraJornalista e educadora social, feminista, doutoranda e mestre pela Faculdade de Educaçãoda USP. Exerceu a coordenação da Campanha Nacional pelo Direito à Educação entre2003 e 2006. Coordenou o Centro de Direitos Humanos e Educação Popular do Acre e aarticulação Aquiri/Unicef. Foi presidente do Conselho dos Direitos da Mulher de RioBranco (AC), integrante do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher e educadora da

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Composição dasRelatorias em Direitos Humanos – 2009/2011

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Rede Mulher de Educação. Coordenou a Assessoria de Comunicação e Multimeios daSecretaria Municipal de Educação de São Paulo e o Núcleo de Comunicação do Cenpec.Foi repórter da Folha de S. Paulo, editora da revista Debates Socioambientais e consultorado WWF, da Fundação Abrinq e do Fundo de Igualdade de Gênero da Embaixada doCanadá. Relatora do Direito Humano à Educação no período 2007-2011. Atualmentecoordena a área de educação da ONG Ação Educativa.

n Assessora: Suelaine CarneiroSocióloga, educadora social, feminista, integrante do Curso de Extensão Equidade noAcesso à Pós-Graduação da UFSCar. Atualmente é coordenadora do Programa deEducação da ONG Geledés Instituto da Mulher Negra. É ativista da Articulação deMulheres Negras Brasileiras (AMNB), da Campanha Nacional pelo Direito à Educação;integrante do Fórum de Educação e Diversidade Étnico-Racial do Estado de São Paulo.

Relatoria do Direito Humano ao Meio AmbienteE-mail: [email protected]

n Relator: José Guilherme Carvalho ZagalloAdvogado e integrante da Rede Brasileira de Justiça Ambiental e do Conselho Diretorda Sociedade Maranhense de Direitos Humanos (2009). Zagallo representa a OABMaranhão no Conselho Estadual de Direitos Humanos e em 2009 foi eleito para aRelatoria do Direito Humano ao Meio Ambiente da Plataforma Dhesca.

n Relatora: Marijane Vieira LisboaDoutora em Ciências Sociais pela PUC-SP, é socióloga e ministra cursos nas áreas de MeioAmbiente, Direitos Humanos e Relações Internacionais na PUC-SP. Marijane foi uma dasfundadoras do Greenpeace Brasil e integrou o secretariado do Ministério do MeioAmbiente durante a gestão da senadora Marina Silva. Atua como consultora de entidadese organizações não governamentais no Brasil e no exterior e é integrante da RedeBrasileira de Justiça Ambiental. Em 2009, foi reeleita para a Relatoria do Direito Humanoao Meio Ambiente da Plataforma Dhesca.

n Assessora: Cecília Campello de A. MelloDoutora em Antropologia e professora-adjunta do Instituto de Pesquisa e PlanejamentoUrbano e Regional da UFRJ. Cecília atuou como colaboradora da Fase e integrou asecretaria da Rede Brasileira de Justiça Ambiental.

Composição das Relatorias em Direitos Humanos – 2009/2011 l 15 l

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Relatoria do Direito Humano à SaúdeE-mail: saú[email protected]

n Relatora: Maria José de Oliveira AraujoAtivista dos direitos das mulheres, médica, foi gestora pública, coordenando Políticas deSaúde para as Mulheres durante 13 anos, na Secretaria Municipal de Saúde de São Pauloe no Ministério da Saúde, em Brasília. Foi uma das mulheres indicadas para o PrêmioNobel da Paz em 2005, fundadora da Rede Nacional Feminista de Saúde, Direitos Sexuaise Direitos Reprodutivos e atual coordenadora da sua regional, na Bahia. Pertence aoConselho Consultivo da Red de Salud de las Mujeres Latinoamericanas y del Caribe.Relatora do Direito à Saúde Sexual e Reprodutiva da Plataforma Dhesca no mandato 2009a 2011. Diretora honorária do curso de especialização em Direitos Humanos e Gênero daFundação Henry Dunnant, Chile/França.

n Assessora: Maria Cecília Moraes SimonettiMestre em Saúde Coletiva pelo Instituto de Saúde Coletiva (ISC/UFBA). Atualmente épesquisadora do MUSA – Programa Integrado de Pesquisa e Cooperação Técnica emGênero e Saúde do ISC/UFBA. De 1995 a 2002, foi conselheira regional do Fundo dasNações Unidas para a População em advocacy e comunicação para a implantação doPrograma de Ação do Cairo (CIPD) em 15 países da África Austral, nas temáticas deGênero, Adolescência e HIV/Aids. De 2002 a 2005 foi consultora da Pathfinder do Brasilem advocacy e comunicação na área da saúde e dos direitos sexuais e reprodutivos. Éativista da Rede Nacional Feminista de Saúde, pertencendo à diretoria do IMAIS(Instituto Mulheres pela Atenção Integral à Saúde), e do ELO (Escritório de Ligação eOrganização).

Relatoria do Direito Humano à Terra, Território e AlimentaçãoE-mail: [email protected]

n Relator: Sérgio SauerDoutor pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade de Brasília(UnB) e mestre em Filosofia da Religião pela Universidade de Bergen/Stavanger(Noruega). É professor da Faculdade de Planaltina (FUP – Universidade de Brasília) edos Programas de Pós-Graduação em Agronegócios (Propaga – FAV/UnB) e de Pós-Graduação em Meio Ambiente e Desenvolvimento Rural (PPGMADER – FUP/UnB).

n Assessor: Gladstone Leonel da Silva JuniorAdvogado, graduado pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Viçosa,trabalhou com assessoria jurídica popular em comunidades atingidas por barragem e deluta pela terra. Especializou-se em Sociologia Política na Universidade Federal do Paranáe atuou entre 2007 e 2008 na Terra de Direitos. É mestre em Direito pela UniversidadeEstadual Paulista e doutorando em Direito pela Universidade de Brasília.

RELATORIAS EM DIREITOS HUMANOS: fortalecimento de uma cultura de direitos no Brasill 16 l

Page 17: Relatorias em Direitos Humanos: fortalecimento de uma cultura de direitos no Brasil

Data

Outubro/2008 aabril/2009

Setembro/2009a

novembro/2009

Novembro/2009

Dezembro/2009

Março/2010

Maio/2010

Julho/2010

Julho/2010

Julho/2010

Julho/2010

Nome da missão

Educação nas prisõesbrasileiras

Missão Xingu: Violações dedireitos humanos nolicenciamento da UsinaHidrelétrica de Belo Monte

Missão Santarém: Violaçõesde direitos humanos acomunidades indígenas,quilombolas e ribeirinhas noRio Arapiuns

Despejos e remoções decomunidades de baixarenda em São Paulo (SP)

Missão ao Conjunto PenalFeminino em Salvador

Educação e racismo noBrasil

Missão à Cadeia Femininade Verdejante

Despejos e remoções decomunidades de baixarenda em Teresina e Nazária

Vazamentos de urânio naBahia

Missão à PenitenciáriaMadre Pelletier

Relatoria

DHE

DHMA

DHTTA

DHC

DHS

DHE

DHS

DHC

DHMA

DHS

Tipo

Investigação

Investigação

Investigação

Investigação

Investigação

Investigação

Investigação

Investigação

Investigação

Investigação

Municípiosvisitados

Recife, Itamaracá,Diadema, SãoPaulo, Tremembé,Porto Alegre,Santa Izabel doPará, Belém

Altamira, Belém,Senador JoséPorfírio

Santarém

São Paulo

Salvador

Rio de Janeiro

Verdejante

Teresina, Nazária

Caetité

Porto Alegre

UF

PA, PE, RS, SPe DF

PA

PA

SP

BA

RJ

PE

PI

BA

RS

Mapa das missões realizadas l 17 l

Mapas das missões realizadas

Page 18: Relatorias em Direitos Humanos: fortalecimento de uma cultura de direitos no Brasil

RELATORIAS EM DIREITOS HUMANOS: fortalecimento de uma cultura de direitos no Brasill 18 l

Data

Outubro/2010

Outubro/2010

Abril/2011

Abril/2011

Maio/2011

Agosto/2011

Setembro/2011

Outubro/2011

Nome da missão

Morte materna evitável edireitos humanos e visita aoCentro de ReeducaçãoFeminina

Violações de direitoshumanos de comunidadesquilombolas eribeirinhas, povos indígenase famílias assentadas deReforma Agrária às margensdo Rio São Francisco

Missão Caetité: Violaçõesde direitos humanos noCiclo do Nuclear

Violações de direitoshumanos nas hidrelétricasdo Rio Madeira

Copa do Mundo – políticaspúblicas e direito à cidade

Violações de direitoshumanos aos povos da terraindígena Maró no oeste doestado do Pará

Missão educaçãoquilombola

Despejos e remoções decomunidades de baixarenda em São Luís doMaranhão

Relatoria

DHS

DHTTA

DHMA

DHMA

DHC

DHTTA

DHE

DHC

Tipo

Investigação

Investigação

Seguimento

Seguimento

Investigação

Seguimento

Investigação

Investigação

Municípiosvisitados

Belém

Petrolina, SantaMaria da BoaVista, Cabrobó

Caetité eSalvador

Porto Velho

Rio de Janeiro

Santarém

Paulistana,Paquetá,Amarante

São Luís

UF

PA

PE

BA

RO

RJ

PA

PI

MA

Page 19: Relatorias em Direitos Humanos: fortalecimento de uma cultura de direitos no Brasil

Painel fotográfico das Relatorias l 19 l

Posse das Relatorias em Direitos Humanos

realizada em setembro de 2009, em Brasília

Relatores do Direito Humano ao Meio Ambiente

participam de audiência na Vila Ressaca, no

Pará, onde ouvem os relatos das comunidades

impactadas pela Usina de Belo Monte

Painel fotográficodas Relatorias

Em dezembro de 2009, Relatoria

do Direito Humano à Cidade visita

remoções em São Paulo e encontra

barracos destruídos na beira do

Córrego das Águas Espraiadas

Relatoria do Direito Humano ao

Meio Ambiente em audiência

pública sobre Belo Monte, realizada

em março de 2010

Page 20: Relatorias em Direitos Humanos: fortalecimento de uma cultura de direitos no Brasil

l 20 l

Comunidade Estradinha enfrenta

risco por causa de escombros

deixados pela prefeitura do Rio.

Relatoria do Direito Humano à

Cidade acompanhou as denúncias

Relatoria do Direito Humano à Educação

em reunião preparatória sobre Missão

Educação e Racismo no Rio de Janeiro

Seminário

Raça e

Gênero,

realizado

em agosto

de 2010

RELATORIAS EM DIREITOS HUMANOS: fortalecimento de uma cultura de direitos no Brasil

Relatoria do Direito

Humano ao Meio

Ambiente durante

audiência pública

sobre exploração de

urânio em Caetité

Apesar da possibili-

dade de contaminação

da água pela extração

de urânio, moradores

de Caetité se veem

obrigados a pegarágua dos poços.

Relatores do Direito

Humano ao Meio Ambiente estudam o caso

Page 21: Relatorias em Direitos Humanos: fortalecimento de uma cultura de direitos no Brasil

l 21 l

Relatorias de Direito Humano apresentam

relatório em audiência pública realizada

na CDHM, em dezembro de 2010

Seminário de

planejamento

das Relatorias,

realizado

em dezembro

de 2010

Redes de Direito Humano, entre elas a

Plataforma Dhesca Brasil, se reúnem com a

ministra Maria do Rosário sobre o Plano

Nacional de Direitos Humanos, em

fevereiro de 2011

Relatoria do Direito

Humano à Terra, Território

e Alimentação em

audiência pública sobre o

impacto da transposição do

Rio São Francisco para

comunidades tradicionais

e assentamentos rurais

Painel fotográfico das Relatorias

Page 22: Relatorias em Direitos Humanos: fortalecimento de uma cultura de direitos no Brasil

Comissão de Seleção se reúneem Brasília para escolha dasnovas Relatorias em DireitosHumanos, em maio de 2012

RELATORIAS EM DIREITOS HUMANOS: fortalecimento de uma cultura de direitos no Brasill 22 l

Relatoria do Direito

Humano à Cidade durante

missão no Rio de Janeiro

sobre remoções para a

Copa do Mundo Trabalhadores da Usina de Jirau deixam

o acampamento por conta das

péssimas condições de trabalho.

Relatoria do Direito Humano ao Meio

Ambiente esteve no local e levantou

dados sobre o impacto da obra na região

Relatoria de Meio

Ambiente apresenta

relatório sobre

vazamento de urânio

em Caetité (BA), em

outubro de 2011

Page 23: Relatorias em Direitos Humanos: fortalecimento de uma cultura de direitos no Brasil

Grandes empreendimentosurbanos e megaeventosesportivos no Brasil:dilemas e desafios dodireito à cidade

Nos últimos anos, são evidentes os avanços ocorridos no Brasil na adoção dediretrizes, políticas e instrumentos de afirmação do direito à cidade, envolvendo o direito àmoradia, ao saneamento ambiental, à mobilidade e à participação na gestão urbana. Avançosesses que se expressam, entre outras coisas, na aprovação do Estatuto da Cidade, na criação doMinistério das Cidades e do Conselho das Cidades e na instituição do Sistema Nacional deHabitação de Interesse Social. No entanto, o processo de produção capitalista das cidades nocontexto da globalização contemporânea, aliado ao legado histórico de fortes desigualdadessociais, revela-se como um forte obstáculo para a efetivação do direito à cidade para todos etodas, ao mesmo tempo em que tem sido promotor de graves situações de violação a esse direitohumano coletivo. Além disso, não se pode ignorar a sobrevivência e reprodução da tradicionale cultural manipulação do Estado como coisa privada e pessoal no Brasil, que comumenteenvolve a arbitrariedade, o clientelismo e a defesa deprivilégios decorrentes da privatização da esfera públicae do controle das administrações locais, entre outras.

De fato, há fortes indícios de que existem alte-rações no padrão clássico conservador de acumulaçãourbana. Nesse contexto, as cidades brasileiras estariamvivendo um momento crucial de transformações quecoloca a necessidade de atualizar a questão urbana eformular novas propostas de ação, envolvendo novosmodelos de planejamento e gestão das cidades. Percebe-se

Relatoria do Direito Humano à Cidade l 23 l

Relatoria do Direito Humano à Cidade

Percebe-se que ascidades brasileiraspassam a constituiratrativas fronteiras para ocapital financeiro e a serincluídas nos circuitosmundiais de acumulaçãodo capital...

Page 24: Relatorias em Direitos Humanos: fortalecimento de uma cultura de direitos no Brasil

que as cidades brasileiras passam a constituir atrativas fronteiras para o capital financeiro e aser incluídas nos circuitos mundiais de acumulação do capital, exatamente em razão do ciclode prosperidade e estabilidade que o país atravessa, combinado com a existência de ativosurbanos (imóveis e infraestrutura) passíveis de serem espoliados, ou seja, comprados a preçosdesvalorizados, e integrados aos circuitos internacionalizados de valorização financeira.

Pode-se observar nas cidades brasileiras, com efeito, a emergência de uma governançaempreendedorista, que mantém as antigas práticas patrimonialistas de acumulação urbana ede representação baseadas no clientelismo, ao mesmotempo em que promove novas práticas orientadas pelatransformação das cidades em commodities, gerando umnovo processo de mercantilização das cidades. Talcombinação resulta em um padrão de governançabastante peculiar, fundado no empresariamento ur-bano, em que o planejamento e a regulação sãosubstituídos por um padrão de intervenção porexceção, com os órgãos da administração pública ecanais institucionais de participação democráticoscrescentemente fragilizados. A crescente hegemonia dagovernança empreendedorista fundada na lógica doempresariamento urbano, ao tratar a cidade comocommodity, desencadeia dinâmicas econômicas, sociais,políticas e espaciais frontalmente contrárias aos prin-cípios do direito de cidade e do direito à cidade. OEstatuto da Cidade, após dez anos de sua promulgação, parece viver os efeitos dos conflitos entreessas duas visões, o que explica os dilemas para a efetivação dos instrumentos nele previstos.

Reconhecendo a diversidade das causas encadeadoras de processos de violação dodireito à cidade, percebeu-se a importância de acompanhar os casos de violação vinculados:

n aos grandes empreendimentos urbanos, em geral relacionados à reestruturaçãodas áreas centrais e/ou a criação de infraestrutura visando a dinamizaçãoeconômica das cidades e

n a realização dos megaventos esportivos, tendo em vista o fato do Brasil sediar aCopa do Mundo de Futebol de 2014 e as Olimpíadas em 2016.

Para a seleção dos casos, foi fundamental a relação com o Fórum Nacional de ReformaUrbana, coalizão social integrada por movimentos populares urbanos, organizações nãogovernamentais, entidades profissionais e acadêmicas, responsável pela indicação.

Em todos os casos visitados, percebe-se que o poder público tem tido um papel centralna criação de um ambiente propício aos investimentos, principalmente aqueles vinculados aossetores do capital imobiliário, das empreiteiras de obras públicas, das construtoras, do setorhoteleiro, de transportes, de entretenimento e de comunicações.

Nessa perspectiva, o poder público tem adotado diversas medidas vinculadas aosinvestimentos desses setores, tais como: isenção de impostos e financiamento com taxas de juros

RELATORIAS EM DIREITOS HUMANOS: fortalecimento de uma cultura de direitos no Brasill 24 l

A crescente hegemonia da governançaempreendedorista fundada na lógica doempresariamento urbano,ao tratar a cidade comocommodity, desencadeiadinâmicas econômicas,sociais, políticas eespaciais frontalmentecontrárias aos princípiosdo direito de cidade e do direito à cidade.

Page 25: Relatorias em Direitos Humanos: fortalecimento de uma cultura de direitos no Brasil

reduzidas; transferência de patrimônio imobiliário, sobretudo pelas parcerias público-privadas(PPPs) e operações urbanas consorciadas; e remoção de comunidades de baixa renda das áreas aserem revitalizadas. De fato, a existência das classes populares em áreas de interesse desses agenteseconômicos se torna um obstáculo ao processo de apropriação desses espaços aos circuitos devalorização do capital vinculados à produção e à gestão da cidade. Efetivamente, tal obstáculo temsido enfrentado pelo poder público por meio de processos de remoção, envolvendo reassentamentosdas famílias para áreas periféricas, compra assistida de novos imóveis, indenizações ousimplesmente despejos. Na prática, a tendência é que esse processo se constitua numa verdadeiratransferência de patrimônio sob a posse das classes populares para alguns setores do capital.

Dessa forma, pode-se dizer que essas remoções são processos de espoliação urbana,em que as terras utilizadas como valor de uso pelos seus moradores são espoliadas eapropriadas como valor de troca e integradas ao circuito de valorização imobiliária pelo capital,através da aquisição desses ativos por baixo preço e de sua transformação em ativosvalorizados, seja pelos investimentos públicos em urbanização, seja pelos efeitos da expulsãoda população pobre dessas áreas. As indenizações, quando oferecidas pelo poder público, sãoincapazes de garantir o acesso a outro imóvel situado na vizinhança próxima, tendo em vistao não reconhecimento do seu valor de mercado, o que é justificado pela situação deirregularidade fundiária desses imóveis. Ou seja, é preciso identificar nesses processos os novosagentes que se apropriam dessas áreas revitalizadas e/ou reurbanizadas.

Os casos visitados pela Relatoria do Direito à Cidade – em São Paulo (SP), em Teresina(PI), no Rio de Janeiro (RJ) e em São Luís (MA) – são bastante ilustrativos desse processo, nãosó pelo número de famílias despejadas, mas pelos mecanismos de despossessão e privaçãoadotados, assim como pelos lugares reservados para as famílias de baixa renda nessas cidades.Na maioria das vezes, os processos de remoção têm impossibilitado a permanência das famíliasna mesma localidade ou no mesmo bairro, seja pela distância da maioria dos empreendimentoshabitacionais oferecidos para reassentamento das comunidades afetadas, seja pelos valoresoferecidos de indenização ou compra assistida, que tem por base o valor das benfeitorias e nãoseu valor de mercado.

Percebe-se que se está diante de intervenções urbanas de grande intensidade,vinculadas à preparação da cidade para novos empreendimentos econômicos, em geral, oupara sediar a Copa do Mundo de Futebol e as Olimpíadas – no caso específico do Rio de Janeiro–, que vem provocando, ou tem o potencial de provocar, intensos processos de valorizaçãoimobiliária. Em geral essas intervenções não abarcam o conjunto da cidade, pois sãointervenções seletivas em algumas áreas da cidade, em especial sua área central ou de expansãourbana. O problema é que essas intervenções afetam diversas áreas, em geral consolidadas,ocupadas por populações de baixa renda, que apresentam como característica o fato de teremsido relativamente desvalorizadas e desprezadas pelo setor imobiliário ao longo dos últimosanos, o que era reforçado exatamente pelo fato de serem ocupadas por populações de baixarenda. Tais áreas passam a ser do interesse do setor imobiliário exatamente devido àsintervenções urbanísticas previstas ou em curso.

Ao mesmo tempo, cabe registrar algumas contradições. Esses processos de remoçõesvinham ocorrendo em um contexto nacional de afirmação do direito à moradia, seja na forma

Relatoria do Direito Humano à Cidade l 25 l

Page 26: Relatorias em Direitos Humanos: fortalecimento de uma cultura de direitos no Brasil

de unidades habitacionais oferecidas para a população de baixa renda reassentada emconjuntos construídos na esfera do programa Minha Casa Minha Vida (promovido pelogoverno federal, no âmbito da política nacional de interesse social), seja como princípioorientador da política de habitação de interesse social em curso em muitas dessas cidades. Noentanto, tais princípios não pareciam balizar a atuação das prefeituras municipais e dosgovernos estaduais como um todo, sobretudo quando estavam em jogo os interesseseconômicos vinculados aos projetos de revitalização urbana em curso.

Os casos visitados também permitem levantar alguns pontos de reflexão sobre opadrão de intervenção do poder público nas cidades brasileiras no contexto da governançaempreendedora empresarial.

Em primeiro lugar, as políticas públicas urbanas vinculadas a esses grandesempreendimentos urbanos ou aos megaeventos esportivos, sobretudo aquelas vinculadas aosprogramas federais, parecem estar associadas a investimentos em políticas, equipamentos eserviços urbanos – habitação, saneamento, saúde e educação – destinados às classes populares.Aqui é preciso considerar que o grau em que tais políticas são desenvolvidas é variável emcada localidade e parece estar fortemente ligado à natureza da coalizão empreendedoristaempresarial que emerge em cada cidade brasileira. No quadro das grandes desigualdadessociais que marcam o país, pode-se colocar como hipótese a necessidade desses investimentosem políticas urbanas para as classes populares como requisito para a legitimação do Estado eda coalizão que sustenta essa nova governança urbana empreendedorista empresarial.

De fato, não é raro observar nas grandes cidades brasileiras, ao lado do intensoprocesso de remoção de comunidades compostas por famílias de baixa renda nas áreasrevitalizadas, a existência de investimentos em urbanização e regularização de favelas eassentamentos precários, sobretudo pelo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC).Também se observam importantes investimentos voltados à população de baixa renda, comoa regularização fundiária de ocupações de imóveis públicos e o financiamento deempreendimentos habitacionais geridos pelos movimentos sociais de moradia (ProgramaMinha Casa Minha Vida – PMCMV-Entidades).

No entanto, seja qual for o caráter redistributivo dos investimentos, o projeto de cidadeque está em curso parece aprofundar o padrão de urbanização excludente que caracteriza a ordemurbana brasileira, marcado pelo isolamento (autossegregação, pela ordem urbana negadora daalteridade) e por uma nova rodada de mercantilização (valorização) de grandes áreas das cidades.Essa nova rodada de mercantilização da cidade seria fundamentalmente caracterizada pelatransformação de espaços, equipamentos e serviços urbanos desvalorizados – e, portanto,parcialmente ou totalmente desmercantilizados – em mercadoria, ou seja, em ativos inseridos noscircuitos de valorização do capital. Esse processo ocorre pela transferência forçada de ativos sob ocontrole das classes populares para setores do capital imobiliário ou de serviços urbanos e pelacriação de novos serviços e equipamentos urbanos que serão geridos pela iniciativa privada (porexemplo, na área do transporte, esporte e lazer).

