284
1 INSTITUTO NACIONAL DE COLONIZAÇÃO E REFORMA AGRÁRIA - INCRA SUPERINTENDENCIA REGIONAL DO RIO GRANDE DO NORTE (SR 19) UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE - UFRN FUNDAÇÃO NORTE RIO-GRANDENSE DE PESQUISA E CULTURA - FUNPEC RELATÓRIO ANTROPOLÓGICO DA COMUNIDADE QUILOMBOLA DE BOA VISTA (RN) Complementação Convênio UFRN / INCRA-RN Natal – 2007

Relatorio Boa VistacomAnexos

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Relatorio Boa VistacomAnexos

1

INSTITUTO NACIONAL DE COLONIZAÇÃO E REFORMA AGRÁRIA - INCRA SUPERINTENDENCIA REGIONAL DO RIO GRANDE DO NORTE (SR 19)

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE - UFRN FUNDAÇÃO NORTE RIO-GRANDENSE DE PESQUISA E CULTURA - FUNPEC

RELATÓRIO ANTROPOLÓGICO DA COMUNIDADE QUILOMBOLA DE BOA VISTA (RN)

Complementação

Convênio UFRN / INCRA-RN Natal – 2007

Page 2: Relatorio Boa VistacomAnexos

2

Equipe da pesquisa antropológica:

Julie Antoinette Cavignac – Coordenador (UFRN)

José Antônio Fernandes de Melo – bolsista (UFRN)

Gilson José Rodrigues Junior – voluntário (UFRN)

Sebastião Genicarlos dos Santos – voluntário (UFRN)

Page 3: Relatorio Boa VistacomAnexos

3

- Pretinho de Angola, Para onde vai?

- Para a Conceição,

Vamo festeja!1

1 “Pretinho de Angola”, versão de canto religioso de Congo coletada por Mário de Andrade (1982: 114-115) em 1928 durante sua viagem no Rio Grande do Norte. Para mais explicações, ver pp.14-15. Interessante notar que “Conceição” é o nome antigo de Jardim do Seridó.

Page 4: Relatorio Boa VistacomAnexos

4

RESUMO

A comunidade quilombola de Boa Vista é situada no sertão do Rio Grande do Norte, no município de Parelhas. O grupo mantém uma longa memória genealógica que remonta aos meados do século XVIII, época em que a "retirante" Tereza veio se instalar nas terras do coronel Gurjão. A pesquisa documental comprove a ancestralidade da ocupação do território. A memória do grupo é composta pela rememoração dos laços genealógicos fundados nos inter-casamentos, tem, como principal função de determinar a divisão das terras coletivas entre as famílias. O sentimento de identidade é mantido através a reafirmação das relações de parentesco, o compartilhamento de uma narrativa de fundação e de uma história comum e o pertencimento à Irmandade do Rosário. Apesar das mudanças ocorridas na organização econômica e social do grupo, constatamos que as principais formas de solidariedade foram mantidas, mesmo se ressignificadas: as relações de parentesco, a Irmandade do Rosário, a dança do Espontão e a devoção à santa. Ao longo dos anos, a comunidade sofreu vários esbulhos das terras por parte dos proprietários vizinhos. Com o processo de desertificação se agravando e com a crise do algodão, a partir dos anos 1970-80, os moradores tiveram que abandonar gradativamente as atividades agrícolas, empregando-se nas cerâmicas ou tendo que migrar para cidades a procura de emprego. O trabalho agrícola continuou a ser uma atividade de subsistência, apesar das dificuldades encontradas. O território atualmente ocupado pelas famílias que encontra-se na área mais crítica de desertificação da região, tornou-se insuficiente para a manutenção do grupo: as atividades agrícolas encontram-se reduzidas, os mais jovens tem que sair da Boa Vista para procurar empregos nas cerâmicas circunvizinhas, nas cidades da região ou fora do Estado. As mulheres assumem um papel central na vida cotidiana e política do grupo, pois são elas que se projetam como lideranças e que sustem os projetos de desenvolvimento (melhorias da infra-estrutura, artesanato, pesca).

Proposta de delimitação da terra de quilombo: Inclui o local de moradia atual das famílias da comunidade, conhecido por Boa Vista dos Negros (aprox. 200ha.) e áreas cercadas por terceiros que avançam no território tradicional. Engloba terras que pertenciam tradicionalmente à comunidade, nas quais existem dois açudes. O território proposto é constituído por uma pequena área produtiva para plantio, o resto sendo áreas de serra e de caatinga que precisam ser reflorestadas e onde deverão ser implantados projetos de desenvolvimento sustentável. A área a ser proposta equivale à extensão de 445,2676 hectares. A demanda territorial foi objeto de várias reuniões públicas e é consensual entre os membros da comunidade, porém aparece como insuficiente para uma sustentabilidade do grupo e sua reprodução social.

Page 5: Relatorio Boa VistacomAnexos

5

SUMÁRIO

RESUMO........................................................................................................................................... 4

SUMÁRIO ..........................................................................................................................................5

ÍNDICE DE TABELAS, FIGURAS E MAPAS ....................................................................................7

INTRODUÇÃO......................................................................................................................................10

Metodologia .....................................................................................................................................12

Apontamentos teóricos....................................................................................................................16

O reinado da Boa Vista ................................................................................................................... 22

DADOS GERAIS................................................................................................................................... 24

1.1. Contexto regional...................................................................................................................... 25

1.1.1. Atividades econômicas.......................................................................................................27

1.1.2. Transformações da paisagem natural: ação antrópica e desertificação .......................... 30

1.2. A comunidade quilombola de Boa Vista .................................................................................. 34

SER ESCRAVO NO SERTÃO............................................................................................................... 36

2.1. Ocupação colonial: índios, negros e ‘marinheiros’ .................................................................. 38

2.1.1. “Plantadores de currais”................................................................................................... 39

2.1.2. As fazendas de criar e o algodão ...................................................................................... 44

2.2. A escravidão no Seridó ............................................................................................................ 48

2.2.1. “Vaqueiros e cantadores” ................................................................................................. 49

2.2.2. Escravos e fugitivos na região do Acauã ......................................................................... 62

2.3. “Negros retintos dançadores de Pulachi” .................................................................................67

OS FILHOS DE TEREZA ......................................................................................................................72

3.1. Tereza e o coronel Gurjão..........................................................................................................73

3.1.1. “De Domingo, foi Roberto. De Roberto, foi Inácio. De Inácio, foi Antônio...”.................74

3.1.2. Pai Cosme, Mãe velha e Imbém........................................................................................79

3.1.3. A história silenciada......................................................................................................... 82

3.2. Memória e genealogia.............................................................................................................. 88

3.2.1. A casa da pedra e o tesouro dos índios ............................................................................88

3.3.2. A memória dos nomes e as genealogias .......................................................................... 94

3.3. A irmandade do Rosário .........................................................................................................102

3.3.1. Irmandades negras no Seridó.........................................................................................103

3.3.2. Réis e Rainhas na casa do Rosário .................................................................................109

AS TERRAS DA BOA VISTA............................................................................................................... 119

4.1. A transmissão das terras .........................................................................................................120

4.1.1. “... que assinou somente ele, juiz, por ela ser mulher e não saber escrever...” .............. 121

4.1.2. Domingos, Manoel, André... ...........................................................................................123

4.1.3. Terras herdadas, terras compradas ................................................................................128

4.2. “Essa terra é da gente, dos negros”.........................................................................................133

Page 6: Relatorio Boa VistacomAnexos

6

4.2.1. O fracionamento das terras ............................................................................................134

4.2.2. Os esbulhos: “a terra sumiu”..........................................................................................139

4.3. Patrimônio: território e família ..............................................................................................149

4.4. Á margens das fazendas e das cerâmicas ...............................................................................154

4.4.1. Brocar o mato.................................................................................................................. 155

4.4.2. A erosão: gado e cerâmicas ............................................................................................163

A BOA VISTA DOS NEGROS: ............................................................................................................166

ORGANIZAÇÃO SOCIAL....................................................................................................................166

5.1. A Boa Vista dos Negros: autonomia perdida e mudanças......................................................167

5.2. Migração.................................................................................................................................. 173

5.3. Os quilombos velhos ............................................................................................................... 176

5.3.1. Parentesco ....................................................................................................................... 177

5.3.2. Moradia e sociabilidade................................................................................................. 180

5.4. Organização política ...............................................................................................................183

5.4.1. Insersão local e fronteiras étnicas...................................................................................184

5.4.2. As mulheres de Boa Vista ............................................................................................... 191

ÁREA PROPOSTA E RECOMENDAÇÕES.........................................................................................198

6.1. Delimitação do território.........................................................................................................199

6.2. O estatuto das áreas requisitadas .......................................................................................... 202

6.3. Perspectivas para a comunidade ........................................................................................... 205

1- Projetos de reflorestamento e preservação da fauna .......................................................... 205

2- Projetos produtivos e geração de renda.............................................................................. 206

3 - Projetos culturais e geração de renda alternativa.............................................................. 207

6.4. Parecer conclusivo ................................................................................................................. 209

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...................................................................................................213

ANEXOS..............................................................................................................................................227

Page 7: Relatorio Boa VistacomAnexos

7

ÍNDICE DE TABELAS, FIGURAS E MAPAS

Fotografias

Fotografia 1 – Boa Vista e a serra do Marimbondo (jun. 07).............................................................. 64

Fotografia 2 - Pais de Dona Chica e Seu Zé Vieira (jan.07). ............................................................... 80

Fotografia 3 - Casa de Imbém (1941)................................................................................................... 86

Fotografia 4 - Seu Manoel Miguel e Dona Chica no lugar onde ficava a casa de Imbém (março 07).86

Fotografia 5 - Cruz de Cazumbá, José Fernandes da Cruz, marido de Dona Geralda falecido num

acidente em 1990 (março 07). ................................................................................................... 90

Fotografia 6 - Dona Geralda (março 07). .............................................................................................91

Fotografia 7 - Ruinas da casa de Theodôzio (maio 07). ...................................................................... 93

Fotografia 8 - Seu Manoel Miguel e sua esposa, Guiomar (fev. 07). .................................................. 99

Fotografia 9 - Réis de congo (11/abr/1938), Pombal (PB). ................................................................104

Fotografia 10 - Igreja do Rosário, Acari - RN (fev. 07). .....................................................................107

Fotografia 11 - Dona Inácia Caçote com 91 anos (Jardim do Seridó, maio 07). .................................111

Fotografia 12 - Zé de Biu e a zabumba velha feita de caixa de bacalhau (jan. 07)............................. 112

Fotografia 13 - Tambor e Espontão do Rosário (Jardim do Seridó, dez. 2006)................................ 113

Fotografia 14 - Tereza participando da festa do Rosário da Boa Vista (foto de Tereza, s.d., Boa Vista).

................................................................................................................................................... 114

Fotografia 15 - Irmandade do Rosário de Currais Novos (1943). ...................................................... 115

Fotografia 16 - Os negros do Rosário com Dr. Mauro, então prefeito de Parelhas. .......................... 116

Fotografia 17 - Nossa Senhora do Rosário e São Sebatião (Jardim do Seridó, abril 07)................... 117

Fotografia 18- Maria Serafina da Conceição, Imbém (1840-1946)....................................................125

Fotografia 19 - Zé de Paulina fumando cachimbo (maio 07). ............................................................126

Fotografia 20 - Marco da terra na serra do Marimbondo (junho 07)................................................133

Fotografia 21 - Os herdeiros de Theodôsio: Zé de Paulina e Sandro (maio 07). ............................... 135

Fotografia 22 - Os herdeiros de Theodôzio no local onde era a casa de Maria Vicente (junho 07). .144

Fotografia 23 - Zé de Paulina explicando os limites da terra (maio 07)............................................145

Fotografia 24 - Bernardo de Sena e Silva, fundador e professor da escola do sítio Juazeiro entre 1883

e 1914......................................................................................................................................... 157

Fotografia 25 - Florêncio Luciano, prefeito de Parelhas. ................................................................... 157

Fotografia 26 - Rio Cobra (março 07). ...............................................................................................158

Fotografia 27 - Roçado na vazante do açude (maio 07). ....................................................................159

Fotografia 28 - Vegetação na serra do Marimbondo (jun. 07). .........................................................160

Fotografia 29 - Cultivo em vazante - açude (Boa Vista, jun. 07)........................................................160

Fotografia 30 - Área desmatada na serra do Marimbondo (jun. 07)................................................. 161

Fotografia 31 - Criação de porcos (jan. 07)......................................................................................... 161

Page 8: Relatorio Boa VistacomAnexos

8

Fotografia 32 - Cerâmica e gado (mar. 07).........................................................................................164

Fotografia 33 - Antiga escola de Boa Vista, hoje centro comunitário (maio 06)...............................169

Fotografia 34 - Parentes da Boa Vista: Sebastião G. dos Santos (Caicó), Luiz E. do Nascimento Neto

(Jardim), Seu Veríssimo e Dona Nina (Parelhas) [Parelhas, março 2007]. ........................... 175

Fotografia 35 - Quintal de uma casa (fev. 07). ................................................................................... 181

Fotografia 36 - Casa de Zé de Paulina e família (maio 07). ..............................................................182

Fotografia 37 - Quintal com tanque de lavar roupa (março 07). ......................................................183

Fotografia 38 - Placa que anuncia a comunidade quilombola de Boa Vista (maio 06).....................185

Fotografia 39 - Casa da Irmandade do Rosário (Jardim do Seridó) - 1863...................................... 188

Fotografia 40 - As pérolas negras (fev. 07) e a dança do Espontão (set. 06)....................................190

Fotografia 41 -Reunião comunitária (maio 07). ................................................................................ 191

Fotografia 42 - Reunião informal na casa de Dona Chica (março 07)...............................................192

Fotografia 43 - Eleição na Associação (maio 06). ..............................................................................193

Fotografia 44 - Discurso de Maria das Graças (Preta) reconduzida na presidência (maio 06). .......193

Fotografia 45 - Cisternas do projeto Água de beber (jan. 07). ...........................................................194

Fotografia 46 - Reunião na Boa Vista sobre os limites da terra - 17/05/07 (Suelma, Elsa e Manoel

Miguel)......................................................................................................................................195

Fotografia 47 - Irmandade do Rosário (s.d.). ..................................................................................... 197

Mapas

Mapa 1: Localização de Parelhas ......................................................................................................... 25

Mapa 2 - Localização de Boa Vista (Parelhas - RN). ............................................................................35

Mapa 3 - Lugares das Festas do Rosário e origem dos quilombolas (Boa Vista). .............................105

Mapa 4 - Ocupantes do território quilombola....................................................................................148

Mapa 5 – Mapada ocupação tradicional de Boa Vista. ...................................................................... 151

Mapa 6 - Croqui da Boa Vista (maio 2006)........................................................................................ 171

Mapa 7 - Demanda territorial .............................................................................................................201

Tabelas

Tabela 1: Taxa de crescimento populacional (1970-1996). ................................................................. 26

Tabela 2 - População do município de Parelhas (2000). .....................................................................27

Tabela 3 - Dados econômicos lavouras temporárias e permanentes - quantidade produzida........... 28

Tabela 4 - Dados econômicos - extração vegetal - quantidade produzida.......................................... 28

Tabela 5 - Dados econômicos - pecuária - efetivo de rebanhos (cabeças). ......................................... 29

Tabela 6 - IDH - Índice de Desenvolvimento Humano....................................................................... 29

Tabela 7 - Dados econômicos – indicadores de pobreza..................................................................... 30

Tabela 8 – População escrava - Rio Grande do Norte e Seridó (1811-1888). ......................................61

Page 9: Relatorio Boa VistacomAnexos

9

ABREVIAÇÕES

ABA: Associação Brasileira de Antropologia ADCT/CT: Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal APA: Área de Proteção Ambiental ADECONB: Associação de desenvolvimento da comunidade negra de Boa Vista. COECQRN: Coordenação estadual das comunidades quilombolas do Rio Grande do Norte DAN/UFRN: Departamento de Antropologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte EDUFRN: Editora da Universidade Federal do Rio Grande do Norte EMPARN: Empresa Agropecuária do Rio Grande do Norte FCP: Fundação Cultural Palmares FEMURN: Federação dos Municípios do Rio Grande do Norte IBAMA: Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis IBGE: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística IDEMA/RN: Instituto de Defesa ao Meio Ambiente do Rio Grande do Norte IDH-M: Indicio de Desenvolvimento Humano Municipal IHGRN: Instituto Histórico-Geográfico do Rio Grande do Norte INCRA: Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária IPHAN: Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional ITERN: Instituto de Terras do RN ITI: Instituto Nacional de Tecnologia da Informação MDA: Ministério do Desenvolvimento Agrário MP: Ministério Público MPF: Ministério Público Federal NUDES: Núcleo de Desenvolvimento Sustentável ONG: Organização Não-Governamental ONU: Organização das Nações Unidas PRODECOR: Programa de Desenvolvimento das Comunidades Rurais SEPPIR: Secretaria Especial de Políticas para Promoção de Igualdade Racial.

Page 10: Relatorio Boa VistacomAnexos

10

INTRODUÇÃO

Inácio da Catingueira

Criado de João Luís

É doutor preto formado,

É vigário da Matriz,

Tanto fala como abóia,

Como sustenta o que diz

Inácio da Catingueira2

2 Verso de Inácio da Catingueira transcrito no livro Retalhos do meu sertão de José Bezerra (1978: 19).

Page 11: Relatorio Boa VistacomAnexos

11

Boa Vista dos negros, comunidade quilombola situada na zona rural do

município de Parelhas, no Seridó norte-riograndense, é conhecida regionalmente

por estar ligada à irmandade do Rosário, perpetuando um culto secular em louvor à

“santa”. As quarenta e duas famílias residentes distribuídas em trinta casas,

somando, ao todo cento e vinte e quatro moradores, ocupam atualmente em torno

de duzentos hectares e se queixam de ter tido, ao longo dos anos, seu território

consideravelmente reduzido sem nunca ninguém ter vendido um “palmo de chão”.

A comunidade, que ainda não recebeu formalmente a certidão de auto-

reconhecimento da Fundação cultural Palmares, apesar deste ter sido emitida em

06 de abril de 2004, encontra-se representada através da Associação de

desenvolvimento da comunidade negra de Boa Vista - ADECONB, criada em 2002.

O grupo solicitou, em 09 de maio de 2004, junto ao Incra/RN, a regularização

fundiária do seu território tradicional.

O relatório aqui apresentado é fruto do convênio assinado em 2006 entre a

Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e o Instituto Nacional de

Colonização e Reforma Agrária (Incra) e tem como objetivo complementar e

atualizar os dados coletados em 1998 pelo pesquisador Alecsandro P. Ratts: na

época, este elaborou um relatório técnico-científico da comunidade para o projeto

“Mapeamento e sistematização das áreas de remanescentes de quilombos” da

Fundação Palmares.3 Visa fornecer informações para o reconhecimento, a

delimitação, a demarcação e a titulação das terras ocupadas pelos remanescentes

de quilombo, localizadas no município de Parelhas (RN), contendo, por

conseguinte, a descrição dos quadros históricos, geográficos, sociais e

antropológicos, tendo como enfoque principal, a questão territorial e identitária.

Indica os princípios de ordem social e histórica que permitem reconhecer à

3 O relatório encontra-se no processo aberto pelo Incra.

Page 12: Relatorio Boa VistacomAnexos

12

comunidade de Boa Vista o direito instituído pelo artigo constitucional 68 do Ato

das disposições constitucionais transitórias, da Constituição federal de 1988.4

Metodologia

O relatório antropológico de caracterização histórica, econômica e sócio-

cultural da comunidade quilombola de Boa Vista foi elaborado entre os meses de

outubro e maio de 2007. A preparação deste relatório foi acompanhada por

diferentes representantes e membros da comunidade quilombola citada e os

resultados parciais da pesquisa foram apresentados em duas reuniões públicas, nos

dias 16 de abril e 10 de maio 2007. Da mesma forma, em diferentes ocasiões, houve

uma discussão aberta e coletiva sobre os limites territoriais e, conseqüentemente,

um debate sobre os direitos ligados ao reconhecimento do grupo como quilombola,

tendo chegado, no mês de maio 2007, a um consenso sobre os limites do território

a ser pleiteado.

Utilizamo-nos de pesquisa bibliográfica e documental, de entrevistas e dados

colhidos em trabalhos de campo, especificamente no que diz respeito à elaboração

de genealogias e observação da situação política, aplicando os preceitos da

etnografia. Também, contamos com os dados empíricos recolhidos entre 1990-91 e

outros em 2006 durante pesquisas exploratórias na comunidade (Cavignac 2006).

Devido ao curto prazo para realizar a pesquisa histórica, solicitamos o auxílio de

um aluno do curso de história do CERES/UFRN-Campus de Caicó, Sebastião

Genicarlos dos Santos. A dispersão e a quantidade das fontes primárias disponíveis

e não estudadas dificultou a consulta e realização de uma pesquisa consistente das

fontes documentais. Mesmo assim, no que for possível, procuramos realizar um

4 O direito de reintegração dos territórios tradicionalmente ocupados pelos grupos está previsto no Artigo 68 do ADCT, da Constituição federal de 1988 e a titulação das terras visa garantir o domínio e posse pelos seus ocupantes tradicionais, independentemente da existência de títulos de propriedade, assegurando ainda, em lei, alternativas econômicas viáveis, compatíveis com a cultura e os valores do grupo.

Page 13: Relatorio Boa VistacomAnexos

13

levantamento de dados em arquivos, institutos e bibliotecas.5 Da mesma forma,

foram solicitadas informações a órgãos públicos estaduais e municipais que

disponibilizaram publicações e documentos, sobretudo no que diz respeito a

questões envolvendo o meio ambiente e a projetos de desenvolvimento em curso.

Acompanhamos o curso de capacitação quilombola do Rio Grande do Norte,

"Participação política e controle social das políticas públicas", em particular, a

oficina sobre regularização fundiária organizada pelo INCRA/RN; evento que foi

realizado pela prefeitura municipal de Parelhas, da COECQRN e da SEPPIR entre

os dias 15 e 17 de março de 2007; nessa ocasião, a questão territorial foi

amplamente discutida. Também, nossa equipe acompanhou em diferentes

momentos os trabalhos dos técnicos do INCRA: o cadastramento das famílias

realizado em novembro 2006, o levantamento cartorial iniciado em 2004, a

pesquisa agronômica e a delimitação do perímetro, em junho 2007. Nessas

diversas ocasiões pudemos observar com mais proximidade o quadro de interesses

e tensões no qual se desenvolve, localmente, a questão territorial.