Assim, cabe levantar algumas questões relativas ao conflito contemporâneo entre osprocessos de mercantilização e desmercantilização da cidade. Seria ingênuo pensar que a difusão

RELATORIAS EM DIREITOS HUMANOS: fortalecimento de uma cultura de direitos no Brasill 26 l

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da governança empreendedorista empresarial éalcançada apenas com base na negação dos direitos e napromoção da desigualdade e da exclusão social. Aocontrário, percebe-se que a promoção da mercantilizaçãoda cidade ocorre, em geral, acionando alguma moda-lidade de defesa dos direitos individuais, no caso,fundamentalmente o direito à propriedade e à liberdade,ao mesmo tempo em que representa um ataque aosprocessos de desmercantilização e aos direitos sociais ecoletivos de parcelas significativas da população, que têmnegado o seu direito de permanecer nas áreas em quehabitavam, agora de interesse de grandes agenteseconômicos, e de participar da discussão em torno dosprojetos urbanos em curso.

Considerando-se as configurações sociais das diferentes comunidades afetadas pelasintervenções urbanas, poder-se-ia constatar remoções, ou seja, processos de transferência deativos sob o controle das classes populares para outros agentes econômicos e sociais, no qualparcela da população (por exemplo, em situação de vulnerabilidade social e vivendo emhabitações precárias) poderia estar sendo beneficiada com a aquisição de um imóvelregularizado e em bom estado, mesmo em uma área distante; enquanto que outra parcela damesma comunidade (com sua inserção social mais ou menos estabilizada em razão de vínculosestabelecidos com redes sociais e de trabalho formais ou informais) poderia estar sendovulnerabilizada pela sua exclusão da área na qual organiza sua reprodução social. Dito de outraforma, o direito à moradia pode estar ao mesmo tempo sendo negado e promovido, desde quepermita e não ameace o processo de mercantilização da cidade, em um contexto de claraviolação do direito à cidade como direito coletivo.

Nesse plano, é preciso levar em consideração que os despejos e as remoções ocorremsob a legitimidade conferida pelo Poder Judiciário (que permite e determina as remoções) e daordem pública, que operam no conflito entre, de um lado, o discurso em torno dos direitosindividuais, da liberdade e dos processos de mercantilização da cidade – encarnado pelo poderpúblico e pela coalizão de forças que sustenta a nova governança empreendedoristaempresarial, sob o discurso do interesse público em torno do desenvolvimento econômico esocial – e de outro, o discurso em torno dos direitos sociais e coletivos e os processos dedesmercantilização da cidade, encarnado pelos movimentos sociais organizados em torno dareforma urbana e do direito à cidade. Mas ambos os discursos se expressam em políticaspúblicas e aparatos institucionais no interior do aparelho de Estado, apesar da lógica mercantilser a dominante e hegemônica. Daí resulta a dificuldade de enfrentamento desse projeto.

A reprodução social na cidade depende de condições concretas. Nessa perspectiva, odireito à cidade significa o direito de todos e de todas ao acesso à habitação e a todos os serviçosrelacionados à vida urbana e necessários ao bem-estar coletivo, conforme os valores e ascategorias de representação da sociedade em questão. Mas a cidade em sua forma material esimbólica se traduz em um estilo de vida, uma forma de organização social. Portanto, o direito

Relatoria do Direito Humano à Cidade l 27 l

...o direito à moradiapode estar ao mesmotempo sendo negado epromovido, desde quepermita e não ameace o processo demercantilização da cidade, em um contextode clara violação dodireito à cidade comodireito coletivo.

Page 28: Relatorias em Direitos Humanos: fortalecimento de uma cultura de direitos no Brasil

à cidade também inclui, talvez principalmente, o direito de dizer em que cidade se quer viver,ou seja, inclui o direito de recriar a cidade. Isso pode significar ter de destruir algumas formasfísicas (estradas, prédios, barreiras físicas), instituições e formas jurídicas da cidade capitalistapara recriar uma outra cidade (com sua nova forma física, novas instituições e novas regrasjurídicas) que seja a expressão de outros valores, um cidade desmercantilizada, que seja valorde uso para seus cidadãos.

Em síntese, o direito à cidade também diz respeito ao direito de recriar a cidade, aodireito de ter uma cidade radicalmente democrática, onde todos e todas possam participar dasdecisões relativas à forma como a cidade deve funcionar e ao modo de organizar a vida coletivana cidade.

A partir dessa concepção, podemos dizer que os conflitos urbanos que acontecemcotidianamente em torno da mercantilização ou da desmercantilização da moradia, da terra edos equipamentos coletivos estão relacionados ao direito à cidade. Mas o desafio é avançar naconstrução de novos projetos de cidades, novos projetos de sociedade. Nesse sentido, o direitoà cidade deve ser concebido como um programa anticapitalista e em uma nova utopia capazde se traduzir em uma agenda unificadora dos movimentos sociais em torno de uma cidadejusta e democrática para todos e para todas.

RELATORIAS EM DIREITOS HUMANOS: fortalecimento de uma cultura de direitos no Brasill 28 l

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As missões daRelatoria do Direito àCidade - 2009 a 2011

Entre dezembro de 2009 e outubro de 2011, a Relatoria do Direito à Cidade realizouquatro missões de acompanhamento de denúncias de violação do direito à cidade e à moradia.Tais missões foram realizadas nas seguintes cidades: São Paulo e Região Metropolitana (SP), em18 e 19 de dezembro de 2009; Teresina e Nazária (PI), em 14 e 15 de julho de 2010; Rio de Janeiro(RJ), entre 18 e 20 de maio de 2011; Paço do Lumiar e Região Metropolitana de São Luís (MA),em 13 e 14 de outubro de 2011, esta em conjunto com a Relatoria Estadual do Direito à Cidadee à Terra.

As missões envolveram visitas realizadas em comunidades nas quais havia conflitosurbanos e denúncias de situações de violação do direito humano à cidade decorrentes dosseguintes processos: intervenções relacionadas à reestruturação urbana de áreas específicas dacidade (revitalização da área central); realização de obras viárias vinculadas à reestruturaçãourbana das cidades; expansão urbana das cidades; e realização de obras decorrentes dapreparação da cidade para a Copa do Mundo e as Olimpíadas.

Em todos os casos, ficaram claros processos de desrespeito ao direito humano à cidade,em especial ao direito à moradia, e também a outros direitos humanos sociais e individuais, taiscomo os direitos à educação, segurança, proteção à criança e ao adolescente, assistência aosdesamparados, saúde, água, saneamento e ao meio ambiente e outros.

A situação das comunidades visitadas era grave e precária: famílias vivendo emmoradias sem dignidade, muito próximas de córregos poluídos; ameaças de despejo ereintegração de posse; indenizações negociadas individualmente sem qualquer critériotransparente; crianças tendo sua reprodução social ameaçada pelas situações de insalubridadeextrema e insegurança física geradas pelas obras; incerteza sobre o futuro.

Na cidade de Nazária e em Terezina, no Piauí, e em Paço do Lumiar e São Luís, noMaranhão, a missão da Relatoria (realizada, respectivamente, em julho de 2010 e em outubro de2011) pôde constatar que o tema da moradia é um problema central ainda a ser resolvido nascidades brasileiras e nas suas regiões metropolitanas. O déficit habitacional existente nessascidades, aliado com a existência de inúmeros vazios urbanos e áreas particulares em estado deabandono e sem cumprimento de sua função social, gera brutais contradições e a ocorrência deinúmeras situações de conflitos pela terra. Isso se reflete nas ocupações realizadas por comunidadesinteiras que vão para esses locais sem infraestrutura e sem condições dignas de moradia.

No caso primeiro caso, da comunidade Vila Amazônia, em Teresina, tratava-se de uma

Relatoria do Direito Humano à Cidade l 29 l

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ocupação de área particular por 65 famílias, que estava abandonada já fazia mais de 20 anos,sem qualquer tipo de manifestação de posse sobre a área. As famílias residiam há dois anos nolocal, em precárias condições de habitabilidade, sem água, sem coleta de lixo, sem esgoto, semprestação de qualquer serviço mínimo pelo poder público. Tendo ocorrido a contestação porparte do proprietário, o conflito foi judicializado, o processo tinha sido sentenciado e aguardavasomente seu cumprimento para efetivar o despejo de toda comunidade. Por solicitação damissão da Relatoria, houve intervenção do governo do estado do Piauí no caso, no sentido dese evitar o despejo das famílias, tendo sido suspensa a ordem de despejo pelo juiz. Aintermediação da Agência de Desenvolvimento Habitacional (ADH), do governo estadual,garantiu a incorporação das 65 famílias ao projeto de habitação em outra comunidade,denominada Alto da Felicidade.

O segundo caso foi o da comunidade de Terra Sol, no município de Paço do Lumiar,no Maranhão. Essa ocupação em terreno particular, realizada há quatro anos, reunia cerca de450 famílias e estava com mandado judicial de desocupação marcado para dia 14 de outubrode 2011. A visita da Relatoria teve como efeito a abertura de um processo de negociação deconflito envolvendo a Prefeitura Municipal de Paço do Lumiar, a Vice-Governadoria do estado,o proprietário do terreno e a Relatoria Estadual do Direito à Cidade e à Terra, que resultou nasuspensão do despejo por três meses, registrado na forma de um acordo entre a Prefeitura e oproprietário, no qual a prefeitura municipal também se compromete a resolver o problemafundiário dessa comunidade, garantindo o reassentamento das famílias num local próximo.

Em São Paulo e em sua Região Metropolitana, a missão da Relatoria (realizada emdezembro de 2009), pôde constatar abundância de recursos para grandes obras deinfraestrutura, mas ausência de prioridade e descuido por parte do poder público e dasempresas contratadas para com o direito à moradia dos cidadãos situados nas áreas deintervenção desses projetos. A situação das comunidades visitadas era grave e precária: famíliasvivendo em moradias sem dignidade, muito próximas de córregos poluídos; ameaças dedespejo e reintegração de posse; indenizações negociadas individualmente sem qualquercritério transparente; crianças tendo sua reprodução social ameaçada pelas situações deinsalubridade extrema e insegurança física geradas pelas obras; incerteza sobre o futuro.

A forma como as remoções estavam sendo promovidas não deixava dúvidas: sem agarantia do direito à moradia, as famílias removidasnão teriam outra alternativa a não ser reproduzir oquadro atual, construindo um barraco perto de outrocórrego ainda não ocupado; adensando as favelas jáexistentes ou morando na rua.

Aliás, a visita noturna às ruas do Centro de SãoPaulo, realizada durante essa missão, permitiu verificarque a população de rua vem crescendo, como escutamosem diversos depoimentos, em grande parte decorrentedas remoções e despejos que vinham ocorrendo. Asituação da população de rua – invisível para grande parte das instituições e mesmo para apopulação – era grave em razão do desrespeito e do desmonte da política de assistência que,

RELATORIAS EM DIREITOS HUMANOS: fortalecimento de uma cultura de direitos no Brasill 30 l

A missão chegou apresenciar um caminhãoda Prefeitura jogandoágua em algunsmoradores que dormiamnas calçadas.

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segundo a lei municipal aprovada, deveria estar sendo implementada. A missão chegou a presenciarum caminhão da Prefeitura jogando água em alguns moradores que dormiam nas calçadas.

A situação encontrada em São Paulo era reveladora de problemas relacionadosdiretamente com a construção de megaempreendimentos, como a ampliação da Marginal doTietê, a implantação do Parque das Várzeas do Tietê (conhecido como parque linear) e aconstrução do Rodoanel. São Paulo parecia ser um exemplo da mercantilização das cidades,com a entrega de seus espaços mais rentáveis e valorizados à iniciativa privada e transferênciada população pobre para regiões cada vez mais afastadas do centro, muitas vezes situadas emáreas de risco. No entanto, tomando como referência o Estatuto da Cidade e os pactosinternacionais dos quais o Brasil é signatário, antes de atender a interesses econômicos, a cidadeprecisaria cumprir a sua função social, o que exige que o poder público garanta a todos e atodas, cidadãos e cidadãs, o direito à cidade.

No Rio de Janeiro, a missão da Relatoria (realizada em maio de 2011) envolveu visitasa comunidades nas quais havia denúncias de situações de violação do direito humano à cidadedecorrentes dos seguintes processos: a) realização de obras viárias para implantação dos BRTs(Bus Rapid Transit) Transcarioca e Transoeste; b) realização de reforma do estádio do Maracanã;c) construção dos equipamentos esportivos (Vila Olímpica) e d) intervenções relacionadas àreestruturação urbana de áreas específicas da cidade (revitalização da Zona Portuária – ProjetoPorto Maravilha). Chama a atenção a forma como os despejos ocorrem.

De fato, a maior parte das remoções previstas estava relacionada às obras dos BRTs. Emgeral, as comunidades afetadas não tinham acesso às informações oficiais sobre as intervençõesurbanas, e estavam privadas de participar das discussões relativas aos projetos. Efetivamente,em todas as comunidades visitadas não foi registrada a ocorrência de reuniões entre osmoradores e os representantes da prefeitura, contrariando o que determina o Estatuto da Cidade.

A importância da missão do Rio de Janeiro pode ser ilustrada pelo caso da comunidadede Campinhos. No Largo do Campinho, 61 famílias foram notificadas de remoção promovidapela prefeitura para a construção do corredor Transcarioca de BRT (Bus Rapid Transit), queterá 39 km de extensão, ligando o Aeroporto Internacional Tom Jobim com a região da Barra daTijuca, onde está prevista a maioria dos equipamentos olímpicos. Inicialmente as opçõesoferecidas aos moradores dessas áreas foram indenizações ou moradias do programa MinhaCasa Minha Vida, no âmbito do qual estavam sendo construídos diversos conjuntoshabitacionais na Zona Oeste, a cerca de 45 km do centro da cidade. O processo de remoçãodessas famílias foi bastante traumático, com diversos depoimentos destacando a violência doepisódio, que envolveu muita pressão e ameaças, o que evidentemente visava coagir osmoradores a aceitar uma negociação. Mas a violência foi apenas uma das faces da agressão aodireito fundamental à moradia. Conforme denúncia dos moradores, as indenizações só forampagas após a derrubada das casas e as negociações promovidas pela Prefeitura, comandadaspelo subprefeito, foram sempre individuais. Cerca de 35 famílias ainda resistiam às remoçõesno momento de realização das visitas da missão da Relatoria, seguras por uma liminarimpetrada pela Defensoria Pública do Rio de Janeiro, que posteriormente seria derrubada,permitindo a retirada total das famílias.

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Durante a missão da Relatoria foi emitida nova ordem de despejo, mas a intervençãoda Relatoria do Direito à Cidade na Procuradoria e a Secretaria Municipal de Habitaçãoconseguiu evitar sua efetivação. Como resultado desse processo de negociação, a PrefeituraMunicipal, através da Secretaria Municipal de Habitação, acabou se comprometendo com osseguintes pontos: a) suspensão das remoções e demolições até que todo o processo denegociação estivesse concluído; b) garantia do valor mínimo de R$ 37.500 para a indenizaçãodas moradias, podendo-se aumentar esse valor caso as moradias fossem maiores e estivessemem melhores condições; c) reassentamento das famílias que desejassem para uma unidadehabitacional no conjunto do Programa Minha Casa Minha Vida (na ex-colônia Juliano Moreira,situado relativamente próximo da comunidade), previsto para estar concluído em cerca de 18meses, garantindo o pagamento do aluguel social nesse período, até que a mudança para asnovas habitações fosse concluída. Além disso, para o comércio local, do qual algumas famíliasdependiam para viver, a Prefeitura se comprometia com a indenização de R$ 20.000,00. Umasemana depois, ainda no curso das negociações e compromissos assumidos pelo poder públicomunicipal, no dia 27 de maio de 2011, ocorreu umanova ordem de despejo e demolição das habitaçõesdeterminada pela Procuradoria do Município. Apósmuita mobilização, incluindo a intervenção daSecretaria de Habitação, somente os moradores que játinham assinado o acordo com a Prefeitura tiveramsuas casas demolidas, apesar de, naquele momento,ainda não terem recebido a indenização, paga cerca dedez dias depois da remoção ter sido efetivada.

Em todos os casos visitados nessas missões daRelatoria do Direito à Cidade, chama a atenção a formacomo os despejos ocorrem. Em geral, mediante ordensjudiciais sem cumprimento do princípio do devidoprocesso legal, sem que haja direito de ampla defesa econtraditório por essas pessoas. Chama a atenção aindaum certo padrão de intervenção do poder público que se repete nas diferentes cidades, e quepoderia ser caracterizado pelos seguintes aspectos:

n Completa ausência, ou precariedade, de informação por parte das comunidades,acompanhada de procedimentos de pressão e coação, forçando os moradores aaceitar as ofertas realizadas pelo poder público, quando estas existem. Cabe frisarque as comunidades visitadas, sem exceção, não tiveram qualquer acesso aosprojetos de urbanização envolvendo suas áreas de moradia.

n Completa ausência, ou precariedade, de envolvimento das comunidades nadiscussão dos projetos de reurbanização promovidos pelo poder público, bemcomo das possíveis alternativas para os casos nos quais são indicadas remoções.

n Deslegitimação das organizações comunitárias e processos de negociação sempreindividualizados com as famílias, nitidamente buscando enfraquecer suacapacidade de negociação com o Poder Público. Nessa mesma perspectiva, cabe

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... chama a atenção aforma como os despejosocorrem. Em geral,mediante ordensjudiciais semcumprimento doprincípio do devidoprocesso legal, sem quehaja direito de ampladefesa e contraditóriopor essas pessoas.

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registrar que as negociações, em geral, são arbitrárias e sem critérios claros denegociação, inclusive no que se refere aos valores das indenizações.

n A utilização da justiça como um instrumento contra o cidadão. Tendo comoprincipal instrumento as ações judiciais, o poder público e o Poder Judiciário atuamcomo uma máquina irresponsável de despejos, sem qualquer compromisso com asaúde e a vida das pessoas. A prática parece ser a de penalizar todos os cidadãosque recorrem à justiça para proteger os seus direitos de permanecer na ocupação,tendo em vista que, em geral, as liminares derrubadas na justiça são acompanhadasda imediata remoção, sistematicamente realizadas em situações de terror e violaçãodos direitos humanos. Os seres humanos – homens, mulheres, idosos e crianças –são gravemente desrespeitados por práticas tais como a remoção em 24 horas ouda sujeição das famílias a condições de vida degradantes, obrigando-as a viverentre os escombros das demolições.

n Desrespeito à cidadania. O padrão de relacionamento dos agentes públicos, emgeral, é desrespeitoso com a população de baixa renda, tratada como cidadãos desegunda classe, como se os moradores não fossem portadores de direitos,lembrando o fim do século XIX, em que a propriedade era base de todos os demaisdireitos. Ou seja, como são moradores sem propriedades, não são consideradosportadores de direitos de cidadania.

Fica evidente, para a Relatoria, que é urgente efetuar uma aproximação com o PoderJudiciário local no sentido de que este esteja atento ao cumprimento das normas internacionaisde direitos humanos. Além disso, é necessário o aprofundamento e implementação dosinstrumentos do Estatuto da Cidade no que se refere a impedir a existência de inúmeros vaziosurbanos em detrimento do grande déficit habitacional ainda existente, bem como promoçãode políticas públicas e efetivas de produção de habitação de interesse social.

Da mesma forma, tendo em vista o cenário da Copa do Mundo de 2014 e dasOlimpíadas 2016, acredita-se que é de fundamental importância manter na agenda da Relatoriado Direito à Cidade o tema dos grandes empreendimentos e dos megaeventos esportivos, demodo a denunciar as violações de direitos humanos associados a essas intervenções, buscandoreverter sua lógica, para que possam ser gerados processos de promoção do direito à cidade.

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EntrevistaMarcelo Braga Edmundo

Marcelo Braga Edmundo é ativista político e milita na luta pela reforma urbanae pelo direito à cidade. Atua na Central dos Movimentos Populares (CMP), como membro dadireção nacional e no Conselho das Cidades. Atualmente participa da articulação dos ComitêsPopulares da Copa, no Rio de Janeiro, e por todo país na resistência contra as violações dosdireitos humanos em decorrência dos megaeventos esportivos.

Como está o contexto do direito à cidade no Brasil após os investimentos do Programa Minha Casa Minha Vida do governo federal?

Infelizmente, mais de dois anos depois do lançamento do programa MCMV, não temosmuito ou quase nada para comemorar, no sentido da consolidação e do avanço efetivo dodireito à cidade. Logo de cara, existe um problema de concepção  inconciliável, o MCMV é cadavez mais apenas um programa de construção de moradia, notadamente para aquecer o mercadoda construção civil, sem nenhum vínculo com o modelo de cidade que defendemos e que  decerta maneira resultou na criação do Ministério das Cidades. O direito à cidade é muito maisdo que isso, muito mais do que colocar quatro paredes de pé, é garantir o respeito aos aspectosfundamentais da reforma urbana que tanto lutamos, no sentido de construir cidades justas,com qualidade e, sobretudo, com o acesso universal da população à moradia adequada.

Quando vejo nos conjuntos populares o desrespeito e o descaso com a população,  cheiade esperança em ter finalmente seu lar, não dá para segurar. São centenas e até milhares deminúsculas casas, sem as mínimas condições de habitabilidade, geralmente nas periferias ecom uma qualidade tão ruim que não resiste ao tempo, e ao invés de ser um bem duradouro,em pouco tempo já está completamente deteriorado. Mas essa situação não foi nenhumasurpresa para quem acompanhou o lançamento do programa.  Foi no momento em quefestejávamos algum avanço, com a aprovação do Estatuto da Cidade, do SNHIS e do FNHIs, oprimeiro projeto de lei de iniciativa popular no país, veio o MCMV, que passou por cima detudo, ignorando todo nosso esforço e nossa luta.

Como o Programa Minha Casa Minha Vida pode melhorar no sentido de efetiva garantia do direito à cidade das pessoas?

O que  observamos  é que o MCMV, em muitas ocasiões, vem sendo utilizado não pararesolver o problema do déficit ou da moradia, mas para criar condições e justificar remoções edespejos forçados. Em muitas cidades, o MCMV está sendo usado, para “limpar” a cidade, dapopulação mais pobre, empurrando tudo para bem longe. Para mudar esse quadro éfundamental que ele deixe de ser um programa financeiro, que visa apenas a construção decasas para aquecer o mercado da construção civil e incorpore em sua concepção o conceito do

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direito à cidade, que tanto lutamos para garantir e sabemos que muitos deles estão contidos noEstatuto, que completa 10 anos. No fundo não existe mistério e nem é preciso inventar nada,nem ser revolucionário. Sabemos como e o que fazer.

Sobre o Rio de Janeiro, quais são as consequências a curto prazo e a médio prazo dasintervenções urbanas ocasionadas pelos megaeventos esportivos?

Com certeza, a primeira grande e traumática consequência são as remoções e osdespejos, feitos em nome dos megaeventos. Isso provoca uma brutal transformação na vidadas pessoas e sua relação com a cidade. Além disso, toda especulação imobiliária decorrentedessas intervenções e violações. Se a população mais pobre é quem primeiro sofre os impactosem nome dos jogos, hoje a classe média é diretamente atingida, com o aumento absurdo dosaluguéis e preço dos imóveis. Afinal, fazemos parte de uma mesma cidade, por mais que osgovernantes insistam em governar para uma minoria, que só visa o lucro e o ganho,transformando a cidade num grande balcão de negócios. Para garantir esses lucros e negócios,hoje, tudo é possível: desrespeito às leis, ao direito da população de usufruir da cidade e doespaço urbano com liberdade, incluindo o direito ao trabalho e o direito de conviver na cidade.

Em nome dos jogos, o Estado está cada vez mais presente não para proteger e equilibrara relação entre o privado e público, mas para criar condições para que o privado aumente mais emais o seu lucro, sem ser importunado. Para isso, recolhem-se mendigos, crianças viciadas,alcoólicos, ocupam-se os morros e favelas como um grande espetáculo midiático, que não levaráa nada e só atende, mais uma vez, aos interesses da especulação e do mercado. Enfim, recolhe-secomo lixo o povo mais sofrido, resultado do modelo de cidade que construímos e fracassado. Comos megaeventos, até poderíamos ter uma oportunidade para repensar e reconstruir a cidade, comnovos parâmetros e tendo como referências todo o histórico de lutas e discussão dos movimentos,ONGs, entidades acadêmicas e dos trabalhadores, parlamentares da reforma urbana, enfimtodos  que levantaram a luta pelo direito à cidade como fundamental para construção de umanova realidade social,  em que primeiro e o mais importante é o ser humano e sua relação saudávelcom a cidade e na qual o espaço urbano pertence a todos que nele vivem e convivem.

Quais as medidas que os poderes públicos podem tomar imediatamente para que cessem essas violações? 

Primeiro:  que parem imediatamente com toda  ação e intervenção que possa  provocarqualquer tipo de despejo e remoção, para que seja feito um levantamento dos impactos sociais queelas acarretam. Que a população atingida seja  diretamente ouvida e respeitada durante todo oprocesso, do início ao fim. Que todas as intervenções sejam negociadas e se respeitem a realidadede cada local, procurando se adequar a ela. Que  a transparência em relação às intervenções sejapermanente, para que a população tenha conhecimento das intervenções que serão feitas e quemserá atingido direta e  indiretamente,  para que possam ser  construídos projetos e propostasalternativas, que preservem o direito à moradia e que provoquem menos impacto social.

Que seja respeitado o direito básico e constitucional à moradia adequada. Que todas asleis, tratados e acordos internacionais sejam obedecidos, nos casos em que se comproveefetivamente a necessidade de remoção ou despejo. Enfim, que o direito à cidade sejaefetivamente respeitado e orientador dessas intervenções.

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A garantia do direito àeducação de qualidade:o desafio persistente das iniquidades

Aeducação é um direito que está garantido na legislação nacional e em diversosinstrumentos internacionais. Também é um direito social, que compreende um processoformativo que ocorre ao longo de toda a vida do ser humano, de forma individual e coletiva,formal e informalmente. É um instrumento que possibilita a expansão da autonomia epossibilita a reivindicação por outros direitos sociais e políticos.

A educação é um direito humano que consiste no desenvolvimento de todas ashabilidades e potencialidades humanas. Isso implica estar disponível para todas as pessoascom igualdade de oportunidades, de acessar, permanecer e concluir a educação. Uma educaçãocom direitos humanos compreende que ela seja de qualidade, independentemente da condiçãoétnico-racial, social, religiosa, cultural, geracional, territorial, físico-individual, de gênero, deorientação sexual, de nacionalidade, de opção política, entre outros.

Mas, apesar de ser um direito, a educação está marcada por iniquidades:A diferença conceitual entre desigualdade e iniquidade está justamente noreconhecimento de que a desigualdade não implica necessariamentejulgamento moral sobre as diferenças encontradas na realidade social, enquantoas iniquidades, desde sua definição, apontam um juízo de valor sobredesigualdades que não deveriam existir, pois são injustas, desnecessárias eevitáveis. (CONSELHO DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO E SOCIAL).

As iniquidades educacionais se reproduzem de forma sistemática e estão relacionadascom o pertencimento étnico/racial, a classe social, ao gênero, sexualidade e a localizaçãoterritorial. Apesar dos avanços permitidos pelo processo de universalização do ensino público,a educação ainda reproduz as relações sociais brasileiras e perpetua processos de exclusão.

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São diversos os estudos, avaliações e análises realizadas por órgãos governamentaisvisando à formulação de políticas voltadas à eficácia dos sistemas de ensino. No entanto, os dadosrevelam a persistência das desigualdades na educação brasileira (da educação infantil ao ensinosuperior), revelando que as políticas educacionais têm falhado em sua função de assegurar queas habilidades essenciais para a vida sejam apreendidas adequadamente por todas e todos.

A educação é fator fundamental para o desenvolvimento de uma sociedade com justiçasocial, qualidade de vida e sustentabilidade. A garantia do direito humano à educação édecisiva no acesso a outros direitos. Porém, para se alcançar uma transformação mais estruturalde nossa sociedade, é necessário articular as políticas educacionais a um conjunto de outraspolíticas que promovam efetivamente a distribuição de recursos, poderes e conhecimentos. “Aeducação sozinha não transforma a sociedade, sem ela tampouco a sociedade muda”, lembravao educador Paulo Freire.

A superação da herança racista

A história da educação brasileira é marcada profundamente pelo racismo, entendidode forma ampla, pela negação do outro, pelo não reconhecimento da condição humana àquelese àquelas considerados diferentes, em decorrência de determinadas características físicas. Talvisão está na base da justificativa para que a elite branca do começo do século XIX, pós-independência do Brasil em 1822, não investisse em uma política universal de educaçãopública como parte de um projeto de nação, pois a gigantesca maioria da população do recém-criado país era constituída por negras e negros escravizados, sujeitos de vários movimentosde resistência.

Temia-se que a educação desse mais poder a essa população negra, ainda mais aoconsiderar que na época todas as elites locais da América Latina tinham em mente a revoluçãohaitiana, quando o povo negro escravizado expulsou a elite branca do país e fundou em 1804o primeiro país latino-americano governado por negros, que sofreu todos os boicotes domundo. Apesar das diferenças, além do Haiti, é necessário considerar a tentativa paraguaia deconstruir um projeto de nação diferenciado e o que ocorreu com o país posteriormente.

Diferentemente de outros países do Cone Sul, como Argentina e Uruguai, que jáapresentavam na primeira metade do século XIX uma política universal de educação comcobertura próxima aos 80% da população, no Brasil esse número não chegava nem aos 20%.Alguns críticos apontam que isso ocorreu, sobretudo na Argentina, em decorrência das políticasde eliminação física da população negra e indígena. Talvez possa se afirmar que a emergênciade políticas de educação pública universal para uma população menos diversificada do pontode vista étnico e racial foi possível porque o diferente não era tão diferente assim.

No final do século XIX, no Brasil, a abolição da escravatura e a república vieram, e oinvestimento em uma política de educação universal também não vingou. Somente a partir dadécada de 1930, após o forte investimento na imigração europeia como forma de branquear apopulação brasileira, que a proposta de uma política de educação pública avança, no conflitoentre grupos progressistas e conservadores, expressos na Constituição de 1934. E aí vieram os

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golpes políticos e nova tentativa de construir um projeto republicano de política de educaçãoancorada na Constituição de 1961, que também foi sabotada pelo golpe militar de 1964.

A construção de uma política educacional nacional é assumida pelo governo militarbrasileiro durante a ditadura como parte de seu projeto desenvolvimentista, mas baseado emum modelo de expansão com baixo investimento por aluno e forte arrocho salarial dosprofissionais de educação que veem seu poder de compra e de voz despencar, assim como osoutros sujeitos políticos da época submetidos à profunda repressão que assolou o país.

O processo de democratização e a Constituição de 1988 trouxeram novas esperanças,conquistas na legislação, avanços em muitas políticas locais e estaduais, que foram em grandeparte sabotadas pela onda das reformas neoliberais dos anos de 1990 na América Latina que

pregavam o enxugamento do Estado, questionavam aimportância de políticas universais e defendiam adiminuição dos gastos públicos já insuficientes dianteda gigantesca e histórica dívida social brasileira. Oacesso à educação cresce, chegou-se quase àuniversalização com a então etapa obrigatória doensino fundamental na década de 1990.

De modo geral, podemos dizer que da negaçãodo outro como ser humano, como detentor de direitos,que caracterizou o século XIX e grande parte do séculoXX, passamos por políticas que na prática reconhecemao conjunto da população o direito ao acesso àeducação, mas garantido ainda com base em umaeducação de baixa qualidade, uma educação para umasociedade hierarquizada, fortemente desigual, umaeducação pública para “inferiores”, uma educação

pobre para pobres, uma educação para uma inserção precária no mundo da aprendizagem.

Educação e desenvolvimento

O governo Lula (2003-2010) trouxe novas esperanças, ampliaram-se a participação e odiálogo com a sociedade civil, programas e políticas importantes foram criados, mas o saltomais estrutural, a mudança na lógica no investimento financeiro, não acontece, apesar dacriação do Fundo da Educação Básica (Fundeb) e do lançamento do Programa deDesenvolvimento da Educação (PDE). No governo Lula, sobretudo no segundo mandato (2007-2010), fortaleceu-se a capacidade de indução de políticas do governo federal por meio dacombinação de políticas de avaliação educacional de larga escala (que tem o Índice deDesenvolvimento da Educação Básica como principal referencial) combinada comfinanciamento a municípios e estados.

No centro da roda, está o lugar da educação e das políticas sociais em um modelo dedesenvolvimento que se diversifica, mas que ainda mantém a marca da concentração de renda.

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... passamos por políticasque na práticareconhecem ao conjuntoda população o direito aoacesso à educação, masgarantido ainda combase em uma educaçãode baixa qualidade, umaeducação para umasociedade hierarquizada,fortemente desigual, umaeducação pública para“inferiores”

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Apesar de avanços nos indicadores da última década, o país segue com uma educação de baixaqualidade, marcada por profundas desigualdades de renda, raça, etnia, região, deficiência,orientação sexual, campo/cidade, como os números dos diversos institutos de pesquisaapontam.

Do ponto de vista da atuação de movimentos, fóruns e organizações da sociedade civilbrasileira, podemos identificar duas grandes linhas de ação, duas grandes frentes:

n A luta pela estruturação de políticas universais de educação como políticas de Estado,que quebrem a lógica da descontinuidade, com metas de médio e longo prazo, comfinanciamento adequado por meio do Custo Aluno Qualidade (CAQ). O que é o CustoAluno Qualidade? Previsto na nossa legislação e até agora não cumprido, o CAQrepresenta a inversão da lógica do financiamento educacional ao partir da questão:qual o valor por aluno necessário para a garantia do padrão de qualidade previsto emnossas leis. O CAQ se constituiu na principal bandeira de luta da Campanha Nacionalpelo Direito à Educação, assumida posteriormente por diversas organizações emovimentos do campo educacional.

Vinculada ao desafio da política de Estado, está a valorização efetiva dos profissionaisde educação, envolvendo melhoria das condições salariais, das condições de trabalho e dascondições de vida de uma categoria constituída em mais de 80% por mulheres. Aimplementação da lei do Piso Nacional Salarial dos Profissionais de Educação, conquistada em2009 com apoio do governo federal, representa o principal embate entre, por um lado,movimentos sindicais e sociais e, por outro, gestores educacionais e das áreas econômicas dosgovernos. Como parte dos desafios colocados para a construção de políticas de Estado, está aconquista – de fato – de um regime de colaboração entre os entes federados (municípios, estadose União), que supere a disputa e a falta de coordenação na oferta do atendimento educacionalpara a população. Além disso, está também um investimento mais estrutural e revitalizante nagestão democrática (da escola às políticas) para que as vozes sejam ouvidas, para que aparticipação em seu sentido plural seja exercida. Em um país marcado pela descontinuidade,falta de controle social das políticas sociais, pelas desigualdades estruturais, avançar rumo àpolítica de Estado de educação significa um grande passo.

n A segunda linha de atuação dos movimentos está pautada na diversidade naeducação. Tal agenda ascende com mais força no debate educacional a partir dos anosde 2000 e vem sendo desenvolvida por vários movimentos identitários (mulheres,negros, indígenas, LGBT, de deficiências), ambientalistas e outros vinculados a temasde fronteira do direito à educação. Esses movimentos revelam as insuficiências daspolíticas universais no enfrentamento das desigualdades e discriminações equestionam o modelo ou os modelos hegemônicos de escola ainda referenciados empadrões patriarcais, brancos, europeus, norte-americanos, heteronormativos, etc.Questionam também as políticas de inclusão escolar como aquelas que preveem ainclusão dos diferentes em um modelo de escola que não reconhece e não valoriza adiversidade existente em um país multirracial, multiétnico, multicultural. Denunciamque tanto as políticas públicas como as escolas são espaços de reprodução, deacirramento, de resistência à mudança, mas também de transformação e de

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enfrentamento das desigualdades e das discriminações exercidas no ambiente escolar.Do ponto de vista das ações, buscam chamar a atenção para questões “invisíveis” daagenda educacional, alargar e pluralizar o conceito de qualidade expresso noscurrículos, nas avaliações, nos materiais didáticos, defendem ações afirmativasarticuladas às políticas universais, além de metas de equalização visando a diminuiçãodas desigualdades entre grupos da população.

Esses questionamentos vão além da ideia de criação de programas “específicos” paragrupos discriminados e exigem uma abordagem transversal que mexa nas concepções do quese entende por função social da escola, do que se entende por aprendizagens, por políticasdestinadas à melhoria do desempenho escolar, por diagnóstico das causas dos diversosproblemas e desafios educacionais, por políticas de formação e avaliação dos profissionais deeducação e, entre outros, na forma como as políticas educacionais entendem as desigualdadese a diversidade na escola.

Todas essas agendas estão em um momento estratégico com a elaboração do novoPlano Nacional de Educação, em tramitação no Congresso Nacional. O novo plano vai definiras metas educacionais para os próximos dez anos. Uma das grandes e acirradas polêmicas é seo Brasil ampliará o investimento em educação dos atuais 5% para 7% ou 10% do PIB, garantindoou não condições mais adequadas para o enfrentamento da gigantesca e histórica dívidaeducacional que marca o país.

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Relatoria contribui cominforme sobre gênero eeducação do Cladem

ARelatoria do Direito Humano à Educação também contribuiu com o informe

gênero e educação no Brasil, produzido pela ONG Ação Educativa a pedido do Comitê Latino-Americano dos Direitos das Mulheres (Cladem), com colaboração da organização Comunicaçãoe Sexualidade (Ecos), do Centro de Referência às Vítimas de Violência do Instituto SedesSapientiae (CNRVV-SP). O documento é organizado por Denise Carreira, relatora do direitohumano à educação, que aborda, entre outros desafios da igualdade de gênero na educaçãobrasileira, a situação educacional dos meninos negros, a valorização das profissionais deeducação, os desafios da laicidade no Brasil, as ações afirmativas e as desigualdades entremulheres na educação. No segundo mandato, destaca-se também a exposição realizada pelarelatora na audiência pública promovida pelo Supremo Tribunal Federal sobre as açõesafirmativas no ensino superior brasileiro. A relatora esteve em Washington no dia 25 de outubrode 2011 para apresentar o informe perante a Comissão Interamericana da OEA.

Todos os documentos produzidos pela Relatoria encontram-se disponíveis nos sitesda Plataforma Dhesca e da Ação Educativa.

O racismo na educação brasileira

Uma menina negra leva o caderno à professora para tirar dúvidas. Aprofessora olha o caderno e explica rapidamente. A menina lança um olhar de quemnão compreendeu a explicação. A professora suspira e rapidamente encerra aconversa em tom carinhoso: tudo bem, querida, criança negra não consegueentender direito as coisas. Pode sentar. Tá bom o que você fez. Em casa, a meninaconta para a mãe a história, que vai tirar satisfação com a professora no dia seguinte.

O professor está na frente da sala explicando a escravidão no Brasil. Mostraimagens do pintor Jean Baptiste Debret, com pessoas negras no tronco, sendochicoteadas, realizando trabalhos pesados, sob mando de pessoas brancas. Algunsmeninos fazem piadinhas no fundo da sala. Uma menina branca fala alto: coitados!O professor se empenha em explicar com detalhes os castigos físicos sofridos pelas

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pessoas negras. Para muitas crianças negras da sala, parece mais uma aulainterminável. O professor fala da princesa Isabel e de seu importante papel nalibertação dos escravos. Nas aulas sobre a “escravidão” não existem quilombos,resistências, capoeira, heróis e heroínas negras, anônimos ou não. O sinal toca, éhora do recreio. Um menino negro é chamado de macaco e começa uma briga. Umamenina negra grita que não quer mais que falem mal do seu cabelo crespo. Ainspetora chega e dispersa a confusão da criançada: “vocês estão impossíveis!”.

“Vamos começar a fazer um trabalho diferente, vamos discutir que noBrasil existem muitos tipos de religiões, vamos conhecer um pouco de cada umadelas”, convida a professora, que se dedicou a preparar com carinho as aulas. Aturma de adolescentes se interessa pelos conteúdos e a professora fica bastanteanimada. A partir das aulas, os alunos e alunas começam a falar dos seus vínculosreligiosos, de como é pertencer a cada uma delas. O destaque vai para osevangélicos e católicos que são a gigantesca maioria da turma. Na aula sobre asreligiões de matriz africana, uma adolescente tímida, que se dizia espírita, fala desua ligação com o candomblé. Os colegas a ouvem com respeito e fazem váriasperguntas para a menina. A professora vai para a casa feliz com o resultado. Semanaseguinte, o clima é outro. A menina reclama que depois daquele dia, que foi “tãobom”, muitos colegas passaram a não falar mais com ela, se negam a incluí-la nostrabalhos em grupo e alguns dizem até que ela é “a macumbeira, filha do demônio”.A professora se desespera, tenta retomar a conversa com a turma, fala com adiretora, que diz não saber o que fazer, mas que recebeu reclamações de vários paissobre as tais aulas. A menina vai sendo excluída, cai em depressão e pede para nãoir mais à escola. Agora, não são somente os colegas da turma, mas parece que aescola inteira sabe que ela é do candomblé. As acusações, as piadas e odistanciamento aumentam. A família decide tirar a menina da escola.

A escola é de uma comunidade quilombola no interior do Brasil, “terrasdos pretos”, hostilizados por séculos por muitos moradores da cidadezinhapróxima como um “povo que não era gente”. Terras que, antigamente, eram tãodistantes e ruins de plantar que ninguém se interessava, mas que hoje atraem aatenção de muita gente, que se diz dona daqueles lugares. O prédio da escola, queantes ficava na casa de um morador, foi conquistado pela luta da comunidade. Parachegar na escola, as crianças andam no sol escaldante até 7 km. Muitas comemsomente umas bolachas e um pouco de café antes de sair de casa. E na escola, amerenda se repete, arroz, mandioca, sardinha e outros enlatados. Os professorestêm contratos precários e levam uma vida nada fácil. Nas aulas, não se fala sobre oque significa ser quilombola ou a história e cultura negra, quando muito, realiza-se alguma atividade no 20 de novembro, dia da Consciência Negra. Nas paredesnão existe nada que remeta a ideia de que a escola é quilombola. “A coisa que mais

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quero para a nossa escola? Uma bola de verdade para poder brincar”, responde ummenino de olhos grandes e vivos.

A casinha é pequena e muito úmida, o cheiro é forte, pouca luz consegueentrar, são três cômodos, sem área externa. Fica no extremo da periferia deSalvador, uma região muito adensada, com vielas estreitas e sem atendimento decreches. É lá que um terreiro, com apoio de vários filhos e filhas de santo dacomunidade, faz funcionar há sete anos uma creche que atende 100 crianças emdois turnos, 45 delas permanecem o dia inteiro. O esforço é gigantesco, levado amaior parte por educadoras jovens voluntárias, que investem em sua própriaformação e sonham ser professoras. É difícil imaginar como é possível tantascrianças permanecerem em espaço tão pequeno. A fila de mães e pais não para decrescer. Não é fácil dizer não, mas não cabe mais. Há anos, a comunidade pedeapoio do poder público, que não vem. “Mas a gente vai ser virando e atendendofamílias de todas as religiões, aqui não tem discriminação”, observa acoordenadora.

Cenas como essas, foram ouvidas ou presenciadas pela equipe da Relatoria deEducação, ao longo das missões que tiveram como foco a problemática do racismo na educaçãobrasileira, que se constituiu no grande tema do mandato 2009-2011. Abordando questões comoa intolerância religiosa nas escolas públicas contra adeptos(as) de religiões de matriz africana,a educação em territórios quilombolas e as manifestações do racismo no cotidiano escolar, aRelatoria realizou entrevistas com educadores, crianças, adolescentes, famílias, comunidades,gestores, ativistas, lideranças religiosas e operadores de direito sobre questões pouco “visíveis”no debate público e ainda não tratadas de forma adequada pelas políticas educacionais.

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As muitas faces doracismo

Aescola é o lugar em que as diferenças se explicitam e, muitas vezes, do primeirocontato das crianças com o preconceito, a discriminação e o racismo. O racismo se manifesta dediferentes formas nos espaços educativos e se concretizapor meio de atitudes ativas (agressões e humilhações,como piadas, xingamentos, apelidos, violência física,etc.) ou de forma mais “sutil” por meio da distânciasocial, da falta de reconhecimento e de estímulo(refletida nos livros didáticos e propostas pedagógicas),da negação, da desatenção e da baixa expectativapositiva com relação ao desempenho de pessoas negras.

Associado ao sexismo, o racismo leva muitasmeninas, adolescentes e mulheres negras a enfrentarum cotidiano marcado pela desqualificação cotidianada beleza negra, a erotização precoce, a falta deimagens e de referências positivas e empoderadas,além das dificuldades enfrentadas por grande partedelas nas famílias e comunidades Na articulação dasdesigualdades entre gênero e raça, é importantetambém destacar a situação dos meninos e adolescentes negros, que constituem o grupo socialcom os piores indicadores educacionais.

Como diversas pesquisas apontam, o racismo tem um impacto terrível na aprendiza-gem e no desenvolvimento da autoestima de crianças, jovens e adultos negros e pode alimentaro sentimento perverso de superioridade de crianças, adolescentes e jovens brancos com relaçãoa pessoas de outras origens étnico-raciais (negras, indígenas, ciganas, hispano-americanas, etc.).O racismo é um obstáculo à conquista de uma sociedade justa e democrática e exige umaatuação precisa do Estado brasileiro para sua superação efetiva.

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Associado ao sexismo, oracismo leva muitasmeninas, adolescentes emulheres negras aenfrentar um cotidianomarcado peladesqualificação cotidianada beleza negra, aerotização precoce, afalta de imagens e dereferências positivas eempoderadas

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Intolerância religiosae a atuação da Relatoria de Educação

Entre as denúncias de intolerância religiosa que chegaram à Relatoria, de diversasregiões do país, encontram-se casos de violência física (socos e até apedrejamento) contraestudantes; a demissão ou o afastamento de profissionais de educação adeptos de religiões dematriz africana ou que abordaram conteúdos dessas religiões em classe; a proibição de uso delivros e do ensino da capoeira em espaço escolar; as desigualdades no acesso a dependênciasescolares por parte de lideranças religiosas, em prejuízo das vinculadas à matriz africana; aomissão diante da discriminação ou abuso de atribuições por parte de professores e diretoresque fazem da escola espaço para o proselitismo religioso, etc. Essas situações, muitas vezes,levam estudantes à repetência, evasão ou solicitação de transferência para outras unidadeseducacionais, comprometem a autoestima e contribuem para o baixo desempenho escolar.

Alguns entrevistados e entrevistadas denunciaram que a intolerância religiosa vemaumentando em decorrência do crescimento de determinados grupos religiososfundamentalistas nas periferias das cidades e de seu poder midiático; da ambiguidade daspolíticas educacionais com relação à defesa explícita da laicidade do Estado e do insuficienteinvestimento na implementação da lei 10.639/2003 que alterou a Lei de Diretrizes e Bases daEducação Nacional e tornou obrigatório o ensino da história e da cultura africana e afro-brasileira em toda a educação básica.