Os trabalhos de campo foram iniciados em outubro de 2006 e se estenderam

até o mês junho de 2007.6 Nosso trabalho empírico consistiu inicialmente na

5 Realizamos levantamentos bibliográficos na Biblioteca Câmara Cascudo, na biblioteca municipal de Parelhas, no IHGRN, no Núcleo de estudos históricos (NEAD) e no Núcleo Câmara Cascudo de Estudos Norte-Rio-Grandenses (NCCEN), ambos da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, bem fizemos pesquisa como em acervos particulares. Contatamos a Prefeitura de Parelhas, através das secretarias de turismo, ensino e de assistência social. Foi também solicitada a realização de uma pesquisa nos cartórios de Parelhas, de Jardim do Seridó e no Fórum de Parelhas. Conforme manda o artigo 68 do Ato das disposições constitucionais transitórias (ADCT) de 1988, tratando-se de documentos referentes a escravos ou a remanescentes de quilombos, a documentação escrita deve ser preservada e tombada pelo IPHAN. Assim, além da documentação referente à Irmandade do Rosário que existe em Jardim do Seridó e, provavelmente na Cúria de Caicó, encontramos vários documentos cartoriais e um título de terras datado de 1889 que está em possessão da Associação. No que diz respeito ao patrimônio construído, existe uma casa em Jardim do Seridó que pertence à Irmandade do Rosário e que representa uma marca arquitectonica importante para manutenção do grupo e da sua história. 6 Como se tratava da complementação e da atualização das informações coletadas em 1998 pelo pesquisador A. Ratts, foram alocados recursos para três meses de trabalho para elaboração do relatório antropológico; prazo que não foi suficiente e que teve que ser estendido sem complementação orçamentária no quadro do convênio. De fato, uma das regras básicas para realização de qualquer estudo antropológico é a familiaridade e a confiança mútua adquirida no

Page 14: Relatorio Boa VistacomAnexos

14

reconstrução do processo histórico de ocupação territorial e de formação étnica de

Boa Vista, no reconhecimento e no levantamento dos critérios de auto-identificação

dos membros do grupo como sendo quilombolas. Na presente pesquisa, fixamos

nossa atenção em trajetórias de vida peculiares para, posteriormente, remontar o

encadeamento dos fatos segundo a visão dos nossos interlocutores.7 Em todas as

fases do campo, solicitamos que os moradores envolvidos no processo

acompanhassem os nossos trabalhos, sobretudo as lideranças que compõe a

Associação de desenvolvimento da comunidade negra de Boa Vista - ADECONB,

através sua presidente Maria das Graças Fernandes da Cruz ou ‘Preta’.8 Para

elaboração deste relatório, desde nossa primeira visita em Boa Vista, tivemos o

cuidado de apresentarmos publicamente a equipe e as razões da nossa presença,

bem como divulgarmos resultados parciais em reuniões pequenas e ampliadas com

as lideranças comunitárias ou os representantes dos diferentes segmentos.9

Utilizamos, também, os dados coletados durante o cadastramento das famílias

moradoras de Boa Vista realizado em novembro de 2006 por funcionários do

INCRA. Fizemos uma adaptação para nosso banco de dados e complementamos as

informações coletadas com novas idas a campo. Também realizamos uma pesquisa

genealógica, contando, sobretudo, com o auxílio das pessoas mais idosas, com o

convívio com os moradores, essencial para conhecer melhor a realidade cotidiana do local, exercício que requer um prazo superior a três meses! 7 Para tanto, inspiramo-nos dos princípios da pesquisa antropológica e sociológica, sobretudo no que diz respeito à memória genealógica (Bourdieu 1983: 11-106; Cabral e Lima 2005; Oliveira 1988, 1995; Zonabend 1986 e 2000). Utilizamos uma metodologia centrada nas histórias de vida e nas relações de parentesco, como a desenvolvida em trabalhos de outros pesquisadores investigando a realidade brasileira, especificamente no Nordeste (Menezes 1992; Sigaud 1993; Woortman 1995), com os aportes do método regressivo adaptado às sociedades pós-coloniais (Wachtel 1990). 8 Conforme manda o artigo n. 6 do Decreto 4887 (nov. 2003) e o artigo 27 da Instrução normativa (set. 2005), a elaboração do relatório deve ser acompanhada por membros da comunidade. Outros moradores de Boa Vista, pessoas que nasceram na comunidade ou que mantém um laço de parentesco com o grupo e que estão interessados em participar do pleito coletivo, acompanharam o processo, mesmo morando em Parelhas, Currais Novos ou Caicó. Vários deles participaram, em momentos diferentes, das discussões e do trabalho da equipe. 9 Foi disponibilizada uma cópia preliminiar do relatório para a Associação comunitária. Também, é prevista a realização de um documentário sobre a Festa do Rosário em 2008.

Page 15: Relatorio Boa VistacomAnexos

15

objetivo de recolher uma memória do grupo e as percepções nativas sobre a origem

e o passado de Boa Vista. O levantamento genealógico das principais famílias

permitiu que conversássemos de forma tranqüila durante os primeiros contatos e

abordássemos, em outro momento, assuntos ligados à questão territorial, pois não

havia consenso em relação ao pleito territorial. Na ocasião, foram analisadas as

relações sociais tecidas entre os diferentes membros do grupo: relações de

vizinhança, comunitárias, as condições sócio-econômicas das famílias, a divisão

social das tarefas, as formas de trabalho, de lazer ou propostas políticas que se

desenvolvem cotidianamente, orientadas, de modo geral, pelo parentesco. A equipe

participou da vida cotidiana, em épocas diversas do ano, possibilitando a

observação das relações de sociabilidade e dos diferentes usos sociais e funcionais

do território. Não encontramos dificuldades na obtenção de informações, pois

contamos, em todas as ocasiões com a colaboração dos demais integrantes do

grupo, sobretudo os que detem uma memória genealógica mais profunda.

Seguindo o método utilizado em antropologia, foram realizadas ao todo 26

entrevistas semi-diretivas – quinze delas foram gravadas e transcritas – com os

diferentes integrantes da comunidade em conjunto com a observação participante.

Também, realizamos várias reuniões informais entre parentes e vizinhos para

coletar informações sobre a história e a vida cotidiana do local. Ao total, foram dez

visitas dos membros da nossa equipe em Boa Vista, somando um total de mais de

trinta dias de pesquisa empírica. A equipe encarregada de elaborar o estudo

antropológico na comunidade, coordenada pela professora Julie A. Cavignac foi

composta por alunos de graduação da Universidade federal do Rio Grande do

Norte, alunos cursando ciências sociais – José Antônio de Melo (bolsista) e Gilson

José Rodrigues Junior (voluntário) -, e um aluno do curso de história, Sebastião

Genicarlos dos Santos (voluntário).

Page 16: Relatorio Boa VistacomAnexos

16

Apontamentos teóricos

Em Boa Vista, a devoção a N. Sra. do Rosário e a narrativa de fundação são

os principais marcos identitários do grupo: o ritual e as performances discursivas

dos eventos são atualizados; essas informam sobre as aspirações futuras do grupo.

Essa perspectiva permite também apreender o discurso nativo e as percepções do

mundo de um grupo que afirma sua diferença na referência a uma dança e a uma

história comum. Por isso, optamos para uma abordagem antropológica que associa

os temas do rito e da memória para iniciar uma reflexão sobre a importância social

(identitária) dessas expressões culturais, assim como dos elementos selecionados

pelos nossos interlocutores. Como aponta Jacques Le Goff (1988: 115), a memória e

a identidade coletiva articulam-se, para se expressar especificamente nos mitos de

origem e na genealogia, mas poderíamos, ainda, incluir as diversas manifestações

culturais ligadas ao culto de N. Sra. do Rosário cujas dimensões memoriais e

identitárias se destacam das outras expressões simbólicas da cultura local. A

memória narrativa e a resistência à escravidão ensaiada na dança do Espontão

possibilitam apreender a versão nativa da história, mesmo se essa foi silenciada.

Também, a memória não é homogênea, pois, sabemos graças os trabalhos

pioneiros de Maurice Halbwachs (1990) e do seu sucessor, Michael Pollak (1989),

que a memória não é uma simples reprodução dos fatos e dos acontecimentos:

apresenta-se como o produto de uma elaboração singular que os indivíduos têm

das suas práticas sociais; é antes de tudo um processo em perpétua mudança. A

pesquisa de parentesco e a utilização do método genealógico servem para entender

as histórias de vida, a constituição das famílias, mas também, possibilitam a

descrição das formas de organização social e política nos termos utilizados pelos

membros do grupo; o que os antropólogos chamam de "ponto de vista dos nativos"

(Geertz 1997).

A forma local de expressar os laços sociais fundamentando a noção de

comunidade é traduzida pela expressão “O povo da Boa Vista”. Assim como foi

demonstrado em outros contextos etnográficos, para os grupos camponeses, o

parentesco aparece como “um componente básico de sua reprodução social”

Page 17: Relatorio Boa VistacomAnexos

17

(Woortman 1995: 65), meio pelo qual os quilombolas reconhecem os herdeiros,

expressam o sentimento de pertencimento ao grupo e se identificam com o

território. Assim, a memória genealógica, associada à inscrição do grupo no espaço

tem um papel crucial no “sistema de representação e de identificação local”

(Zonabend 2000: 506). Também, veremos que é possível aplicar o modelo

explicativo da ‘casa’ ou do ‘sitio’ desenvolvido por vários autores, que, antes de

descrever um espaço de reprodução econômica dos grupos domésticos, designa um

conjunto de representações em torno do grupo que se representa como uma

‘grande família’ e, a partir disso, permite pensar as formas de herança dos bens, a

sucessão das terras, mas, também, a reprodução de outras expressões simbólicas

como a transmisão do nome, a história do grupo, o ritual, etc. (Lévi-Strauss 1974;

Mauss 2003; Woortman 1995). Assim, além de um uso tradicional e coletivo das

terras (Arruti 2006: 86-91), respondendo, em Boa Vista, a uma lógica de

transmissão familiar, encontramos um conjunto cultural que é passado de geração

em geração e que podemos designar como sendo uma tradição, com nossos

interlocutores: a permanência de alguns traços codificados da cultura expressa uma

estrutura mais profunda que se reproduz ao longo dos anos na vida cotidiana,

através dos gestos, das expressões lingüísticas ou das formas não verbais de

comunicação, das técnicas, enfim, de um conjunto amplo formado essencialmente

pelos conhecimentos sobre o meio ambiente, as representações simbólicas ligados

a ele, os usos do espaço, as formas artísticas, um vocabulário próprio, as expressões

religiosas, etc. (Lévi-Strauss 1983: XIX). Esses conhecimentos, técnicas e

expressões culturais se inscrevem num espaço e numa temporalidade particular à

sociedade estudada, atualizando-se regularmente e sendo, por conseguinte,

suscetíveis de mudanças. A definição de cultura de C. Lévi-Strauss (Ibid.) como

sendo um "conjunto de sistemas simbólicos" se assemelha ao conceito de habitus

elaborado por Bourdieu (1980: 88), definido como "sistemas de disposições

duráveis, estruturas estruturadas predispostas a funcionar como estruturas

estruturantes, quer dizer, enquanto princípios geradores e organizadores de

práticas e de representações" que nem sempre são conscientes.

Page 18: Relatorio Boa VistacomAnexos

18

Por outro lado, o grupo estudado distingue-se dos seus vizinhos por serem

chamados e se reconhecerem como ‘negros’. Constatamos que a concepção de

“comunidade” que é associada ao termo “quilombola” foi naturalizada pelos

próprios atores, o que implica o reconhecimento de laços genealógicos, de um

território comum e de um passado compartilhado. Corresponde à definição

presente nos textos legais10:

O direito à propriedade da terra reconhecido no artigo 68 relaciona-se a uma herança, baseada no parentesco, a uma história baseada na reciprocidade e na memória coletiva e a um fenótipo como princípio gerador de identificação, onde o casamento preferencial atua como valor operativo no interior do grupo (Ana Paula Comin de Carvalho in Aba 2006: 47).

Acompanhando Max Weber (1971: 416), encontramos em Boa Vista os

elementos fundantes de um grupo étnico, a saber, a identificação dos moradores

com valores comuns, a crença numa origem compartilhada, e a existência de uma

trajetória histórica própria. Esses elementos revelam-se, sobretudo, através da

descrição dos laços de parentesco travados ao longo das gerações com membros de

outras comunidades quilombolas vizinhas e de pessoas agregadas ao grupo ao

longo da sua história. A longa memória genealógica que pudemos coletar em

campo reflete a preocupação dos integrantes da comunidade em perpetuar a

história das famílias que estão na origem de Boa Vista, pois, como em outras

comunidades quilombolas:

Os critérios de pertencimento que caracterizam os grupos étnicos e que afirmam etnia como um tipo organizacional estão presentes nas situações referidas assim como também as representações sobre uma história do grupo que é continuadamente reconstituído e que invoca uma origem comum coetâna ao momento em que se afirma a autonomia produtiva. Essas representações remetem a uma história que se inicia em que deixam um trabalho subordinado a um senhor e passam a constituir unidades produtivas autônomas, baseadas no trabalho familiar combinado com o uso

10 É preciso esclarecer que o conceito de "quilombo" foi ressemantizado ao longo dessas últimas décadas, sobretudo após a efetivação das primeiras titulações das terras de remanescentes de quilombo no território brasileiro. Ver os trabalhos de Almeida (2002 e 2006) e Arruti (1997 e 2006).

Page 19: Relatorio Boa VistacomAnexos

19

comum dos recursos ambientais por um conjunto definido de grupos domésticos (Castanhede 2006: 34).

Assim, o principal critério de definição da ‘fronteira étnica’ que pudemos

observar in loco segue a lógica do "sangue": o pertencimento de um indivíduo ao

grupo pela filiação ou aliança, dá acesso a terra (Barth 1988: 32-33). É o grau de

consaguinidade que define os herdeiros e o casamento torna um estrangeiro,

parente. Por extensão, toda a parentela se encontrará numa relação especial com os

membros do grupo aliado. A unidade do grupo funda-se ainda em relações sociais

privilegiadas determinadas, em parte, pela participação do indivíduo na festa do

Rosário. Além disso, a vizinhança e as relações de trabalho aparecem como as

principais formas de relações com pessoas estranhas à Boa Vista. Assim, o estudo

das relações de parentesco e de sociabilidade aparecem como sendo instrumentos

preciosos que auxiliam a pesquisa etnográfica por oferecer uma ferramenta

metodológica potente e possibilitar o levantamento de dados referentes à

constituição do grupo e à sua história. Mas, como vimos, o sentimento de

pertencimento a um conjunto que é descrito como sendo àquele constituído por

laços de consangüinidade e formas de sociabilidade tecidas entre as famílias de Boa

Vista fundamenta-se numa representação simbólica; é a imagem que o grupo

construiu para si e para os outros e transmitiu ao longo da sua existência, pois,

como o sublinha C. Lévi-Strauss (2003: 61):

(...) um sistema de parentesco não consiste nos laços objetivos de filiação ou de consangüinidade entre os indivíduos. Ele só existe na consciência dos homens; é um sistema arbitrário de representações, e não o desenvolvimento espontâneo de uma situação de fato.

Reencontramos, então, os mesmos elementos presentes na definição do

grupo étnico: o parentesco, antes de designar um conjunto de relações sociais

definidas pela aliança ou pela consangüinidade, representa um sistema de idéias e

de percepções compartilhadas que corresponde a uma terminologia de nominação

de parentes e a comportamentos prescritos. A dimensão simbólica esta presente na

formação do grupo, seja ele formado por consangüinos ou seja ele constituído

através da afinidade. No caso dos quilombolas, a afinidade designa os indivíduos

Page 20: Relatorio Boa VistacomAnexos

20

que se integraram ao grupo, preferencialmente pelo casamento ou pela devoção a

N. Sra. do Rosário e que passam a compartilhar experiências e valores. Assim, o

parentesco e o ritual, ao serem utilizados pelos membros do grupo para afirmar

uma identidade étnica diferenciada, fundamentam as relações sociais.

Caracterizam-se como uma linguagem comum entre os “Negros da Boa Vista” ou

“do Rosário” que compartilham uma história, crença e, geralmente também, um

modo de vida. Nessas experiências sociais, a família ocupa um lugar de destaque,

mesmo se as formas de sustentabilidade do grupo conheceu mudanças, passando

de uma organização econômica em torno das unidades familiares produtivas

(agricultura) a uma vida cotidiana voltada pela procura de bens e serviços

localizados fora dos núcleos de residência, no caso, Parelhas.

Em todo caso, a memória e a dança são intimamente ligadas ao passado do

grupo e se expressa através de uma multiplicidade de expressões culturais, sejam

elas narrativas, artísticas ou rituais. Longe de ser imutável, a cultura, como

qualquer produção social, é submetida a um processo contínuo de mudanças,

obedecendo geralmente a uma determinada lógica. Segundo a definição de cultura

de Eduardo Viveiros de Castro (2002: 209), é "um conjunto de estruturações

potenciais da experiência, capaz de suportar conteúdos tradicionais variados e de

absorver novos". Essa perspectiva aproxima-se da noção de identidade elaborada

por Manuela Carneiro da Cunha (1994):

(...) pode-se entender a identidade como sendo simplesmente a percepção de uma continuidade, de um processo, de um fluxo, em suma, uma memória. A cultura não seria, nessa visão, um conjunto de traços dados e sim a possibilidade de gerá-los em sistemas perpetuamente cambiantes.

Observando as relações de parentesco, a sociabilidade e as manifestações

culturais em Boa Vista, podemos visualizar elementos de uma tradição que será, a

cada geração, reformulada em função das mudanças sócio-economicas ocorridas e

da dinâmica do grupo. Assim, veremos, a seguir como a memória e a identidade são

sujeitas a mudanças conjeturais, porém suas variações seguem as de uma estrutura

preexistente aos fatos evenemenciais; a Festa do Rosário aparece como sendo um

dos maiores exemplos da continuidade de uma expressão cultural de um grupo

Page 21: Relatorio Boa VistacomAnexos

21

subalterno (Sahlins 1987). Acompanhando os resultados dos trabalhos clássicos em

Antropologia da religião e adaptando-os ao contexto estudado, percebemos que o

rito tem como função principal a reprodução das normas e valores do grupo; a festa

religiosa é o momento durante o qual o grupo se revela e se consolida (Durkheim

1990). Também, a Festa dos negros do Rosário tem outro papel, o de lembrar uma

história invisibilizada: aparece, no final da análise, como uma ‘memória ritual’,

único registro de um passado silenciado (Severi 1993: 361). Não há cantos, só há

uma dança guerreira ao som dos tambores.

Assim, “os Negros da Boa Vista” afirmam-se como grupo étnico,

distinguindo-se dos seus vizinhos “brancos” (os “Barros” e os “Luciano”) e, ao

mesmo tempo, mantém viva uma devoção à Irmandade do Rosário: são

‘depositários’ de uma tradição religiosa secular que eles seguem à risca. Ao

reivindicarem um território, nossos interlocutores encenam práticas culturais

próprias: são conhecidos em toda região por estarem ligados à irmandade do

Rosário, perpetuando um culto em louvor à santa com a dança do Espontão. Se,

hoje, a devoção de N. Sra. do Rosário é considerada como sendo a expressão ritual

de maior importância para o grupo e é utilizada para afirmar uma diferença étnica,

veremos que a narrativa fundadora do grupo e a memória genealógica são também

as principais marcas identitárias dos ‘negros’, pois são constantemente acionadas

ao reivindicar a legitimidade da ocupação do território pelos herdeiros dos

primeiros quilombolas que fundaram Boa Vista.

A partir da perspectiva que prioriza o ritual, a memória, a representação

nativa do passado e a história das famílias, analisaremos aspectos ligados à

afirmação étnica e à territorialidade a partir de um conjunto designado por nossos

interlocutores. Serão analisados elementos da história local, da sociabilidade e da

organização social que podem ser observados ou evocados, como as narrativas

míticas e as versões explicativas da origem do grupo, as expressões idiomáticas, o

sistema de nominação, as estratégias matrimoniais, as técnicas agrícolas, os

cuidados do corpo, as receitas de cozinha, os contratos de trabalho, as formas de

religiosidade, etc. Aproveitaremos para refletir sobre a importância da transmissão

da memória genealógica e da história das primeiras famílias quilombolas na

Page 22: Relatorio Boa VistacomAnexos

22

ocasião da definição do território. Para isso, será preciso observar o papel da

solidariedade tradicional fundada nos laços de parentesco, nas redes de

sociabilidade, na patronagem e na constituição da imagem do grupo. Iremos assim,

investigar os processos de afirmação étnica através das vias simbólicas. Desta

forma, analisaremos como a história de fundação de Boa Vista, os laços de

parentesco, incluindo os sugeridos pelo pertencimento à Irmandade do Rosário, as

modalidades de transmissão do nome, a dança e o ritual religioso são definidores

da identidade étnica, pois desenham o contorno do grupo, sendo constantemente

instrumentalizados e atualizados.11 Assim, esses documentos servem para definir o

acesso a terra, justificar a defesa e a recomposição pelo menos parcial de um

território tradicional; veremos que esses elementos aparecem como centrais para o

entendimento da trajetória histórica da comunidade de Boa Vista.

O reinado da Boa Vista

Nosso objetivo principal, neste relatório, consiste na reunião dos elementos

descritivos referentes a ocupação ancestral do território, seu uso, a transformação

da paisagem natural e a importância das terras da Boa Vista para a população

quilombola que, como iremos demonstrar, as ocupam há mais de duzentos anos.

Inicialmente, iremos rapidamente tratar das questões relacionadas ao estatuto dos

remanescentes de quilombo no Seridó norte-rio-grandense e da existência de

comunidades negras na região. Para tanto, precisamos reavaliar a história da

presença dos descendentes dos escravos trazidos da África para o sertão do Rio

Grande do Norte, pois esta não aparece como foco das atenções da historiografia

tradicionalmente praticada a nível local. Esse esboço permitirá entender porque,

apesar dos primeiros registros de escravos estarem presentes na região no século

XVI e, em Boa Vista desde o século XVIII, encontramos poucos registros escritos

11 Nosso referencial teórico inspira-se dos seguintes autores: Castro 2002, Lévi-Strauss 2003, Wachtel 1990, Salhins 1987.

Page 23: Relatorio Boa VistacomAnexos

23

sobre a presença histórica de um grupo negro, pois sempre foi colocado à margem

da sociedade e da economia regional.

Na seqüência, iremos recorrer à tradição oral para reconstruir a história

mais recente “dos negros da Boa Vista” e cruzá-la com os registros que

encontramos na literatura regional. Apontamos, em particular, para a originalidade

da trajetória do grupo, fundada numa longa memória genealógica que lembra, a

todo o momento, a sua origem, a legitimidade da ocupação territorial, os limites e a

repartição atual das terras. A compreensão da constituição das famílias, das formas

de sociabilidade intra e extra-comunitária ou das relações sociais travadas com os

vizinhos e com os “irmãos do Rosário” é fundamental para entender a forma de

integração do grupo com a sociedade englobante, as suas atividades econômicas,

suas práticas religiosas e o uso do território. Assim, trataremos especificamente da

ocupação do espaço e da questão territorial, buscando compreender o processo de

esbulho das terras e as mudanças sócio-econômicas que a comunidade conheceu

que, de agrícola, passa a subsistir, em grande parte, das atividades ligadas à

produção da cerâmica, a oferta de serviços, a projetos de desenvolvimento e

auxílios governamentais. Uma tal perspectiva permite também capturar as formas

de organização social e política tais quais são pensadas e ensaidas pelos moradores

de Boa Vista do rio Cobra.

Ao longo da história, verificamos que existe uma continuidade social e

cultural na presença de um conjunto de unidades familiares afro-descendentes que,

hoje, se reconhecem como quilombola: a tradição oral, a longa memória

genealógica, as relações de parentesco se inscrevem num território próprio, a Boa

Vista dos Negros e se atualizam nos corpos, seja na encenação de uma dança

guerreira reservada aos homens, a dança do Espontão, ou nas diversas

reelaborações da herança africana que podemos observar hoje.

Page 24: Relatorio Boa VistacomAnexos

24

DADOS GERAIS

Page 25: Relatorio Boa VistacomAnexos

25

1.1. Contexto regional12

O município de Parelhas, localizado na micro-região homogênea

Seridó Oriental, tem uma área absoluta de 525,07 km², equivalente a 0,97% da

superfície estadual, com uma altitude média de 266 metros acima do nível do

mar.13 Limita-se ao norte com os municípios de Carnaúba dos Dantas e Jardim do

Seridó (RN); ao sul com Equador; a oeste com Jardim do Seridó e Santana do

Seridó (RN) e a leste com Picuí, Frei Martinho e Nova Palmeira (PB). As principais

vias de acesso a Parelhas são a BR-226 (Natal/Currais Novos) e a BR-427 (Currais

Novos/Carnaúba dos Dantas); RN-288 (Jardim do Seridó/Carnaúba dos Dantas).

Mapa 1: Localização de Parelhas

O município de Parelhas foi criado em 26 de novembro de 1920, pela

Lei n° 478, o povoado de Parelhas foi elevado à categoria de vila tendo sua

12 Os dados aqui disponibilizados foram retirados do documento “perfil do município de Parelhas” elaborado pelo Idema: http://www.rn.gov.br/secretarias/idema/perfil (acessado em 23/03/2007) e de Governo do Estado et alli. 2000, IBGE 2000, Melo 2005, Pan Brasil 2004, Silva 1989. 13 Coordenadas geográficas: latitude: 6º 41’ 16” sul; longitude: 36º 39’ 27” oeste .

Page 26: Relatorio Boa VistacomAnexos

26

freguesia criada no dia 8 de novembro, de 1926, data em que o município de

Parelhas foi desmembrado de Jardim do Seridó pela lei de Criação n° 630.