Em uma sociedade tão desigual, discriminadora e diversa como a brasileira, a Relatoriatambém chama a atenção para a importância de que seja estimulado um debate públicoqualificado sobre o significado do ensino religioso e de seus efeitos com relação ao princípioconstitucional da laicidade. Ensino religioso que é atualmente custeado pelo poder público,em detrimento de investimentos nas inúmeras demandas da educação pública ou naimplantação de disciplinas como “educação, cidadania e direitos humanos”. É necessáriotambém que se explicite que a intolerância contra religiões de matriz africana, as mais vitimadasno país, constitui uma das faces perversas do racismo brasileiro, que humilha, condena e destróia cada dia a autoestima e as perspectivas de milhões de meninos, meninas, jovens, mulheres ehomens negros do país.

No informe preliminar sobre as missões de intolerância religiosa, divulgado emsetembro de 2010, durante a Marcha Nacional pela Liberdade Religiosa, realizada no Rio deJaneiro, a Relatoria apresentou um conjunto de treze recomendações ao Estado brasileiro,visando a superação da intolerância religiosa nas escolas públicas e do racismo no ambienteescolar. Entre elas, a criação do Plano Nacional para o Enfrentamento da Intolerância Religiosa

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e de comissões de intolerância religiosa em todos estados brasileiros; a implementação efetivado plano nacional da lei 10.639/2003; a criação de protocolo escolar para apresentação dedenúncias relativas à intolerância religiosa, racismo, homofobia/lesbofobia, de gênero, contradeficientes e demais discriminações e violências ocorridas em creches, escolas e universidades;a formação dos(das) profissionais e gestores de educação e conselheiros tutelares; o fim doensino religioso confessional em redes públicas de ensino de todo o país e a revogação doacordo Brasil e Santa Sé, que prevê ensino religioso católico e de outras confissões cristãs nasredes públicas; a fiscalização e controle social da política de conveniamento dos órgãos públicoscom organizações sociais confessionais.

“Entendemos ser obrigação do Estado brasileiro combaterefetivamente todas as formas de impunidade de crimes cometidoscontra a sociedade e contra o Estado. A Relatoria vem se somar àsvozes que questionam o modelo de punição centradopredominantemente na ampliação do confinamento de sereshumanos em unidades prisionais como resposta não somente aoalegado crescimento do crime organizado no Brasil e no mundo,mas ao aumento dos conflitos sociais e interpessoais decorrentesdas desigualdades (econômicas, étnico-raciais, regionais, degênero, de orientação sexual, etárias, etc.) e da falta de acesso adireitos básicos”.

Heidi Ann Cerneka, Integrante da Coordenação Nacional da Pastoral Carcerária. Conheceu o trabalhoda Relatoria no trabalho sobre educação nos presídios, realizado em 2009.

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Meta de equalização no novo PNE

Uma das propostas inovadoras apresentadas pela Relatoria, por meio daCampanha Nacional pelo Direito à Educação, para o processo de tramitação donovo Plano Nacional de Educação (2012-2021) no Congresso Nacional, foi anecessidade de estabelecimento de uma meta de equalização, que diminua em 60%a desigualdade entre grupos da população considerando as desigualdades derenda, raça/etnia, gênero, campo/cidade, deficiências, orientação sexual, região eorigem nacional ao longo da próxima década.

Equalizar significa igualar, buscar um maior equilíbrio, diminuirdesigualdades entre diferentes. A proposta de meta de equalização no PNE vemcontribuir para a explicitação e o enfrentamento de desigualdades estruturais quemarcam a educação brasileira, ao induzir políticas públicas que visem a diminuiçãode tais desigualdades nos próximos dez anos.

As metas de equalização nascem da constatação de que as políticasuniversalistas, como vêm sendo formuladas e implementadas, têm sidoinsuficientes para diminuir muitas das desigualdades presentes na realidadebrasileira. Vários estudos e relatórios elaborados por institutos governamentais,universidades e organizações da sociedade civil brasileiros apontam que – apesarda melhoria de diversos indicadores sociais e educacionais na última década – asbrechas educativas entre grupos da população persistem ou até se ampliam.

Estabelecer metas de equalização em planos de Estado constitui mecanismoadotado em diferentes países e blocos regionais, como a União Europeia e o próprioMercosul, com fins econômicos, políticos ou sociais. As metas de equalização emum Plano Nacional de Educação estão comprometidas com o avanço da equidade,entendidas como eixo estruturante e condição fundamental para o acesso e oexercício pleno do direito humano à educação.

Há casos em que as metas da equalização são usadas por determinadosgestores públicos como justificativa para o rebaixamento da qualidade doatendimento dos grupos mais favorecidos e não para a elevação da qualidade doatendimento dos grupos mais discriminados. Em decorrência disso, a proposta dameta de equalização da Relatoria fixa a equalização por meio da elevação dosindicadores educacionais dos grupos vulneráveis.

Além disso, é fundamental afirmar que as metas de equalização somentefazem sentido se combinadas – em um mesmo plano de Estado – com metasuniversais de ampliação e melhoria do atendimento educacional para todos e todas,ou seja, pressupõem o fortalecimento de políticas universalistas aliado ao

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EntrevistaAntonio Bispo dos Santos

A luta das comunidades tradicionais quilombolas e indígenas pela garantia deseus direitos acompanha a própria história do Brasil. Vem desde o período das graves violaçõesdos direitos humanos do Brasil Colônia e continua no Brasil do século XXI. Nesta entrevista,Antonio Bispo dos Santos, o Nego Bispo, fala sobre os desafios vividos pelas comunidadesquilombolas, especialmente na luta pelo direito à terra. Nego Bispo nasceu no Vale do RioBerlengas, antigo povoado Papagaio, hoje município de Francinópolis. É lavrador tradicional,formado por mestres e mestras de ofícios e morador do quilombo Saco do Curtume, localizadono município de São João do Piauí, semiárido piauiense, distante cerca de 500 km de Teresina.Ativista político e militante de grande expressão no movimento social quilombola e nosmovimentos de luta pela terra, Nego Bispo é, atualmente, um dos representantes do estado doPiauí na Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas(CONAQ). Foi presidente do Sindicato Rural de Francinópolis (PI) e diretor da Federação dosTrabalhadores na Agricultura no Estado do Piauí (FETAG/PI). Poeta, escritor e intelectual, queprefere ser chamado de “relator de conhecimentos”, é autor de inúmeros artigos e poemas, jáfoi locutor de programa radiofônico e no ano de 2007 publicou, com apoio do governo do estadodo Piauí, o seu primeiro livro. Colonização, quilombos: modos e significações é o segundo,organizado, editado e publicado pelo Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia (INCT) deInclusão no Ensino Superior e na Pesquisa, em parceria com a Fundação Cultural Palmares,Ministério da Cultura (FCP/MinC).

Entre tantos problemas enfrentados pelas comunidades quilombolas, haveria algum deles que você destacaria como um problema estruturante?

A questão fundiária brasileira, o caráter expropriatório do desenvolvimentismotranscolonizador e a subserviência dos políticos ao capital especulativo são sim problemasestruturantes tanto para as comunidades quilombolas como para os demais povos e comu-nidades tradicionais.

Os setores mais conservadores da sociedade apontam as comunidades tradicionais, comoquilombolas e indígenas, como um entrave para o desenvolvimento do país. Mas essemodelo de desenvolvimento é muitas vezes um entrave também para as comunidades.Que tipo de situações existem hoje no Piauí que podem demonstrar o impacto do modelode desenvolvimento brasileiro?  

O estado do Piauí articula através de seus governantes um plano integrado deexpropriação das reservas naturais de nosso povo no qual as mineradoras se articulam paraatacar a maior reserva de caatinga do Nordeste brasileiro, situada no sul do Piauí, de onde

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extrairão ferro, níquel, manganês, ouro e outros minerais, que se utilizarão da eletricidade comomatriz energética gerada por grandes barragens, que também fornecerão água parabeneficiamento desses minérios. Esse é um pretenso projeto conjugado com a produção debiodiesel a partir da soja e das mais variadas oleaginosas que podem ser produzidas no cerradopiauiense. Além de tudo isso, usar como transporte os trilhos da Transnordestina S/A e aindapoderá ficar registrado “nos papéis produzidos pela Suzana Celulose”.

E qual desenvolvimento as comunidades quilombolas vislumbram para o Brasil?

A biointeração, ou seja, o que as comunidades quilombolas e povos indígenas semprefizeram, que é explorar subjetivamente a energia orgânica nas relações de produção e usarsolidariamente a relação subjetiva de produção em prol da relação solidária de distribuição.

O STF ainda julgará uma ADIn que questiona a legalidade da titulação de territórios quilombolas. Sob qual argumento de defesa vocês têm trabalhado? Qual é a expectativa para essa votação?

Toda e qualquer argumentação tem como eficácia a fundamentação no poder, então,nesse caso, como em todas as outras questões que enfrentamos, nossas expectativas devem sermedidas pela nossa capacidade de mobilização social.

O Estado deveria ser o responsável pelo estudo, regulamentação e titulação dos territórios quilombolas. Mas muitos estudiosos apontam o Estado como um grandeviolador de direitos. Como vocês veem o papel desempenhado pelo Estado, frente ascomunidades tradicionais, em especial a quilombola?

O Estado é produto de um permanente processo de colonização, logo, é possíveladivinhar como ele se comporta perante os povos indígenas, as comunidades quilombolas e ascomunidades tradicionais.

Você poderia falar mais sobre quilombos urbanos, o que os define, onde e como existem?

Quilombo é um modo de vida, desenvolvido num processo de contra colonização,assim sendo, nem é rural nem é urbano, é um espaço de luta pela liberdade.

A Relatoria de Educação buscou trabalhar com o tema da educação quilombola e se deparou com um vazio na área de políticas públicas. De que forma a missão daRelatoria pode auxiliar o trabalho de vocês?

Publicisando para o poder público o que ele ignora e publicisando para a sociedade oque o poder público omite.

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Modelo de desenvolvimentoe matriz energética

Vivemos um contexto político em que é hegemônico o discurso triunfalista de quea economia brasileira nunca teria estado tão sólida e o Brasil nunca teria crescido a taxas tãoexpressivas, conjugando aumento do PIB e a geração de empregos com a sacrossantaestabilidade econômica. Esse discurso propaga a ideia de que o modelo de “desenvolvimento”brasileiro seria uma espécie de exemplo bem-sucedido de desenvolvimento com base naexportação de recursos naturais. O quadro político econômico do Brasil e dos países docontinente sul-americano atualmente aponta para um processo de reprimarização de suaseconomias, que se voltam, direta e indiretamente, cada vez mais, para a exportação de matérias-primas e insumos de baixo valor agregado e intensivos em recursos naturais. O avanço dafronteira de exploração de recursos – como água, energia, minério e commodities agrícolas – éacompanhado da implementação de redes de infraestrutura, alterações nas formas de ocupaçãoe uso do território e reconversão de atividades tradicionais.

Há, no entanto, uma face menos gloriosa da expansão das fronteiras do capitalismobrasileiro, uma espécie de negativo do retrato de prosperidade que se divulga da economiabrasileira Brasil adentro e mundo afora. Trata-se das implicações políticas, sociais e ambientaisdaquilo que Roberto Malvezzi (2009) denominou “crescentismo”, neologismo que busca dar contada lógica que animou o Programa de Aceleração do Crescimento do governo Lula e continuaanimando o projeto econômico do governo Dilma. O crescimento econômico ressurge como valorem si: trata-se de crescer a qualquer custo ou, mais precisamente, sem que sejam contabilizadosos custos dessa opção e seus impactos sobre o meio ambiente, sobre os diversos modos de vidaexistentes em nossa sociedade e sobre grupos sociais historicamente vulnerabilizados.

Esse é o caso dos grupos indígenas e das populações tradicionais, que vivem umprocesso acelerado de despossessão de seus territórios e dos trabalhadores dos diferentessetores da indústria e do agronegócio: ao mesmo tempo em que obtêm um emprego

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terceirizado ou temporário, estão a cada dia mais expostos à precariedade geral das condiçõesde trabalho: o “crescimento” da economia se faz à custa de baixos salários, altas taxas deexploração, contaminação química e aumento das doenças do trabalho.

Podemos afirmar, seguindo os estudos seminais de Francisco de Oliveira (1972 e 2001),que os mecanismos que regem as transformações e continuidades do processo de criação econcentração de riquezas no Brasil possuem um caráter “ornitorríntico” (Cf. Francisco deOliveira, 2001). Em outras palavras: a tão celebrada acumulação intensiva do capitalismobrasileiro – setor industrial e de serviços de ponta, alta renda do capital e ganhos deprodutividade – não é desvinculável dos processos de acumulação extensiva via expansão dasfronteiras pela expropriação de recursos comunais, expansionismo territorial predatório,despossessão sociocultural e violação de direitos humanos elementares.

Talvez os conceitos que mais dão conta do caráter do desenvolvimentismo brasileirodas últimas décadas sejam o de acumulação extensiva ou de acumulação pordespossessão/espoliação (HARVEY, 2003 e BRANDÃO 2010), que revelam a atualidade doconceito marxiano de “acumulação primitiva” e seucaráter de estratégia permanente e não apenas“originária” do capitalismo. Essas noções evidenciam,de forma aguda, o modo próprio de funcionamento docapitalismo enquanto sistema imanente que não parade expandir seus próprios limites, reencontrando-ossempre numa escala ampliada: o capital como espiralde acumulação/despossessão em avidez permanentepor novos territórios-recursos e populações-mercado.Esse modelo de acumulação se faz às custas da nãoimplementação ou da pura e simples usurpação dedireitos adquiridos, bem como da flexibilização danormativa ambiental e trabalhista. Nesse quadro deexpansão das fronteiras do capital tanto via incor-poração de territórios antes não explorados quanto via aumento da exploração do trabalho, odireito humano ambiental – meio ambiente sendo entendido, a um só tempo, como meio detrabalho e meio de vida – encontra-se profundamente afetado.

Como demonstram Henri Acselrad e Gustavo Bezerra (2010), apesar do discursoambiental, especificamente aquele relativo à “modernização ecológica” ter sido incorporado edivulgado por parte das instituições correntes, mudanças efetivas nos padrões técnico-espaciaisdo capitalismo brasileiro não ocorreram até o presente. Isso porque vigora de fato a injustiçaambiental, isto é, um tipo de divisão socioespacial da degradação ambiental que destina riscosambientais e sociais ampliados a determinados grupos sociais vulnerabilizados. Segundo essesautores, enquanto for possível para os processos produtivos danosos ao meio ambiente e àsaúde transferirem-se para áreas onde vivem os menos capazes de influir nas decisões sobrelocalização espacial e os menos dotados de acesso à justiça e de mobilidade espacial, nenhumamudança haverá nos padrões de produção capitalista no sentido da preservação da saúde daspopulações e do meio ambiente.

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... vigora de fato ainjustiça ambiental, istoé, um tipo de divisãosocioespacial dadegradação ambientalque destina riscosambientais e sociaisampliados adeterminados grupossociais vulnerabilizados.

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Com o objetivo de atrair investimentos diretos e acelerar o crescimento econômico, osgovernos (em suas várias instâncias: nacional, estadual ou municipal) tendem a oferecer umasérie de benefícios e incentivos, tais como isenção de tributos, facilidades na remessa de seuslucros e fartos recursos públicos sob a forma de financiamento direto. Adicionalmente, o avançoda fronteira sobre territórios não totalmente incorporados às lógicas de mercado tem ampliadoconflitos ambientais e reforçado processos históricos de discriminação social e despossessãoeconômica. Essa dinâmica contribui, por exemplo, para que os povos e populações tradicionaissejam vistos como obstáculos ao progresso, o que vem dificultando enormemente que suasdemandas sejam ouvidas e consideradas durante os processos legais de avaliação deempreendimento que os atingem.

Nesse contexto, ganha importância o trabalho das Relatorias Nacionais e especifi-camente da Relatoria do Direito Humano ao Meio Ambiente: ao realizar missões nas localidadesque sofrem com um processo de decisão local do qual não participaram, as Relatorias projetampublicamente as vozes dissonantes dos grupos sociais vulnerabilizados pelo modelo decrescimento adotado pelo país nas últimas décadas e chamam atenção dos operadores de justiçaem nível nacional – e por vezes internacional – sobre as dinâmicas conflitivas e impactospotencial ou efetivamente vivenciados por esses grupos.

O trabalho da Relatoria frente às violações de direitos humanos

A Conferência Mundial de Viena de 1993 reafirmou o compromisso internacional pelosdireitos humanos e os declarou indivisíveis e interdependentes. As características que definemtais direitos exigem uma integralidade de visão: são universais (valem para todos),interdependentes (um depende do outro para se realizar plenamente), indivisíveis (os direitoshumanos têm que ser considerados como um todo, sem serem divididos, isto é, os direitoseconômicos, sociais e culturais são condição para a observância dos direitos civis e políticos, evice-versa) e inalienáveis (um direito não pode ser trocado ou compensado por outro). Assim,saiu fortalecido da conferência o postulado de que o conjunto dos direitos humanos perfazuma unidade indivisível e inter-relacionada: sempre que um direito é violado, rompe-se aunidade e todos os demais direitos são comprometidos (VANUCCHI, 2009).

A experiência de trabalho da Relatoria do Direito Humano ao Meio Ambiente apontapara a concomitância e, em muitos casos, o entrelaçamento de violações aos direitos humanosrelativos ao meio ambiente com violações à chamada “primeira geração de direitos humanos”,isto é, aos direitos civis e políticos. Como foi indicado em relatórios sobre as violaçõesobservadas no licenciamento de Belo Monte, no caso de Santo Antônio e Jirau, no Rio Madeira,e da mineração de urânio em Caetité, na maior parte dos casos as violações estão conjugadas:onde há violações ao direito à saúde, a um trabalho digno e ao meio ambiente, há tambémameaças aos direitos civis e políticos das comunidades afetadas e suas lideranças. Esse é o casodo processo e ameaças sofridos pelo padre Osvaldino, de Caetité (BA), e das ameaças eprecariedade no ambiente do trabalho a que são submetidos os trabalhadores de Jirau e damina e usina de processamento de urânio da INB em Caetité.

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A criminalização daqueles que lutam por seus direitos tem sido recorrente nos últimosanos, constituindo uma das faces mais perversas das violações de direitos humanos observadaspelas Relatorias. Nas palavras de Francisco Carneiro De Filippo (Le Monde DiplomatiqueBrasil, outubro de 2011, p. 15): “A agilidade do Executivo em cumprir a agenda do capital,modificando leis para criar um Estado de exceção e repressão, contrasta com a não execução daspolíticas públicas capazes de promover direitos e a ausência de ações e recursos para a proteçãode pessoas ameaçadas”. O trabalho das Relatorias tem sido o de chamar a atenção pública eoferecer subsídios políticos e jurídicos para que os protagonistas locais lutem pela integralidadede seus direitos face à integralidade das violações que vivenciam. Afinal, essa é a inovaçãocentral trazida pelos Dhesca: a de que as violações aos direitos humanos econômicos, sociais eculturais são tão graves quanto as violações de direitos civis e políticos, na medida em que taisviolações afetam diretamente e matam todos os dias milhões de pessoas em todo o mundo,embora não sejam inexoráveis, podendo e devendo ser combatidas e revertidas por açõespolíticas consequentes e bem-estruturadas.

O trabalho da Relatoria do DHMA considera a evidenciação dos conflitos e dasinjustiças ambientais como um meio eficaz para favorecer, por um lado, a elaboração depolíticas de combate à desigualdade ambiental e, por outro, a busca da igual proteção dosdiferentes grupos sociais ao direito humano a um meio ambiente saudável e seguro. Aoevidenciar a concentração dos riscos sobre os despossuídos, se estará criando resistência àdegradação ambiental em geral, posto que os impactos negativos não mais poderão sertransferidos, como de praxe, para os mais pobres. A propensão de todos os atores sociais alocalizar e eliminar as fontes do dano ambiental tenderá, consequentemente, a se intensificar.Mais do que isso, ao se dar visibilidade às injustiças ambientais através das missões, se estaráfavorecendo o envolvimento das populações mais pobres na defesa de seus ambientes,desfazendo o preconceito segundo o qual a causa ambiental é exclusiva das classes médiasurbanas desejosas de efeitos estéticos ou de idealização da natureza. A tarefa de evidenciaçãodos conflitos a que se propõem as Relatorias serve, portanto, para municiar tanto a prática degovernos democráticos como as dinâmicas de organização da sociedade no combate àsdesigualdades sociais e ambientais.

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Flexibilidades em licenciamentoambiental reforçamviolações de direitoshumanos

Desde o lançamento do Plano de Aceleração do Crescimento (PAC), em janeiro de2007 e do PAC 2, em março de 2010, os governos Lula e o atual governo Dilma atuaram paracriar o que se chama um “ambiente favorável aos investimentos” nas obras e projetos definidoscomo prioritários. Duas frentes de atuação do governo se distinguem nesse sentido: adisponibilização de recursos públicos à iniciativa privada por meio de financiamento direto,subsídios, isenções e créditos – em que se destaca o papel do BNDES – e o enfraquecimento dosdispositivos de regulação ambiental e social – especificamente do licenciamento ambiental.Esse processo de flexibilização da legislação ambiental, indigenista e relativa às populaçõestradicionais está acompanhado de outras estratégicas, como a desqualificação do aparatotécnico estatal responsável pela gestão socioambiental (Ibama, Conama, Funai, entre outros) edo cerceamento por parte da Advocacia Geral da União (AGU), da atuação do MinistérioPúblico enquanto instância que procura preservar a integridade da legislação e dos direitos.

Em diferentes ocasiões, o governo Lula expressou que a legislação ambiental é um “entravepara o desenvolvimento” e a solução seria a desregulação dos aparatos administrativo e legalresponsáveis pela gestão da questão ambiental. Além do governo federal, instituições financeirasinternacionais, como o Banco Mundial, vêm produzindo análises sobre o “ambiente definanciamento” e as “oportunidades para atrair investidores”, nas quais o licenciamento ambientalé apontado como fonte de incertezas prejudiciais à atração de investimentos. Documento do escritóriobrasileiro do Banco Mundial3 afirma que “as incertezas geradas pelo processo de licenciamentoambiental” (p. 6) se traduziriam num aumento do “risco de natureza ambiental e social”:

“O não aproveitamento da oportunidade para atrair investidores, em decorrência das deficiências

gerenciais associadas às decisões políticas e burocráticas envolvidas no licenciamento ambiental, é

prejudicial a todos os brasileiros (os quais têm que pagar as contas de eletricidade). Os riscos de natureza

ambiental e social – seja para obtenção das três licenças exigidas, a incertezas nos custos de mitigação –

geram riscos para os investidores, os quais levam a tarifas mais altas para os consumidores. Um aumento

de risco, independente de sua origem, se traduz em maiores expectativas de retorno. As incertezas

regulatórias se traduzem em custos mais altos para os consumidores de energia e para a sociedade

brasileira em geral.” (Banco Mundial, 2008, p. 13).

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3 Licenciamento ambiental de empreendimentos hidrelétricos no Brasil: uma contribuição para o debate, divulgado em lº de março de 2008.

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Ora, qual a incerteza gerada pelo processo de licenciamento ambiental tão temida eesconjurada pelos investidores, pelo governo brasileiro e pelo Banco Mundial? A incertezainerente a um processo de tomada de decisão democrático e cientificamente correto. Olicenciamento ambiental, tal como atualmente regulamentado, é um dos poucos processos dedecisão política em que há previsão de participação popular, por limitadas que sejam asaudiências públicas. Esse processo de consulta e de levantamento das objeções trazidas pelasociedade civil deve, segundo consta na lei, ser levado em conta pelo órgão responsável pelaemissão das licenças.