No Seridó, como em todas as áreas semi-áridas, não há um crescimento

populacional significativo e, em particular, verificamos um rápido decréscimo da

população rural a partir da segunda metade do século XX, devido à instabilidade da

economia agrícola, às secas periódicas e ao processo de desertificação (Melo 2005:

64; PAN Brasil 2004: 17). Porém, Parelhas parece destacar-se dos demais

municípios do Seridó, conseguindo manter sua população urbana. Se observarmos

as taxas anuais de crescimento, o município de Parelhas se destaca, tendo um

crescimento populacional elevado em relação à média do Seridó, sobretudo em

relação à sua população urbana:

Tabela 1: Taxa de crescimento populacional (1970-1996).14

POPULAÇÃO TOTAL

POPULAÇÃO URBANA

POPULAÇÃO RURAL

1970-96 1970-96 1970-96 Estado 1,95 3,59 - 0,49

Região do Seridó 0,86 2,99 - 1,59 Parelhas 1,46 3,22 - 2,04

A população total do município em 1985 era de 15.546 habitantes, dos

quais 10.521 moravam na zona urbana; em 1996 contava-se 18.187 habitantes,

sendo 3.533 habitantes na zona rural e 14.654 na zona urbana (Governo do estado

do Rio Grande do Norte et alli. 2000: 187; IBGE 2000; Silva 1989: 8). No censo

populacional realizado em 2000 (IBGE), o município tinha uma população de

19.319 pessoas, sendo 9.515 homens (49,25%) e 9.803 mulheres (50,75%), com

uma taxa de crescimento anual de 1,52% e uma densidade demográfica de 36,7

hab/km². A zona rural conheceu um amplo decréscimo ao longo das três últimas

14 Governo do estado do Rio Grande do Norte et alli. 2000: 189.

Page 27: Relatorio Boa VistacomAnexos

27

décadas. Acompanhando os dados mais recentes, essa tendência se acentuou

nesses últimos anos15:

Tabela 2 - População do município de Parelhas (2000).

POPULAÇÃO TOTAL

POPULAÇÃO URBANA

POPULAÇÃO RURAL

19.319

15.606 (80,78%)

3.712 (19,22%)

Fonte: IBGE – 2000.

Constatamos que atualmente a população do Seridó é essencialmente

urbana; a cidade de Parelhas, conhecida por sua fabricação de telhas, oferece

possibilidades de empregos nas cerâmicas e na indústria de mineração: em 2005,

das 150 cerâmicas existentes no estado do RN, 22 estavam situadas no município

de Parelhas, contando com aproximadamente 500 trabalhadores (63,19 % dos

empregos); também havia oito indústrias de extração mineral e sete pedreiras

(32,35 % dos empregos). A indústria cerâmica conheceu uma explosão no final do

século XX, pois em 1980 havia oito cerâmicas instaladas na região e, em 2001, 71

(CTmineral 2002; Melo 2005: 58, 78). Porém, a curto prazo, a concentração das

atividades em torno das cerâmicas se tornará insustentável e a mão de obra

empregada nesse setor, composta em parte de quilombola, terá que mudar de setor

de atividade.

Assim, a mudança drástica na economia local reflete-se na composição

demográfica do município: verificamos que a população, tradicionalmente rural,

concentra-se, a partir da segunda metade do século XX, na zona urbana (Melo

2005: 64).

1.1.1. Atividades econômicas

A economia regional, tradicionalmente ligada à agricultura e à pecuária,

conheceu, nas últimas décadas do século XX, uma profunda reconfiguração.

Enquanto a vocação pecuarista do município se mantém, a produção agrícola é

15 Em 2006, estima-se a população residente de 20.608 habitantes. Os dados apresentados aqui foram extraídos do site da Confederação dos municípios < http://www.cnm.org.br/> (capturado em 02/04/07).

Page 28: Relatorio Boa VistacomAnexos

28

praticamente nula e a produção extrativa encontra-se em franco declínio. Se, em

1942, 13 das 168 usinas de beneficiamento de algodão e de fabricação de óleo eram

situadas em Parelhas, hoje não encontramos nenhuma (Melo 2005: 72-73). Em

1990, havia 4.400 ha. de lavouras permanentes plantadas e, em 2000, há somente

29ha. No mesmo período, para lavouras temporárias, o número que era de 2.315ha

passa para 556ha.

Tabela 3 - Dados econômicos lavouras temporárias e permanentes - quantidade produzida.

1973 1981 1990 2002

Lavouras temporárias (t)

Algodão Arboreo - - - 7

Batata doce

920

360

180

0

Feijão

728

82

45

152

Milho em grão

490

10

67

175

Lavouras permanentes (t)

Algodão Arboreo

1.328

500

211

3

Fonte: IBGE - Produção Agrícola Municipal (2000)

Tabela 4 - Dados econômicos - extração vegetal - quantidade produzida.

1991 2000 2001 2002

Carvão vegetal (t) 40 21 22

23

Lenha (t) 190.600 25.931 26.190

24.891

Fonte: IBGE - Produção Pecuária Municipal (2000)

Apesar da tendência ao desaparecimento das atividades agrícolas, a criação

de animais se mantém, sobretudo em relação ao rebanho bovino e ovino. Para o

território a ser pleiteado, é uma das principais indicações de atividades a serem

implantadas para um desenvolvimento sustentável das unidades domésticas locais.

Page 29: Relatorio Boa VistacomAnexos

29

Tabela 5 - Dados econômicos - pecuária - efetivo de rebanhos (cabeças). Bovino 6.099 6.710 5.812 5.246 4.984 5.233 6.227

Equino - - 480 116 112 114 116

Galinha - - 1.340 6.195 5.886 5.591 5.840

Ovino 622 1.382 1.640 2.572 2.418 2.442 2.466

Fonte: IBGE - Pesquisa Pecuária Municipal (2000)

Mesmo se a região conhece problemas estruturais em relação a seu

desenvolvimento econômico, Parelhas destaca-se das outras cidades vizinhas pelo

seu dinamismo econômico ligado à presença de cerâmicas, a exploração de

minerais e a um comércio importante.16 Em 2002, foram recenseados 28

“estabelecimentos” que se dedicam a cerâmicas e ao garimpo de pedras, sobretudo

a turmalina. O número de empregos no setor cresce rapidamente: 635 pessoas em

1996, 1.006 em 1999 e 1.777 em 2002 (Melo 2005: 61; 80).

No município de Parelhas, mais de um terço da população recebe de 1 a 3

salários mínimos, com uma renda per capita de R$ 122,97 (IBGE 2000). A

expectativa de vida ao nascer é de 70,253 anos e a taxa de alfabetização de adultos é

de 77,15%. O índice de desenvolvimento humano municipal (IDH-M), em 2000,

era de 0,704, o que coloca o município na 14ª posição no ranking do estado do Rio

Grande do Norte, na 67ª posição no ranking da região Nordeste e na 2.912ª posição

do ranking nacional.17

Tabela 6 - IDH - Índice de Desenvolvimento Humano.

1991 2000

IDH - Educação 0,684 0,781

IDH - Longevidade 0,658 0,754

IDH – Renda 0,509 0,576

IDH - Municipal 0,617 0,704

Fonte: Atlas de Desenvolvimento Humano/PNUD

16 Há duas feiras semanais em Parelhas: uma é realizada da segunda-feira e, a outra, no sábado. 17 Dados do censo do IBGE (2000) disponibilizados no site da VIOLES/SER/UnB: <www.caminhos.ufms.br>, capturados em 02/03/07.

Page 30: Relatorio Boa VistacomAnexos

30

Apesar da melhoria geral dos índices (IDH), o município ainda encontra-se

numa situação delicada, contando uma porcentagem elevada de população vivendo

em condições sócio-econômicas precárias:

Tabela 7 - Dados econômicos – indicadores de pobreza.

1991

2000

% de indigentes 41,04% 23,00%

% de crianças indigentes 50,84% 36,08% Intensidade da indigência 39,39% 44,85%

% de pobres 66,61% 51,98% % de crianças pobres 73,59% 65,90%

Intensidade da pobreza 53,79% 44,40% Fonte: Atlas de Desenvolvimento Humano/PNUD

Na sede do município, encontram-se uma grande quantidade de serviços: o

cartório, o fórum judicial, os transportes, uma agência do Banco do Brasil, vários

comércios, a igreja católica principal, etc. A municipalidade de Parelhas possui dois

hospitais, uma unidade mista de atendimento, uma maternidade, sete postos de

saúde e 36 estabelecimentos de ensino fundamental e médio. Há uma delegacia de

polícia com sete policiais civis e cinco militares (Melo 2005:66).

1.1.2. Transformações da paisagem natural: ação antrópica e desertificação

A situação ecológica da região tem uma incidência direta nas mudanças

ocorridas nas áreas rurais e em particular na comunidade quilombola de Boa Vista

que é situada numa das áreas do semi-árido rigoroso, no “Polígono das secas”.

Como espaço natural, o Seridó constitui uma importante região natural do semi-

árido nordestino, sendo afetado por secas cíclicas e conhece, cada vez mais, um

processo acelerado de desertificação. Segundo o Plano Nacional de Combate a

Desertificação – PNCD, que define desertificação como a degradação da terra nas

zonas áridas, semi-áridas e sub-úmidas secas, resultantes de fatores diversos tais

como as variações climáticas e as atividades humanas, o município de Parelhas

Page 31: Relatorio Boa VistacomAnexos

31

está inserido em área susceptível à desertificação em categoria muito grave (Sousa

et alli. 2004).18 O clima tropical da região do semi-árido é quente e seco e

caracterizado por uma estação chuvosa irregular que dura num período

aproximado de dois a quatro meses, de janeiro a abril, correspondendo a 65% da

pluviosidade anual e pode se estender até julho (“o inverno”); a estação seca pode

atingir 11 meses e as precipitações médias anuais variam entre 400 e 600 mm. A

temperatura média é de 28,0°C - a temperatura mínima sendo de 18,0°C e a

máxima de 33,0°C. A umidade relativa tem como média anual 64% e contam-se

2.400 horas de insolação.

É igualmente importante destacar os aspectos geológicos e geomorfológicos

do município que são característicos do grupo Seridó. O relevo é de 200 a 400

metros de altitude, compreendendo algumas serras e serrotes. O município de

Parelhas encontra-se inserido, geologicamente, na Província Borborema e no que

diz respeito à bacia hidrográfica, à bacia do Piranhas-Açu. A riqueza mineral no

município possibilitou o desenvolvimento de atividades de mineração já na

Segunda guerra mundial: encontra-se com abundância, quartzos, pegmatitos

mineralizados, micaxistos, mármores, cálciossilicáticas, quartizitos,

metaconglomerados polimictos e ortoanfibólicos, turmalina.19 Há jazidas de gemas

(água marinha, turmalina, laluzita, cordierita, quartzo róseo) e outros minerais

com importância econômica, pelo seu uso industrial: barita, berílio, caulim, nióbio,

tântalo, tungstênio (sheelita), espodumênio, ambligonita, feldspato, coridon.

Também há uma ocorrência da argila para cerâmica vermelha utilizada, em sua

maioria, na construção civil, como tijolos, telhas, blocos, lajes, lajotas e outros

artefatos (Silva 1989: 11-12).

18 Na verdade é o estado como um todo que está suscetível à desertificação: são 48 mil e 706 km2, o que representa 92,3% da área do RN, compreendendo 143 municípios e uma população de 1 milhão e 563 mil e 478 habitantes. Existem áreas de conservação nos projetos de assentamento, em Almas, tem uma área de 250 ha com reserva legal de 50,3 ha., e em Sussuarana, uma área 165 ha com reserva legal de 33 ha. Também há o parque estadual Florêncio Luciano que foi criado pelo decreto estadual no 10.120 em 10.08.88, que encontra-se sob responsabilidade do IDEMA - RN. 19 Em Boa Vista, há uma pedreira cuja atividade cessou há quatro anos.

Page 32: Relatorio Boa VistacomAnexos

32

Figura - 1: Minerais radioativos e secundários na região de Parelhas20

A região natural do Seridó tem áreas de relativa fertilidade, porém erodidos

com o uso intenso dos solos, é parte dos ecossistemas da região das caatingas e

florestas deciduais do Nordeste que se caracteriza pela vegetação baixa, seca, com

cactos e arbustos espaçados, árvores espinhosas, formações arbusivas e plantas de

pequeno porte e espalhadas, arbustos e árvores baixas, ralas e de xerofitismo mais

acentuado e capim rasteiro. As espécies mais encontradas são o pereiro, o faveleiro,

o facheiro, o mandacaru, a macambira, o xique-xique e a jurema-preta (Governo do

estado do Rio Grande do Norte et alli. 2000: 46). No Seridó, dos 670 hectares de

cobertura florestal, apenas 150 estão em áreas de preservação permanente e

legalmente não podem ser explorados. Os sinais mais intensos da degradação estão

nos municípios de Parelhas, Cruzeta, Equador, Carnaúba dos Dantas, Currais

20 Figura extraída do pôster: “A radioatividade dos pegmatitos do Serió e seu gerenciamento através de um sistema de informações georeferenciadas” de Reinaldo A Petta, Thomas F. C. Campos e Michael Meyer, UFRN, 2006. Disponível em <http://www.cprm.gov.br/publique/media/Painel41.pdf> (capturado em 03/04/07).

Page 33: Relatorio Boa VistacomAnexos

33

Novos, Caicó, São José do Seridó e Acari, cidades afetadas diretamente pela

mineração e cerâmicas, atingindo, em 2001, uma população de 91 mil e 673

habitantes. 21

Um dos efeitos ambientais do uso intensivo do solo e do desmatamento para

uso doméstico e industrial foi o desaparecimento da vegetação nativa nas terras

próximas dos rios e o surgimento de terras estéréis nas antigas áreas de cultivo.

Assim, as formas de desenvolvimento econômico da região e as condições

ecológicas particulares do espaço em que vivem os quilombolas de Boa Vista devem

ser levados em conta no estudo das modificações do território ancestralmente

ocupado pelos remanescentes de quilombo.

21 Em 2001, o Rio Grande do Norte contava com uma população total de 2.849.711 habitantes. Fonte: Seridó: sobram projetos e falta solução, Tribuna do Norte(RN), 18/01/2004, disponível em < www.semarh.rn.gov.br/detalhe.asp?IdPublicacao=1815>, capturado em 19/02/2007.

Page 34: Relatorio Boa VistacomAnexos

34

1.2. A comunidade quilombola de Boa Vista

Caracterização – Comunidade quilombola Boa Vista dos Negros

Município: Parelhas

Estado: Rio Grande do Norte

Entidade representativa: Associação de desenvolvimento da comunidade

negra de Boa Vista - ADECONB, criada em 2002

População: 124 pessoas; 76 homens e 48 mulheres

9 crianças de 0 a 5 anos

24 crianças de 06 a 14 anos

13 jovens entre 14 e 20 anos

78 adultos (64 adultos entre 21 e 60 anos e 24 com mais de 60 anos)

Idade média: 56,4 anos

Unidades familiares: 42; unidades domésticas: 30

Média populacional por residência: 4 pessoas

Principais atividades econômicas: serviços (cerâmica), agricultura de

subsistência (lavouras temporárias) e criação de animais (20 cabeças de gado, 10

bodes, 150 galinhas)

Renda média por unidade familiar: 397,26R$ (renda per capita: 99,25 R$)

Page 35: Relatorio Boa VistacomAnexos

35

Mapa 2 - Localização de Boa Vista (Parelhas - RN).22

22 Mapa elaborado a partir do mapa da Sudene, disponibilizado pelo Ministério das minas e energia, 2005, no site: http://www.cprm.gov.br/rehi/atlas/rgnorte/mapas/PARE179.pdf (caputado em 03/04/2006).

Page 36: Relatorio Boa VistacomAnexos

36

SER ESCRAVO NO SERTÃO

A escravidão não deixou traços no Rio Grande do Norte. O tráfico de carne humana, que, infelizmente, também existiu ali, não teve, para honra dos sentimentos humanitários do nosso povo, esse cortejo de atrocidades selvagens praticadas contra uma raça à qual nós brasileiros muito devemos pelo contingente poderoso que ela trouxe à formação do nosso tipo e à constituição do nosso caráter.

Alguns senhores, que se tornaram cruéis no tratamento dos seus escravizados, foram simples exceções da regra.

É que o negro foi quase sempre considerado entre nós uma pessoa da família, sobretudo na zona sertaneja e alguns houve que chegaram a alta posição social (Dantas 1941: 25-26).

Page 37: Relatorio Boa VistacomAnexos

37

É preciso esboçar um perfil da colonização do Seridó e entender qual era o

lugar dos escravos numa sociedade organizada em torno das fazendas de criar para

podermos reconstituir a história e o presente da comunidade quilombola de Boa

Vista. As fontes historiográficas consultadas, a documentação escrita e a memória

genealógica apontam para a presença dos primeiros moradores na Boa Vista já

entre o final do século XVIII e o início do século XIX. Também, os documentos e os

relatos orais atestam a existência de um grupo estável, organizado, gozando de uma

certa autonomia e de um patrimônio no decorrer do século XIX. Como veremos a

seguir, a tradição oral e registros cartoriais atestam que “os negros da Boa Vista”

estavam presentes no local um século antes da compra de uma terra no sítio Boa

Vista do Monte do rio Cobra, documento assinado em 09 de abril de 1889, que os

herdeiros de Theodôzio Fernandes da Cruz conservaram até hoje. Finalmente, a

participação do grupo à festa do Rosário em Jardim do Seridó e à uma irmandade

reservada aos homens pretos desde a época da Colônia são outros índices da

ancestralidade do grupo que remetem diretamente à escravidão. No entanto, e

apesar da presença de escravos nas fazendas da região ao longo dos séculos,

encontramos apenas o registro de um escravo que morre na “fazenda Boa Vista”,

em 1877.

Se a versão oral da história de Boa Vista insiste sobre a doação inicial da

terra aos primeiros povoadores, o relato traz também para o presente a questão da

escravidão, assunto pouco abordado por nossos interlocutores. Herança dos

antepassados que tentaram apagar o estigma, reflexo de uma ideologia dominante

ainda em ação hoje. Assim, o silenciamento de um estatuto infame - do qual os

ancestrais se libertaram - é a maior prova da existência de um passado sofrido

durante o qual “quilombo” era sinônimo de fuga e esconderijo. A ausência de

referência ao passado escravo se explica ainda pela antiguidade da presença do

grupo no local: é normal que hajam poucas lembranças relativas à época anterior a

Abolição, pois os mais antigos sabem que há pelo menos quatro gerações de

quilombolas que nasceram em Boa Vista e que não eram escravos. A memória

genealógica do grupo não consegue ir além do final do século XVIII, início do

século XIX.

Page 38: Relatorio Boa VistacomAnexos

38

Sem pretender à exaustividade, iremos mostrar que, ao longo da história do

Seridó, encontramos uma população negra escrava e liberta que está

sistematicamente inserida na economia local, sobretudo a partir do século XIX

(Mattos 1985). A conquista do território e sua ocupação efetiva foram os principais

objetivos dos primeiros portugueses que povoaram o sertão para iniciar a criação

do gado, pilar da economia colonial. O espaço, inicialmente povoado por índios que

resistiram à invasão portuguesa, foi ocupado mais tardiamente pelos colonos e seus

escravos do que no litoral ou outras regiões do Nordeste onde havia um interesse

econômico maior da Coroa portuguesa (Dantas 1941: 40; Lopes 2005; Macêdo

2005). O sertão, inicialmente colonizado por aventureiros requerendo imensidões

de terras, foi também um espaço procurado por populações fugindo da dominação

colonial que encontravam lá um refúgio: os índios e os escravos conhecerem um

destino semelhante, dividiram terras inférteis e foram confundidos numa

alteridade genérica.

2.1. Ocupação colonial: índios, negros e ‘marinheiros’

Depuis longtemps, la population indienne de ces parages a disparu, et il est probable qu'elle n'a jamais été bien considérable; la sécheresse désolante du sol et la rareté du gibier ont dû en éloigner de bonne heure les tribus de Cahétès, de Pitigoaras, et de Carirys qui auraient pu les parcourir. On a remarqué, de bonne heure aussi, que les noirs étaient en général trop insouciants pour faire de bons pasteurs; en sorte que les vastes troupeaux du sertão sont confiés ou à des blancs qui se sont acclimatés depuis longtemps dans ces climats, et qui peuvent en supporter les fatigues, ou à des hommes de sang mêlé qui descendent plutôt de l'alliance des Européens avec les indigènes que du produit des hommes blancs avec leurs esclaves noires. Les mamalucos sont essentiellement propres à la vie aventureuse du sertão et à ses fatigues. 23

23 Denis, Ferdinand, Jean. 1839. Histoire et description du Brésil. Colombie et Guyanes, Paris, F. Didot frères [www.gallica.bnf.fr, capturado em 10/05/2006].

Page 39: Relatorio Boa VistacomAnexos

39

Na versão tradicional da história do Seridó é destacada a influência

portuguesa, deixando de lado os outros atores do processo colonial. Assim,

sabemos que as primeiras áreas a serem povoadas no Seridó correspondem hoje às

cidades de Caicó e de Acari e que os colonos trouxeram com eles seus escravos: em

1735, o sargente-mór português Manoel Fernandes Jorge funda a povoação do

Caicó e, Manoel Estevão de Andrade constrói a primeira igreja de Acari em 1737

(Dantas 1961: 13; 161-165; Macêdo 2005: 75).24

2.1.1. “Plantadores de currais” As sesmarias de ontem foram, em nossos sertões, requeridas para ‘povoar com seus gados’ e os criadores tinham, naquele tempo, como única obrigação, o pagamento do dízimo à Igreja. O gado se multiplicava, limitado quando muito pela periódica hostilidade da caatinga, por ser caça mais graúda do gentio ou maior fartura de carne para as onças (Lamartine 1965: 97).

Apesar das primeiras terras terem sido doadas em 1613, no Riacho de

Carnaúbas, é somente a partir da segunda metade do século XVII, após a

dominação holandesa (1633-1654), que é iniciado o povoamento efetivo do sertão e

que os colonos podem criar gado sem temer ataques: as primeiras datas de

sesmarias são as do Acauã (1676, 1679, 1680, 1684), região onde estão situadas

hoje as cidades de Acari, Carnaúba dos Dantas e Parelhas, município onde é

localizada a Boa Vista dos Negros (Dantas 1961: 24; Macedo 2000: 20; Macêdo

2005: 1-5, 35; Macêdo 2007: 37-43; Mattos 1985: 83-88; Medeiros 2004: 8-15).25 A

antiga comarca de Acari que hoje abrange três municípios (Acari, Carnaúba dos

24 No início do século XVIII, foram construídas as três primeiras capelas do Seridó: “uma no Arraial do Queiquó (Caicó) em 1700, outra na Fazenda Serra Negra, em 1735, e a terceira no Acauã (Acari), em 1735”. A freguesia “da Gloriosa Senhora Santa Ana do Seridó” foi fundada em 1748 (Macêdo 2005: 66).

25 Em Caicó, encontram-se as ruínas da casa forte do Cuó, já construída em 1683, sendo umas das primeiras construções coloniais erguida no sertão para combater os índios (Macêdo 2005: 5). Antes, em 1670, o Capitão Francisco de Abreu de Lima, conseguiu obter uma sesmaria na ribeira do Espinharas mas não conseguiu demarcá-la (Medeiros Filho 1981:3).

Page 40: Relatorio Boa VistacomAnexos

40

Dantas e Parelhas), recebeu os primeiros colonos portugueses vindos de regiões

vizinhas, sobretudo do brejo da Paraíba. Porém, em relação a outras regiões do

Nordeste brasileiro, o interior do Rio Grande do Norte será efetivamente ocupado

no século XVIII, com o fim da guerra dos Bárbaros (Macêdo 2005: 35; Mattos

1985; Puntoni 2002). As fazendas de criar puderam ser instaladas e, mais tarde,

deram origem às primeiras vilas. Assim, Luis da Câmara Cascudo afirma que “no

Rio Grande do Norte a pecuária é a própria história econômica até os primeiros

anos do século XX” (1956: 5).

Antes da instalação das fazendas, encontramos índios ocupando as terras e

barganhando-as com os portugueses: em 1545 e mais tarde, em 1613, na ocasião da

demarcação da sesmaria do Riacho de Carnaúbas, registra-se a intervenção do rei

Canindé, filho do rei Janduí “senhor de gado e de lavoura rasteira”, reivindicando a

propriedade das terras, num espaço delimitado entre a Serra do Piauí e o

Marimbondo, justamente no limite com as terras de Boa Vista dos Negros

(Medeiros Filho 2002: 6; Macedo 2004a; Macêdo 2007: 38-43). Também, nessa

mesma ocasião, aparece a referência a “negros timbus”, quatro escravos do capitão

de ordenanças Antônio de Mello Castro Ribeiro, reclamando o direito de explorar

uma légua de terras por meia de largo na serra do Piauí, “em exponsa à atos

criminaes comettidos contra elles”; direito que lhes foi concedido (Macêdo 2007:

39; Medeiros Filho 2002: 5).26 Nessa mesma data, Cosme Francisco de Bourbon

pede 3X7 léguas “pegando no marco do rei janduí [Maribondo] fazd° peão no logar

Rajada”, o que compreenderia o atual território dos quilombolas de Boa Vista, mas

se sabe ainda que o espaço era também ocupado por índios Pega e Janduí que já

criavam gado (Macêdo 2007: 39). Sem poder encontrar as provas de uma

continuidade histórica entre os atores dessa história e os atuais moradores da Boa

Vista dos Negros, apontamos para um destino comum entre os índios e os negros

26 A terra dos "nêgos" ("Firmino Anto. Roberto Jerella") estende-se até "Caiissara de pedra", lugar próximo a “covas de negros”; interessante notar que há várias referências a sepulturas de negros em Carnaúba dos Dantas e que alguns moradores da cidade mantêm uma memória sobre a escravidão.

Page 41: Relatorio Boa VistacomAnexos

41

que habitaram as serras do “Riacho d’Carnhaubbas”.27 Assim, o documento informa

que, no início do século XVII, uma grande parte das terras que hoje correspondem

aos municípios de Carnaúba dos Dantas e de Parelhas estava sob controle dos

índios Pega e "Canindês junduins". Na região, encontramos registros de uma

resistência indígena até, pelo menos, o início do século XVIII, o que atrasou a

ocupação efetiva do espaço: 1717 parece ser a data em que os "tapuias do rei

Janduí" foram expulsos, de forma definitiva das suas terras pelos representantes da

Coroa portuguesa, já que nesse ano constam requerimentos de concessão de

sesmaria e ocupação com criação de gado na região, inclusive por escravos (Macedo

2004a; Macêdo 2007: 39).28

As doações de terras no Seridó só começam a ser efetivadas depois de 1670

(Cascudo 1955: 257-258; Lima 1988: 17; Macedo 2002: 71; Medeiros Filho 1981:

262-263, 1984: 108-109). Encontramos, na obra de Dom José Adelino Dantas

(1961: 26), referências interessantes sobre os primeiros sesmeiros da região que

eram padres: Padre Manoel Timóteo da Cunha, vindo da Paraíba, funda o sítio

Catuturé num local vizinho à atual cidade de Jardim do Seridó. Assim, se a data do

Acauã foi emitida em 1676, é também a primeira sesmaria do Seridó a ser efetivada

(Macêdo 2005: 35; Medeiros filho 1981:3). Ainda no início do século XVIII, havia

áreas não povoadas, pois, em 1706, o Padre Manoel de Jesus Borges elabora um

relatório sobre o povoamento do Seridó, a instalação dos primeiros poços e a

chegada do gado (Faria 1980: 25). Apoiando-se nas cartas de sesmarias e na

27 Há registros de índios “administrados” nos inventários e índios “moradores” e “assistentes” no livro de óbito n.1 de Caicó (1789-1811) que indicam laços de dependência com os proprietários fundiários; estatuto semelhante a dos escravos negros. No testamento de Oliveira Ledo, datado de 1719, há um registro de um “índio mameluco” escravo (Guedes 2006: 111). Também notamos a relativa freqüência de casamentos interétnicos na freguesia de Sant’Ana do Seridó até o início do século XIX (Macedo 2004a; Macêdo 2007: 201-202). 28 O documento foi transcrito por Olavo de Medeiros Filho (1981: 138-139). Graças à consulta de documentos e estudos históricos, sabemos que, até as primeiras décadas do século XVIII, a resistência indígena foi importante em todo Seridó, sobretudo na região onde hoje estão situados os municípios de Carnaúba dos Dantas, Parelhas, Acari, Currais Novos e Cuité, na Paraíba (Macedo 2004a; Medeiros filho 2001: 127-132; Puntoni 2002; Joffily 1977: 118; Lima 1990: 25). A topografia conservou fielmente a lembrança de um passado carregado de massacres, espólios e tentativas de resistência à ocupação colonial (Cavignac 1994).

Page 42: Relatorio Boa VistacomAnexos

42

memória oral dos descendentes dos primeiros povoadores, Manoel Dantas (1941:

79), Luis da Câmara Cascudo (1955: 52, 520) e Olavo de Medeiros Filho (2002: 3)

indicam que o povoamento do Seridó foi realizado por colonos portugueses já

instalados no Pernambuco ou na Paraíba vizinha que vieram com seus escravos a

partir da segunda década do século XVIII. Assim, em 1723, na data de sesmaria n.

194, os irmãos Francisco Fernandes de Souza e João Batista recebem seis léguas de

terras no espaço onde hoje são situados os municípios de Parelhas e de Sant’Ana do

Seridó (Medeiros Filho 2002: 29). O Tenente Francisco Fernandes de Souza,

“morador no sertão entre o Cariry e Piranhas” que descobriu “um sítio de terras

entre a serra da Borborema e o Rio do Seridó e Coaty” assim é considerado o mais

antigo entre os pioneiros moradores do território. Apesar da presença dos “tapuias

bárbaros”, o tenente ocupa as terras solicitadas durante mais de vinte anos antes de

mandar, em 1723, uma carta solicitando uma sesmaria de três léguas quadradas,

incluindo a localidade denominada Boqueirão29, “correndo para o sul até os

tanques de Felipe Dias, pegando do lugar donde melhor lhe parecer no riacho dos

Preaes, começando no boqueirão da serrota; sendo demarcadas salteadas, ficando

de fora o que não for capaz” (Guedes 2006: 115-116; Macedo 1942: 6).

Quando o português Tomaz de Araújo Pereira (?-1781 ou 1799) estabelecido

em Acari, na fazenda de Picos, no início do século XVIII, requer uma área próxima

à atual comunidade de Boa Vista, as terras não tinham sido efetivamente ocupadas

por colonos (Medeiros filho 1981: 112)30:

Tomaz de Araújo Pereira, não tendo commodo para crear seus gados, descobrio à custa de seu trabalho um riacho chamado Juazeiro que nasce

29 É o nome atual do açude de Parelhas. 30 Sesmaria, 25 de maio de 1734. Em 25/05/1734, Tomás de Araújo Pereira obtém do governador da Paraíba, Francisco Pedro de Mendonça Gurjão, a data de sesmaria n. 238 com 3x1 léguas no riacho Juazeiro, que nasce ao poente da serra da Rajada e que deságua no Acauã. Em 06/11/1735, o Cel. Lourenço de Góis e Vasconcelos, da Paraíba, obtém a data de sesmaria n. 274 (3x1 léguas) no riacho da Cobra, hoje nos municípios de Parelhas e Jardim do Seridó (Medeiros Filho 2002: 33-34). Entre 1769 e 1777, já havia moradores no ‘Boqueirão’, na fazenda ‘Tanques’, que fica próximo a Boa Vista, no município de Parelhas, na fazenda ‘Angicos’, em Jardim do Seridó, e no ‘Quixeré’, próximo a Carnaúba dos Dantas (Dantas 1961: 37, 42, 98). José Adelino Dantas (1962: 82) achou a escritura de compra da fazenda São Pedro dos Picos de Baixo datada de 1747, em nome de Thomaz de Araújo.

Page 43: Relatorio Boa VistacomAnexos

43

por detraz da serra da Rajada, que desagôa para o rio da Cahã e faz barra na ponta da várzea no Pico, e cujo riacho e suas bandas tem terras devolutas e nunca cultivadas; terrenos em que pede três legoas de comprimento e uma de largura, pegando das testadas do sargente-mór Simão de Góes pelo rio acima, ficando o dito rio em meio da dita largura. [grifo nosso]

Assim, graças a Olavo de Medeiros Filho, conhecemos a descendência de

Tomaz de Araújo Pereira que instalou a fazenda de São Pedro, na ribeira do Seridó

e deu origem às famílias Araújo Pereira, Soares Pereira, Dantas Corrêa, Hipólito do

Sacramento, Gomes da Silva, Pais de Bulhões, Barros Gorgônio.31

Porém, a colonização efetiva do espaço aconteceu somente no decorrer do

século XVIII: entre o final do século XVIII e o início do século XIX, a sociedade

seridoense está estruturada em torno da criação do gado (Macêdo 2007: 78).

Ainda, nessa época, o interior do Rio Grande do Norte continuava despovoado, o

que colocava os colonos em perigo (Andrade 1990: 20; Lopes 1999: 102-105);

situação também relatada por Henry Koster quando atravessou a região do Açu em

1810 (Koster 1978: 96-126). Por exemplo, em 1824, Frei Caneca descansa com suas

tropas na Povoação da Conceição do Azevedo, onde, apesar da “quase inexistência

do comércio”, encontra “farinha, milho, e aguardente, queijos, etc.” e há “uma

igreja nova ainda por acabar” (Dantas 1961: 139). É nesse período que se realiza o

desmembramento das datas de sesmarias em pequenas fazendas – em todo o

Seridó, a herança é o meio mais comum para tornar-se proprietário de terras

(Dantas 2004: 17-20; Mattos 1985).32 Tradicionalmente, os estudos apontam a

31 Tomás de Araújo Pereira (1809-1893), neto do fundador de Acari, grande proprietário de terras e de escravos em Acari e em Extremoz, assumiu a Presidência da Província entre 1824 e 1825, num clima político conturbado; este exemplo mostra claramente a continuidade das elites econômicas e políticas seridoenses (Dantas 1941:36-69; Lamartine 1965: 48-49; Macêdo 2005: 49-51; Monteiro 2002: 147). Também podemos citar Manoel Dantas (1941) filho do Coronel Dantas Correia. 32 Por exemplo, temos uma datação exata para uma área próxima da Boa Vista: a fazenda Carnaúba foi criada por Caetano Dantas Correia filho (1758-1830) entre os anos 1777 e 1778. Podemos pensar que as primeiras fazendas em Parelhas foram instaladas também nessa época. Interessante anotar a presença de padres que recebem terras em herança – terras que não administraram: assim, o Padre Manoel Texeira da Fonseca de Lima (1773-1864), cujo pai era português, nasceu e morreu na fazenda Angicos, no atual município de Jardim do Seridó, recebeu em 1795 do seu tio e padrinho o sítio Malhada da Areia e o sítio São João, na confluência do Acauã e do Seridó – na época estudava em Recife. Voltou ao Seridó, onde atuou como padre, sobretudo em Acari, Conceição (Jardim),

Page 44: Relatorio Boa VistacomAnexos

44

fazenda Boqueirão pertencendo a Félix Gomes Pereira nos meados do século XIX,

como sendo o lugar onde nasceu a cidade: era a passagem obrigatória entre a

Paraíba e o Rio Grande do Norte e servia de ponto de encontro para as manadas de

gado com destino à Paraíba e os cavaleiros que iam regularmente para a feira de

Conceição do Azevedo, hoje Jardim do Seridó (Melo 2005: 53-54). Assim, entre o

fim do século XVIII e o século XIX, o espaço encontra-se ocupado com as fazendas

de gado que não requeria sempre a presença do dono nem a de uma mão de obra

numerosa; as ‘sementes de gado’ serão determinantes na forma de organização

econômica e social da região do Seridó.

2.1.2. As fazendas de criar e o algodão

Apesar das lacunas existentes na historiografia local, a região próxima à

comunidade quilombola da Boa Vista foi efetivamente ocupada a partir dos meados

do século XVIII por portugueses já instalados na Paraíba que, pelo visto, ao chegar

no Seridó norte-rio-grandense, não tinham uma grande fortuna (Macêdo 2007:

78). Ao requerer terras, o patrimônio fundiário dos pioneiros aumenta, junto com

suas famílias e seus agregados, escravos trazidos do Recife. Se nesse período há

poucas famílias que moram nas propriedades, a partir do final do século XVIII, a

segunda geração de colonos ocupa o espaço ‘limpo’ das populações indígenas.

O exemplo de Caetano Dantas Correia (1710-1797) é paradigmático da

colonização do Seridó. Aquele que se tornará ‘patriarca’, ‘capitão-mor’ e ‘coronel

das ribeiras do Acauã’, funda a fazenda Picos de Cima, em Acari que incluía, pelo

menos, na época, o atual município de Carnaúba dos Dantas. Temos bastante

informações sobre o primeiro sesmeiro da região, pois existem registros

Currais Novos e Caicó. Deixou como testamenteiro, um outro padre, o padre Francisco Justino Pereira de Brito (1819-1871), primeiro vigário de Jardim do Seridó. Este último deixou uma parte do seu patrimônio – o sítio Pau Furado, no rio Seridó a um outro padre, João Maria Cavalcanti de Brito (Dantas 1961: 99-107).

Page 45: Relatorio Boa VistacomAnexos

45

documentais importantes, crônicas fundadas numa memória familiar. Também,

encoontramos estudos históricos recentes que fazem referência a Caetano Dantas:

ele começou a criar gado na segunda metade do século XVIII e residia em Acari.33

Baiano e solteiro, em 1729, decide de deixar Cuité, região serrana paraibana, para

desbravar a região, seguido por sua mãe e por escravos, instalando-se na serra do

Sacco (Lima 1990: 11):

Segundo a tradição oral, ao chegar no Seridó, Caetano, à falta de casa em sua fazenda, ficou morando em uma furna, em companhia de seus vaqueiros, servindo-lhe de cozinheiro um escravo, de nome Gaspar (Medeiros 1981: 120). [grifo nosso]

Com a instalação dos Dantas Correia e da sua famíia – ele teve, ao todo, 19

filhos! -, inicia-se o período do povoamento da região. Aos poucos, o patriarca

constitui um patrimônio fundiário conseqüente, pois, entre 1742 e 1788, requer seis

sesmarias de 3x1 léguas; propriedades situadas entre Acari e Coité onde há terras

devolutas e sobras de terras (Macêdo 2007: 80). Seus filhos irão herdar dos bens

acumulados e irão fundar fazendas nos atuais municípios de Carnaúba dos Dantas

e de Jardim do Seridó (Araújo 2006: 76, 202-204; Medeiros filho 1981: 109-247).34

Entre o fim do séc. XVIII e a primeira metade do século XIX, o interior do estado se

organiza efetivamente, de um ponto de vista administrativo e religioso. O indício da

penetração e da instalação definitiva dos colonos é a nomeação de padres titulares

que acontece a partir de 1748 em Caicó e, para as outras cidades do Seridó, após

1850 (Macêdo 2005: 75; Monteiro 2002: 82-83; Sales 1990: 25-54).35 A partir do

33 A vila Acari foi criada em 1835, desmembrada de Caicó. Passou a estatuo de cidade em 1898 (Macêdo 2005: 75). 34 A filha de Caetano Dantas Correia, Micaela Dantas Pereira (1754-1799), casada com Antônio de Azevedo Maia Júnior (1742-1822), construiu a capela dedicada a N. Sra da Conceição na atual cidade de Jardim do Seridó em 1790 em terras que o casal tinha doado. O patriarca, Antônio de Azevedo Maia (1706-1796) morreu na fazenda Conceição, deixando as terras de herança a seus seis filhos vivos (Dantas 1962: 86; Medeiros 2004: 21) [http://br.geocities.com/tdmedeiros/AntoAzevMaia.html-informação capturada em 19/03/2007]. 35 Antes disso, alguns padres jesuítas circularam no sertão da Capitania do Rio Grande por volta de 1659-61, durante a ‘ocupação’ holandesa, catequizando índios (Puntoni 2002: 76). Manoel Dantas

Page 46: Relatorio Boa VistacomAnexos

46

fim do século XVIII, o Seridó se organiza em torno das fazendas de gado, são

construídas estradas, cidades importantes nascem e alguns municípios se

emancipam: em 1788, é criada a Vila Nova do Príncipe, hoje Caicó. Também, no

decorrer do século XIX, são criadas outras vilas e freguesias: em 1835, a de N. Sra.

da Guia (Acari), em 1855, a antiga povoação da Conceição do Azevedo passa a se

chamar Jardim do Seridó, e em e 1858, é criada a freguesia de N. Sra. da Conceição

(Augusto 1954: 132; Azevedo 1962-63: 32; Dantas 1918; Macêdo 2005: 75;

Medeiros 1985: 25-26).

Ainda no século XIX, com o aumento da densidade demográfica e a chegada

de novos colonos que se instalam na região, nos espaços não explorados, a terra

torna-se o principal objeto de conflito entre os recém-chegados e os antigos

proprietários que vêem seu poder declinar. Os novos posseiros começam a cultivar

a terra sem títulos de propriedade. Além disso, a forte natalidade obriga a retalhar

as grandes propriedades e as famílias poderosas de então lutam para conservar o

poder e ditar sua lei, que fazem aplicar de maneira autoritária (Albuquerque, 1989;

Terra, 1983: 1-20; Queiroz, 1968)36. Assim, muitas relações sociais que podemos

observar hoje encontram sua origem na organização da sociedade em torno das

fazendas de criar. As poderosas famílias, herdeiras dos primeiros povoadores,

formam o núcleo da sociedade sertaneja “tradicional”. Uma multidão de

empregados, de domésticos, de caseiros, jornaleiros e criados moram na fazenda ou

são empregados temporários. Na propriedade – e em seus arredores –, os

membros de uma mesma parentela casam-se entre si e se reconhecem como

pertencendo a uma mesma família. Este mundo é percebido como harmonioso,

pois o empregado torna-se parente ou compadre do grande proprietário, recebendo

favores em contrapartida a obrigações materiais e morais, repousa sobre um

conjunto de laços característicos das sociedades agropastoris, e particularmente a

(1941:30) afirma que no final do século XVIII era difícil encontrar um padre para celebrar uma missa. 36 No sertão, calcula-se em 24 hectares a superfície necessária para uma propriedade ser rentável (Bezerra 1987: 20).

Page 47: Relatorio Boa VistacomAnexos

47

do Nordeste do Brasil. Essa organização social, comum a todo o Nordeste colonial,

caracteriza-se pelo fato de que o destino do trabalhador – livre ou escravo – está

ligado ao do coronel, nome tradicionalmente dado ao fazendeiro, que nomeava um

gerente ou um morador da fazenda para cuidar da propriedade em sua ausência.

Ao lado da mão de obra escrava, surge uma população camponesa livre,

geralmente sem terra, ensaiando vários regimes de trabalho: o parceiro, o

arrendatário, o morador e o volante convivem com o escravo. A principal

conseqüência é a aumentação da agricultura de subsistência na parte da economia

local (Andrade 1980: 51; Araújo 2006: 182-211; Macêdo 2007: 102-104; Mattos

1985; Takeya 1985: 60-68; Terra 1983: 15). Porém, as mudanças econômicas não

alteram fundamentalmente a estrutura da sociedade organizada em torno das

antigas fazendas de criar e comandada pelos ‘coronéis’ que se tornaram também

donos de usinas de algodão, conservando, ao seu redor, uma mão de obra

numerosa e barata com quem mantém relações de clientelismo (Andrade 1980: 21;

Takeya 1985: 27; Monteiro 2002: 131). Assim, a partir de 1865-70, com a

emergência do algodão e a crise no setor açucareiro, a Lei de Terras – que, no

Seridó, só será aplicada a partir de 1896 - e o fim do tráfego negreiro, o sistema

escravista entra em crise, provocando uma reorganização drástica dos espaços

territoriais, afetando, de modo particular, as populações autóctones e os libertos

(Lopes 2005; Mattos 1985: 86; Oliveira 1999: 23). No final do século XIX,

encontramos escravos que aproveitaram da agitação criada pela revolução de

Quebra-quilos para fazer um levante em Campina Grande, em 1874 (Souto-Maior

1978: 201-202). Para o Rio Grande do Norte, encontramos revoltas no final do

século XIX e encontramos referências a fugas de escravos: oriundos do litoral

potiguar e das zonas açucareiras da Paraíba e do Pernambuco, eles empregavam-se

como vaqueiros nas fazendas do interior ou, quando libertos, instalavam-se fora

dos centros urbanos (Andrade 1990: 18; Jofilly 1977: 118, 441; Maestri 1991: 159;

Medeiros 1978: 97; Moonen 1989: 12; Puntoni 1999: 168-174). Também os

recrutamentos compulsórios, como aconteceu durante a guerra do Paraguai), as

epidemias, a crise na região e as grandes secas do final do século atingem de

maneira radical a economia regional, diminuindo, de modo significativo, a

Page 48: Relatorio Boa VistacomAnexos

48

população escrava que estava sendo encaminhada para o Sudeste, destinada a

trabalhar nas plantações de café (Andrade 1990; Mattos 1985: 133-145; Medeiros

1973: 110; Medeiros 1978: 93; Monteiro 2002: 165-68 e 191-193). Assim, o final do

século XIX aparece como sendo um período agitado, de um ponto de visto social e

político. Porém, após a seca de 1877, a cultura do algodão se torna lucrativa e

modifica a paisagem social e econômica da região (Dantas 1941: 123); momento em

que o Seridó conhece uma fase de prosperidade e que passa a ser mais

intensamente ocupada.

Havendo uma grande lacuna de trabalhos históricos referentes ao período

pós-abolicionista, não podemos afirmar com maior exatidão a data de ocupação

das famílias quilombolas em Boa Vista. Porém, o recurso à história oral em tal

investigação serve de importante instrumento para este fim, permitindo traçar o

elo entre os antigos escravos e os remanescentes de quilombo que ocupam hoje a

terra da Boa Vista. Dessa forma, a escravidão no Seridó e a presença dos

quilombolas de Boa Vista devem ser analisadas no contexto das fazendas de gado e

da cultura do algodão formam o quadro social, econômico e cultural no qual a

história local se desenvolveu.

2.2. A escravidão no Seridó

Quando os negros fogem procuram afastar-se dos lugares habitados, escondendo-se nos bosques, invés de fixar–se numa vila distante, tentando passar por pessoa livre. Constroem cabanas, que são chamadas mocambos nos lugares mais ermos, e vivem da caça e dos frutos que podem encontrar. Essas criaturas se agrupam às vezes em número de dez ou doze e é difícil então surpreendê-las, porque o conhecimento que têm das matas vizinhas lhes dá uma forte vantagem contra o grupo enviado contra eles. Algumas vezes toda uma zona é perturbada por uma dessas comunidades que saqueia as roças, roubando bezerros, carneiros e galinhas. Contam histórias em que os negros do Gabão furtam crianças (Koster 1978: 412).

Reunimos, inicialmente, as informações disponíveis sobre a presença

escrava na região, tanto nas fontes históricas primárias encontradas, quanto nos

outros registros feitos ao longo dos séculos – transcritos por historiadores locais –,

com o objetivo de mostrar que Boa Vista se inscreve num conjunto mais amplo, o

Page 49: Relatorio Boa VistacomAnexos

49

das chamadas comunidades de remanescentes de quilombo. Uma leitura mais

aprofundada e sistemática dos documentos que teriam escapado à destruição

oficial, no entanto, ainda resta a ser feita pelos historiadores que, em tais

investigações, irão oferecer informações mais consistentes sobre populações de

origem africana no estado, examinando, em particular, o estatuto do escravo no

sertão.

2.2.1. “Vaqueiros e cantadores”

Há poucas referências históricas sobre a presença africana no sertão. Porém,

a reunião dos dados históricos mostra que o Seridó recebeu escravos desde o início

do seu povoamento. Ao contrário do que foi escrito, há, ao longo do período

colonial e no Império, uma presença contínua das populações escravizadas.

Durante as últimas décadas do século XIX, constatamos que, em proporção ao

resto da Província, o número de escravos no Seridó era maior: antes da Abolição, o

Seridó tinha 27,3% dos escravos do total existente no Rio Grande do Norte; número

significativo para uma região que C. Cascudo descreveu como sendo totalmente

branca (Lamartine 1965; Macêdo 2005: 45; Mattos 1985: 136-138).

Mesmo sem dispor de estatísticas nem de estudos históricos específicos,

podemos pensar que após a Lei Áurea, boa parte dessa população permaneceu nas

proximidades das antigas fazendas onde viviam, pois, como afirma Maria Regina

Mattos:

(...) o escravo do Seridó estava, no final do século XIX, engajado na produção de alimentos e no trato com a pecuária de maneira muito específica (Mattos 1985: 125).

Descobrimos, então, uma sociedade voltada para a pecuária na qual o

escravo tinha uma autonomia relativa para cultivar e adquirir um capital com seu

trabalho remunerado; também, a situação de cativeiro no sertão difere do litoral e

evoluiu ao longo dos séculos, sujeita às mudanças na organização da economia e da

sociedade (Macêdo 2007; Monteiro 2002: 100-108). Como veremos, as primeiras

cartas de alforria datam do século XVIII e, no Seridó, desde essa época,

Page 50: Relatorio Boa VistacomAnexos

50

encontramos alguns libertos bem sucedidos, como Feliciano, proprietário de uma

fazenda em Acari. Também, veremos, para o século XIX, que existem documentos

históricos nos quais descobrimos escravos que são proprietários de gado e libertos

que adquirem terras. Assim, existem situações sociais historicamente diferenciadas

que devem ser levadas em conta no estudo do passado de uma comunidade

quilombola.