O documento do Banco Mundial, ao falar em risco, refere-se também ao “riscodemocrático” de permitir que a sociedade decida – amparada pela legislação pertinente – nãose submeter a um tipo de investimento econômico que ela entende como danoso. Desse modo,pode-se afirmar que o atual processo de flexibilização da normativa ambiental, dedesqualificação do corpo técnico e os atentados à autonomia do aparato de regulação ambientalvêm transformando o licenciamento numa espécie de linha de produção da aceitação públicae de fabricação do consenso político em torno das grandes obras.

Missão em Belo Monte, no Pará

O projeto Belo Monte é a terceira tentativa do governo brasileiro de construção debarragens para geração de energia elétrica no Rio Xingu. O atual projeto inclui o desvio damaior parte do fluxo de água do Rio Xingu, em um trecho de aproximadamente cemquilômetros conhecido como Volta Grande do Xingu, para um trecho que atualmente é ocupadopor florestas e assentamentos de pequenos agricultores.

O Estudo de Impacto Ambiental e o Relatório de Impacto Ambiental entregues pelaEPE ao Ibama para a obtenção de licença prévia apresentou deficiências de tal ordem quemotivou a formação de um grupo independente de especialistas para avaliá-lo. O grupo,composto por 40 pesquisadores, realizou um meticuloso exame do EIA-Rima e apontou lacunase falhas metodológicas que permitiram subestimar os graves impactos ambientais e sociais doempreendimento. Um desses impactos é a diminuição significativa do volume de água para aregião, devido à variação de vazão do rio ao longo do ano, o que afetaria diretamente abiodiversidade local.

A Licença Prévia da UHE Belo Monte foi emitida pela presidência do Ibama – à reveliado parecer dos próprios técnicos do órgão. Alguns técnicos pediram demissão, outros seafastaram do licenciamento do projeto e outros ainda assinaram pareceres contrários à liberaçãodas licenças para a construção da usina, nos quais afirmam que o EIA não conseguiu serconclusivo sobre os impactos da obra. Dois dias antes da liberação da licença prévia, técnicosda área de licenciamento lançaram nota técnica afirmando que “não há elementos suficientespara atestar a viabilidade ambiental do empreendimento”.

Durante o processo, mudanças no projeto foram realizadas, com a promessa deresguardar a população local. Uma delas foi evitar a inundação de Terras Indígenas (TIs), quena prática conduz a outra forma impacto, tão ou mais grave: ao invés de alagar, o projeto atual

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prevê o desvio do curso do rio e a diminuição da vazãodo rio, onde há duas terras indígenas e uma série decomunidades ribeirinhas. Segundo os própriosrelatórios técnicos do Ibama sobre o EIA,4 não hágarantias de manutenção da biodiversidade, danavegabilidade do rio, da reprodução de espécies, daqualidade da água e da viabilidade da pesca,impedindo, na prática, a existência física e social dessesgrupos.

Missão nas usinas de Santo Antonio e Jirau, em Rondônia

O relator José Guilherme Zagallo investigou, em março de 2011, o motivo do levantedos operários que trabalham na construção das usinas hidrelétricas de Santo Antônio e Jirau.À época, os trabalhadores incendiaram 54 ônibus e 70% dos alojamentos. Apenas na usina deJirau eram 21 mil trabalhadores compartilhando alojamentos, denunciando surtos deviroses,  jornada excessiva de trabalho  e outras máscondições que a magnitude e a pressa em acabar a obraocasionaram. Os consórcios responsáveis pelas obraspretendiam adiantar a conclusão dos empreendi-mentos, para maximizar seus lucros com a vendaantecipada da energia.

O processo de licenciamento ambiental dasusinas do Rio Madeira ocorreu em franca violação dasnormas que regem os procedimentos de licenciamentoambiental, como relatado na missão dessa Relatoria de2007, feito pela relatora Marijane Lisboa. Por contaremcom apoio governamental, inclusive com participaçãoacionária, já desde a concessão da licença prévia houvepressão sobre o Ibama, que concedeu licença ambientalcontra parecer técnico do próprio órgão.

Na sequência, foi concedida uma licença parcial de instalação, inexistente no direitobrasileiro, de modo a autorizar a instalação de canteiros de obras ainda antes da concessão de licençade instalação propriamente dita. Mas o pior ainda estava por vir. Após a concessão da licença prévia,o Ibama admitiu a mudança do eixo da hidrelétrica de Jirau em nove quilômetros e a elevação dacota da barragem da hidrelétrica de Santo Antonio, sem a realização de novos Estudos de ImpactoAmbiental e de audiências públicas para apresentação dessas alterações. A alteração do local daUsina de Jirau está sendo contestada pelo Ministério Público Federal perante o Poder Judiciário.

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... ao invés de alagar, oprojeto atual prevê odesvio do curso do rio ea diminuição da vazão dorio, onde há duas terrasindígenas e uma série decomunidades ribeirinhas.

Apenas na usina de Jirau eram 21 miltrabalhadorescompartilhandoalojamentos,denunciando surtos de viroses, jornadaexcessiva de trabalho eoutras más condiçõesque a magnitude e a pressa em acabar aobra ocasionaram.

4 Cf. Ibama. Parecer 114/09. Análise Técnica do Estudo de Impacto Ambiental do Aproveitamento Hidrelétrico de Belo Monte,processo n° 02001.001848/2006-75. COHID/CGENE/DILIC/IBAMA, 23 de novembro de 2009.

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Nas entrevistas realizadas foi relatado:

n Que as obras das hidrelétricas de Santo Antonio e Jirau já causaram a morte de seistrabalhadores em acidentes de trabalho;

n Cada uma das obras já recebeu 1.000 autuações da Superintendência Regional doTrabalho por violação à legislação trabalhista;

n A existência de um “cartão fidelidade” (que inclui visitas aos prostíbulos da região)para o pagamento de vantagens fora da folha de pagamento “para empregados quenão faltam, não tiram férias, não adoecem e não visitam a família”.

n Pelos dados analisados pela Relatoria, constatou-se:

n A migração para o município de Porto Velho foi 22% superior ao previsto no Estudo deImpacto Ambiental;

n O número de homicídios dolosos cresceu 44% em Porto Velho, entre 2008 e 2010, e aquantidade de crianças e adolescentes vítimas de abuso ou exploração sexual subiu 18%;

n O número de estupros cresceu 208% em Porto Velho entre 2007 e 2010.

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Relatório denuncia violaçõesde direitos humanos no ciclo de produção de urânioPor Helena Martins

Tomar água contaminada; produzir alimentos e não ter como vendê-los; convivercom a iminência de cânceres; sofrer perseguições e, ainda por cima, deparar-se com o silênciodas autoridades como resposta a cada questionamento. Esse é o cenário enfrentado pelosmoradores de Caetité, cidade localizada a 750 km de Salvador (BA), na qual está em operação,desde 2000, a Unidade de Concentrado de Urânio das Indústrias Nucleares do Brasil (URA-INB), responsável pela atividade de mineração e transformação do urânio mineral em uma dasmatérias-primas do combustível nuclear.

Desde a instalação da usina, os problemas já enfrentados em uma cidade uranífera,com parco abastecimento de água e até então sem energia elétrica, só aumentaram. Há crescentefalta de água, inviabilizando diversas atividades, da agricultura à lavagem de roupa. Em 2008,vários poços de água foram fechados, após um estudo solicitado pelo Greenpeace detectar altoíndice de radioatividade da água, acusação comprovada pelo Instituto de Gestão das Águas eClima (Ingá). Pouco tempo depois, sem que fosse demonstrado o contrário, os poços foramreabertos. Todos temem a contaminação que pode vir de Caetité.

Diante da ameaça à vida de padre Osvaldino, um dos defensores das comunidades daregião, hoje incluído no Programa de Proteção aos Defensores dos Direitos Humanos, aAssociação Movimento Paulo Jackson – Ética, Justiça, Cidadania e a Comissão Paroquial deMeio Ambiente de Caetité encaminharam denúncia sobre os fatos, através da Rede Brasileirade Justiça Ambiental, que solicitou uma missão à Relatoria do Direito Humano ao MeioAmbiente. A Relatoria pesquisou a situação entre 2009 e 2011, visitando a localidade erecolhendo evidências e depoimentos de movimentos e autoridades locais. Com isso, conseguiudemonstrar que a população carece de informações confiáveis sobre a atividade mineradora eseus impactos, especialmente na saúde. “Ali, tudo parece conspirar para proteger a INB e evitaro conhecimento profundo de suas atividades”, declarou a socióloga Marijane Lisboa, relatorada Plataforma Dhesca.

Em outubro de 2011, durante a audiência que tornou público o Relatório da Missão

Caetité: Violações de direitos humanos no Ciclo do Nuclear, o integrante da Comissão Paroquial deMeio Ambiente de Caetité, padre Osvaldino, questionou: “A quem interessa continuar sem um

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estudo profundo para comprovar a causa das mortes?”. O pároco relatou o alto índice deleucemia e neoplasia nas comunidades próximas da mina, que sequer dispõe de um médicooncologista, o que reforça a suspeita acerca da contaminação da bacia hidrográfica que banhaa região.

A moradia da população está ameaçada. Em Caetité viviam comunidades quilombolas,que usavam coletivamente a terra. Com a chegada da empresa, foram feitas desapropriaçõesque modificaram a cultura local. Por outro lado, 26 famílias que vivem nas proximidades damina, recebendo o gás radônio diretamente em suas casas, querem ser reassentadas, algo queaté hoje não foi feito. A população reclama ainda a ausência de uma discussão coletiva em tornodos reparos necessários às casas que sofrem rachaduras a cada explosão.

“Chegou-se a despejar urânio no chão e pegar de pá”

Se muitas dúvidas e desconfianças rondam os moradores das comunidades próximasà mina, os trabalhadores da INB revelam os graves riscos a que estão sujeitos. De acordo como integrante da diretoria do Sindicato dos Mineradores de Brumado e Microrregião, LucasMendonça, não existe segurança necessária para se trabalhar com material radioativo.Trabalhadores, inclusive, já entraram em contato direto com o urânio para evitar acidentes. Emmaio, Lucas participou de uma dessas situações. Como a mina havia sido paralisada por doismeses, a INB recebeu carga de urânio da Marinha do Brasil para complementar a produção dequatrocentas toneladas anuais e operou, mesmo sem licença, a colocação em tambores domaterial radioativo.

“A segurança dos trabalhadores foi totalmente neglicenciada. (...) Chegou-se a despejarurânio no chão e pegar de pá para colocar dentro dos tambores. Portões foram abertos paratirar a poeira do local e jogar para fora, expondo os trabalhadores que estavam em outras áreas”,denunciou o sindicalista. Nos primeiros dias, trabalhadores desmaiaram: “Colocaram ostrabalhadores terceirizados com equipamento de proteção individual aquém do que poderiaser. Com marretas, tentaram descompactar o material dos tambores e derramava-se o materialde um tambor para o outro”. Vindos de outras cidades, terceirizados utilizaram macacõesdescartáveis dos trabalhadores da empresa, após estes serem usados e lavados, conformedenunciou Mendonça.

A ação desastrosa legou à empresa multas de R$ 600 mil e, posteriormente, R$ 2milhões dadas pelo Ibama. Os impactos sobre a saúde desses trabalhadores, no entanto, nãopodem ser quantificados, ao menos por eles. Embora o presidente da INB, Alfredo TranjanFilho, tenha afirmado, durante a audiência na Câmara, que a empresa acompanha a saúde dosseus trabalhadores, Lucas Mendonça assevera o contrário: “Nenhum trabalhador recebeuresultado de exames. Todos os trabalhadores que participam dessa área [setor 170, no qual sedeu a operação de reentamboramento] têm coletado urina e feito exames, mas embora tenhamrequisitado seus resultados, nunca os receberam. O clima lá dentro é de medo”, desabafa.

A auditora fiscal do Ministério do Trabalho, Fernanda Giannasi, que há mais de vinte

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anos acompanha a situação das empresas ligadas ao setor nuclear, confirmou essas denúnciasdepois de ir ao local. Durante visita, encontrou vazamentos em paredes, marcas de urânio nopiso e no portão do setor 170, além de um sistema de exaustão absolutamente precário. Dianteda situação, Giannasi solicitou a interdição do setor para que a empresa realizasse o tratamentoda área. Assim como a interdição, logo suspensa pelo Ministério do Trabalho, outrarecomendação da auditora não foi efetivada: a eliminação dos contratos terceirizados, que hojejá somam 330, diante de 180 orgânicos.

Exploração de urânio: “Um entulho da ditadura”

A análise dessas e de outras denúncias apontadas pelo relatório, como o transbor-damento de cinco milhões de litros de licor de urânio, em 2005, e a possível existência de maisde duas centenas de furos nas mantas que deveriam impedir o contato do líquido radioativocom o solo, atualmente é de responsabilidade da Comissão Nacional de Energia Nuclear, aCNEN, autarquia federal vinculada ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação. Ocorreque a CNEN é proprietária de 99,9% das ações das Indústrias Nucleares do Brasil. Conformedenuncia o relatório, “observa-se por este desenho institucional que a INB é uma empresacontrolada pela CNEN e, portanto, que o Brasil não cumpre o artigo 8º da ConvençãoInternacional de Segurança Nuclear, o qual prevê que órgãos encarregados do fomento àenergia nuclear sejam separados daqueles que realizam atividades de regulação e fiscalização”.

Para Marijane Lisboa, “a CNEN é um entulho da ditadura. A ela não se pode perguntar,ou quando se pergunta tem-se como resposta a mesma frase: ‘está tudo bem’”. A relatora avaliaque a junção de funções da CNEN configura-se como “uma anomalia jurídica, estrutural, quenão é à toa, é para continuar mantendo esse setor todo em segredo, inacessível para apopulação”. O próprio presidente da INB, Alfredo Tranjan Filho, afirmou ser “absolutamentefavorável” à separação das atribuições de fiscalizar e produzir a energia nuclear em distintosórgãos, o que ainda não foi efetivado.

Outra recomendação do relatório da Plataforma Dhesca, entretanto, não foi recebida deforma consensual: a suspensão das licenças de mineração da INB, pois, para Tranjan, “oPrograma Nuclear Brasileiro é eficiente e seguro”. O relatório recomendou uma auditoriaindependente para apurar denúncias e condições de funcionamento da empresa e formularrecomendações para seu funcionamento seguro; a formação de uma comissão mista comespecialistas de vários ministérios e com representação da sociedade civil para verificar aqualidade da água consumida na região; a realização de um plano de monitoramento da saúdeda população, entre outras. Para a relatora da Plataforma Dhesca, o não atendimento àsrecomendações só reafirmará a inexistência de condições políticas, técnicas e mesmo moraispara se abrir outra mina.

Essa é também a opinião do coordenador da Comissão Pastoral da Terra (CPT) doCeará, Thiago Valentim, que acompanha a movimentação em torno da instalação de umamineradora em Itatira (CE), onde a falta de transparência da INB já é vivenciada. No processode licenciamento ambiental, de acordo com Valentim, o consórcio formado entre a INB e aempresa Galvani tentou burlar a lei, buscando autorização da Secretaria do Meio Ambiente do

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Ceará apenas para explorar o fosfato, mineral naturalmente associado ao urânio. Agora, novoprojeto de licenciamento, desta vez com a intenção de exploração de urânio explícita, está sendosubmetido ao Ibama. Prossegue, todavia, o silêncio e a exclusão dos afetados: “Não constamdados sobre a população no EIA-Rima, mas as comunidades querem participar do processo dedecisão, porque nós defendemos um outro projeto de desenvolvimento para a região”, afirmao integrante da CPT.

O projeto de exploração dessa mina de urânio está inserido nos planos de expansão doPrograma Nuclear Brasileiro, iniciado oficialmente em 1965, quando o Brasil assinou acordocom a empresa Westinghouse, dos EUA, para construir o seu primeiro reator, em Angra dosReis. Paralisado em 1990, após denúncias de construção de poços para testes nucleares e daexistência de contas bancárias secretas destinadas a financiar o programa militar, o programa foiretomado em 2007, sob a égide do governo Lula, tendo à frente a atual presidenta da república,Dilma Roussef. Os esforços governamentais para viabilizar esses empreendimentos, contudo,contrastam com o cenário de temor que acomete boa parte população brasileira, bem como deabandono daqueles que vivenciam os impactos da produção de uma energia cara e perigosa.

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EntrevistaAntonia Melo

“A Amazônia continua sendo um espaço de usurpação pelocapital e pelas empresas nacionais e transnacionais”

Nesta entrevista, Antônia Melo, da coordenação do Movimento Xingu Vivo paraSempre, fala das estratégias utilizadas pelos governos para viabilizar a construção da Usina deBelo Monte, das ameaças sofridas pelos povos indígenas e da mobilização popular que ganhaforça no Brasil e no mundo, e pela qual se tem conseguido resistir à apropriação do meioambiente pelo capital.

Por Helena Martins

Quando teve início a ameaça da construção de usinas sobre o Xingu e quais os impactos que podem ser gerados pelo complexo de usinas de Belo Monte?

Desde 1975, a Eletronorte pretendia transformar os rios Xingu e Iriri para produzireletricidade. Em 1989, esta proposta de barrar o Xingu, o projeto de Kararaó, foi cancelado noI Encontro dos Povos Indígenas em Altamira, quando a índia Tuira, num gesto firme deindignação, roçou a lâmina de seu facão no rosto mentiroso de Antonio Lopes Muniz,engenheiro da Eletronorte. De 1989 até 2002, os governos não esqueceram e remendaram oprojeto por Belo Monte, tentando dizer aos índios e ao povo que a área alagada seria menor enão alagaria terra indígena. O complexo hidrelétrico Belo Monte, um pesadelo,desgraçadamente rouba o sono, a paz, a tranquilidade, e traz a insegurança de perspectivas defuturo do Povo Xinguara há três décadas.

Hoje, dentro do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) do governo federal, amaior obra proposta é a construção da Hidrelétrica de Belo Monte (AHE Belo Monte) na baciado Rio Xingu, com uma previsão de investimentos de cerca de R$ 30 bilhões, o deslocamentocompulsório de mais de 45.000 habitantes e a migração de mais de 100.000 pessoas para a regiãode Altamira. Lançado em 2002, o projeto atual prevê a construção de duas barragens (Pimental,Belo Monte), um canal de derivação, dois reservatórios e um sistema extensivo de dezenas dediques, alguns do tamanho de uma barragem média. Por meio da barragem de Pimental e ocanal de derivação, seriam desviados mais de 80% da vazão do Rio Xingu para alimentar a casa

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de força no sítio Belo Monte. Assim, o Complexo Belo Monte inundaria uma área de 668 km2 eprovocaria uma redução drástica e permanente da vazão em 100 km do Rio Xingu na regiãoconhecida como Volta Grande, tornando inviável a vida de milhares de indígenas e ribeirinhosque ali vivem e causando o desaparecimento de espécies endêmicas e ameaçadas de extinção.

Além dos enormes riscos sociais e ambientais do projeto, o desenho atual de BeloMonte é caro e ineficiente. Em função da alta sazonalidade do Rio Xingu, que deve se agravarno contexto de mudanças climáticas, o Complexo Belo Monte só vai utilizar em torno de 39%(4.420 MW) de sua capacidade instalada de 11.233 MW. Em função da baixa eficiência da usina,pesquisadores e críticos do projeto acreditam que outros barramentos serão construídosposteriormente à montante de Belo Monte, regularizando o fluxo do rio e aumentando oarmazenamento de água, para aumentar a produção energética e compensar os elevadosinvestimentos no empreendimento.

A comunidade foi chamada pelo poder público para opinar sobre o projeto?

Apesar da grandeza da obra e de seus impactos, o processo de licenciamento ambientalfoi marcado pela falta de transparência e participação da sociedade civil, associada a gravesatropelos da legislação brasileira e de normas internacionais sobre os direitos humanos e aproteção do meio ambiente. Nesse sentido, cabe destacar: o subdimensionamento dos impactossociais e ambientais no Estudo de Impacto Ambiental (EIA); a falta de realização pelo CongressoNacional das consultas livres, prévias e informadas com as comunidades indígenas que seriamatingidas pelo projeto, conforme determina o artigo 231 da Constituição Federal, a Resolução169 da Organização Internacional do Trabalho e a Declaração das Nações Unidas sobre osDireitos Indígenas, das quais o Brasil é signatário. Já as audiências públicas foram realizadasde forma absolutamente irregular, em número insuficiente e em locais nos quais a maioria dapopulação mais ameaçada pelo empreendimento não teve oportunidade de participar e sobum forte aparato policial repressivo. Como se pode notar, o processo todo se deu à margem dequalquer participação da sociedade.

Os defensores de Belo Monte advogam que o Brasil precisa produzir mais energia paramanter a atual taxa de crescimento do país. No entanto, sabemos que muitas comunidades,inclusive ao longo do Xingu, sequer recebem energia elétrica em suas casas. Como oMovimento Xingu Vivo percebe essa contradição?

A Amazônia continua sendo um espaço de usurpação pelo capital e pelas empresasnacionais e transnacionais de recursos naturais e de mão de obra barata. E o Estado, mais umavez, disponibiliza toda sua estrutura para viabilizar esse modelo, através de financiamentopúblico pelo BNDES e dos fundos de pensão da Caixa Econômica Federal, Banco do Brasil ePetrobras; da pressão política exercida sobre o órgão licenciador, o Ibama, e sobre os demaisórgãos federais que participam do licenciamento ambiental, como Funai, IPHAM, ICMBIO,etc., para aprovar as licenças; da AGU que processa procuradores, promotores e até juízes peloempenho na defesa dos direitos dos povos do Xingu e também da politização do Judiciário, quenão tem desempenhado com celeridade e eficiência seu papel de cumpridor das leis do país.

É claramente um problema político, já que a inviabilidade técnica de Belo Monte naprodução energética já foi demonstrada por vários especialistas. Já sabemos também que

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Ü

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somente 2,3% da energia produzida por Belo Monte ficaria com a Celpa, todo o resto sendodistribuído para o Centro-Sudeste-Sul do país e as grandes mineradoras. Altamira e regiãoficarão apenas com os impactos negativos de Belo Monte e continuarão com os apagões comunsna região e as tarifas energéticas mais caras do país. Esse é nosso modelo energético.

Em 2012, o Brasil recebe a Rio+20, conferência da ONU que tem como um dos principais temas a questão energética. Qual o significado deste momento para as lutas dos povos indígenas e a denúncia do atual modelo de desenvolvimento no contexto da Rio+20?

O Brasil não tem condições de sediar um evento internacional sobre meio ambienteem um momento em que está flexibilizando, dilapidando toda a legislação ambiental e deproteção aos povos tradicionais para facilitar o licenciamento ambiental das obras do PAC;quando se recusa a participar de audiência convocada pela Comissão Interamericana deDireitos Humanos da Organização dos Estados Americanos sobre Belo Monte e chantageia acomissão retirando a candidatura do representante do país ao cargo na comissão, numa clarademonstração de desrespeito a um órgão multilateral e as negociações internacionais. O “viés”verde e defensor dos direitos humanos do governo brasileiro deve ser fortementedesmascarado.

Como tem se dado a articulação da resistência que, hoje, já adquiriu grande repercussão, inclusive internacional? Quais estratégias de comunicação ou outras estão sendo utilizadas?

Ações de conscientização e mobilização de base e das organizações locais, e ofortalecimento das organizações populares são realizadas através do Movimento Xingu Vivopara Sempre (MXVPS), coletivo de organizações que tem como objetivo comum a luta em defesado Rio Xingu e do reconhecimento dos direitos fundamentais dos povos do Xingu, comotambém as denúncias e frentes de pressão ao Judiciário e ao governo. Há o fortalecimento devários grupos de ativistas em defesa da Amazônia e contra Belo Monte no país, frente aos planosdo governo federal de construir o Complexo Hidrelétrico de Belo Monte a qualquer custo.