2.2.1.1. Leituras da escravidão

É lógico que o a importação de mão de obra escrava foi menos massiva no

Rio Grande do que em outras regiões: nas cidades portuárias que recebiam navios

negreiros e nas zonas canaviais, o número de cativos era mais elevado. Porém, é

preciso levar em conta, nestas considerações, o contexto de guerra permanente

contra as populações indígenas na região que cessariam somente no século XVIII; a

chamada Guerra dos Bárbaros freiou a entrada dos criadores de gado e dos seus

agregados, entre eles, os africanos escravizados.

De fato, durante os primeiros séculos do período colonial, a resistência

indígena impossibilitou a instalação definitiva de um sistema produtivo gerador de

novas relações sociais, como verificamos em outras localidades do Nordeste. Ainda

é preciso lembrar que a ocupação holandesa (1633-1654) e os conflitos ligados a

essa presença, tiveram como conseqüência a desorganização do sistema produtivo

implantado pelos portugueses no início da conquista (Brandão 1997: 88-96; Lyra

1982). Os primeiros escravos, provenientes de Pernambuco, entram no Rio Grande

do Norte, com mais freqüência, a partir da segunda metade do século XVII,

ficando, porém, concentrados nas zonas açucareiras (Andrade 1990: 24; Cascudo

1955; Medeiros 1978: 88-89). Em meados do século XVII, com a presença

holandesa, o tráfico negreiro no Nordeste aumenta e, com ele, a formação dos

Page 51: Relatorio Boa VistacomAnexos

51

quilombos (Puntoni 1999: 150-151; 157; 171-172; Mello 1987).37 É justamente com

os primeiros colonos oriundos da Paraíba e do Pernambuco que os escravos

chegaram no sertão, sobretudo a partir do século XVIII. Assim, acompanhando

parcialmente os trabalhos clássicos dos historiadores locais, podemos pensar que

havia menos escravos e que a mão de obra escrava chegou mais tardiamente no Rio

Grande do Norte do que em outras regiões açucareiras nordestinas. Os mais

importantes engenhos estavam situados nas zonas açucareiras: no sul do estado,

entre São José do Mipibu e Canguaretama e ao norte de Natal, Ceará-Mirim

(Cascudo 1955; Medeiros Filho 1993; Monteiro 2002: 17-94).38

Sabemos também que desde, o início do século XVII, os escravos foram

associados à conquista do território, sendo integrados nas tropas; a participação às

“guerras justas” era um meio de conquistar uma liberdade individual (Portalegre

1994 et alii.: 129; Puntoni 2002: 58). Desde o século XVII, encontramos ‘negros’

livres servindo no exército português (Cascudo 1955: 81-82; Medeiros 2003; Mello

1987; Puntoni 1999: 167; Puntoni 2002: 58, 128, 136)39: os serviços prestados

durante a guerra podiam ser revertidos em cartas de alforria. Os quatros “negros

timbus” que aparecem no documento de 1613, provavelmente originários da costa

Oeste da África (Congo, Guiné ou Angola), são a prova da integração da população

servil ao sistema de conquista territorial, pois na ocasião do acordo feito entre os

37 No início do tráfego, os escravos do Rio Grande foram primeiramente importados da África (Angola, Congo, Guiné), via Recife (Monteiro 2002: 116). No final do século XVI estima-se que havia 20.000 escravos trabalhando em 120 engenhos no Nordeste, concentrados, principalmente, nas cidades de Recife (PE), Salvador (BA) e São Luís (MA) (Pavão 1981: 41). 38 No início do século XVII, encontramos somente três engenhos no litoral potiguar (Andrade 1990: 15; Monteiro 2002: 116). O último escravo conhecido em Natal a chegar da África foi o “Paulo Africano, pescador, dançador de Zambê e tocador de puita que dizia ter desembarcado em Serinhaém”, no Pernambuco (Medeiros 1978: 101). 39 Há registros de “incorporação” de ‘negros’ ao exército dos Janduí e de roubo de ‘negros’, pelos mesmos, aos portugueses, durante a expedição de William Lambertz, em 1645 (Puntoni 1999: 170). A tropa de 1400 homens liderada por Henrique Dias, em 1646, na guerra da restauração pernambucana tinha recrutas de origem diversa, sem que quase nada seja conhecido das especificidades de cada grupo: índios, tapuias, negros, minas, mamelucos, etc. (Puntoni 1999: 167; Puntoni 2002: 58; 136). No século XIX, também havia contingentes inteiros de soldados negros e mulatos (Koster 2003: 72).

Page 52: Relatorio Boa VistacomAnexos

52

colonos e o índios, eles recebem terras por terem recebidos “maus tratos” (Macêdo

2007: 39; Medeiros Filho 2002: 5; Monteiro 2002: 116). Em 1695, no auge da

“Guerra dos Bárbaros”, “na Capitania havia mais de 500 homens, entre brancos e

índios, e mais de 100 escravos, todos aptos para a guerra” (Portalegre 1994 et alii:

129).

As queixas relativas à ausência e ao preço da mão de obra servil são outra

prova de que, no Rio Grande, os escravos foram fundamentais para o sucesso do

projeto de exploração do território (Brandão 1997: 102; Cascudo 1955: 121, 187).40

Assim, no relatório dos Presidentes de Província datado de 1862, Pedro Leão

Velloso se queixa da falta dos escravos e da existência de uma população quase

nômade "à mercê dos proprietários de terra".41 No interior, pelo menos para os

estados de Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte, os autores parecem

concordar sobre a idéia de que os pequenos proprietários que, de fato, tinham

poucos escravos, compartilhavam o espaço familiar e tinham o mesmo modo de

vida de seus servos. No século XIX, encontram-se escravos nas grandes fazendas de

criação de gado e até nas pequenas propriedades, com um número raramente

superior a cinco (Macêdo 2005 e 2007; Mattos 1985). Neste caso, temos muitos

testemunhos de que esses proprietários os tratavam bem, para que não fugissem

(Albuquerque 1989). Assim, Dom Adelino Dantas (1961: 165) imagina a “mãe

preta”, Maria Fernandes Jorge que nasceu em 1686, escrava da família do fundador

de Caicó, Manoel Fernandes Jorge, que morreu com 135 anos em 1821:

40 Luís da C. Cascudo (1955: 37) anota a presença de um escravo da Guiné em Natal em 1600, "quinze dias após a cidade ter sido fundada", propriedade do primeiro sesmeiro do Rio Grande do Norte, João Rodrigues Colaço. Esse "comprará escravos da Guiné, era a primeira pessoa que começou a roçar e a fazer benfeitorias no Rio Grande (...) O negro foi-nos uma constante mas não uma determinante econômica" (Idem: 44). Mais a frente, o autor repete: "Economicamente, o escravo não foi indispensável no Rio Grande do Norte e etnicamente, constituiu uma constante e jamais uma determinante (Idem: 48). A mesma frase encontra-se textualmente reproduzida, mais de cinqüenta anos depois, num manual de história do RN, destinado aos estudantes (Brandão 1997: 73). 41 Relatório apresentado à Assembléia Legislativa do Rio Grande do Norte na sessão ordinária do anno de 1862 pelo presidente da província, o comendador Pedro Leão Velloso. Maceió, Typ. do Diário do Commercio, 1862, p. 8. sobre o assunto, ver http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/851/000010.html, capturado em 01/05/2006.

Page 53: Relatorio Boa VistacomAnexos

53

Invoco-a, pois, na distância do tempo, como a um anjo de bondade e carinho, de fidelidade e renúncia, presente, quase século e meio, nos lares caicoenses de outrora, sorrindo nas manhãs festivas o sorriso afetivo sobre os berços abertos, ou gemendo com as senhoras donas sobre berços vazios.

Essa imagem idealizada, porem, contempla uma pequena porção da

população: os escravos-poetas que ficaram famosos, como Inácio da Catingueira e

Fabião das Queimadas, fazem figura de exceção. Existem várias referências a

vaqueiros, artesãos, carpinteiros, sapateiros, cortadores de lenha, padeiros, etc., ou

a operários agrícolas que podiam ser alugados pelos seus proprietários para tarefas

específicas (Ballet 1981; Cunha 1971; Lamartine 1965). Alguns escravos pediam

dinheiro emprestado ao proprietário e tinham até bens, geralmente, gado, apesar

da lei, o que ocorria em conseqüência da condição de vaqueiro (Cunha 1987; Garcia

1989; Guerra 1989; Koster 1978; Lamartine 1965). Depois de libertos, os antigos

escravos permaneciam na propriedade dos seus antigos donos como empregados,

outros saíam para o Sul ou para a Amazônia, ou, ainda, tendo mais chances,

conseguiam tornar-se independentes: agricultores, caçadores profissionais,

costureiras, lavadeiras, almocreves, etc. Podiam, também, ficar trabalhando na

propriedade como vaqueiros.

A escravidão, no sertão, foi sistematicamente idealizada pelos cronistas e

escritores locais nascidos na virada do século XIX que, partindo das suas

experiências pessoais, descrevem situações nas quais os filhos dos escravos libertos

pela Lei do ventre livre, recebendo o nome ambíguo de ‘criados’, eram educados

junto com os filhos dos fazendeiros, ainda que empregados nas tarefas domésticas

– pelo menos até a idade da sua emancipação.

No sertão da pecuária e do algodão, o escravo se tornava quase igual ao senhor, um companheiro deste e da filharada. A vida do vaqueiro predispunha para a democratização (Guerra 1989 : 116).

Mesmo se, nesta visão, percebemos uma tentativa - nem sempre explícita –

de tornar mais suave um processo de dominação e uma realidade histórica mais

aceitável, é preciso olhar mais criticamente para os dados históricos que apontam

para situações de dominação ade social e formas de ‘contratos de trabalho’ que

encontramos ainda com freqüência no interior do Nordeste (Koster 1978;

Page 54: Relatorio Boa VistacomAnexos

54

Lamartine 1965).42 Para uma tal investigação, precisamos ler nas entrelinhas dos

relatos dos autores locais que, de um modo unânime, descrevem supostas relações

harmoniosas entre fazendeiros e escravos.

Em Tradições populares da pecuária nordestina, livro publicado em 1956,

Câmara Cascudo, aponta para as possibilidades dos escravos de serem mais livres

no sertão do que no litoral:

Os negros Inácio da Catingueira e Fabião das Queimadas, escravos de fazendeiros e grandes cantadores, um de pandeiro e outro de rabeca, eram produtos de impossível nascimento entre o canavial dos eitos açucareiros (Cascudo 1956: 11).

Se encontrarmos esses dois poetas que conseguiram comprar sua liberdade

fazendo verso, podemos pensar fazem figura de excepção em relação à condição da

maior parte da população servil que encontrava dificuldades para libertar-se.

Verificamos ainda tentativas para amenizar a condição das populações de origem

afircana, anunciando o sucesso de um meltingpot; ideologia da ‘mistura’ e da

‘democracial racial’ que encontra ainda seguidores ferrenhos nos meios

acadêmicos:

Se, em face das circunstâncias especiais de tempo e espaço, o negro foi escravo entre nós, o foi em pacífica convivência, tratamento humano e restritas limitações de vida. Liberto antes da lei, participa das mesmas oportunidades dos demais em sociedade, em todos os aspectos da vida e pela vida. Como irmão, sem preconceito, sem segregação (Medeiros 1978: 103).

Estranho constatarmos que, ao contrario do que Tarcisio Medeiros afirma,

as comunidades negras presentes, até hoje, no sertão, encontram-se entre as

camadas mais pobres da população, são localizadas à margem dos núcleos

populacionais e sofrem de preconceito racial. Enfim, nas descrições do cotidiano e

da labuta do homem do campo, é comum que as relações de dominação estejam

42 Como veremos, essa situação aproxima-se da descrita na versão oral da origem de Boa Vista dos Negros.

Page 55: Relatorio Boa VistacomAnexos

55

apagadas diante do companheirismo que seria imposto pelas condições climáticas e

pelas dificuldades ligadas à vida no sertão... quase um comunismo primitivo:

Viviam assim os primeiros criadores apojados em pleno ciclo do couro, onde o trabalho de todos os dias mais argamassava as relações entre o marinheiro colonizador e os primeiros escravos levados para a vaqueirice. Cedo tomaram das mesmas vestias. ‘Sinhô’ e escravo campeando juntos, correndo os mesmos riscos – negro correndo ao boi e ‘sinhô’ fazenda esteira no gesto de ajuda mais tarde (...) Tomando coalhada da mesma terrina, bebendo água da mesma borracha e comendo paçoca do mesmo alforge (Faria 1980: 161-162).

Assim, mais do que no litoral, no sertão, as relações entre servos e patrões

são apresentadas como sendo mais igualitárias e democráticas. Mesmo pensando

que este tipo de reflexão releva mais da ideologia do que de uma verdade histórica,

é notório que o sertão oferecia mais possibilidades de fuga do que nas zonas

canavieiras e no universo fechado dos engenhos de açúcar (Macêdo 2005: 43). O

apego dos filhos às mães pretas, às amas de leite, escravas veneráveis que criavam

os filhos e que tinham o mesmo nome de seus proprietários, é tido também como a

prova de certa harmonia social e racial (Dantas 1961: 163). A escravidão atípica do

sertão é lida sob o prisma das teses que G. Freyre desenvolveu para analisar o

universo dos engenhos. Porém, além do romantismo que envolve a representação

da escravidão, podemos pensar que os escravos sertanejos recebiam melhores

tratamentos do que das zonas canavieiras, pois representaram, até as últimas

décadas que precedem a Abolição, uma forma de capitalização substancial para os

fazendeiros ameaçados constantemente pelas secas e crises que agitaram o fim do

século XIX: no sertão, os aspirantes à liberdade pagavam um preço alto, pois,

sendo mais raros, os escravos eram mais valiosos do que em outras regiões

(Macêdo 2007: Mattos 2005: 130).43

43 Por exemplo, Ulisses de Albuquerque (1989) informa que o seu pai, numa propriedade no sertão de Pernambuco, possuia três escravos. Juvenal Lamartine (1965: 15) afirma que, no Seridó o número de escravos nas fazendas não passava de seis.

Page 56: Relatorio Boa VistacomAnexos

56

2.2.1.2. Herança, fugas e alforrias

Encontramos, com freqüência, a menção feita a escravos nos inventários das

famílias mais abastadas da região; prova de que existiu uma população servil até às

vésperas da Abolição.

De um modo geral, os inventários post-mortem fazem referência a alguns

escravos – raramente passava de seis-, sempre contabilizados ao lado de burros e

jumentos (Macêdo 2007)! No início do século XVIII, em Currais Novos, um escravo

jovem e de boa saúde valia o equivalente a seis bois (Lima 1988: 76). No final do

século XIX, um escravo com as mesmas características, era avaliado na região entre

600$000 e 800$000. Já, as mulheres valiam menos. Um pouco antes da Abolição,

os preços foram multiplicados por dois. Com o testamento de D. Adriana, temos a

prova da existência de um número relativamente elevado de uma mão-de-obra

serva no interior. Ela é esposa do Coronel Cipriano Lopes Galvão, vindo, em 1755,

de Igarassu, Pernambuco.44 Quando faleceu em Currais Novos em 1793, ela tinha

vinte e quatro escravos (Lima 1988: 76; Assunção 1988: 58). Segundo Mattos

(1985: 140), em período de crise econômica, o escravo representava uma forma de

capitalização, pois podia ser vendido pelo seu dono em caso de necessidade.

Nas declarações de sucessão dos grandes proprietários fundiários, nos

arquivos privados e nos registros da Igreja, encontramos elementos preciosos e, às

vezes, pitorescos que informam sobre a vida cotidiana dos proprietários e das

populações de escravos. Por exemplo, nos inventários post-mortem dos

proprietários de escravos, há menção da profissão, da idade, do nome e do estado

de saúde do escravo ou mesmo seu país de origem. Assim, Manuel Pereira

Monteiro da Dinamarca, falecido em 1838, em Serra Negra, que deixa para a sua

numerosa descendência, além de um grande capital em gado - perto de quatro mil

44 Juvenal Lamartine (1965: 38) adquiriu a fazenda Ingá (Acari, RN) que pertenceu ao Capitão Cipriano Bezerro Galvão.

Page 57: Relatorio Boa VistacomAnexos

57

cabeças -, vinte e seis escravos, na maior parte dos casos, jovens e gozando de boa

saúde (Cunha 1971: 231-234). Comparado a outros, este inventário nós faz pensar

que o defunto dispunha de uma verdadeira fortuna e que ‘mandava’ em Serra

Negra.

Estudos atestam uma relativa liberdade para a população escrava no final do

século XIX, tanto nas zonas de plantação, no Seridó ou ainda nas cidades

brasileiras onde trabalhavam os “escravos de ganho” (Cascudo 1955: 40-50;

Mattoso 1999; Monteiro 2002: 177 e 182; Macêdo 2007). Nas zonas de engenho,

eles trabalhavam como assalariados ou de uma maneira sazonal (Lima 1988).

Alguns registros informam sobre a divisão do trabalho escravo no sertão e a

hierarquia entre os diferentes ofícios:

O braço escravo era distribuído do seguinte modo: um, carreiro, outro, vaqueiro e dois ou três para os trabalhos de pequena lavoura. As escravas, por sua vez, tinham as seguintes ocupações: uma cozinheira, uma copeira, em regra já libertada pela Lei do Ventre Livre e as demais, fiandeiras. (Lamartine 1965: 15).45

Assim, e cada vez mais, o regime de trabalho escravo se diferencia: a

especialização e a profissionalização dos escravos corresponde ao grau de

integração dos africanos e dos seus descendentes na sociedade brasileira. Pelo

menos, para o período que antecede a Abolição, havia uma grande variação nas

tarefas e o estatuto de cada cativo variava em função do tipo de trabalho efetuado e

do local onde vivia. Assim, com a evocação do personagem do vaqueiro, central na

fazenda, encontramos uma reunião certa ambigüidade em relação à caracterização

do estatuto do ‘negro’ que podia ser livre ou escravo. No seu estudo, Afrânio Garcia

Junior (1989: 27) aponta que, pelo menos no século XIX, no Brejo da Paraíba, uma

região vizinha ao Seridó, os escravos representavam vinte por cento da força de

trabalho. A maior parte deles eram “moradores”. Mesmo sendo dificilmente

contabilizada e apesar das imprecisões em relação ao estatuto, uma população livre

de fato aparece no decorrer do século XIX: os que fugiram, os libertos ou, ainda, os

45 O estatuto de “escrava-liberta” é pelo menos estranho!

Page 58: Relatorio Boa VistacomAnexos

58

que exerciam uma profissão ou uma atividade que os permitia reunir um capital;

como iremos ver a seguir, encontramos, na literatura, alguns escravos que

conseguiam economizar o bastante para comprar sua liberdade e a dos seus

parentes.

Encontramos vários registros de alforria, mas entre eles, um merece

particularmente nossa atenção: a libertação de escravos por motivos religiosos. As

damas da sociedade, muito religiosas, teriam assim oferecido os seus escravos aos

santos para pagar uma promessa. O escravo recebia, então, um documento

atestando a sua liberdade – uma carta de alforria – porque os santos não tinham

necessidade de possuir uma mão-de-obra escrava (Lima 1988)! Também, no

Seridó, entre o fim do século XVIII e o século XIX, encontramos várias ‘gerações de

padres’ que irão se tornar grandes proprietários fundiários e donos de escravos.

Alguns tiveram um papel político importante na vida da Província, como Manoel

José Fernandes, morando em Caicó e considerado como sendo “um dos homens

mais ricos do seu tempo”, que registra, no seu testamento datado de 1851, o desejo

de libertar seus cinco escravos... após sua morte que ocorreu em 1858 (Dantas

1961: 117). Análises sistemáticas seriam necessárias para saber se houve libertação

com uma maior freqüência no interior do que no litoral.46 Uma dúvida, então,

persiste quanto ao estatuto do ‘negro’ que podia ser livre ou ter uma atividade

remunerada, continuando a ser escravo, como é o caso dos artesões, dos

comerciantes ou dos agricultores vendendo o produto de suas roças (Cascudo 1955:

498; Koster 2003; Medeiros Filho 1993: 55; Monteiro 2002: 177, 182; Puntoni

2002: 128; Schwartz 2001: 97). Dessa forma, podemos pensar que uma parte da

população negra havia conseguido libertar-se – pelo menos formalmente – do seu

estatuto de escravo e que, em meados do século XIX, havia um quadro diferenciado

na composição social, geográfica e cultural das populações afro-descendentes que

habitavam a região Nordeste, tanto na zona rural ou urbana, quanto no litoral, no

46 Juvenal Lamartine (1965: 77) relata a libertação de Josefa, escrava de um proprietário brutal de Serra Negra, depois do discurso de um advogado em seu favor.

Page 59: Relatorio Boa VistacomAnexos

59

agreste ou no sertão. Sabemos que, no Seridó, no período situado entre o final do

século XVIII e o início do século XIX, uma grande porção da população liberta

tinha conseguido libertar-se com seus próprios meios (Macêdo 2007: 226).

2.2.1.3. O fim do regime escravocrata no Seridó

A interdição do tráfico negreiro internacional em 1850 e os fatores

econômicos parecem ser determinantes para o sucesso do movimento humanista

no Nordeste (Mattos 1985).47 Se a partir da Lei do Ventre Livre, decretada em 1871,

os filhos dos escravos nascem livres, é natural que haja um crescimento da

população negra livre a partir desta data: sabemos que alguns pais doaram seus

filhos de mais de cinco anos a libertos para que eles criassem, ou então quando eles

ficavam com os pais, eram empregados na fazenda, sem ter o estatuto de escravo

(Lima 1988). Também, o proprietário condicionava a liberdade do escravo à sua

morte (Mattos 1985; Macêdo 2007). A partir de 1883 é instaurado um imposto por

cabeça de cada escravo e encontramos então alforrias em massa nesta época,

porém, de um modo geral, eram os próprios interessados que custeavam sua

liberdade (Ballet 1981; Macêdo 2007)!

Entende-se, então, porque os proprietários arruinados pelas secas sucessivas

e, sobretudo, pela grande seca de 1877-1879, se vêem na obrigação de se

47 Desde 1850, há a libertação de escravos e o Ceará, neste momento, dá o exemplo para o Rio Grande do Norte na organização de uma campanha abolicionista (Hemeterio Filho 1983: 33; Lamartine 1965: 75). Açu liberta seus escravos em 1885, Caraúbas e Triunfo em 1887 (Monteiro 2002: 205). Se Mossoró foi a primeira cidade do Rio Grande a libertar os seus escravos, no dia 30 de setembro de 1883, só fez seguir o exemplo recente do Ceará (Hemeterio Filho 1983). O movimento abolicionista, que culminará com a abolição do dia 13 de maio de 1888, propaga-se por todo o Nordeste. O fenômeno foi um pouco exagerado por parte de certos autores, entretanto, essas libertações devem ser vistas à luz da situação econômica da região.

Page 60: Relatorio Boa VistacomAnexos

60

desfazerem dos seus bens mais preciosos, os escravos, para conseguir reunir capital

e reduzir o número de bocas a serem alimentadas48:

Levas e levas de escravos desceram para a praça do Recife, onde eram vendidos para os cafesaes do sul, sendo com seu produto compradas as mercadorias que iriam matar a fome de seus antigos possuidores.

Bocado bem amargo deve ter sido esse amassado com as lágrimas de filhos da generosa terra sertaneja, onde o escravo foi sempre tratado com brandura, ause como pessoa da família, e que a seca airava à vida dura e cruel das senzalas do sul (Dantas 1941: 120).

Desde 1840, momento no qual se inicia o tráfico interprovincial para o Sul

cafeeiro, principalmente após o período das grandes secas do fim do século XIX, o

Nordeste se priva de grande parte da sua força de trabalho. Se as grandes

plantações do Sudeste tiveram o recurso de uma mão-de-obra de imigrantes

provenientes da Europa, elas se aproveitaram também da desestruturação da

sociedade colonial do Nordeste, recebendo os escravos sertanejos vendidos por

fazendeiros falidos (Dantas 1941; Garcia 1989: 28; Monteiro 2002: 191-193). Frente

à amplitude do fenômeno migratório e dos movimentos pró-abolicionistas,

apoiados pela Inglaterra, nasce, em 1881, uma reivindicação para acabar com o

tráfico interprovincial de escravos (Ballet 1981: 119-125; Monteiro 2002: 165-169).