Sobre estratégia de comunicação, temos usado a imprensa independente e as redessociais como Facebook, Orkut, Twitter, além de nosso site (www.xinguvivo.org.br) paramobilizar a opinião pública e os defensores do meio ambiente e dos direitos humanos, e paradenunciar todas as irregularidades e ilegalidades do processo e as violações de direitoshumanos. Um resultado interessante dessa estratégia são as manifestações espontâneas contraBelo Monte desenvolvidas por outros grupos em diversas cidades brasileiras e até fora do país,colocando Belo Monte no centro de uma grande polêmica envolvendo o governo brasileiro.

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Relatoria estuda mortesmaternas e situação demulheres privadas deliberdade

A morte materna é uma importante causa de morte de mulheres em idadereprodutiva na maior parte dos países em desenvolvimento, estando relacionada às condiçõesde pobreza e de descaso dos poderes públicos com a vida das mulheres, incluindo o acesso aosserviços de saúde no momento oportuno.

Apesar da criação pelo Ministério da Saúde do Pacto Nacional pela Redução daMortalidade Materna e Neonatal, são frequentes as mortes de mulheres por essa causa,considerada como uma grave violação dos direitos humanos. Mortes maternas por abortoinseguro acontecem em todo o território nacional e indicam o não cumprimento do governobrasileiro dos acordos internacionais, sobretudo das Metas do Milênio, de redução em 75%dessas mortes até 2015.

A partir dessa análise, a Relatoria do Direito à Saúde Sexual e Reprodutiva daPlataforma Dhesca priorizou, para o mandato de 2009 a 2011, dois eixos de trabalho: violaçõesdos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres através dos casos de morte materna porabortos inseguros e a situação dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres em situação deprivação de liberdade.

Relatoria do Direito Humano à Saúde Sexuale Reprodutiva

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Mortes maternas:evitáveis, porém existentes

Amorte materna é a morte de uma mulher em idade reprodutiva por problemasrelacionados à gravidez, ao parto e ao puerpério, incluindo o aborto. Quase a totalidade dessasmortes é evitável com uma atenção de qualidade durante o pré-natal e o parto, período em que sedá parte importante dessas mortes, e com a prevenção dos abortos realizados em condiçõesinseguras. A morte materna, pela sua evitabilidade, é considerada um indicador importante dostatus das mulheres na sociedade e uma grave violação dos seus direitos sexuais e reprodutivos.

Segundo o Ministério da Saúde, a razão de morte materna para o país foi de 74 mortespor cem mil crianças nascidas vivas em 2005. Em 2009, o Manual dos comitês de mortalidadematerna (Ministério da Saúde, Brasília, 2009) afirma que a taxa situa-se ao redor de 50 mortespor 100.000 nascidos vivos, ainda considerada alta pela Organização Mundial da Saúde (OMS),colocando o Brasil entre os países que continuam violando os direitos sexuais e reprodutivosdas mulheres.

Os dados de morte materna por abortos inseguros nem sempre são confiáveis, devido àsituação de ilegalidade e de clandestinidade em que a prática é frequentemente realizada. Mesmoassim é possível afirmar (LAURENTI et al., 2002) que o aborto inseguro representa a quarta causade morte materna no Brasil, existindo cidades como Salvador, na qual o aborto tem sido a primeiracausa desse tipo de morte na última década. Essapesquisa analisa também as principais causas de mortematerna por regiões brasileiras. A região Nordeste é asegunda em número de mortes por aborto inseguro, com14,9% dos casos, ficando atrás apenas da região Sul, quetem 18,2% dos casos registrados.

A pesquisa de Laurenti (2002) corrobora outraspesquisas nacionais sobre o perfil socioeconômico dasmulheres que falecem de morte materna. Elas são nasua grande maioria pobres, negras e com baixaescolaridade, consequentemente excluídas do usufrutodos bens sociais. Uma grande parte dessas mulheresencontra-se abaixo da linha de pobreza e a taxa deanalfabetismo é quase o dobro, quando comparada à das mulheres brancas. Por essas razõeselas têm menor acesso aos serviços de saúde e maior vulnerabilidade, resultando que asmulheres negras possuem maior risco de contrair e morrer por determinadas doenças dapobreza do que as mulheres brancas. Esses dados impõem para os serviços de saúde anecessidade de um olhar diferenciado e mais cuidadoso na atenção às mulheres negras, paraque possam ter as suas demandas de saúde resolvidas e seus direitos garantidos.

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...o aborto insegurorepresenta a quartacausa de morte maternano Brasil, existindocidades como Salvador,na qual o aborto tem sidoa primeira causa dessetipo de morte na últimadécada.

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As mortes maternas estão relacionadas a diversos fatores, desde problemas relativos aosistema de saúde no Brasil até as questões legais que determinam a clandestinidade doabortamento, importante causa de morte materna, como já referido.

Sobre o sistema de saúde, o acesso e a qualidade dos serviços são questões ainda nãoresolvidas. O acesso aos serviços ainda é um problema para a maioria da população femininano Brasil e está condicionado a fatores tais como situação de pobreza em que vive a maioria dasmulheres, a discriminação de raça/etnia, as relações desiguais entre homens e mulheres, tudoisso determinando desigualdades e iniquidades sociais, que influenciam o acesso aos serviços.

Na cidade de Salvador, segundo Araújo, Simonetti e Souza (2008), nove de cada dezmulheres que morrem de morte materna são negras e habitantes da periferia da cidade. Oaborto realizado em condições inseguras continua sendo, de acordo com as autoras, a primeiracausa de morte materna nesse município, desde o final dos anos 1990.

Os dados relativos à situação da morte materna das mulheres negras ainda são dedifícil acesso nos sistemas de informação da área da saúde, seja pela ausência da variável corou mesmo pela pouca importância que lhe é dada pelos profissionais de saúde, dificultandoanálises mais consistentes sobre a realidade da saúde desse segmento populacional.

A situação de ilegalidade do aborto no Brasil contribui enormemente para o aumentodas mortes maternas por esta causa. Na atual conjuntura assiste-se ao recrudescimento dasforças políticas conservadoras, tanto no parlamento como em lugares de decisão das políticaspúblicas, levando a retrocessos na concepção das políticas, por pressão desses setores. Exemplomarcante dessa realidade foi a forma como o aborto foi tratado nas últimas eleiçõespresidenciais, como moeda de troca de votos e apoios políticos, assim como o tratamento dadoao III Programa Nacional de Direitos Humanos, que teve que ser modificado exatamente nasquestões relativas ao direito ao aborto, pelas mesmas forças conservadores. O Estado brasileiroé um Estado laico constitucionalmente e nenhuma religião deve interferir na vida e nas decisõesdas suas cidadãs e nas políticas públicas, que devem ter como princípio a laicidade dos poderes.

A Relatoria Nacional do Direito à Saúde Sexual e Reprodutiva da Plataforma Dhesca,considerando a morte materna como uma grave violação dos direitos sexuais e reprodutivosdas mulheres e dos seus direitos humanos, definiu realizar a análise dos casos de morte maternapor meio dos instrumentos internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil.

A análise desses casos não pretende substituir o papel fundamental dos comitês deestudo das mortes maternas dos estados e municípios, mas sim desenvolver e aplicar umametodologia que faça a relação entre morte materna e violação dos direitos humanos dasmulheres, recorrendo aos instrumentos internacionais, ainda pouco conhecidos e aplicados naanálise dos casos estudados pelos comitês.

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Mulheres em privação deliberdade e o direito àsaúde sexual e reprodutiva

Osegundo eixo de trabalho da Relatoria do Direito à Saúde Sexual e Reprodutivafoi a verificação da situação da saúde sexual e reprodutiva das mulheres privadas de liberdadeem alguns presídios brasileiros.

O acompanhamento da situação desses direitos das mulheres no sistema prisional éuma necessidade premente, pelas frequentes violações a que essa população vem sendosubmetida. A existência de uma política ministerial de Saúde no Sistema Penitenciário é umavanço em termos de direitos, mas as condições em que vive a população na maioria das prisõesbrasileiras expõem as mulheres institucionalizadas a situações de vulnerabilidade e de riscose agravos à saúde.

A Relatoria trabalhou a partir de denúncias recebidas de movimentos sociais e tambémde análise de casos de situações de violação. Para isso usou os instrumentos nacionais – leis eresoluções – e internacionais que protegem a vida e os direitos das mulheres encarceradas.Buscou realizar um diagnóstico mínimo da situação de saúde dessas mulheres, utilizando paratal os dados do Ministério da Saúde e do Ministério da Justiça, sobretudo o relatório sobre ospresídios femininos no Brasil, elaborado em 2008. As análises sobre a violação de direitostiveram também como sustentação o Plano de Saúde no Sistema Penitenciário, deresponsabilidade dos Ministérios da Saúde e da Justiça e o Sistema Nacional Socioeducativo(Sinase) contemplando os direitos sexuais e reprodutivos de adolescentes cumprindo medidassocioeducativas de internação e internação provisória.

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Como asmissões foram feitas

A Relatoria realizou missões em Salvador (BA), Porto Alegre (RS), Verdejante (PE)e Belém/Ananindeua (PA) em resposta a denúncias de violação de direitos sexuais e direitosreprodutivos em penitenciárias estaduais, cadeias municipais e centros de acolhimento deadolescentes cumprindo medida socioeducativa de internação. Para a concretização das missõesum dos critérios foi a existência, nas cidades visitadas, de movimentos sociais organizados, seja demulheres/feministas e/ou de direitos humanos. Esse critério foi crucial para o resultado positivodas missões, pela inserção social e conhecimento da realidade local dessas instituições.

Nas visitas às instituições de privação de liberdade, a Relatoria se fez acompanhar decomitivas com representantes de organismos de defesa dos direitos humanos nos níveis local,regional e nacional. Além de entrevista com a direção e corpo técnico dessas instituições, foramfeitas entrevistas com mulheres e adolescentes que tiveram oportunidade de relatar situaçõesde violação de direitos.

A Relatoria estabeleceu uma parceria com a Ecos (Estudos e Comunicação emSexualidade) para realizar missões de identificação e denúncia de violação dos direitos sexuaise reprodutivos e adolescentes mulheres. Essa ONG realiza, com o apoio da Secretaria Nacionalde Direitos Humanos, o Projeto Promovendo os direitos sexuais e reprodutivos de adolescentes em

conflito com a lei e participou da visita feita à Comunidade de Atendimento Socioeducativo(Case) da Fundação da Criança e do Adolescente (Fundac), em Salvador, Bahia.

Com apoio das pessoas que participaram das comitivas, ao final de cada visita aRelatoria elaborou relatórios de análise das violações encontradas, tomando como referência osdireitos das pessoas privadas de liberdade contidos na Constituição Federal de 1988, na Lei deExecução Penal, no Sistema Nacional Socioeducativo (Sinase), no Plano Nacional de Saúde noSistema Penitenciário, além de Convenções e Tratados ratificados pelo Brasil, incluindo asRegras Mínimas para o Tratamento de Prisioneiros aprovadas em 1984 pelo Ecosoc.

Esses relatórios foram apresentados e/ou encaminhados para as Procuradorias Regionaise Federal do Direito do Cidadão, para o Ministério Público dos estados, as Promotorias e Juizadosda Vara da Infância e da Juventude, os Tribunais de Justiça dos estados visitados e a SecretariaEspecial de Políticas para as Mulheres. A Relatoria contou com o apoio da Associação de Juízespela Democracia e das ONGs que fazem parte da Rede Feminista de Saúde.

É importante ressaltar que a Relatoria não obteve resposta às solicitações de realizaçãode missões a instituições privativas de liberdade de mulheres e adolescentes em São Paulo,como previsto no Plano de Trabalho. Foram feitos contatos – por telefone, email, carta einclusive pessoalmente – mas a Direção de Ações de Saúde da Coordenadoria de Saúde doSistema Prisional do Estado de São Paulo não forneceu liberação para as visitas.

Relatoria do Direito Humano à Saúde Sexual e Reprodutiva l 69 l

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Mulheres em situação deprivação de liberdade

ARelatoria investigou a situação de mulheres em privação de liberdade emquatro estados brasileiros. A partir dessas entrevistas, a Relatoria identificou graves violaçõesdos direitos humanos das mulheres, sobretudo nas áreas da saúde e de acesso à justiça. Naprimeira, situações aberrantes que podem ser consideradas como tortura e outras comodescaso. Entre os casos encontrados pela Relatoria, destacamos:

n Mulheres sem acesso à saúde em situações de vulnerabilidade, como nasportadoras de HIV/Aids e mulheres gestantes;

n Ausência de profissionais de saúde, médicos, psicólogas, enfermeiras;

n Ausência de referência formal para partos e casos de abortamentos inseguros,levando as mulheres a peregrinarem em busca de um leito de hospital, situaçãoque aumenta sua vulnerabilidade, podendo levar à morte materna, segundoestudos sobre o tema.

Mesmo nos presídios localizados em estados que aderiram ao Plano de Saúde noSistema Penitenciário encontramos mulheres sem atenção pré-natal com gravidez avançada,outras com problemas de pressão alta sem tratamento, algumas portadoras do vírus HIVtambém sem tratamento. Queixas de suspensão de medicamentos psiquiátricos são frequentesem todos os presídios visitados.

Superlotação foi um achado comum a todas asinstituições visitadas, havendo celas com capacidadepara seis mulheres, mas comportando o triplo disso. Ascondições de higiene e de estrutura em geral são ruinse o direito à visita íntima para as mulheres eadolescentes ainda é um problema que mal começa aser pensado.

O acesso à justiça é outro problema graveencontrado para grande parte da população privada deliberdade. A maioria não tem advogado ou defensor público, um número importante não tempena definida e encontra-se sem julgamento. Muitas são abandonadas pelos advogados etambém pela família, sobretudo se são residentes em outros estados ou municípios.

RELATORIAS EM DIREITOS HUMANOS: fortalecimento de uma cultura de direitos no Brasill 70 l

A maioria não temadvogado ou defensorpúblico, um númeroimportante não tem penadefinida e encontra-sesem julgamento.

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Morte materna

Durante o mandato da Relatoria foram produzidos vários textos e análises sobreos direitos sexuais e reprodutivos. Entre eles o documento Análise de casos de morte materna sob

a ótica dos direitos humanos, que pretendeu contribuir para a redução das taxas de mortalidadematerna entre as mulheres discriminadas por raça/etnia e condição social. Seu propósito éfortalecer a visão dos direitos humanos na análise da evitabilidade de casos de morte materna,levando em consideração os direitos consagrados nos tratados internacionais ratificados peloBrasil. Pretende ainda contribuir para criar uma cultura de utilização dos instrumentos dedireitos humanos aplicados à morte materna, nas análises dos comitês de estudo e prevençãodesse tipo de mortalidade.

Dentre todos os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, aquele que se encontramais distante da meta estabelecida é o de redução das taxas de mortalidade materna. No Brasil,as taxas mais elevadas estão nas regiões Nordeste e Norte, particularmente nos estados emunicípios onde é forte a discriminação de mulheres negras, indígenas, pobres e semescolaridade.

Parte da dificuldade para reduzir a morte materna no Brasil advém da fragilidade doscasos de morte materna (CMM) em tecer argumentos baseados em indicadores objetivamenteverificáveis vinculados aos marcos legais nacionais e internacionais existentes. Nesse sentido,os CMM raramente retroalimentam os conselhos de saúde (locais, municipais, estaduais efederal) com dados e informações que viabilizem a participação ativa da sociedade civil naimplementação das políticas existentes, na área da saúde reprodutiva de mulheres eadolescentes e outros campos e setores correlatos.

Para a elaboração desse documento, a Relatoria se reuniu inicialmente com os Comitêsde Estudo e Prevenção da Morte Materna (CMM), municipais e estaduais, de Salvador (BH),Recife (PE), Porto Alegre (RS), Fortaleza (CE) e Belém (PA), para discutir a importância de queesses Comitês ultrapassem a perspectiva técnico-biomédica, hegemônica no estudo de casosde morte materna, e agreguem às suas análises a aplicação dos direitos humanos consagradosem tratados internacionais ratificados pelo Brasil.

O documento foi submetido à apreciação de instituições e especialistas nos campos dajustiça e da saúde, das quais recebeu parecer positivo e sugestões de valor que foramincorporadas. Nesse sentido, pode-se afirmar que o documento foi escrito a várias mãos, comoas da Rede Nacional Feminista de Saúde, Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos, do IPAS-Brasil, da THEMIS, do IMAIS, do Cladem, da UFPE e do MUSA/Instituto de SaúdeColetiva/Universidade Federal da Bahia.5

Relatoria do Direito Humano à Saúde Sexual e Reprodutiva l 71 l

5 Respectivamente Télia Negrão, Beatriz Galli, Rubia Cruz, Greice Menezes e Liliam Marinho, Carmen Campos, SandraValongueiro e Greice Menezes e Estela Aquino.

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Leia mais no site: Sobre o tema da morte materna, do aborto inseguro e daviolência contra a mulher com uma perspectiva de direitos humanos, leia odocumento Os direitos sexuais e reprodutivos são direitos humanos, alusivo ao DiaInternacional dos Direitos Humanos (10 de dezembro) e o documento sobre ocombate à violência contra a mulher, divulgado por ocasião do dia 25 de novembro.A Relatoria elaborou também as Contribuições à resolução 11/8 – mortalidade e

morbidade maternas e direitos humanos para o Conselho de Direitos Humanos daONU, além do documento Análise de casos de morte materna sob a ótica dos direitos

humanos, para o qual damos um destaque especial.

n DEPOIMENTOS

Mulheres em situação de privação de liberdade

Relato de presidiárias do Centro de Reabilitação Feminino de Ananindeua, Pará

Nesta cela somos seis mulheres, todas com HIV. Estamos sem medicamento. Todomundo aqui na prisão sabe que temos HIV porque puseram a gente junto, as próprias detentaspediram pra nos separarem. Quando temos consulta marcada não temos carro. Tambémperdemos muitas audiências por falta de carro. Não recebemos material de limpeza. Estou aquihá 1 ano e 6 meses e nunca consegui ir a uma audiência. Nós aqui nunca fizemos exame de CD4.

Estamos aqui em condições de discriminação, todo mundo nos aponta. Se gritamospedindo remédio, vamos pro cativo, ficamos lá 30 dias, comendo mal, fazendo cocô no buraco.

Relato de uma mulher detida na Penitenciária Madre Pelletier de Porto Alegre, Rio Grande do Sul

Aqui o serviço médico é muito difícil, a gente coloca o nome na lista para a consulta deginecologia e psicologia, mas não somos atendidas. No último ano morreram 12 mulheres, por faltade cuidados médicos. Aqui a gente não tem direito a nada, somos tratadas como bichos. Várias de nósjá foram para o “castigo”. No “castigo” as celas são escuras, geladas, não têm vasos sanitários, apenasum esgoto no chão, onde as mulheres fazem suas necessidades. Eu nunca recebi a visita de juízes.

Nas celas passam ratos, baratas, tem umidade e muitas estão com a pia entupida. A

RELATORIAS EM DIREITOS HUMANOS: fortalecimento de uma cultura de direitos no Brasill 72 l

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conferência das celas é às 5 horas da manhã e é proibido sair de pijama. Quando isso acontecesomos castigadas com 10 dias de solitária.

Relato de uma mulher presa na Cadeia Pública de Verdejante, Pernambuco

Tenho 30 anos, sou de Garanhuns, fui presa por tráfico de drogas. Tenho quatro filhos.Trabalhava numa lanchonete e fui demitida do trabalho com um mês de gravidez. Aceitei ademissão porque os patrões eram legais e já tinham me ajudado muito em outras ocasiões.

Como estava desempregada, aceitei o convite de uma mulher para ir buscar maconhaem Salgueiro. Fui presa na volta e a mulher que me aliciou desapareceu.

Tinha audiência marcada para 8 de junho em Cabrobó, mas ninguém veio me buscare nem explicaram porque não me levaram. A audiência não aconteceu e até agora não seiquando acontecerá. Fui abandonada pelo meu companheiro. Preciso tratar dos dentes e fazeruma ultrassonografia. Desde que cheguei aqui, grávida, não fiz nenhuma consulta. Teve umafiscalização e proibiram que mulheres grávidas e bebês ficassem na cadeia. Mas eu ainda estouaqui, a gente está sem advogado para dar orientação e esclarecer as dúvidas de todas nós.

Morte materna

Depoimento da mãe de L.I., adolescente que teve morte materna, de Belém do Pará

Minha filha tinha 14 anos quando faleceu no dia 24 de janeiro de 2009, na UTI da Santa Casa

de Misericórdia do Pará, por causa de uma infecção após o parto. Ela se chamava L.I. Ela tinha feito todas

as consultas de pré-natal, com o Dr. Sérgio e a enfermeira Sra. Luiza. Também fez a maioria dos exames,

não fez todos porque a unidade de saúde não faz ultrassonografia. Nós tivemos que pagar R$ 20,00 num

laboratório particular para fazer esse exame.

Ela foi internada na Santa Casa de Misericórdia no dia 25 de dezembro de 2008 e no dia seguinte,

dia 26, fizeram o parto. Ainda no hospital, nós duas ficamos preocupadas porque sua recuperação estava

demorando, ela dizia que sentia uma dor muito forte na barriga. Na manhã do dia 28 de dezembro, eu falei

para o médico que ela não estava passando bem, que ela não tinha fome, estava triste e deprimida, não

conseguia ficar em pé e ficava na cama todo o tempo, além de ter o corpo quente. O médico passou um

remédio para a febre e deu alta, dizendo que o hospital necessitava do leito.

Aqui em casa fizemos tudo o que ele recomendou. Mesmo assim, com todo nosso cuidado, ela

passou três dias com febre e dores intensas no local da cirurgia, até que começou a vomitar um líquido

esverdeado. No dia 1º de janeiro de 2009 ela piorou, os pontos da cirurgia se romperam e começou a sair

mais secreção esverdeada, com mau cheiro. Decidi levá-la à Unidade Municipal de Saúde de Tapanã e lá

ela ficou numa cadeira. O médico que nos atendeu disse que eu mesma tinha que providenciar o transporte

dela para a Santa Casa, mas de tanto eu insistir ele liberou a ambulância da unidade. Só que o motorista

Relatoria do Direito Humano à Saúde Sexual e Reprodutiva l 73 l

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nos deixou na esquina da Santa Casa. Eu tive que carregá-la no colo, sozinha, por um quarteirão. Cheguei

a cair duas vezes com ela, ela não tinha condições de caminhar.

Então foi assim, minha filha foi internada pela segunda vez na Santa Casa na noite do dia 1º de

janeiro. Eles a colocaram na unidade de isolamento do hospital. No dia seguinte fizeram uma cirurgia para

retirar o útero que estava necrosado por causa da infecção. Depois de 22 dias ela faleceu na UTI da Santa Casa.

Antes dela falecer, a médica da UTI disse que eu e a madrinha dela não cuidamos direito dela nos

dias em que ela ficou em casa. Mas isso não é verdade, a senhora pode ver que a casa é simples, mas limpa,

e enquanto ela ficou aqui, naqueles três dias, fizemos tudo o que o médico tinha recomendado.

A missa de 7º dia da minha filha foi celebrada no dia 1º de fevereiro, quando ela completaria 15

anos. Depois, a madrinha dela disse que a gente tinha que procurar o apoio de alguma ONG para

denunciar o descaso que levou-a a morrer.

A morte de L.I. se configura como um caso típico de morte materna evitável, comotantos outros que ainda acontecem no Brasil, causado por negligência dos serviçosde saúde e agravado pela sua condição social de pobreza. A família de L.I. vive naperiferia da cidade de Belém, sua mãe é analfabeta, desempregada, possui outrafilha adolescente e mais duas crianças, uma que nasceu depois da morte de L.I.

Os estudos sobre mortalidade materna são unânimes em afirmar que as mulheresque morrem de morte materna evitável são aquelas excluídas dos bens sociais,como as mulheres e adolescentes pobres, negras, indígenas, analfabetas e asadolescentes sem apoio familiar e social. L.I. se enquadra em todos esses critérios.A vulnerabilidade de L.I. a levou a ter uma gravidez precoce, mas que contou como apoio familiar, no caso a mãe, na medida das possibilidades dessa família. L.I. feztodas as consultas de pré-natal, realizou alguns exames, foi levada ao hospital parao parto no momento adequado e depois, quando já em estado grave, foi levada àUnidade de Saúde do bairro e transportada pela própria mãe, nos braços, para aSanta Casa.

Não é demais afirmar que gravidez em adolescente com vulnerabilidade socialimplica em maior atenção e cuidados dos serviços de saúde e deve ser consideradagravidez de risco, necessitando de acompanhamento permanente. Pelo relato dafamília e da madrinha de L.I. e pelos dados constantes no prontuário e no relatórioda denúncia que tivemos acesso, o sistema de saúde falhou seriamente na proteçãoda saúde e da vida de L.I.

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Relatoria do Direito Humano à Saúde Sexual e Reprodutiva l 75 l

EntrevistaBeatriz Galli

Apesar de ser uma das principais causas de morte materna evitável, o assunto abortocontinua um tabu no Brasil. Setores conservadores se negam a discutir a questão enquanto saúdepública e direito à saúde sexual e reprodutiva, deixando assim milhares de brasileiras na fronteirados direitos humanos. A invisibilidade do tema é uma agenda política forte para muitos setores,bastando relembrar dos debates em torno da eleição presidencial de Dilma Roussef e no retrocessono PNDH-3 quanto a políticas públicas relacionados ao aborto. O cenário político é evidentementedesfavorável: no Congresso Nacional existem dois projetos de lei tramitando para regulamentaro aborto, e outros 30 contrários à prática. As informações são de Beatriz Galli, advogada, assessorado Ipas, membro do Cladem e da Comissão de Bioética e Biodireito da OEAB/RJ.

Qual é a realidade do aborto no Brasil? Ele é causa de muitas mortes maternas?

De acordo com o Ministério da Saúde,6 o aborto é a quarta causa de mortes maternas nopaís devido a hemorragias e infecções. A realidade do aborto no Brasil é ainda subdimensionadapela sua situação de ilegalidade. O que temos são estimativas a partir dos dados sobre internaçãono SUS por complicações derivadas do abortamento e pesquisas com uma amostragem demulheres que realizaram abortos. Sabe-se que o aborto está entre as principais causas de mortematerna no Brasil, algo entre a quarta e a quinta causa, considerada como causa evitável.Criminalizar o aborto não impede a prática do aborto entre as mulheres, mas tem um impactonas mortes e sequelas derivadas do aborto inseguro, e esse impacto é desigual entre grupos demulheres. As que correm mais risco são as jovens, negras, que vivem nas áreas rurais e nasperiferias urbanas, com menor grau de escolaridade e piores condições econômicas.

Existe um perfil traçado das mulheres que fazem aborto no Brasil?

Sim, houve uma pesquisa chamada Pesquisa Nacional de Aborto (PNA) conduzidapela Universidade de Brasília e a organização ANIS que teve como objetivo conhecer o perfilda mulher que aborta no Brasil e revela a face da mulher que interrompe a gravidez. Ela écasada, tem filhos, religião e pertence a todas as classes sociais. De acordo com os resultados,uma em cada sete brasileiras, entre dezoito e 39 anos, já realizou ao menos um aborto na vida,o equivalente a uma multidão de cinco milhões de mulheres. De acordo com o estudo, na faixaetária entre 35 e 39 anos, a proporção é ainda maior: uma em cada cinco mulheres já fez umaborto. A pesquisa mostra a magnitude do aborto no Brasil. Revela que há um problema desaúde pública a enfrentar.

6 (BRASIL, 2007).

Ü

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Você acredita que a legalização da prática do aborto levaria a um aumento do número de abortos praticados?

Eu acho que a legalização do aborto levaria a que as mulheres tivessem acesso aoaborto seguro. Em um primeiro momento teríamos uma dimensão realista do número deabortos praticados, pois estariam sendo realizados nos serviços públicos de saúde e por issoseriam registrados, mas a tendência mundial nos países em que o aborto foi legalizado mostraque depois da legalização existe um declínio do número de abortos pois as mulheres terãoacesso a informação para prevenção de gravidezes indesejadas, acesso a métodoscontraceptivos e acompanhamento médico. Tais fatores levam a um melhor controle da vidasexual e reprodutiva pelas mulheres, exercendo os seus direitos humanos à autodeterminaçãosexual e reprodutiva e previnem gravidezes indesejadas.

A composição do congresso nacional e da política brasileira é favorável para discussão de projetos de legalização do aborto?

Atualmente a composição é bastante desfavorável. Segundo dados do Cfemea, temosatualmente tramitando dois projetos de lei bons: PL 20/91 (obriga o SUS a realizar os abortospermitidos em lei – hoje, nos casos de estupro e risco de morte para a mãe) e o PL 4403/2004(Isenta de pena a prática de “aborto terapêutico” em caso de anomalia do feto, incluindo o fetoanencéfalo, que implique em impossibilidade de vida extrauterina). Ou seja, não há nenhumPL pela legalização do aborto e mais de 30 PLs contrários.

O aborto foi um dos temas de debate durante o PNDH, e o tema acabou sendo retirado do plano discutido pela sociedade civil. Como você avalia essa retirada?

Como um retrocesso político por parte do governo. O governo não quis assumir o seucompromisso de revisar a legislação sobre o aborto no Brasil, que foi resultado de ConferênciasInternacionais e também recomendado por órgãos de monitoramento das Nações Unidas. Ogoverno assumiu que era um problema de saúde pública, mas não se responsabilizou por diminuiras mortes e sequelas derivadas do aborto, o que poderia ser feito com a sua descrimi-nalização/legalização, além de outras medidas necessárias. Com isso, o governo não levou adianteuma proposta legislativa para alterar a legislação. Ao mesmo tempo, o Congresso Nacional setornou o palco de frentes legislativas organizadas antilegalização do aborto, com parlamentares devários partidos diferentes. O governo não vem se posicionando favoravelmente à revisão legaldesde então e com o governo Dilma ficou claro que só irá trabalhar para ampliar o acesso ao abortonos casos previstos em lei. Infelizmente, a opção do governo, naquele momento do PNDH III, foide recuar em relação aos direitos reprodutivos. Optou-se por uma nova redação, que reconheceuque o aborto inseguro é uma questão de saúde pública e que o Estado garantiria o acesso dasmulheres que recorressem à prática a serviços de saúde, mas silenciando sobre a mudança da leipenal em relação ao tema. Tal posicionamento, embora importante por reconhecer a realidade queafeta milhares de mulheres que buscam os serviços de saúde para tratamento das complicaçõesderivadas de aborto, não resolve o problema da sua criminalização, que se mantém como a únicaresposta do Estado para tal problema. Vale destacar, como forma de contribuir para a reflexão, que,de fato, a descriminalização do aborto seria uma medida necessária para a proteção dos direitosreprodutivos das mulheres, tendo-se em vista os dados estimados sobre aborto inseguro.

RELATORIAS EM DIREITOS HUMANOS: fortalecimento de uma cultura de direitos no Brasill 76 l

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Relatoria do Direito Humano à Terra, Território e Alimentação l 77 l

A luta pela terra e território emum contexto demercado de commodities

A Relatoria do Direito Humano à Terra, ao Território e à Alimentação atuaapoiando e procurando dar visibilidade a lutas e resistências de populações do campo,denunciando violações de direitos. Em incidências nacionais e locais, procurou contribuir naefetivação de direitos territoriais e na soberania alimentar de populações do campo, através doapoio às lutas por terra e por territórios, acompanhando atividades em Brasília, especialmentea Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) do MST, em 2010, e realizando missõespara verificar in loco violação de direitos e audiências com órgãos responsáveis, exigindo açõesconcretas para interromper tais violações.

A atuação em temáticas relacionadas à luta pela terra e por territórios requer contínuareflexão sobre significados do campo, especialmente em consequência da prevalência e expansãode um modelo produtivo agroexportador que prioriza o mercado de commodities. Na RegiãoAmazônica, a commodity da madeira é priorizada, atingindo diretamente as comunidades e ospovos que ali estão submetidos à pressão dos grupos econômicos interessados nodesenvolvimento desses empreendimentos. Não é por acaso que há uma visibilidade crescentepara a Amazônia, não só em uma perspectiva preservacionista, mas também como umapossibilidade de concentrar riquezas a partir do avanço da extração de bens naturais.

Em oposição a esse modelo e aos conflitos dele decorrentes, há resistências e lutas decomunidades e grupos sociais que, ao se oporem à expansão, reivindicam direitos, reconstroemidentidades, expressam modos de vida e de apropriações da terra, diferentes do modelo

Relatoria do Direito Humano àTerra, Territórioe Alimentação

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hegemônico, com diversificação agrícola e valorização da floresta e da natureza, insistindo nodireito de reprodução social e cultural.

Esse processo recria e ressignifica históricas lutas por terra e territórios, apesar de serinterpretado por muitos como uma expressão de atraso e resistência à modernização e aodesenvolvimento. Tratar da persistente concentração fundiária e das novas investidas paraapropriação de mais terras via expansão de fronteiras significa enfrentar setores que têm apropriedade da terra não apenas como meio de produção, mas especialmente como exercíciode poder. A realidade fundiária e os persistentes conflitos por terra mantêm umdesenvolvimento nacional predatório, excludente e concentrador de renda e riquezas, baseadona aliança entre capital e latifúndio, voltado para a exportação de commodities, precarização dotrabalho e exclusão política de camponeses e agricultores familiares, ribeirinhos, povosindígenas, comunidades quilombolas, geraizeiros, faxinalenses, e tantos outros grupos sociaisdo campo.

Nos últimos anos, vem ocorrendo uma nova expansão do grande agronegócio nocampo, expandindo ainda as fronteiras agrícolas, atraindo investimentos pesados para o setor.O campo está vivenciando um novo ciclo de expansão do capital, inclusive com investimentosnacionais e estrangeiros na compra de terras, resultado da demanda e incentivos na produçãode commodities agrícolas (grãos, carne, matéria-prima para agrocombustível) e não agrícolas(madeira, minérios, entre outras), com preços em alta no mercado internacional.

Segundo estudo do Banco Mundial (2010), a demanda mundial por terras tem sidoenorme, especialmente a partir de 2008, tornando a “disputa territorial”, histórica no Brasil ena América Latina, um fenômeno global. Esse interesseinternacional pelas terras (relativamente abundantes)da América Latina (especial destaque ao Brasil,Argentina e Uruguai) e da África subsaariana temprovocado um aumento dos seus preços. Além deacirrar as disputas territoriais, essa demanda por terrasafeta políticas fundiárias, porque, por exemplo, ficamais caro desapropriar e indenizar terras para fins deReforma Agrária.

Esse processo de expansão é contraditório, poisse, de um lado, reafirma a lógica de apropriação devastos territórios – reeditando lógicas colonialistas ou amantendo a “acumulação por expropriação” (HARVEY,2004) –, por outro, conta com apoios governamentais. Parte significativa dos investimentosestrangeiros no Brasil, inclusive na compra de terras, é financiada com recursos públicos,especialmente com recursos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social(BNDES) e dos Fundos Constitucionais do Centro-Oeste (FCO) e do Norte (FNO). Essesempréstimos e os incentivos fiscais estão sendo alocados principalmente na expansão do cultivode cana para produção de etanol (no Cerrado de Goiás, Mato Grosso do Sul e Triângulo Mineiro),no cultivo da soja (região conhecida como “Mapitoba”, mas também em partes da RegiãoAmazônica) e na extração de minério e de madeira (especialmente na Região Amazônica).

RELATORIAS EM DIREITOS HUMANOS: fortalecimento de uma cultura de direitos no Brasill 78 l

Além de acirrar asdisputas territoriais, essademanda por terras afetapolíticas fundiárias,porque, por exemplo, ficamais caro desapropriar eindenizar terras para finsde Reforma Agrária.

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As ações de movimentos sociais e resistências de comunidades tradicionais são vistascomo ameaça, porque conflitos geram instabilidade e “afugentam os negócios”, mas tambémporque explicitam a disputa pela terra, limitando os espaços de expansão das monoculturas.Nessa lógica, movimentos sociais agrários, povos e comunidades tradicionais (quilombolas,faxinalenses, quebradeiras de coco, vazanteiros, pescadores artesanais, etc.), povos indígenase muitos outros que questionam esse modelo são criminalizados.

É recorrente uma atitude autoritária do Estado e da sociedade brasileira no trato e nasolução de conflitos, especialmente quando envolve conflito de interesses resultados demobilizações sociais e de ações de movimentos populares organizados. Os movimentos sociaisagrários sempre conviveram com formas diferenciadas de repressão e perseguição. Setores doEstado, defendendo interesses patrimonialistas (especialmente a propriedade da terra comoum instrumento e lugar de exercício do poder), têm sido os principais repressores.

Essa repressão assumiu, em diferentes momentos históricos, formas e intensidadesdiferenciadas de violência física ou simbólica. Em linhas gerais, pode-se dizer que as estratégiasde repressão adotadas, usadas de forma simultânea ou complementar, foram: isolamentopolítico (não dando voz nem conferindo legitimidade às demandas, visando à desintegração eà desmobilização), cooptação (tanto de grupos de base como de lideranças importantes,concedendo pequenos privilégios, buscando o definhamento do movimento social) e repressão,sobretudo com o uso de aparelhos policiais.

Recentemente, a criminalização dá novas características à repressão, inclusive porqueintroduz novos atores institucionais. Não são novidades ações condenatórias da grande mídia,inclusive respaldando ideologicamente ações violentas e a perseguição política da bancadaruralista no Congresso. A novidade é a crescente participação de setores de Estado, constituídosdemocraticamente para defender a população, mas que acabam sendo instrumentos decriminalização de ações e reivindicações populares, como foi o caso do Ministério Público,envolvendo uma perseguição ao MST no estado do Rio Grande do Sul, ou os interesses (bens)públicos, como é o caso das investigações do Tribunal de Contas da União (TCU) que,claramente, utiliza “dois pesos e duas medidas” em seu trabalho de fiscalização.

No Congresso Nacional, as ações parlamentares passam a ser mais proativas.Parlamentares vêm utilizando mecanismos como, por exemplo, Comissões Parlamentares deInquérito (CPI), Propostas de Fiscalização e Controle (PFC), Projeto de Decreto Legislativo(PDC) (projetos para cancelar decisões do Executivo que atendem reivindicações de grupossociais), requerimentos de fiscalização pelo TCU, entre outros. Exemplos disso foram a CPMIdo MST, em 2010, e a tramitação do PDC 44/07, que suspende todos os atos praticados peloPoder Executivo com base no Decreto nº. 4887/2003, que regulamenta os procedimentosrelacionados à regularização dos territórios das comunidades quilombolas.

No último exemplo, ainda há uma atuação no Judiciário, decorrente de uma ADIn(Ação Direta de Inconstitucionalidade), proposta em 2004 pelo antigo partido da Frente Liberal(PFL), atualmente denominado Democratas (DEM). Esta ADIn questiona o conteúdo doDecreto nº. 4887/2003, que regula a atuação da administração pública na efetivação do direitoterritorial étnico das comunidades de remanescentes de quilombo no Brasil.

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A lógica autoritária da política brasileira não serestringe ao Legislativo, pois amplos setores doJudiciário vêm atuando no sentido de caracterizar aluta pela terra e por direitos territoriais como açõescriminosas. Há dezenas, se não centenas, de processosjudiciais acusando lideranças populares e grupossociais de formação de quadrilha, porte ilegal de armase desvios de recursos públicos. De uma maneira geral,são ações legais que explicitam a intolerância àsdemandas populares e luta por direitos.

Em um regime democrático, no entanto, alémdos mecanismos de participação e decisão estabele-cidos na Constituição é fundamental abrir espaçopolítico para a consolidação de outros mecanismos para tornar a soberania efetiva e ademocracia uma realidade. É nessa perspectiva que esta Relatoria atua, buscando caminhos defortalecimento da sociedade civil e dos movimentos sociais, o que significa reconhecer alegitimidade dos embates políticos e das mobilizações sociais.

Os embates territoriais, as resistências à expropriação das populações do campo,“tradicionais” ou não, não se restringem a uma reação contra as demandas crescentes domercado de terras. Essa demanda apenas explicita que a terra e o território devem serentendidos além de um meio e lugar de produção, mas como um lugar “identitário, relacionale histórico”, construído nas lutas e processos sociais das comunidades que aí vivem e sereproduzem.

RELATORIAS EM DIREITOS HUMANOS: fortalecimento de uma cultura de direitos no Brasill 80 l

A lógica autoritária dapolítica brasileira não serestringe ao Legislativo,pois amplos setores doJudiciário vêm atuandono sentido decaracterizar a luta pelaterra e por direitosterritoriais como açõescriminosas.

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Missão ao território indígenade Maró, oeste do Pará

Oterritório indígena de Maró está localizado na Gleba Nova Olinda I, municípiode Santarém (PA). É uma região de exuberante beleza natural, explicitada em sua ricabiodiversidade incrustada no meio da Floresta Amazônica, e cultural, por meio da reproduçãosocial de indígenas, ribeirinhos, extrativistas entre outros atores sociais.

As violações de direitos humanos nessa região são frequentes e vão desde o desrespeitoàs terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas e invadidas por empresas madeireiras efazendeiros até ameaças de morte e agressões físicas às lideranças desses povos.

Diante da gravidade das violações denunciadas pelos indígenas e baseando-se nohistórico conflitivo local, já averiguada em uma missão na mesma área no ano de 2009, aRelatoria do Direito Humano à Terra, Território e Alimentação realizou uma nova missão naárea da comunidade indígena de Maró com o propósito de verificar as recorrentes denúncias,em agosto de 2011.

Antes da missão, a Relatoria realizou audiência com o presidente da Funai, MárcioMeira, em Brasília. A intenção foi verificar o andamento do relatório de identificação doterritório indígena Maró, necessário para a demarcação da área, e pressionar para a conclusãodo trabalho.

Desde a última incidência da Relatoria na área, observou-se que poucas providênciasforam tomadas pelas autoridades públicas e os conflitos intensificaram-se em alguns aspectos,como no aumento da invasão às terras indígenas, possibilitada inclusive por concessõesflorestais do governo estadual, ignorando a existência da terra indígena, além das ameaças eagressões sofridas pelas lideranças locais.

A Relatoria chegou à terra indígena de Maró no início da tarde do dia 14 de agosto(domingo) ficando até dia 17 (quarta). Ali, reuniu-se com representantes das três comunidadesque compõem o território (Aldeia Novo Lugar, Aldeia Cachoeira do Maró e Aldeia São JoséIII), onde foram relatadas várias situações de graves violações concernentes a ameaças de morte,agressões, tentativas de homicídio, extração ilegal de madeira, invasão da área dascomunidades, precariedade em serviços de educação e saúde, entre outras situaçõespreocupantes.

Diante da gravidade da situação, houve uma inspeção da Relatoria à mata fechadapara a identificação das violações ao território indígena. Constatou-se a existência de nove lotespara realização de manejo florestal. Inúmeras árvores importantes à sobrevivência indígenaestavam com plaquetas de alumínio para identificação. Tudo indica que já estão prontos parainiciarem em breve a derrubada das árvores já marcadas. Ali, pudemos averiguar os fatos quehaviam sido relatados pelos indígenas.

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Além disso, os indígenas, no caminho rumo à área invadida por madeireiros,encontraram alguns trabalhadores da própria madeireira na área, o que deu início a umadiscussão sobre a área e as violações cometidas pelos madeireiros, já que os indígenas sofremameaças constantes por defenderem a floresta em pé. Por fim, acharam melhor irem para queos ânimos não se exaltassem.

Além dos conflitos relacionados às violações de direito à terra e território dos povosindígenas de Maró, a ausência de políticas públicas estruturantes do Estado a essascomunidades é uma realidade. Há problemas gritantes no investimento em educação e saúdenessas localidades, os quais puderam ser verificados, desde falta de infraestrutura paraatendimento de enfermos até insuficiência e dificuldade na entrega de merenda escolar.

Ao retornar da área visitada, a Relatoria participou da I Conferência Internacional deConflitos Socioambientais e Direitos Humanos que ocorreu na Universidade Federal do Oestedo Pará (UFOPA), em Santarém. Nesse espaço a Relatoria teve a possibilidade de expor asituação da terra indígena de Maró, explicitando pontos nevrálgicos nas violações de direitoshumanos ocorridas na região. A exposição dos fatos teve um caráter de denúncia para asautoridades públicas regionais, já que na mesa do evento constavam como debatedores osrepresentantes do Ministério Público Estadual, do Ibama e da Funai.

Além de divulgar o relatório da missão, agora a Relatoria Nacional de Direito à Terra,Território e Alimentação tenta garantir uma audiência pública na Comissão de DireitosHumanos do Senado para mobilizar as autoridades públicas nacionais para resolver asviolações aos direitos humanos das comunidades indígenas de Maró, no Pará.

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Reunião com representantes das três comunidades que compõem oterritório indígena (Aldeia Novo Lugar, agosto de 2011)

Árvore “plaqueada” para a realizaçãode plano de manejo (na terraindígena Maró, agosto de 2011)

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Missão à região do sertãodo Rio São Francisco,Pernambuco

ONordeste brasileiro, região com os estados de menor IDH do país, tem recebidonos últimos anos diversas obras de infraestrutura que, a despeito de propugnarem ocrescimento econômico da região, setorial e quantitativamente, interiorizando a perspectivagovernamental de desenvolvimento, não têm sido suficientes para gerar o aumento de acessoa direitos e da qualidade de vida da maior parte do povo sertanejo.

A construção de obras portuárias, a exemplo da expansão do Porto de Suape, emPernambuco, e do Porto de Pecém, no Ceará, de estradas, e de diversas obras no semiárido,notadamente nas proximidades do Rio São Francisco, como a Transnordestina, as barragens, oscanais de irrigação e a transposição das águas do rio vêm concomitantemente ampliar acomercialização de commodities agrícolas e beneficiar o lobby do setor energético, sem atençãosuficiente para dirimir os problemas reais do povo sertanejo: a falta de terra e de água.

A Relatoria do Direito Humano à Terra, Território e Alimentação recebeu diversasdenúncias, que demonstram a face perversa do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC)do governo federal, de não só ser incapaz de trazer benefícios para as populações locaisimpactadas pelas obras, como também de lhes privar da perpetuação de seus modostradicionais de vida e mesmo de garantias que tinham antes de as obras serem construídas,como o acesso a recursos naturais. Portanto, diante das violações de direitos humanos decomunidades quilombolas, ribeirinhas, povos indígenas e famílias assentadas de ReformaAgrária às margens do Rio São Francisco, a Relatoria realizou uma missão ao semiáridopernambucano, em 2010, região marcada pela insuficiência de políticas públicas de base e quesofre com os impactos de megaprojetos.

A missão, que aconteceu nos dias 15 e 16 de outubro de 2010, foi realizada nosmunicípios de Petrolina, Santa Maria da Boa Vista e Cabrobó (Pernambuco), na região do Sertãodo São Francisco. A Relatoria visitou comunidades tradicionais e projetos de assentamentosafetados, e reuniu-se com lideranças comunitárias e movimentos sociais, a fim de ouvir osrelatos das violações de direitos sofridas por eles. Além de receber as denúncias, a Relatoriatambém participou de reuniões com o superintendente do Incra de Petrolina, ao detectardiversas violações ao território quilombola e aos assentamentos de Reforma Agrária, bem comose reuniu com procuradores do Ministério Público Federal de Petrolina, explicitando agravidade da situação, principalmente quanto aos territórios indígenas e quilombolas,impactados pelos projetos das Barragens de Riacho Seco e Pedra Branca, previstas para seremconstruídas em Santa Maria da Boa Vista e Orocó, respectivamente.