Com a tentativa de reunir informações acerca da presença escrava no sertão

do Rio Grande do Norte, constatamos que, ao longo dos séculos, a situação das

populações envolvidas no processo colonial é movediça, contrastada e muito mais

complexa do que podemos imaginar. Verificamos que o número de escravos

diminuiu em 1845, ano de grande seca, crescendo a partir de 1860 e caindo de novo

a partir de 1870, décadas nas quais se vêem a instalação e o desenvolvimento da

produção algodoeira nos sertões até os anos 1940 (Cascudo 1955: 380-382 e 838;

Mattos 1985: 133-146; Takeya 1985: 30). Assim, o númeo de escravos cresce em

toda na Província até o final do século, com algumas variações. No século XIX,

época em que encontramos números seriados, a população escrava do Rio Grande,

48 O Ceará, também, vê desaparecer perto de um terço da sua população servil, em menos de dez anos (1872-1880). Para uma descrição das secas, ver Manoel Dantas (1941: 111-154) e 0 “roteiro das sêcas” de Dom José Adelino Dantas (1961: 143-152).

Page 61: Relatorio Boa VistacomAnexos

61

que desde o início do século era relativamente estável, aumenta brutalmente em

1844, quando o numero de escravos é multiplicado por dois: são comptabilizados

10.240 ecravos em 1835 e, dez anos mais tarde, em 1844, 23.467. O contingente

escravo fica relativamente estável até a promulgação da Lei Aurea. Reunindo os

poucos estudos que indicam os números de escravos, apresentamos o quadro a

seguir:

Tabela 8 – População escrava - Rio Grande do Norte e Seridó (1811-1888).49

Data Número de escravos no RN

Número de escravos no Seridó

1811 8.072 6.116 [12.363 “negros” dos quais 6.247 livres]

1819 8.109 -

1820 9.109 -

1835 10.240 -

1844 23.467 ou 18.153 -

1855 20.244 ou 3.000 2.179

1870 24.236 -

1872 23.379 ou 13.484 2.624

1873 10.282 1.969

1881 9.367 1.905

1882 9.109 1.298

1883 8.807 1.160

1884 7.627 885

1887 2.161 -

1888 3.716 ou 482 132

Diante das variações constatadas nas diferentes fontes consultadas, fica

difícil saber exatamente quantos escravos foram trazidos para o Rio Grande do

Norte, seus destinos e suas vivências. Porém, a leitura dos trabalhos já realizados e

a consulta das fontes primárias indicam que, desde o período colonial até a

49 Augusto 1954: 13; Lima 1988: 20-21; Macedo 2005: 46; Mattos 1985: 136-138; Monteiro 2002: 131, 156, 192; Santos 1994: 83. Os números em negrito são mais fiéis.

Page 62: Relatorio Boa VistacomAnexos

62

promulgação da Lei Aurea, há uma presença constante de escravos na Capitania do

Rio Grande.50

As crises sucessivas modificaram drasticamente o quadro social e já na

segunda metade do século XIX, a população escrava encontra novos meios para

fugir do cativeiro. Assim, os antigos escravos e os agregados das fazendas viraram

trabalhadores sem contrato fixo, "alugando" sua força de trabalho para os antigos

donos que se tornaram patrões. Com os mesmos homens que viviam em torno das

fazendas, ficaram cristalizadas relações e formas de tratamento que foram

herdados de uma relação de dominação secular (Cascudo 1971: 420-423, 429).

Antes de apontarmos para as raras referências encontradas sobre formas de

resistência à escravidão na literatura regional, é interessante anotar que, num

perímetro relativamente próximo à Boa Vista, existiu, em várias épocas, referência

a escravos e libertos. 51

2.2.2. Escravos e fugitivos na região do Acauã

Para entender o contexto de formação da comunidade quilombola de Boa

Vista, é preciso descrever brevemente as condições sócio-históricas nas quais o

“quilombo” surgiu. Nesse sentido, observamos que a região do Seridó, conhecida

por suas secas vê, gradativamente, modificar sua configuração econômica, política

e social. No final do século XIX, a região conhece várias crises econômicas ligadas,

em parte, a ocorrência das secas e a ausência de uma ação e de representantes do

poder central (Terra 1983).

50 Trata-se evidentemente de um esboço que não pretende a exaustividade, pois o acesso às fontes primárias é difícil, tendo em vista a ausência de estudos sistemáticos sobre o tema.

51 Seu Ulisses Potiguar (16/03/07) afirma ter uma cópia de um processo em que escravos se libertaram ganhando na justiça. Porém, diante a exigüidade dos prazos, não tivemos possibilidade de verificar esses dados, nem encontramos cartas de alforrias referentes a Boa Vista durante a pesquisa documental.

Page 63: Relatorio Boa VistacomAnexos

63

Encontramos um documento que registra escravos solicitando terras em

1613, porém, é preciso esperar o século XVIII para cruzar com outros escravos na

mesma região: Olavo de Medeiros filho (1981: 113-114) relata o episódio em que um

"negro" ataca mulheres: ele estava escondido numa furna num "lajedo grande da

Rajada", no caminho entre a cidade de Acari e a Serra da Rajada:

José de Azevedo Dantas, descendente da família de Tomaz de Araújo, em um jornalzinho manuscrito que redigia, intitulado "O momento", descreveu um interessante caso ocorrido com Dona Maria da Conceição de Mendonça. Baseou-se José de Azevedo em um relato feito pelo velho seridoense Coronel Quincó da Rajada, o qual, por sua vez, teve em seu poder uns antigos versos compostos por Simplício Francisco Dantas, neto do português Tomaz, intitulados UM NEGRO NU E CRU. Daremos uma nova roupagem ao relato: Dona Maria da Conceição de Mendonça, moradora nos Picos de Baixo, entre os anos de 1753 e 1755, certa feita, à Fazenda dos Picos de Cima visitar a sua filha Josefa de Araújo Pereira, casada há pouco com Caetano Dantas Corrêa. A esposa de Tomaz de Araújo, viajando pela margem do rio Acauã, com uma filha e uma escrava, já de volta á sua casa, viu surgir à sua frente um 'negro horrível, asselvajado, completamente despido', armado de uma foice, vindo fugido de algum engenho do litoral. Logo ao avistar o grupo de mulheres, o negro avançou sobre as mesmas com gestos rancorosos, pretendendo satisfazer seus instintos bestiais. Dona Maria da Conceição pôs-se à frente do grupo, empunhando um espadagão que trouxera consigo, tendo-se travado um combate singular: de um lado, o negro armado de foice; do outro, a matrona sertaneja armada de espadagão!... Depois de muito tempo, o negro, que durante a luta 'dava pulos horríveis', foi finalmente atingido no baixo ventre, caindo por terra com 'grandes gemidos' (...) (Medeiros filho 1981: 113)

Esse episódio, mesmo anedótico, atesta que havia uma presença efetiva de

escravos fugidos na região, desde o século XVIII. O lugar escolhido pelo escravo

fugido não era hospitaleiro, pois é situado entre serras e serrotes que impediam

uma fácil circulação na caatinga – configurações geográficas e ecológicas

semelhantes a da Boa Vista dos Negros.

Page 64: Relatorio Boa VistacomAnexos

64

Fotografia 1 – Boa Vista e a serra do Marimbondo (jun. 07).

Apesar da afirmação categórica de que não havia "quilombos nem rebeliões

negras" (Cascudo 1955: 44), encontramos raríssimas referências à revoltas

organizadas. O primeiro registro é o de um “Mocambo de negros com mais de

quarenta arranchados na ribeira do Trahyri” em 1722 (Porto Alegre et alii. 1994:

159; Monteiro 2002: 117). Se esse agrupamento é designado, pelos estudiosos

locais, como sendo o único quilombo do Rio Grande do Norte, sabemos da

existência de várias outras comunidades afro-descendentes cuja história ainda fica

para ser escrita: encontram-se espalhadas em todo o estado e, em particular, na

região do Seridó, em Currais Novos, Acari e na Paraíba vizinha.52 Há também um

registro histórico de um quilombo, correspondendo à definição clássica: o

‘mocambo’ era localizado em Ipiancó, na Serra da Teixeira (Paraíba), numa região

próxima de Boa Vista e foi destruído em 1731 (Jofilly 1977: 367).53

52 Atualmente, no Rio Grande do Norte, são 15 comunidades quilombolas certificadas pela Fundação Cultural Palmares. 53 Além disso, ao longo século XIX, existem revoltas de escravos, sobretudo na região litorânea onde era cultivada a cana de açúcar e verificamos que houve múltiplas iniciativas individuais de libertação (Cavignac et alli. 2006).

Page 65: Relatorio Boa VistacomAnexos

65

Também, graças ao inventário de Caetano Dantas Correia datado de 1798,

sabemos que o patriarca tinha seis escravos, o que era pouco em relação ao

Sargento-Mor Felipe de Moura e Albuquerque, morador no sitio Belém, em Acari,

que deixou, em 1789, vinte-e-quatro escravos aos seus herdeiros – entre àqueles,

quinze tinham menos de 14 anos (Guerra 1989: 109). Ainda, encontramos registros

esparsos da presença de escravos ou de libertos na região: Oliveiro Ledo, um dos

desbravadores do serão de Piranhas, no século XVII, escolhe libertar uma escrava

“Maria”, entre seus escravos Guiné, Angola, mamelucos e outras ‘crioulinhas’

(Guedes 2006: 111); encontramos a referência a uma “Rosa Maria natural de

Angola” que, no início do século XVIII era casada com o português João Baptista

de Oliveira cujos descendentes vieram para o Seridó fundar a fazenda Barbosa de

Cima, na povoação de Caicó (Dantas 1961: 47). Em 1719 ou 1758, segundo as fontes,

no rio São José - hoje Cruzeta – havia um "crioulo forro", Nicolau Mendez da Cruz

que possuía terras no sertão de Piranhas (Guedes 2006: 111; Medeiros filho 1981:

125). Na literatura regional, encontramos várias referências a Feliciano da Rocha,

liberto, proprietário da fazenda Cacimba das Cabras em Acari, que viveu nos

meados do século XVIII (Dantas 1941: 26-30; Lamartine 1965: 56, 99; Medeiros

filho 1981: 125-126; Macêdo 2007). O ex-escravo nascido e criado em Camaratuba

(PB), passou a morar em Acari onde, segundo os cronistas, ‘criou família’ e

melhorou de vida:

Antonio Pais (de Bulhões) (...) comprou Feliciano José da Rocha, passou-lhe imediatamente carta de liberdade, entregando-lhe uma de suas melhores fazendas de gado para ser vaqueiro. Feliciano enricou, adquiriu a fazenda Barrentas no Acari54, onde morreu em idade avançada, querido e respeitado como um dos homens de bem daquela terra. (Medeiros filho 1981: 126).

Em várias ocasiões, em conversas com pessoas de localidades vizinhaas,

pudemos notar que a fama dos moradores da Boa Vista era, até pouco tempo, a de

54 Notamos que Juvenal Lamartine (1965:99) afirma que Feliciano foi proprietário da fazenda Cacimba das Cabras, em Acari.

Page 66: Relatorio Boa VistacomAnexos

66

‘negros escondidos’ que viviam amedrontados.55 Em outros momentos, percebemos

que as populações negras podiam ser confundidas com cangaceiros, pois ocupavam

os mesmos espaços: os bandidos procuravam abrigo nas zonas pouco povoadas, de

difícil acesso e pouco policiadas. Recebiam a ajuda do proprietário da fazenda para

esconder-se nas furnas, nas serras e nas montanhas (Barroso 1912: 125-127).56 Os

jagunços eram guarda-costas ao mesmo tempo em que eram membros de milícias

privadas (Della Cava 1985; Queiroz 1986). Encontravam-se no meio deles escravos

ou libertos que continuavam a serviço de seus antigos senhores (Lima 1988: 80).

Alguns escravos fugitivos, no final do século XIX, escolheram de seguir o destino

dos cangaceiros, como é o caso do ‘negro Luiz’ cuja atuação ia de Pombal (PB) a

Serra Negra do Norte:

Era ele um escravo foragido que, à frente de outros negros, assassinava, roubava, e estuprava por todas aquelas redondezas (Lamartine 1965: 104).

No século XIX, aparecem vários cangaceiros famosos que eram negros:

Lucas da Feira, um escravo fugitivo dos arredores de Feira de Sant’Ana (Ba.), teve

um folheto escrito que conheceu um grande sucesso editorial. Podemos ainda citar

para o Rio Grande do Norte Chico Ferreira, o ‘negro Izidro’, grande ladrão de

cavalos, o negro Artur, originário da região Oeste, ou ainda, a família Canela que

vivia em Sant’Ana dos Matos (Cavignac 1994: 226, 242, 263, 266-270; 578-588).

Na cidade vizinha da Boa Vista, Carnaúba dos Dantas, onde coletamos várias

narrativas de escravos mal-tratados por seus donos, podemos citar o exemplo de

José Venâncio Dantas (1854-1926), fundador da primeira banda de música da

cidade que era filho de João José Dantas e da escrava Vicência Maria do Espírito

Santo, (Porpino 2004: 60).57 Se, em Carnaúba, não há informações sobre a

55 Seu Jozias (20/10/07) conta que Pedro Baeta, quando caçava na serra do Marimbondo gostava de amedrontar os moradores da Boa Vista, atirando para ver o pessoal correr para caatinga. 56 Seu Ulisses Potiguar relata várias histórias do seu tio que escondia bandidos na sua fazenda. 57 Ver no próximo capítulo o depoimento de Seu Jozias da Silva, entrevistado em Carnaúba dos Dantas dia 20/10/2007.

Page 67: Relatorio Boa VistacomAnexos

67

existência de comunidades quilombolas, como nos municípios vizinhos - Parelhas e

Acari ou mesmo Currais Novos, existe, no entanto, uma memória referente à

escravidão que indica a presença de indivíduos isolados que se instalaram nos

lugares afastados - em terras pouco cobiçadas - e fundaram famílias; fugiam do

cativeiro ou, quando libertos, procuravam melhorar de vida.

Se na literatura historiográfica e na documentação cartorial e paroquial

consultada, encontramos poucas referências aos escravos, ao contrário, há vários

registros orais sobre situações sociais que podemos associar à escravidão: nas

lembranças dos mais velhos e, sobretudo, as narrativas que colocam em cena almas

e aparições noturnas de antigos ‘cativos’ e fugitivos, surgem, reprentinamente, a

história dos antigos escravos. Também informam que as populações negras

conheceram um destino semelhante ao dos índios, inclusive casando entre si e, em

várias ocasiões, tiveram que se “esconder no meio do mato”.58 Desta forma,

encontramos um novo campo aberto para os historiadores e os antropólogos: a

pesquisa realizada em Boa Vista nos ensina que há um passado escravo escondido

nos documentos escritos e na memória local.

2.3. “Negros retintos dançadores de Pulachi”

O cangaceiro do Norte é selvatico e feroz, sofrendo de um descalabroso nervoso – producto da ancestralidade e do cruzamento ethnográphico (...) O degenerado torvo de faculdades deprimidas (...) com taras psychopatias, desses broncos cérebros de degenerados. Gustavo Barroso (1912: 121; 152-153)

De maneira curiosa, a primeira descrição que encontramos de Boa Vista foi a

do Padre Otávio Pinto, de passagem em Carnaúba, que visitou a comunidade em

1930. Num artigo publicado quatro anos depois no jornal A República, ele reage ao

livro de Câmara Cascudo Viagens no Sertão, no qual o autor afirma

categoricamente não ter visto “nenhum negro” durante sua travessia do semi-

58 José Adelino Dantas (1961: 22-23) relata o sepultamento de um índio (Antonio Carlos) casado com Roza Maria “criôla”, na “capela da Senhora do Rozario” de Caicó, em 1800.

Page 68: Relatorio Boa VistacomAnexos

68

árido.59 Apesar de ser escrito no modo picaresco e conter elementos da ideologia

dominante naquela época, podemos, com o auxílio dos quilombolas, registrar

informações importantes que atestam a antiguidade da presença afro-descendente

no local: Padre Pinto descreve sua visita na casa do patriarca da Boa Vista onde

encontra alguns antepassados dos moradores atuais: o velho Teodozio e sua

números prole, a Chica ‘Fael. De todos os relatos escritos, é Otávio Pinto que

fornece informações mais precisas sobre a existência de uma comunidade negra em

“Boa Vista”. Relata que a aldeia contava com mais de 500 habitantes, antes da

terrível seca de 1877 que teve como principal conseqüência o êxodo de uma grande

parte da população.

Além do registro do Padre Pinto, encontramos alguns escritos publicados

localmente que estão disponíveis na biblioteca municipal de Parelhas e poucos

trabalhos de folcloristas locais: retomam, geralmente, as versões contadas sobre a

origem do grupo que destacam a autonomia do grupo num período bem anterior à

Abolição e descrevem a dança do Espontão (Cascudo 1962: 297-98; 1980; Melo

1973). As publicações editadas com o auxílio da prefeitura descrevem episódios e

traços culturais do grupo em questão, e, quase sempre, apresentam a dança do

Espontão e a devoção a N. Sra. do Rosário como sendo caracteríticos da Boa Vista.

Testemunhas de antigos moradores, como àquele de Florêncio Hilariano, o

“Micoquinha”, que afirma que desde 1845, os “negros da Boa Vista vinham vender

cocadas, doces e beijus nos dias das disputas de cavalos, fazendo de mercado uma

velha oiticica que sombreava um bom pedaço de chão no local onde se encontra

hoje o Clube Centenário”. Assim é possível que “os Negros da Boa Vista” já viviam

no local antes da fundação da cidade, em 1856, pois alguns afirmam que, desde

1845, eles vinham para feira vender suas produções agrícolas:

59 Ver em anexo uma cópia do artigo de jornal A República publicado em 1934 e, também, no anexo do livro de L. da C. Cascudo (1975), Viajando o sertão.

Page 69: Relatorio Boa VistacomAnexos

69

Ninguém melhor que Micoquinha para falar sobre os negros da Boa Vista, uma raça muito unida e fechada que é apontada como grande responsável pelo desenvolvimento do lugar que se chamava Boqueirão60:

- Eles vieram com a velha Isabel, uma negra muito bonita e de grande liderança; ela veio direto da Europa (sic) para chefiar os negros na fazenda Boa Vista, que jamais chegaram a ser escravos (Micoquinha 1994).

A referência a Europa pode parecer estranha, porém, localmente, designa de

maneira genérica, os paises estrangeiros e poderia mesmo designar a África

(Cavignac 2006). O ponto interessante do relato que é consensual para os

moradores de Parelhas, é que “o povo da Boa Vista” não é visto como descendentes

de escravos, mas como uma “raça unida e fechada”, dirigida por uma mulher

extraordinária e com características físicas peculiares. Segundo outra fonte que

apresenta uma hipótese pouco segura sobre a orgiem da Boa Vista, a comunidade

era um antigo quilombo:

Na localidade de Quintos [Boa Vista, corrigido a mão], no município de Parelhas, existe um aglomerado de negros que, se diz, são remanescentes do famoso Quilombo dos Palmares. São os Negros do Rosário, elementos de uma pigmentação diferente, uma pele de um preto quase azulado. Eles cultuam danças e hábitos que vem dos seus ante-passados e vivem em comunidade como se de fato pertencesse a uma raça diferente. Chegaram a Parelhas certamente após a Libertação dos escravos, pela Lei assinada pela Princesa Isabel, quando ficou sem finalidade o Quilombo dos Palmares e seus residentes foram se dispersando, em grupos (Parelhas 1977: 40).

A imaginação do jornalista, pouco informado da realidade local – o nome da

comunidade descrita esta errada -, é fértil, mas, retoma uma versão que

encontramos de maneira corriqueira, associando as comunidades negras a uma

origem comum, o Quilombo dos Palmares: vai até mais longe, deduz uma data de

fundação para Boa Vista que seria ulterior à Abolição. O artigo reflete ainda a visão

depreciativa e monstra o pouco interesse da sociedade em geral em relação à

história e ao devir das comunidades quilombolas na região.

A partir do final dos anos 1970, professores e alunos da Universidade

Federal do Rio Grande do Norte, sobretudo os universitários que eram ligados ao

60 O autor refere-se a Parelhas.

Page 70: Relatorio Boa VistacomAnexos

70

Museu Câmara Cascudo, visitaram regularmente a comunidade. Prof. José Crispin,

professor de Antropologia, levava regularmente turmas de alunos, solicitando

auxílio da prefeitura municipal de Parelhas e a participação da comunidade na

preparação das refeições.61 Vários relatórios de pesquisa, monografias e teses de

dissertações foram produzidos sobre a Boa Vista ou sobre a Irmandade dos Negros

do Rosário: alguns trabalhos de cunho histórico se concentram na história oral

para apontar elementos constitutivos da identidade étnica; outros refletam a

preocupação dos seus autores em descrever problemas estruturais ligados à

marginalização econômica e social do grupo. Finalmente, há uma preocupação em

registrar o processo educativo e experiências de projetos coletivos. Com a excepção

de monografias de final de curso em história produzidas recentemente por

estudantes que mantém laços de proximidade com o grupo (Cruz 2004; Góis

2006), os estudos apóiam-se numa pesquisa empírica superficial e não apresentam

aspectos originais em relação aos outros trabalhos acadêmicos e poucos foram

entregue aos interessados (Mattos 1985: 121; Silva 2006; Weck 2000). O número

elevado de trabalhos acadêmicos produzidos sobre a localidade desde os anos 1990,

por ser um caso exemplar de uma comunidade quilombola “isolada” que mantém

uma tradição religiosa secular, explica também a presença de visitantes, grupos

escolares e estudiosos que, pelo menos desde o final dos anos 1970, vem conhecer a

comunidade.

Em 1998, o pesquisador Alecsandro P. Ratts elaborou um relatório técnico-

científico da comunidade para o projeto “Mapeamento e sistematização das áreas

de remanescentes de quilombos” a pedido da Fundação Palmares e, mais tarde,

61 Informações repassadas pelo professor Crispin, pelo telefone, em fevereiro de 2007. O Prof. Luiz Dutra (MCC-UFRN) que acompanhou o Prof. Crispin na época, disse, que foi feita uma grande quantidade de fotografias da comunidade; documentos que não foram encontrados na instituição. Há um documentário antigo filmado em 1963, por Veríssimo de Melo tratando da festa do Rosário em Jardim do Seridó que não foi localizado. Também existiria uma filmagem sobre a Boa Vista realizada por um professor da UFRN e que vários alunos nossos assistiram, mas esse material não foi disponibilizado. A falta de organização dos acervos de pesquisa e a retenção da informação por parte dos pesquisadores somada à não divulgação dos resultados da pesquisa é generalizada, porém, no que diz respeito à questão quilombola, o problema parece mais agudo.

Page 71: Relatorio Boa VistacomAnexos

71

Elizabeth Lima da Silva constituiu um banco de dados para Boa Vista. Esses

relatórios, apesar de serem interessantes, pois fornecem dados sobre a realidade

social vivida pela comunidade há dez anos atrás, não apresentam uma pesquisa

documental conseqüente e descrevem superficialmente os aspectos sociais e rituais

da comunidade que, como vimos, são centrais na definição da identidade

quilombola. Finalmente, é preciso apontar para o esforço do médico aposentado,

ex-prefeito de Parelhas e ex-deputado estadual (PFL), Ulisses Bezerra Potiguar,

estudioso da história de Parelhas, que realizando pesquisas nos arquivos cartoriais

e paroquiais de Parelhas, Jardim do Seridó e Acari, conseguiu reunir uma soma

importante de informações orais sobre a história da Boa Vista e uma quantidade

enorme de documentação escrita sobre Parelhas.

A realização do projeto Inventário das referências culturais do Seridó pelo

MINC/IPHAN-RN que levantou dados referentes ao culto do Rosário, despertou o

interesse de órgãos culturais em nível local: as municipalidades de Jardim do

Seirdó e de Parelhas consideram a dança do Espontão como uma parte significativa

do seu patrimônio cultural. Finalmente, o Núcleo Câmara Cascudo de Estudos

Norte-Rio-Grandenses da Universidade Federal do Rio Grande do Norte irá

realizar, em 2008, um documentário sobre a festa do Rosário tendo como foco a

comunidade quilombola de Boa Vista. A realização do presente estudo foi facilitado

pelo contato feito com o graduando em história, Sebastião Genicarlos dos Santos

cujo avô nasceu na Boa Vista. Além de trazer resultados documentais conseqüentes

de um ponto de vista documental, a referida pesquisa incentivou alguns membros

da comunidade em iniciar estudos visando a criação de um centro cultural em Boa

Vista – projeto que deve ser realizado com o apoio do Labordoc/CERES-UFRN.

Dessa forma, os remanescentes de quilombo de Boa Vista que foram,

tradicionalmente, objeto de pesquisa, tornam-se, cada vez mais, pesquisadores e

advogados da sua própria causa, produzindo uma reflexão crítica sobre a história.

Como veremos, conseguem, com sucesso, realizar uma síntese entre o passado e o

presente, atualizando os elementos de uma ancestralidade cuja principal referência

encontra-se na tradição oral transmitida pelos mais velhos e na dança do Espontão.

Page 72: Relatorio Boa VistacomAnexos

72

OS FILHOS DE TEREZA

Viva Nossa Senhora do Rosário!

Viva São Sebastião!

Viva as pessoas de bem!

Viva a boa sociedade, tronco, ramos e raízes!

Page 73: Relatorio Boa VistacomAnexos

73

A história da fundação e a longa memória genealógica compartilhada entre

os moradores fornecem uma legitimidade ao grupo que, até hoje, ocupa as terras de

“Boa Vista dos Negros”. Apoiando-se na tradição oral, os quilombolas apresentam

de forma unânime as circunstâncias do povoamento inicial de Boa Vista num relato

que coloca em cena dois grupos sociais e étnicos diferenciados que irão se distribuir

as terras: empregados recebendo favores dos fazendeiros, negros e brancos. É na

reiteração da genealogia do grupo e da narrativa que informa sobre as

circunstâncias da chegada dos primeiros moradores que se constrói o sentimento

de pertencimento ao grupo e que se explica a divisão do território. Também, a

dança do Espontão, realizada no final do ano em Jardim do Seridó, aparece como

uma outra forma de contar a história: encena ritualmente a luta e a resistência à

dominação sofrida ao longo dos séculos. Assim, a memória narrativa, a genealogia

e a dança aparecem como sendo os definidores da identidade coletiva.

Mostraremos que, apesar da ausência de estudos históricos sistemáticos,

existem evidências históricas que apontam para a existência secular de Boa Vista

dos Negros e, na sua origem, a comunidade era composta por famílias afro-

descendentes que tinha conseguido se libertar e adquirir uma autonomia

econômica, pois identificamos proprietários de terra pelo menos desde 1889; isto é

um ano apenas da Abolição da escravatura.

3.1. Tereza e o coronel Gurjão

O povo pobre pôs os cacarecos à cabeça e tratou de emigrar, ao azar de sua desgraça, em busca dos brejos e portos, morrendo de forme e doenças ao longo das estradas (Dantas 1941: 119).

Encontramos uma versão sedimentada contando a origem da comunidade

quilombola de Boa Vista. Todos reconhecem um ancestral comum, Tereza, uma

retirante que teria sido ‘adotada’ por um fazendeiro, o coronel Gurjão. Os mais

velhos, principalmente, gostam de lembrar a história de Tereza que lembra a vida

dos seus ancestrais. Assim, Dona Chica, Seu Zé Veira, Seu Manoel Miguel e Dona

Geralda mostraram um grande talento e interesse para lembrar os antepassados e

Page 74: Relatorio Boa VistacomAnexos

74

em apresentar suas genealogias que convergem para uma origem comum. Porém,

mesmo se, num primeiro momento todos afirmam que nunca houve escravidão em

Boa Vista, ao longo das narrativas e das evocações de um tempo longínquo, há

referencias sistemáticas a índios fugitivos e a escravos.

3.1.1. “De Domingo, foi Roberto. De Roberto, foi Inácio. De Inácio, foi Antônio...”

Todos nossos interlocutores retomam a versão contada por Chica62 e Seu

Emiliano (1911-2004); este era considerado como a pessoa de referência nos

assuntos ligados à história de Boa Vista (Cavignac 1994: 215). Grande contador de

história dotado de uma memória extraordinária era capaz de citar todos os nomes

dos descendentes de Domingos, em linha masculina:

Essa aldeia de negro aqui, começou de uma mulher. Começou de uma Luzia... Luzia, não, era Tereza, começou de uma Tereza. Essa Tereza, dizem que era negra retirante, vinha de não sei d’aonde, vinha bem de lá (R). Porque ninguém sabem d’adonde essa Tereza vinha.

Agora, quando chegou, era um ano seco. O ano era seco quando chegou aqui. Tinha um tal de um coronel Gurjão. Essa Tereza ficou na casa dele, como criada, como sendo da casa, criada da casa. Ela não ficou como escrava. Ela ficou como criada da casa, e quando ele passou esses negócios de terreno aqui de Boa Vista para ela, esse Coronel Gurjão, mas ninguém sabe quando foi isso... Porque minha avó é de 1825, a minha avó. E minha bisavó, de onde já vem? (R) Eu já sou da quinta geração dela, dessa Tereza.

A Tereza, o primeiro filho dela foi Domingo. De Domingo, foi Roberto. De Roberto, foi Inácio. De Inácio, foi Antônio63, que justamente é meu pai. Ninguém ouviu falar do marido dela. O filho, o primeiro foi Domingo, o outro foi Roberto e o outro foi Inácio, justamente meu pai era filho desse Inácio. Esse Inácio era bisavô de Francisca e ela é filha de Zé Vieira... Imbém era irmã do meu pai. O meu avô, por parte de pai nasceu aqui e aí foi a família todinha... todinho nasceu aqui e se criando aqui. (Seu Emiliano, 1991)

62 Francisca Vieira, Chica, a primeira professora de Boa Vista nasceu na Boa Vista em 1937. Para o depoimento integral, ver Cavignac (1994: 574- 5). 63 Seu Emiliano faz referência a seu pai, Antônio Fernandes da Cruz, Antônio Moreno (1869-1954), irmão de Manoel Gino, de Teodózio e de Imbém que segundo o registro encontrado por Seu Ulisses seriam filhos de Domingos Fernandes da Cruz (1784-1857).

Page 75: Relatorio Boa VistacomAnexos

75

Retomando o relato detalhado de Seu Emiliano, e acompanhando a

genealogia descrita por ele, voltamos, aproximadamente, para a segunda metade

do século XVIII; momento em que Tereza, a “retirante”, teria chegado na casa do

coronel Gurjão.64 Segundo uma versão edulcorada da história, o coronel, que

morava no sitio Maracujá, teria doado uma parte das suas terras a Tereza e seu

filho, Domingos, dando assim início à ‘comunidade de Boa Vista dos Negros’. Na

versão contada por Seu Emiliano, Tereza, que era amante do fazendeiro, teve que

ser afastada do domicílio do Coronel Gurjão após sua esposa saber da traição; este

teria presenteado Tereza com as terras da Boa Vista para ela poder criar seu filho.

Seu Zé Vieira, falecido há alguns meses aos 81 anos, acrescenta detalhes à

história de Seu Emiliano e reforça a versão da união extra-conjugal entre o

fazendeiro e a retirante: segundo ele, Tereza veio acompanhada do pai e de duas

outras irmãs. A família pediu ao proprietário um lugar para passar uma noite e foi

o coronel Gurjão que solicitou ao pai deixar Tereza na casa dele. Não se sabe mais

do pai, mas as outras irmãs foram morar na Caatinga Grande e em Jardim do

Seridó.65 Seu Zé de Biu, cunhado de Zé Vieira, afirma que parentes de Tereza foram

morar em sítios nos municípios vizinhos, Jardim do Seridó e Parelhas

(Carnaúbinha, Caatinga Grande e Olho d’Água do Boi).66 Justamente, são lugares

onde encontramos registros históricos de escravos, onde existem comunidades

quilombolas e onde é festejada N. Sra. do Rosário. É como se a desestruturação da

família nuclear original correspondesse ao surgimento de vários outros núcleos de

64 Na verdade, há uma diferença de uma geração entre a versão contada por Seu Emiliano e a de Seu Manoel Miguel. Nesse caso, os desbravadores de Boa Vista teriam chegado no início do século XIX. 65 Informação transmitida por Sebastião Genicarlos dos Santos em 06/05/2006. 66 Seu Jozias da Silva, morador de Carnaúba dos Dantas, entrevistado em 20/10/2007, conta a história de sua avó que era escrava. O pai de Seu Jozias, José Antônio Maria, conhecido também como João Teodora (1877-1960) gostava de contar a história de vida de Maria Negrinha ou Mãe Negrinha, Maria Sabina da Conceição, parteira renomada. Ela veio morar em Carnaúba, casou-se e morreu lá, em 1954. Sua irmã Romana, que ficou com ela em Carnaúba, casou com João Pedro Dantas. Uma outra irmã delas foi morar no Olho d’Água do Boi, localidade situada no atual município de Parelhas. Mesmo se Seu Jozias conta uma história parecida à do mito de origem de Boa Vista e se orgulha de ter tido uma avó ecrava, ele não reconhece laços de parentesco com os moradores da Boa Vista.

Page 76: Relatorio Boa VistacomAnexos

76

povoamento na região. Assim, todas as comunidades quilombolas teriam uma

origem comum e manteriam antigas relações de parentesco através das irmãs

abandonadas durante a seca. Também, podemos pensar a narrativa de fundação de

Boa Vista iniciada com uma viagem: seria a metáfora da vinda dos ancestrais

escravizados para o Brasil e do destino dos quilombolas que, ao chegar, se

“espalharam nesse meio de mundo, criando família”.

Há outras versões da narrativa de fundação que incluem algumas

modificações em relação à contada por Seu Emiliano. Uma primeira, relatada por

Seu Ulisses Potiguar (maio 06)67, informa que Tereza teria sido deixada por seus

pais na casa do Cel. Gurjão, durante a grande seca de 1877, para agradecer a ajuda

prestada à família. As outras irmãs de Tereza teriam ficado em outras

propriedades: uma em Carnaúba dos Bezerras – hoje Carnaúba dos Dantas -,

fazenda desta família, outra no Olho d’Água do Boi, fazenda pertencendo à família

de Seu Ulisses, onde havia escravos, e a outra na Serra do Cuité na Paraíba:

Seu Ulisses (16/05/2007) Chica (12/03/1991) Porque quando eles vieram pra’qui numa seca grande e os pais, que eles não deixaram os nomes, tinham três negrinhas. Uma eles deram na Carnaúba, na Cobra, a um tal de um capitão... Deixe-me ver se me lembro o nome dele... depois eu lhe digo. Uma foi para Cuité e outra foi para Olho D’Água do Boi. Na Olho D’Água do Boi extinguisse totalmente, eu só encontrei um que por sinal foi o primeiro caso da cólera, aqui, no município, identificado foi lá. E esse ali da Boa Vista ele ficou por lá, ele fez uma doação de uma área por ali que a gente chama o Riacho do Gavião que ainda é a propriedade deles, viu... daí, como é que se diz, dividiu-se em todo aquele município. Eu ficava assim impressionado e um dia eu peguei Zé Viera, ai ele confessou: - O patrão começou a namorar a pretinha. Aí, a mulher deu escândalo, ele botou a menina

O pessoal mais antigo não se importava, o estudo era um pouco difícil. Aqui ninguém sabia ler, o pessoal mais velho. Quem sabia ler? Ai o pessoal mais velho não se importava, não se preocupava da pessoa saber daquilo. Agora, depois que o estudo ficou mais aprofundado, aí, muitas e várias pessoas aqui para contar a história da comunidade, dizer como a comunidade, desde quando, de onde era os primeiros negros, mas aí, não tem quem diga, a gente não sabe quem foi os primeiros negros. A gente só sabe assim, que os negros velhos diziam que os negros era um Domingos e uma Tereza. Foram os primeiros negros daqui, mas ninguém tem certeza. Ninguém sabe se esse Domingo era o esposo da Tereza e nem ninguém sabe se era o pai ou se não era. Mas se sabe que os negros vem desse pessoal. Olhe, tudo no mundo aqui dos negros vem logo

67 Seu Ulisses Potiguar, médico, foi deputado estadual reuniu uma vasta documentação histórica sobre a cidade de Parelhas e, em particular, sobre a Boa Vista dos Negros.

Page 77: Relatorio Boa VistacomAnexos

77

e mandou pra lá, ai foi justamente o inicio...

de Domingo e de Tereza. Mas ninguém não sabe se eram índios. Agora a gente sabe isso porque minha avó, ela morreu com 106 anos, nessa comunidade, e ela nasceu aqui. Ela morreu com 106 anos em 46, 47. Nasceu aqui e aqui morreu com essa idade. Quer dizer que no tempo da escravidão ela já existia.

Constatamos que Dr. Ulisses Potiguar (março 07), retoma fielmente a versão

contada pelos quilombolas, incluindo detalhes históricos e geográficos. Assim,

nessa versão mais “completa”, além de se tratar de uma simples doação de terra, o

filho da união ilícita, Domingos, recebe a propriedade de herança do seu ‘pai’, o

rico fazendeiro. A transmissão ‘natural’ das terras fundamenta ainda mais a

legitimidade da ocupação do território pelos quilombolas. Além de revelar um

segredo e a origem da terra, o relato indica com precisão lugares próximos a Boa

Vista: Carnaúba, Cuité, Olho d’Água do Boi, Cobra, Riacho do Gavião. A referência

à fazenda Olho d’Água do Boi, que segundo Dr. Ulisses é propriedade da sua

família, é interessante, pois remete-nos à existência da partilha ocorrida entre os

herdeiros de Teodôzio em 1859.68

Finalmente, existe uma outra versão da história da fundação de Boa Vista,

desta vez contada por Seu Severino Francisco dos Santos e Dona Quintina Maria da

Conceição (10/05/07) em que Tereza chega grávida na Boa Vista. Mais do que isso,

é escrava – e Seu Severino, que não nasceu na Boa Vista, insiste sobre o fato. Dona

Quitina não deixa claro se Tereza foi libertada pelo seu generoso e rico dono (“um

Barão”) ou por um decreto (“um papel” e a referência à Brasília):

Seu Severino: Esse filho, eu não sei como era o nome não, que não era do meu tempo...

Dona Quintina: Foi um dos primeiros negros que chegaram aqui.

Seu Severino: Ninguém sabe com quem ela (Tereza) era casada... que ela não era casada, ela chegou aqui com um filho e gerou esse povo todinho.

Dona Quintina: Pra mim, esse filho ‘ta bem guardado... Pra minha lembrança, eu acho que esse filho ainda veio guardado...

68 Ver documento em anexo.

Page 78: Relatorio Boa VistacomAnexos

78

Julie: Como assim?

Seu Severino: Vinha grávida, quando chegou aqui.

Dona Quintina: Foi um negócio que houve aqui, aqui não, não sei por onde, e eles saíram carregando... por certo pra não judiarem com os negros. Depois, ai soltaram ela aqui. Foi coisa do Barão... arranjou esse papel e ficou lá por Brasília.

Seu Severino: Ela era escrava.

Julie: Essa Teresa era escrava?

Seu Severino: Era escrava!

Dona Quintina: Quando o Barão foi embora, o filho ficou. Ele foi embora e ela não podia ficar só com o menino. Ai ficou, e essa terra foi doada ao filho.

Seu Severino: Agora, esse menino dessa Teresa foi que esbanjou Boa Vista, mas ninguém sabe quem ele é (Risos)... Foi ele quem formou Boa Vista. Mas ai, ninguém sabe como é ele.

Dona Quintina: Eu acho que a gente estamos bem na quinta geração.

Mesmo se nossos interlocutores atualizam a história de Tereza introduzindo

a referência a Brasília e a existência de um título de propriedade, eles retomam os

elementos constitutivos da narrativa: são os mesmos personagens, a situação social

desigual é acentuada, a docação da terra legitima a presença dos quilombolas, a

gravidez, as cinco gerações, etc. Nossos historiadores incluem, também, elementos

que dão um tom trágico à história de Tereza, insistindo sobre o estatuto de escrava

e os maus-tratos recebidos; deixam entender que Tereza, já grávida, foi deixada a

força pelo “Barão”, em Boa Vista (“soltaram ela aqui”), após ter sido maltratada

(“Judiar”). Ao contrário das outras versões, Tereza não é acolhida pelo “patrão”,

mas ela é abandonada. Em vez de vir acompanhada por suas irmãs e ser confiada

pelo pai a um homem que já esta instalado no local, Tereza chega em Boa Vista,

grávida e sozinha, numa situação crítica. É o filho, Domingos, que ao receber a

terra em herança, “forma” Boa Vista: todos os moradores encontrariam-se, então,

ligados por relações de parentesco. Assim, a referência direta à escravidão e a uma

situação de conflito, reintroduz uma história exemplar num contexto histórico mais

amplo, no qual as desigualdades sociais são acentuadas e reforçadas pela

discriminação racial.

Page 79: Relatorio Boa VistacomAnexos

79

3.1.2. Pai Cosme, Mãe velha e Imbém

Vimos que há poucas referências feitas à escravidão durante a evocação do

passado feita pelos moradores da Boa Vista. O estigma associado ao estatuto de

‘cativo’ é ainda muito forte: geralmente, os contadores da história que fornece

explicações sobre a origem da comunidade, insistem sobre a liberdade de Tereza

que era retirante. Da mesma forma, as narrativas que coletamos indicam sempre

que os primeiros moradores de Boa Vista dos Negros eram livres ao chegar ao

lugar. Por outro lado, existem referências furtivas a índios que, às vezes, são

confundidos com os escravos, pois “moram no mato”.69 Assim, a recorrência das

figuras indígenas na região do Acauã indica que há uma associação implícita entre

índios e negros fugidos.

Na entrevista realizada em 1991, Dona Chica, faz referência a sua avó Imbém

que nasceu em 1840 na Boa Vista, expressando sua dúvida sobre a sua origem

étnica; ninguém sabe se era ‘índia’ ou ‘negra’. A preocupação com a origem e com o

passado de Boa Vista percebe-se na fala de Dona Chica que traz na memória a

lembrança de ancestrais indígenas: Joana e Antônia (Cavignac 1994: 215). Segundo

seu Manoel Miguel, Joana era casada com Manoel Miguel, seu ancestral; eram

escravos vindo do Brejo, da família Mubuca, originários da serra de Cuité. Os filhos

deles vieram morar e se casar na Boa Vista: Cosme Miguel dos Santos (Pai velho)

que veio morar na casa da pedra casou com mãe Antônia, ou mãe velha, Antônia

Miguel – Antônia Maria da Conceição, nascida na Boa Vista70; João Arcanjo da

Cruz, ou João Miguel, casou com Severina Maria da Conceição, neta de Inácio

Roberto e de Joana; José Vieira ou Zé da Cruz, que casou com Maria Serafina de

69 Em outros trabalhos, mostramos que, na região, a história dos dois segmentos étnicos se confunde e que a ancestralidade indígena é antes ligada a um suposto estado de selvageria no qual se encontravam os antepassados, fugindo das perseguições (Cavignac 1995, 2003, 2006). Uma das possíveis explicações desta ‘confusão étnica’ é que tem relatos da existência de uma escravidão indígena na região, nos séculos XVIII e XIX (Macedo 2000). 70 Um dos filhos de Antonia e Cosme Miguel, Zé Cosme (Miguel) [1913-1992].

Page 80: Relatorio Boa VistacomAnexos

80

Jesus, Imbém (1840-1946), avó de Dona Chica. Encontramos ainda Isabel Maria da

Conceição ou Cabel que, segundo Seu Manoel Miguel, era também uma ‘cabocla

braba’ originária do Brejo Paraibano, de Várzea, da família Fael; teria sido adotada

por pessoas da Boa Vista. Cabel teria se casado com Antônio Fernandes Viera ou da

Cruz, o pai de Seu Emiliano, Antônio Moreno (1869-1954).71 Também, segundo

Dona Chica, Toinha ou Mãe velha, a índia originária de Várzea, na Paraíba, teria

casado com Inácio Roberto, nascido nas primeiras décadas do século XIX.72 Esse

último era irmão de André Fernandes Vieira que, por sua vez, era casado com

Joana de Jesus Cassimiro (1825-1896).73

Fotografia 2 - Pais de Dona Chica e Seu Zé Vieira (jan.07).

Se, em alguns momentos, Dona Chica evoca a presença de escravos

originários da Boa Vista que foram morar em Ouro Branco, cidade vizinha de

Parelhas, ela não tece muitos comentários sobre o fato. A discrição sobre a

71 Encontramos o nome de Antônio Fernandes da Cruz em dois inventários: um primeiro, de Domingos Fernandes da Cruz e um segundo, datado de 1859, de Manoel Fernandes da Cruz, um dos proprietários da Boa Vista (ver em anexo a relação dos documentos encontrados durante a pesquisa documental). 72 Interessante notar, como já foi apontado por nós em outros momentos, que, no que diz respeito à memória indígena, tratam-se sempre de mulheres: as caboclas brabas. 73 Ver em anexo.

Page 81: Relatorio Boa VistacomAnexos

81

escravidão por parte dos nossos interlocutores mostra que existe um silenciamento

do passado escravocrata. Assim, por exemplo, Seu Jozias, morador de Carnaúba

dos Dantas relata vários casos de maus tratos relativos a escravos por parte de ricos

proprietários: na Ramada ou Rajada – serra situada entre Carnaúba e Boa Vista –

Zé Martins matou a escrava e sua filha; Pedro Major, que tinha muito escravos,

torturava e chicoteava sistematicamente os desobedientes, amarando-os e

colocando sal nas feridas das vítimas – foi descoberto por Luiza e ficou com a mão

levantada até sua morte, sinal de castigo divino; Estevão levou duas escravas na

serra do Marimbondo para esturpá-las e matá-las; finalmente, Manoel Chico Cara

Preta “judiava” os escravos.74

Já, em 1990, Seu Emiliano, nos relatava a existência de ancestrais indígenas

e de velhas africanas que ninguém entendia, pois falavam uma outra língua. Ao

descrever a genealogia do grupo, informava sobre a existência de dois grupos de

origem étnica diferente:

Primeiro, tem uma parte africana... Mamãe75 dizia que tinha duas nega’ velha’ aqui, era da Angola. Não sei quem trouxe elas aqui. Mamãe dizia que a fala delas não conhecia não, não tinha quem conhecesse, só elas mesmo falavam. Era pra chamar Seridó, chamava Sirisomazieriro (R). Também tem uma parte que tem parte com índio. Tem uma parte que era índio. Porque a gente tem parte com índio... eu, não. Agora é uma família só, por certo que esses mais velhos casaram com uma cabocla braba. Olhe, a avó de Francisca era uma cabocla braba, mas já é da família de ‘Fael (Seu Emiliano 1991). [grifo nosso]

A referência a Angola nos leva diretamente à escravidão, pois existem

registros de gentis ‘d’Angola’ e de ‘Guiné’ nos inventários da região; diz respeito a

um tipo físico e, sobretudo, a escravos nascidos na África (Macedo 2007; Mattos

1985: 120). Seu Emiliano se refere à Isabel Maria da Conceição, filha de Manoel e

Antônia Fael. No entanto, Dona Chica os designam como caboclos que vieram da

Paraíba vizinha num período longíquo que a professora não sabe precisar. É a

74 Em Carnaúba, havia um fazendeiro chamado Quincó da Rajada que era conhecido por sua crueldade. Ver Dantas 2004, Macedo 2004 e Medeiros Filho 1981:113. 75 A mãe de Seu Emiliano chamava-se Maria Luiza da Conceição.

Page 82: Relatorio Boa VistacomAnexos

82

mesma Chica Rafael que o Padre Pinto encontrou em 1930 e que morava do outro

lado do rio Cobra, na Várzea do Serrote que, na época, fazia parte da propriedade

de Florêncio Luciano.76

Também, Dona Chica nós repetiu, em várias ocasiões, que a sua avó materna

era uma cabocla braba oriunda do brejo paraibano, da família Mubuca.77 Maria

Bem-Vinda (1902-1994), a avó materna de Dona Chica, era filha de Mãe Antônia ou

Mãe velha (Antônio Maria da Conceição). Ela veio de Várzea ou da serra de Cuité,

na Paraíba com sua irmã, Maria Pequena, que era casada com Pai velho ou Pai

Cosme, Cosme Miguel dos Santos. Por outro lado, sabemos que o pai de Cosme

Miguel, Manoel Miguel, era escravo: ele teria fugido da Paraíba dos maus tratos dos

seus antigos patrões.78 Assim, mesmo sem referências históricas precisas, podemos

avançar que a chegada dos ancestrais de Dona Chica remontam a um período

anterior à Abolição. A presença de índios ou de caboclos, freqüentemente evocados

quando se fala das origens e dos ‘outros tempos’, se confunde com a evocação dos

antigos moradores de Boa Vista.