Essas barragens, conforme denúncias das populações impactadas e pelo que se

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depreende do próprio processo de licenciamento do Ibama, possui grandes irregularidades,sendo a principal a ausência de oitiva dos povos e comunidades tradicionais impactados, comoprevê a Convenção 169 da OIT, já ratificada pelo Brasil. É grande também a falta de informaçãoda população sobre os projetos, sobre qual sua real extensão espacial, e que comunidadesrealmente serão atingidas.

Para além do projeto dessas e de outras barragens no Rio São Francisco, o Nordeste estáincluso no Plano Nacional de Energia (PNE) 2030 como o local para construção de mais umausina de energia nuclear, prevista para ser implantada no município de Itacuruba, Pernambuco,também às margens do rio, cidade que já fora quase que integralmente realocada, após aformação do lago da barragem de Itaparica.

Assim, um verdadeiro canteiro de obras, a região continua padecendo de problemasestruturais, como a alta concentração fundiária, elevados índices de violência no campo e faltado acesso à água na região do semiárido. Ou seja, paradoxalmente o Estado se apresenta naregião como o promovedor de um desenvolvimentismo de poucos e seletos beneficiários, masausente na promoção de reais políticas públicas de base, que beneficiem o povo sertanejo. Talpostura, além de perpetuar a conhecida indústria da seca, elege algumas obras, como aTransposição do São Francisco, como salvacionista do povo sertanejo, ignorando que apenas arealização da política pública de Reforma Agrária e de convivência com o semiárido são capazesde resolver o problema da seca e da fome.

Essa missão constatou que comunidades e trabalhadores rurais enfrentam sériosproblemas com falta de água na região, mesmo estando às margens do Rio São Francisco. Alémda falta, há dificuldades relacionadas ao saneamento básico, ao transporte e à merenda escolar,à educação, a estratégias de melhoria do solo para a agricultura (incluindo a salinização dasterras), às condições das casas (em várias comunidades tradicionais as casas ainda são de taipa)e à obtenção de aposentadoria e de salário-maternidade.

Quanto à situação dos quilombolas na região, constatou-se que existem 18comunidades quilombolas reconhecidas e/ou em processo de reconhecimento pela FundaçãoPalmares, totalizando 1.807 famílias. Dentre elas, nenhuma possui título territorial, e algumassequer possuem procedimento de titulação territorial aberto no Incra. Correm também o riscode perda territorial devido aos impactos dos projetos de barragem e a transposição do SãoFrancisco. Em negociações com órgãos federais responsáveis, a exemplo do Ministério deIntegração, foram feitos vários acordos, mas as chamadas “obras de compensação” nãopassaram de promessas, não cumpridas após dois anos – época da missão – da assinatura doProtocolo.

Assim como nos territórios quilombolas, a situação das demarcações de terrasindígenas materializa várias violações de direitos, o que se deve tanto pela precariedade elentidão dos procedimentos administrativos em curso na Funai quanto pelos lobbies de grandesgrupos econômicos da região. No estado de Pernambuco, os povos indígenas próximos à baciado Rio São Francisco, os Kambiwás, os Pankararus, os Pipipãs e os Trukás estão sendo atingidostanto pela transposição (parte dos canais cortam as terras reivindicadas pelos povos indígenas)como o serão pelas Barragens de Riacho Seco e Pedra Branca.

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No que tange a situação dos assentados de Reforma Agrária, muitos problemas eviolações foram verificados. Os projetos de “desenvolvimento” para a região têm atendido aosinteresses de grandes grupos econômicos, como a construção do Projeto Pontal Sul. O projetotem o objetivo de irrigar mais de 7.700 hectares de terras no município de Petrolina, comrecursos públicos, para posterior alienação de grandes lotes a grupos econômicos, sem atenderà demanda local da população rural de acesso à terra e à água.

Afora o não acesso à terra, à água e aos investimentos com irrigação, a Relatoriaconstatou que vários assentamentos deverão sofrer com obras governamentais, especialmenteo alagamento das terras devido à construção das barragens ou a perda de área com a passagemdo canal da transposição.

A Relatoria fez então diversas recomendações aos órgãos públicos para a tomada deprovidências, tanto no sentido de cumprir promessas já feitas, especialmente a execução das“obras compensatórias” em comunidades quilombolas e projetos de assentamentos, como nosentido de paralisar obras que resultam em violações de direitos dessas comunidades.

No início de 2011, a Relatoria fez o lançamento do relatório no estado, resultando emuma série de atividades em Petrolina e Recife. Essas atividades foram marcadas por incidênciasno Ministério Público e Assembleia Legislativa, por exemplo, bem como por mobilização dasentidades e movimentos do estado e uma boa repercussão e várias denúncias na imprensa locale estadual.

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SAUER, Sérgio e MACHADO, Diego Donizetti G. Violações de direitos humanos a comunidades tradicionais em

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EntrevistaCleber Folgado

Desde 2008, o Brasil é o maior consumidor de agrotóxicos do mundo, com umaestimativa de arrecadação em torno de R$ 7 bilhões7 com as vendas dos defensivos para 2011.Em termos de uso, já é mais de um bilhão de litros de agrotóxicos nas lavouras, o que significa5,2 litros por brasileiro ao ano. Os impactos são tão pulverizados quanto o próprio veneno. Jásão conhecidas as contaminações em rios, lavouras orgânicas e até mesmo de leite materno.

O uso de agrotóxicos e a agroecologia como modelo viável para a agricultura brasileirasão dois dos principais temas de trabalho da Campanha Permanente contra Agrotóxicos e pelaVida. Por onde passa, a Campanha encontra pessoas interessadas no assunto, reunidas emauditórios lotados e organizadas em comitês locais de atuação. O desafio é dialogar sobre omodelo de sociedade, a partir de um tema de interesse constante pela população brasileira.Sobre isso, Cléber Folgado, coordenador da Secretaria Operativa Nacional da Campanha,conversou conosco para falar sobre a campanha.

Como se organiza a campanha e de que forma ela está chegando nos estados e nas pessoas?

A campanha é composta por um conjunto de mais de 30 organizações nacionais e seorganiza por comitês locais, coordenações estaduais e coordenação nacional. Para além disso,construímos eixos de atuação que por sua vez têm tarefas específicas. Tais eixos são: Iniciativascom a sociedade; Iniciativas com a base social das organizações que compõem a campanha;Iniciativas com formação e profissionais da área da saúde e educação; Iniciativas no campojurídico e legislativo.

Diante desses eixos prioritários de atuação, a campanha vai chegando de diferentesformas nos estados e nas pessoas, pois cada organização e/ou comitê busca o que maispossibilita somar naquela região e envolver o máximo de pessoas e organizações.

Sendo assim, temos visto a realização de encontros, seminários, debate em escolas,universidades, igrejas, audiências públicas, panfletagens, debates em rádios e outros, comoforma de levar a campanha à população.

A produção do filme O veneno está na mesa, em parceria com o cineasta Silvio Tendler,possibilitou a divulgação massiva da campanha e o debate em relação à problemática geradapelos agrotóxicos, pois com esse material fizemos várias sessões de lançamento do filme, nosdiversos estados, com a presença do próprio Silvio, nas quais posteriormente se realizavamdebates e buscavam-se formas de ir consolidando comitês da campanha.

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7 Dados do Sindicato Nacional da Indústria de Produtos para Defesa Agrícola (Sindag).

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Por que a Via Campesina decidiu priorizar essa pauta política, engajando-se na campanha contra os agrotóxicos?

Na verdade essa não é uma temática nova para a Via Campesina, pois as organizaçõesjá fazem enfrentamento e oposição à questão dos agrotóxicos há vários anos. No entanto aconstrução dessa campanha pela Via Campesina e o conjunto de organizações que faz partedela recoloca o tema de qual modelo de agricultura queremos para o país, pois os agrotóxicossão hoje um dos principais pilares do agronegócio, que por sua vez produz commodities deacordo com os interesses do mercado internacional e não de acordo com a necessidade deprodução de comida para o país. Podemos comprovar isso olhando para os dados, por exemplo,temos um PIB agrícola de 205 bilhões de reais. Destes, 147 bilhões são controlados peloagronegócio e as empresas transnacionais, no entanto estão concentrados em apenas cincoculturas: soja, cana, milho, café e laranja. Nenhuma dessas é fundamental para os hábitosalimentares do povo brasileiro.

Por outro lado, temos a agricultura camponesa e familiar com um PIB de R$ 57 bilhões,ou seja, equivalente a 28% do total, que por sua vez produz as 15 principais culturas do mercadointerno e do alimento que o povo brasileiro consome. Para além dessas questões, aindapodíamos agregar que os agrotóxicos são um problema de saúde pública e que, portanto, taltema deve ser tratado pelo conjunto da sociedade. Diante disso podemos afirmar que é pelanecessidade de mudança do atual modelo agrícola e pela sua relação com os agrotóxicos quepriorizamos nosso engajamento na campanha contra os agrotóxicos.

Sem o agrotóxico, grande parte da produção do agronegócio ficaria inviabilizado. Qual aproposta da Via quanto ao modelo que a agricultura brasileira deveria seguir?

Vimos trabalhando ao longo dos anos uma proposta de modelo de agricultura queimplica em Reforma Agrária, em produção de comida sem agrotóxicos (venenos), de formadiversificada e que tenha como horizonte atender ao mercado local. A esta proposta chamamosde Agroecologia, que por sua vez aponta para a construção da Soberania Alimentar, ou seja,leva em consideração a qualidade dos alimentos, a condição de vida daqueles que produzeme consomem esses alimentos, a relação harmônica entre produção de alimentos e meioambiente, etc.

Seguir investindo no atual modelo de agricultura é seguir levando o país à dependênciados agrotóxicos e das transnacionais. Portanto, se faz necessário mudar o atual modelo deagricultura, que por sua vez destrói o planeta e os seres humanos, pois o agronegócio estápreocupado com o lucro das empresas, e não em resolver o problema da fome no mundo comohavia prometido a revolução verde, quando transformou os restos de armas químicas eminsumos para a agricultura. Vemos hoje que existem alimentos sobrando no mundo, enquantoque para cada 7 pessoas no planeta 1 passa fome, segundo dados da FAO.

Hoje já são inúmeras as experiências de produção agroecológica que temos espalhadaspelo Brasil afora, e que demonstram na prática a sua viabilidade econômica e produtiva. Diantedisso exigimos que o governo construa uma política pública séria de transição para aagroecologia, pois assim como na década de 60 e 70, quando o Estado colocou dinheiro para aadoção dos pacotes (insumos, sementes, venenos, fertilizantes, etc.) da chamada revolução

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Ü

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verde, é obrigação do Estado, hoje, possibilitar condições para que as famílias camponesaspossam fazer o processo de transição à agroecologia.

Como convencer o camponês a substituir os agrotóxicos por outros insumos orgânicos?

Grande parte dos camponeses já está convencida da necessidade de substituir osvenenos por outras formas alternativas que não prejudiquem o meio ambiente e nem a simesmos. No entanto, a dificuldade está nas condições dadas para a substituição. Exemplo dissoé a falta de políticas públicas que possam ajudar no processo de transição para a agroecologiaquando, por outro lado, temos todo o investimento para que sigam produzindo de formadependente dos venenos; hoje para se ter uma ideia, o camponês que quer ter acesso a umcrédito para investir na produção (como é o caso do Pronaf) é obrigado a adquirir todo o pacotecom seus insumos (sementes, fertilizantes, agrotóxicos, etc.) e isso é o que impossibilita a maioradesão por parte dos camponeses às formas alternativas de produção. No entanto, nos cabelembrar que segundo os dados do governo em seu último censo agropecuário, 75% daspequenas propriedades não usam agrotóxicos, isso nos possibilita afirmar que de fato oprincipal responsável pelo país ocupar o título de maior consumidor de agrotóxicos do mundoé o agronegócio.

Como vê o mercado dos agrotóxicos atualmente, com relação à presença dasmultinacionais no país?

O mercado de agrotóxicos é monopolizado por apenas seis transnacionais, são elasBasf, Bayer, Monsanto, Syngenta, Dow e Dupont. Juntas essas empresas, em 2010, tiveram 67%de participação no mercado mundial de agrotóxicos e, se somarmos as outras sete maioresempresas, veremos que 90% do mercado mundial de agrotóxicos se concentra nas mãos de 13empresas transnacionais. Do ponto de vista econômico, essas empresas lucraram 7,3 bilhõesde dólares em 2010, e estima-se que em 2011 tenham chegado a 8,2 bilhões de dólares.

Além disso, tais empresas têm muitos benefícios. Por exemplo, para se registrar umnovo ingrediente ativo nos EUA o custo é de 630 mil dólares, já aqui esse valor varia de 53dólares a mil dólares, ou seja, é muito barato registrar agrotóxicos no país, sem contar a isençãoda taxa de manutenção anual e a isenção de impostos que varia de 60% a 100% e a nãonecessidade de gasto com reavaliação, uma vez que o produto sendo registrado este registrovale eternamente, diferentemente do caso dos medicamentos que a cada cinco anos devempassar por um processo de reavaliação.

É por esses motivos que dizemos que a produção e comercialização de agrotóxicos sãoum elemento central na luta contra as transnacionais, pois, em síntese, são elas as responsáveispelo envenenamento das pessoas e do planeta, e são elas que ficam com o lucro privado emdecorrência do prejuízo social.

A campanha contra os agrotóxicos ajudaria aliar a pauta camponesa à dos centros urbanos?

Sem sombra de dúvida, e o exemplo mais claro disso é a própria composição atualda campanha, que conta com organizações estudantis, movimentos sociais do campo e dacidade, sindicatos e centrais sindicais, ONGs ambientalistas, pesquisadores, médicos e

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professores, etc. Além do mais, os elementos que a campanha traz para o debate não estãoligados somente às questões camponesas, pois ao questionar os agrotóxicos estamoslevantando a pauta da saúde, a pauta da questão ambiental e os problemas climáticos queatingem os centros urbanos, a questão do direito à alimentação de qualidade, etc. Ainda emrelação à saúde temos visto o aumento do índice de cânceres e já existem pesquisas queapontam a estreita relação dos agrotóxicos (seja na aplicação ou em seus resíduos presentesnos alimentos) e a questão do câncer.

Penso que a campanha tem um enorme potencial de articulação entre as diferentesforças sociais e a sociedade em seu conjunto, e é por isso que para o próximo período vamosintensificar a construção dos comitês locais e a realização de atividades que possam envolvero máximo de organizações e a sociedade. No fim de outubro de 2011, a CLOC e ViaCampesina fizeram o lançamento da mesma campanha no continente, durante a realizaçãodo III Encontro Internacional de Agroecologia e Agricultura Sustentável, em Cuba. Issodemonstra a capacidade aglutinadora e o potencial mobilizador que tem a campanha contraos agrotóxicos e pela vida.

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Olhar as desigualdades sociais e violações de direitos humanos apartir do recorte de gênero e raça na atuação das RelatoriasNacionais foi uma das diretrizes encampadas pela PlataformaDhesca Brasil no período de 2009 a 2011. A leitura é de que “sermulher, ser negro, ser mulher negra implica em ocupardeterminados lugares e posições sociais em que se tornaimpossível o exercício efetivo e verdadeiro da cidadania”.

A Plataforma Dhesca Brasil, através das Relatorias Nacionais em DireitosHumanos, intervém nos contextos de violação de direitos, alcançando o campo dasdesigualdades sociais e exigindo a garantia dos direitos humanos econômicos, sociais, culturaise ambientais, ainda distante de ser efetivada no país. Esse posicionamento político alinha-secom os princípios da integralidade, indivisibilidade e interdependência dos direitos humanos,já reafirmados na Conferência Mundial de Direitos Humanos, Viena, em 1993.

Tal intencionalidade, juntamente com um processo de avaliação do projeto RelatoriasNacionais em Direitos Humanos, resultou na incorporação das dimensões de gênero e raça nasdiferentes ações de incidência política das Relatorias Nacionais. O processo de constituição dasRelatorias, no ano de 2009, incluindo a eleição de relatoras e relatores, e a opção pelos contextosde violações de direitos a serem abordados, levou em consideração a conjuntura nacional degrave ameaça de retrocesso de avanços conquistados no campo da saúde sexual e reprodutivadas mulheres e de um incremento das práticas discriminatórias com base no pertencimentoracial, que já vinham sendo focadas por uma das Relatorias.

A orientação para incorporar gênero e raça no trabalho das Relatorias significa assumir

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Relatorias Nacionais emDireitos Humanos e asdimensões de gênero e raça na sociedade brasileira

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o reconhecimento de que essas dimensões são estruturantes das desigualdades sociais edeterminam a subordinação vivida concretamente pelas mulheres e pela população negrabrasileiras. Ser mulher, ser negro, ser mulher negra implica em ocupar determinados lugares eposições sociais em que se torna impossível o exercício efetivo e verdadeiro da cidadania.

O entendimento das desigualdades de gênero passa pela compreensão desse conceito,que nasceu como uma categoria de análise nos estudos feministas que criticavam as abordagensque justificavam as desigualdades de poder entre mulheres e homens a partir das diferenças naanatomia sexual. O conceito contesta um suposto “alicerce biologicamente determinado” que“justifica” a relação hierárquica entre mulheres e homens reservando às mulheres a condiçãode “ser reprodutivo” e a posição de “ser inferior ao homem” (SCOTT, 1991; HEILBORN &SORJ, 2002). A dimensão de gênero surgiu como forma de significar relações de poder,atribuindo discursivamente o significado do que é inferior e destinado ao mundo privado comofeminino, e o oposto, isto é, superioridade e vida pública como atributos masculinos. Areprodução de tal discurso acaba conferindo um caráter de naturalidade ao que é socialmenteconstruído.

Para aprofundar a compreensão sobre raça, é necessário não perder de vista que esseconceito se sustenta pela existência do racismo enquanto ideologia que influencia a forma comoa riqueza e o poder se distribuem na sociedade. Segundo Guimarães, a realidade das raçaslimita-se ao mundo social e, portanto, o racismo é uma forma específica de naturalizar a vidasocial, explicando diferenças pessoais, sociais e culturais a partir de diferenças atribuídas àbiologia. Racismo é aqui entendido como uma ideologia e prática que utiliza critérios de raçapara discriminar, segregar e oprimir, hierarquizando diferenças raciais e étnicas na crença daexistência de uma raça superior e discriminação racial como a atitude ou ação de distinguir eseparar os grupos humanos (as raças), tendo por base ideias preconceituosas.

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Seminário sobre Gênero e Raça, realizado pela Plataforma Dhesca Brasil, em agosto de 2010

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Assim, o debate sobre a pertinência analítica da categoria raça emerge com particulartensão. Por um lado, pensadores pautados nos conhecimentos da inexistência de diferentesraças do ponto de vista biológico preconizam a não cientificidade do conceito, enquanto outros,compreendendo o seu caráter político, defendem a apropriada utilização. Raça, tomada comoum conceito eminentemente político e socialmente construído, permite evidenciar a existênciade desigualdades ligadas à distribuição e acesso a equipamentos sociais como serviços desaúde, educação escolar, mercado de trabalho e às desvantagens geradas por condutasdiscriminatórias que ocorrem ao longo da vida da população negra. A luta para oenfrentamento do racismo tem uma longa história de articulações internacionais que unemativistas e políticos de diferentes áreas de atuação. No período pós-guerra, ganharam forçamovimentos que defendiam o combate ao racismo como elemento essencial da luta por direitoshumanos. Nos Estados Unidos, foram os anos heróicos da mobilização pelo fim da segregaçãoracial no Sul, que culminou, em 1964, com a Lei dos Direitos Civis. Protagonizada porimportantes lideranças negras como Angela Davis, Malcom X, Martin Luther King, essaconquista teve a participação de mulheres e homens de diferentes pertencimentos raciais. Noscontinentes africano e asiático, a luta pela descolonização assistiu a desconstituição de impérioscoloniais europeus até a década de 1970. (IBASE, 2007)

Desde o final da década de 1990 vêm sendo produzidos e publicados diversos estudosque revelam prejuízos nas condições de vida da maioria das mulheres e da população negrabrasileira, manifestando as profundas desigualdades entre negros e brancos e entre mulherese homens, dentro de uma mesma classe social, evidenciando os efeitos do racismo e do sexismoque impedem essas populações de acessar bens de consumo, serviços e direitos.

Autoras e autores da teoria da justiça (PORTO, GIRALDES, RAWLS, 1995) apontam anecessidade de incorporar interesses coletivos e específicos na formulação de políticas públicasde distribuição quando o objetivo é a diminuição das desigualdades, inclusive defendendouma discriminação positiva em favor dos menos favorecidos. Os direitos humanos dasmulheres vêm sendo afirmados desde a inauguração do ciclo de conferências da ONU, nadécada de 90, que se iniciou com a Conferência de Direitos Humanos de Viena em 1993, seguidadas Conferências do Cairo em 94, Beijing 95 e Copenhague 95. Após a realização dessas,processos de monitoramento se seguiram para a avaliação e acompanhamento dos planos deação das conferências.

O Estado brasileiro ratificou os principais tratados internacionais de direitos humanosno âmbito das Nações Unidas que podem ser aplicados para o contexto dos direitos dasmulheres. Entre eles, o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, o Pacto Internacionalde Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, a Convenção para a Eliminação de Todas as Formasde Discriminação contra a Mulher, a Convenção para a Eliminação de Todas as Formas deDiscriminação Racial, a Convenção sobre a Tortura. Os principais tratados internacionais dedireitos humanos do Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos também foramratificados pelo Brasil: a Convenção Americana de Direitos Humanos, a ConvençãoInteramericana para Prevenir e Punir a Tortura, a Convenção Interamericana para Prevenir,Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, a Convenção Interamericana sobre DireitosHumanos em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais – Protocolo San Salvador,

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tendo também reconhecido a competência da Corte Interamericana de Direitos Humanos eRegras Mínimas para Tratamento de Prisioneiros. (ARAUJO e SIMONETTI, 2010). O Brasiltambém é signatário da Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, aXenofobia e Formas Correlatas de Intolerância, realizada em Durban, África do Sul, em 2001,quando os Estados reunidos reconheceram o racismo como um crime que lesa a humanidade.

Ao tornar-se signatário desses tratados internacionais de direitos humanos, o Estadobrasileiro assume o compromisso perante a comunidade internacional de realizar esforços paraa implementação no seu território. Nesse sentido, os governos devem assegurar que suas leis,políticas e práticas não estejam em conflito e reflitam os compromissos assumidosinternacionalmente de respeitar, proteger e assegurar a plena realização dos direitos humanos,como o direito à vida, à saúde, à liberdade e segurança da pessoa, dentre outros. Como realçaNorberto Bobbio, os direitos humanos não nascem todos de uma vez e nem de uma vez portodas. Para Hannah Arendt, os direitos humanos não são um dado, mas um construído, umainvenção humana, em constante processo de construção e reconstrução. Refletem umconstruído axiológico, a partir de um espaço simbólico de luta e ação social.

Contudo, ainda que o Brasil seja signatário de tratados e convenções antidiscriminatóriase contar com marcos jurídicos nacionais contrários ao racismo, sexismo e a outras formas dediscriminação, as desigualdades e iniquidades no acesso à saúde, à educação, ao trabalho, à rendaainda acontecem entre homens e mulheres e entre brancos e negros. Assim, incorporar gênero eraça na intervenção das Relatorias Nacionais em Direitos Humanos tornou-se imprescindível. Averificação dessas dimensões nos contextos de violações de direitos observados também passa aser um instrumento de exigibilidade de direitos da população negra e de mulheres brasileiras.

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