3.1.3. A história silenciada

Mesmo se há algumas variações, com a referência direta à escravidão,

verificamos que é a mesma história que está sendo contada por Dona Quintina,

inclusive com a indicação da permanência de cinco gerações nascidas em Boa Vista,

fato já apontado por Seu Emiliano. A ancestralidade da Boa Vista, contada em

geração, remontaria então aos meados dos anos 1840, época em que Imbém

nasceu. Os diferentes relatos da fundação de Boa Vista apontam para uma situação

social em que uma jovem mulher, livre e pobre (retirante ou escrava) recebe uma

76 Informação de Dona Chica (07/12/06). 77 Mubuca: nome de origem tupi, designando um tipo de abelha. 78 Informação coletada por Sebastião Genicarlos com seu pai (fev. 07).

Page 83: Relatorio Boa VistacomAnexos

83

ajuda de um homem rico e poderoso (barão, patrão, coronel e/ou amante). A partir

daí, Tereza mudará de estatuto, pois se torna “criada da casa”, situação social

inferior que encontramos com certa freqüência ainda hoje na região.79 Assim, trata-

se de um estatuto ambíguo que, por vezes, assemelha-se ao trabalho doméstico ou

mesmo escravo, pois não há relação monetária entre os interessados. A

“hospitalidade”, forma de solidariedade quase obrigatória que encontramos no

sertão, sobretudo no período das secas prolongadas, transforma-se numa relação

de trabalho e/ou de afeto.80 Além da morada, Tereza é presenteada com as terras de

Boa Vista, lugar aonde se estabelecerá e irá criar sua família – inicialmente

composta por um único filho. Importante apontar, desde já, para o estatuto das

terras tal qual aparece nesse relato: a doação inicial por parte de um “coronel”, um

grande proprietário de terras com um poder político dá legitimidade à ocupação do

território. Também, a versão contada por seu Zé Vieira e Dona Quintina coloca em

cena a união extra-conjugal entre Tereza e o Coronel, união da qual nascerá um

filho, Domingos que receberá as terras da Boa Vista como herança – como todos os

moradores de Boa Vista reconhecem ter um laço de filiação com os fundadores, eles

“tem direito à terra”.

De qualquer modo, e retomando um dos ensinamentos do estruturalismo,

sendo que as produções narrativas não refletem a vida social, mas, sua

interpretação: a história da fundação da Boa Vista dos Negros apresenta uma

explicação plausível de como os quilombolas se tornaram donos da terra (Lévi-

Strauss 1970, 2003). São hipóteses relativas à ocupação do território por parte de

populações que fugiram da escravidão, de um modo ou outro. A história contada

oferece uma tradução narrativa de um fato histórico que insiste sobre a origem da

comunidade: todos os moradores da Boa Vista são ligados por uma relação de

parentesco (filiação) em linha direta, de pai para filho; o ato de doação de terra

79 O criado designa geralmente um agregado, uma criança/adolescente que faz companhia aos filhos dos donos e realiza pequenos serviços domésticos em contrapartida da acolhida pela família. Também era o nome dado aos escravos (Bezerra: 19). 80 Manoel Dantas (1941: 117) fala do “espírito de caridade” dos sertanejos.

Page 84: Relatorio Boa VistacomAnexos

84

ficou gravado na memória e acompanha a genealogia dos herdeiros de Tereza e

Domingos.

Se escutarmos a narrativa de fundação de Boa Vista e suas diferentes versões

olhando para os documentos encontrados, verificamos que, além da

correspondência apontada por nossos interlocutores entre os nomes citados nas

genealogias e os que foram registrados pelas autoridades locais, a versão da doação

das terras corresponderia às informações contidas no inventário de 1859: não se

sabe a origem das terras da Boa Vista, ao contrário do sítio de Olho d’Água do Boi

que foi comprado. Se como as pesquisas genealógicas e documentais apontam, os

primeiros moradores negros da Boa Vista chegaram entre a segunda metade do

século XVIII e o início do século XIX, é bem capaz que o grupo ocupou o espaço

sem adquirir as terras pois, sabemos que, na região, pelo menos durante o período

colonial, o principal modo de acesso à terra era a doação e, depois de 1850, foi a

herança (Mattos 1985: 82-112). Além disso, a referência sistemática ao “Coronel

Gurjão” nos relatos sobre a origem da Boa Vista encontra um eco na historiografia

local: sabemos que Francisco Pedro de Mendonça Gurjão era governador da

Paraíba em 1734 e que atribui, em 25/05/1734, a Tomás de Araújo Pereira, uma

data de sesmaria no riacho Juazeiro, e, em 1735, ao Cel. Lourenço de Góis e

Vasconcelos, uma data de sesmaria no riacho da Cobra (Medeiros Filho 2002: 33-

34; Tavares 1982: 146-147). Essas duas sesmarias englobam, provavelmente, o

território tradicionalmente ocupado pelos remanescentes de quilombo da Boa

Vista. A memória oral pode ter conservado a marca dos primeiros documentos

históricos coloniais que existem sobre a localidade. 81

Preferimos pensar que a memória genealógica de Boa Vista remonta a um

evento fundador e a um tempo primordial. A história torna-se mito. O evento é

uma seca durante a qual uma “retirante” é acolhida e “adotada” por um fazendeiro.

81 Encontramos um município “Gurjão” nas proximidades de Campina Grande. Segundo Sebastião Genicarlos dos Santos, a expressão “riacho abaixo” designa um percurso que sai da Boa Vista para a localidade vizinha, o Joazeiro. Também é interessante encontrarmos o nome de Luciano como solicitante das terras, pois os atuais vizinhos têm como sobrenome “Luciano”.

Page 85: Relatorio Boa VistacomAnexos

85

O tempo remete à época em que as terras eram doadas e que existia uma relação

amigável entre os grandes proprietários fundiários e os seus moradores. Se

tentarmos datar o evento, podemos pensar que Tereza veio durante a ‘grande seca’

de 1791-93 – pois, a data de 1877, lembrada por Seu Ulisses, é ulterior a data de

nascimento de Imbém (1840). O final do século XVIII corresponde à época em que

a memória genealógica aponta como sendo a da chegada de Tereza. A tragédia do

final do século XVIII, presente na memória dos sertanejos nascidos nos meados do

século XIX, é o momento em que um dos “mais abastados fazendeiros da zona do

Seridó, viu-se obrigado a emigrar para a ribeira do Cunhaú, fazendo o trajeto a pé,

transportando à cabeça dos escravos sacos de moedas de ouro e prata” (Dantas

1941: 118). Seria, justamente, o momento da fundação de Boa Vista, conforme a

versão oral que se apoia na memória genealógica dos mais velhos; todos falam de

‘cinco gerações de negros’ nascidos no local. De fato, a doação da terra pelo

fazendeiro vizinho, refere-se a uma época anterior a 1850, data em que é criada a

Lei de Terras e em que o sistema colonial de sesmarias é abandonado (Mattos

1985). A versão oral retrataria, assim, uma troca de favores entre um proprietário

de terras que teria cedido uma parte do seu patrimônio e uma escrava liberta: o que

a história oral lembra é que Tereza ficou nas terras e, no decorrer da história, não

há mais nenhuma referência ao seu primeiro proprietário branco.

Veremos que a reconstrução genealógica permite afirmar que, antes da

Abolição, já existia Boa Vista dos Negros – porém a memória local não especifica se

os moradores eram livres ou escravizados: todos afirmam que Imbém, Maria

Serafina da Conceição, avô de Dona Chica e de Dona Quintina já nasceu livre em

1840; ela morava numa tapera feita de galhos perto do açude “dos Negros”, lugar

que fomos visitar, guiados por Seu Manoel Miguel e Dona Chica. Segundo sua neta,

Imbém tinha costumes estranhos, gostava de morar em baixo das árvores,

levantava-se de madrugada para comer carne assada. Era parteira e fumava

cachimbo.

Page 86: Relatorio Boa VistacomAnexos

86

Fotografia 3 - Casa de Imbém (1941).

Fotografia 4 - Seu Manoel Miguel e Dona Chicalugar onde ficava a casa de Imbém (março 07).

Dessa forma, várias possibilidades existem sobre a origem de Boa Vista dos

Negros, além da versão nativa, em que é encenada a doação de terras por parte de

um fazendeiro generoso: os “negros da Boa Vista” podiam ser escravos que, com o

trabalho, conseguiram comprar cartas de alforria – como vimos, a partir dos

meados do século XIX, há vários exemplos de vaqueiros que conseguem reunir um

capital em gado82 – e que continuaram a morar na antiga propriedade. Também,

podiam ser libertos que se instalaram numa terra devoluta ou, finalmente, podiam

ser escravos fugidos ou deixados a sua própria sorte, com a o abandono da

propriedade pelos donos durante uma seca. É ainda possível que uma família de

retirantes ocupou um espaço esvaziado após a grande epidemia de cólera de 1856;

na literatura local, há registros de que os fazendeiros deixavam suas propriedades

ao cuidado de um escravo ou de um vaqueiro (Andrade 1990: 148; Dantas 1961:

82 Não encontramos registros de libertos comprando terras antes de 1850: em Boa Vista, há um título de compra de terra datado de 1889.

Page 87: Relatorio Boa VistacomAnexos

87

148; Medeiros filho 1983: 22; Macêdo 2005: 82).83 Também, podemos encontrar

uma combinação dessas diferentes situações: veremos que existem registros orais

de que, na região, se sabia da existência de famílias negras livres em Boa Vista, o

que atraiu escravos fugidos ou recentemente libertos de outros lugares, como o

exemplo de Cosme Miguel dos Santos que veio morar na casa da pedra depois da

Abolição e se casou com uma moça de Boa Vista.84

Apesar das imprecisões, dos silenciamentos e das dúvidas freqüentes em

relação ass dados genealógicos familiares, notamos que é na a evocação da história

antiga das famílias provoca o surgimento da memória sobre escravos e índios;

assim, as referências são também discretas na literatura regional, embora haja uma

miscigenação efetiva, pelo menos no século XIX (Dantas 1961: 22-23). Essa

memória “mestiça” deve ser provocada, pois surge dificilmente e a memória da

escravidão é sistematicamente silenciada, mesmo se ela aparece de forma

inopinada. Segundo nossos interlocutores, o esquecimento do grupo em relação aos

acontecimentos do passado é ligado à falta de interesse dos mais velhos em

repassar a história, à proibição dos jovens em participar das conversas dos antigos

ou à falta de esclarecimentos da população local devido ao analfabetismo e à falta

de assistência por parte do poder público. Porém, podemos pensar que esses

assuntos foram sistematicamente evitados e silenciados como uma estratégia de

proteção de um grupo constantemente perseguido e de defesa para os indivíduos

fugindo um passado servil.

Analisando os documentos existentes, verificamos os ancestrais dos atuais

moradores da Boa Vista dos Negros já tinha a propriedade das terras em Boa Vista

em 1859, mais de duas décadas antes da Abolição da escravatura. Desta forma, a

documentação escrita vem confortar a versão oral da história: nos ensina que o

83 Registra-se, no final do século XVII e no século XVIII “sobras de terras” e “terras devolutas” sendo requeridas por não terem sido utilizadas pelos sesmeiros (Macêdo 2007: 62-78). Apesar de existir, na região de Parelhas, terras não cultivadas no século XIX, não encontramos informações sobre requerimentos de terras nessa época.

84 Segundo Seu Zé de Paulina, a casa da pedra ficaria distante de Boa Vista, perto de Juazeiro, localidade vizinha. Outras pessoas acham que era no sítio Maracujá.

Page 88: Relatorio Boa VistacomAnexos

88

destino dos remanescentes de quilombo mudou numa época longíqua – no mínimo

cinqüenta anos antes da Abolição, os servos se tornaram donos de terras e se

esforçaram, ao longo dos séculos, em conservar o patrimônio herdado dos pais.

Desta forma, antes de se atualizar num movimento político, a afirmação étnica

passa pelo reconhecimento de uma ancestralidade atrelada a um território e a uma

memória constantemente revisitada.

3.2. Memória e genealogia

Quando olhamos com mais atenção para as genealogias coletadas,

percebemos um grande esforço para lembrar o passado: a memória genealógica

remonta, em geral, a mais de três gerações. Corresponde a um exercício difícil de

rememoração precisa da história do grupo que vem sendo repetido, sobretudo

pelos mais velhos, aos diferentes visitantes da Boa Vista.

3.2.1. A casa da pedra e o tesouro dos índios

Coletamos um relato interessante sobre moradores da casa de pedra, local

que os mais velhos conhecem e que é situado no Juazeiro. Nessa narrativa, há

referência a um tesouro – provavelmente encantado – associado a uma casa

abandonada por seus construtores, repetindo um esquema narrativo já encontrado

em outros relatos de fundação (Cavignac et. alli. 2006). Aqui, diferentemente do

que acontece em outros grupos quilombolas que não reconhecem as origens

indígenas e africanas, podemos perceber que ‘índios’ e ‘negros’ são utilizados como

sinônimos, pois viviam perseguidos e se escondiam ‘no mato’.

Dona Nuca se refere ao seu tio, João Café que passou um tempo morando na

casa da pedra, em Boa Vista. Justamente, era a casa que Manoel Miguel, o escravo

fugido da Paraíba veio ocupar. Comparando com a genealogia da nossa contadora,

podemos presumir que se trata de um período situado no final do século XIX:

Page 89: Relatorio Boa VistacomAnexos

89

Meu tio João Café, não era da Boa Vista, ele era de Jardim do Seridó, não era da Boa Vista, mas ele participava da irmandade do Rosário já fazia muitos anos e era muito amigo do povo da Boa Vista e sempre andava por lá, na casa dos amigos. Aí... Um dia ele arranjou uma morada lá na Boa Vista, nessa casa da pedra. Essa casa da pedra, o povo contava que ela era um canto onde os índios, aqueles negros fugidos se escondiam. Dizem que eles tinham tesouros, muita coisa boa, cabedal de ouro, pote cheio de ouro e tudo. Mas quando foi um dia, eles pressentiram, eles já estavam tudo acostumados a passar tempo escondidos nessa casa da pedra, mas nesse dia eles pressentiram que os perseguidores, aquele povo que queria pegar eles, já vinham bem pertinho, aí eles correram e não puderam levar todo tesouro, aí eles esconderam uma parte lá mesmo na casa da pedra e fugiram com o resto, era tanta coisa boa que eles falavam tanto ouro, muita coisa é porque eu não me lembro mais. Eles correram com o resto da riqueza, mas era muito difícil de levar, muito pesado, aí eles pegaram e esconderam dentro do mato naquela serra do Marimbondo, não tem uma serra do Marimbondo? Pois eles esconderam o resto lá. Quando tio João Café arranjou essa morada, foi morar mesmo nessa casa da pedra, e o povo dizia a ele:

- João Café, aí nessa casa tem um tesouro escondido e qualquer dia vai aparecer uma pessoa e vai te dar...

Que eles dão a todo mundo que mora nessa casa e ninguém têm coragem de receber. Mas tio João Café não acreditava nisso, dizia que não acreditava, dizia que isso era conversa, ali não tinha nada não. Aí quando foi uma noite, ele estava dormindo, estava deitado, já tarde, aí escutou as tropeladas do cavalo. Era uma pessoa que vinha para a casa dele. Aí, a pessoa chegou e chamou, mas ele não respondeu. A pessoa chamou de novo, aí ele abriu a porta: era um homem muito feio, muito esquisito. Disse a ele que aquela riqueza todinha era dele, ele fosse logo na serra buscar o que tinha ficado escondido lá e o da casa tudo era dele. Mas ele não teve coragem de ir. Disse que não queria, a pessoa deu a rédea do cavalo e pelejou com ele para ir buscar que era tudo dele, mas ele não quis, não teve coragem. Aí essa pessoa foi-se embora. Ele me contava muito isso... é porque eu não me lembro direito, mas tinha muita coisa assim que ele contava.85

Assim, segundo informa a narrativa, a casa da pedra, situada entre a atual

Boa Vista e o Juazeiro, era um refúgio para os fugitivos: caboclos ou negros se

escondiam para não serem capturados pelos brancos. Recebiam o nome de ‘índios’

ou ‘caboclos’, pois ‘viviam no mato’ e se confundiam com as populações nativas:

mudavam sempre de lugar e possuíam um valioso tesouro, tão grande que não

pude carregar e que ainda está por ser desenterrado na casa e na serra. O cavaleiro

que veio visitar João Café na casa da pedra com o intuíto de revelar o lugar do

tesouro, é a alma de um antigo morador fugitivo. A presença de um tesouro – ou

85 História contada por Maria do Carmo Nascimento, conhecida como Nuca, coletada por Sebastião Genicarlos dos Santos em Parelhas, 27/06/07.

Page 90: Relatorio Boa VistacomAnexos

90

mina -, indica a presença de um fenômeno sobrenatural; idéia reforçada por outros

elementos presentes na narrativas de botija: o sonho, a noite, o cavalo, o segredo, o

perigo, etc. O espalhamento do tesouro do índio/escravo no território da Boa Vista

deixa pensar que, ainda hoje, há mistérios para serem revelados.

Fotografia 5 - Cruz de Cazumbá, José Fernandes da Cruz, marido de Dona

Geralda falecido num acidente em 1990 (março 07).

Outro episódio relatado por Dona Geralda (16/03/07) encena um sonho no

qual aparece a alma de um ‘índio’ que vivia escondido na serra do Marimbondo. O

que parece estranho é que ninguém, na Boa Vista, conhecia a sua existência. A

pessoa que sonhou é tesoureiro da Irmandade do Rosário em Jardim do Seridó,

cidade vizinha, e que deve ter escutado muitas histórias antigas da Boa Vista. Ainda

aqui, a alma do defunto veio visitar a pessoa escolhida para solicitar um

sepultamento digno e que fossem realizadas rezas para salvar sua alma:

Foi seu Turco de Jardim que disse, ele disse que sonhou com esse índio, que era um índio lá na serra. Que pediu para ele fazer uma capelinha lá. Botar uma cruz né? Ai bota lá né? Ai ele disse que ficou só pensando, isso. Ai disse:

- Eu vou lá na Boa Vista!

Page 91: Relatorio Boa VistacomAnexos

91

Ai ele conhecia Zeca Barros, ai foi, falou com Zeca Barros e subiu a serra. Deixaram o carro lá em baixo e subiram a serra. Sabe onde ele contou isso a mim? Na rodoviária de Jardim! Ai ele disse que foi, veio no carro, parece que com dois companheiros, e subiram a serra com Zeca Barros. Ai quando chegaram no ponto que ele disse, ‘tava os ossos. Ai ele disse que levou parece que cimento, negócio de coisar, ai fez lá. E ele já ta velho, Sr. Turco. Pois é, ele mexe com a festa do Rosário...

Mais uma vez, o sonho revela segredos e histórias do passado. Segundo

Dona Geralda, o índio que era escondido na serra do Marimbondo recebia auxilio

de alguns moradores que deixavam regularmente comida para ele. Podemos até

pensar que há uma relação entre as duas narrativas, pois tratam de ancestrais que

visitam ainda os moradores da Boa Vista e os que conhecem sua história: o sonho é

a via da revelação do segredo, prova de que houve fatos marcantes no passado.

Fotografia 6 - Dona Geralda (março 07).

Dessa forma, não devemos descartar a possibilidade que Boa Vista era um

lugar de refúgio para as populações perseguidas pelos colonos portugueses. A

“aldeia de negros retintos”, como chama Padre Otávio Pinto, é localizada entre

serras e serrotes que impediam uma fácil circulação na caatinga e que era afastada

dos centros urbanos pelo menos até a década de 1930, quando a expedição

conduzida por Chico Barulhão foi visitar a casa de Teodôzio. A referência a

acidentes naturais e a animais na toponímia lembra constantemente um lugar

Page 92: Relatorio Boa VistacomAnexos

92

selvagem: o rio Cobra, a Serra do Marimbondo, o Serrote da Cachoeira, o Serrote

Mata Besta, a Serra do José Enéias, o Serrote Antônio, etc. Também, na serra da

Rajada, havia “inxames inumeraves” e devia haver muitas vespas na serra do

“Maribondo”, bem como se tem registro de onças até o início do século XX

(Macêdo 2007: 39). É bem provável que o lugar era inóspito e que serviu de refúgio

a escravos fugidos e índios perseguidos: Boa Vista é situada ao pé de uma serra

(Marimbondo), na marginal dos caminhos do gado e distante de Acari que, até o

final do século XVIII, era o núcleo colonial mais próximo (Macêdo 2007: 39;

Takeya 1985: 81).

Finalmente, como os mais velhos apontam, é possível que alguns índios

estivesse presente na Boa Vista. Assim, na sua crônica admirativa onde relata sua

visita na comunidade em 1930, o Padre Pinto fala de uma dança, o “pulachi” e de

uma bebida (“a zurema” que deve ser o mesmo que a “jurema”), preparação ritual

bem conhecida das populações indígenas do Nordeste. Ainda, sabemos graças a

Micoquinha (1994) que acompanhou a história do grupo, a existência de uma outra

bebida que devia ser preparada para os períodos festivos mas que os atuais

moradores desconhecem:

Além dos beijus e cocadas que traziam para vender aqui, os negros da Boa Vista eram famosos pela bebida que preparavam. Seu nome era madura, uma mistura de caldo de cana e água (numa mesma quantidade), que eles deixavam aferventar durante 24 horas. Uma bebida muito boa (Micoquinha 1994).[grifo nosso]

Enfim, os mais antigos falam com saudade do tempo em que se faziam festas

na única casa de tijolos que havia na Boa Vista, a casa de Theodôzio onde

aconteciam os eventos importantes da comunidade e onde havia festas (Pinto

1934). Dona Chica (07/12/06) se lembra do casamento de Domiciano e de Matilde

que ocorreu em 1915 e durou quinze dias. Segundo ela, havia ‘fartura’: muita caça,

sobretudo preás, e muitas panelas com xique-xique, milho e mugunzá. O patriarca,

que tinha uma grande prole, morava na casa maior da Boa Vista, a única que não

era de taipa antes da construção das casas nos anos 1960. Segundo Zé de Paulina

Page 93: Relatorio Boa VistacomAnexos

93

que nos levou no lugar onde era a casa de Thedôzio, era uma casa grande, de nove

cômodos, com um alicerce de pedra.86

Fotografia 7 - Ruinas da casa de Theodôzio (maio 07).

Os registros orais, ao lado dos documentos e dos poucos monumentos que

existem no local, revelam a existência de uma memória fragmentada. Na versão

nativa do passado que é ensaiada, ressurgem atores até então invisíveis: os

ancestrais indígenas ao lado dos escravos fugidos. São os índios que ensinam os

remédios, preparam as bebidas rituais e conhecem os lugares para se esconder. São

os negros fugidos que revelam a existência de tesouros. As cruzes, as ruínas, as

aparições noturnas e os sonhos são as provas de uma história não revelada e de

uma memória ainda atuante. As narrativas, longe de fornecer elementos que nos

permitiriam informar uma data exata para a fundação de Boa Vista, apresentam

aspectos de um passado que resiste ao esquecimento por estar enterrado nas serras

do Marimbondo. Mesmo se essas histórias não são conhecidas por todos, pois os

mais jovens nem sempre tem paciência de escutar os antigos e conhecem pouco a

serra, os relatos apresentam exemplos de uma liberdade conquistada pela fuga.

Assim, mais uma vez, não se fala em escravidão, cultiva-se a memória dos que

86 Zé de Paulina tirou os tijolos da casa velha para construir uma casa nova nas proximidades.

Page 94: Relatorio Boa VistacomAnexos

94

foram perseguidos ou maltratados e que conseguiram se libertarem: as almas dos

antigos fugitivos ainda atormentam os vivos, lembrando seus martírios.

3.3.2. A memória dos nomes e as genealogias

Observamos um paralelismo entre os relatos orais e os registros históricos:

os documentos recolhidos ao longo da pesquisa documental seja eles oriundos dos

cartórios ou dos fóruns (certidões, inventários, títulos e registros de terras), ou

ainda provenientes dos arquivos paroquiais de Jardim do Seridó e de Parelhas

(nascimento casamento, obituários); os registros encontrados parecem convergir

com a versão transmitida pela tradição oral. Assim, o final do século XVIII parece

ser a época em que Boa Vista dos negros foi fundada, um século antes da Abolição:

de fato, os registros da memória genealógica dos nossos interlocutores remontam a

esta época e os documentos mais antigos que foram encontrados fazem referência a

pessoas nascidas entre o final do século XVIII e o início do século XIX.

Assim, é possível fazer uma leitura das genealogias coletadas junto aos

moradores mais antigos da comunidade à luz da documentação encontrada.

Seguindo o raciocínio de Seu Emiliano, o detentor da memória do grupo com quem

tínhamos conversado em 1991, hoje seriam, no mínimo, seis gerações de pessoas

que teriam nascido na Boa Vista, incluindo o filho de Tereza, Domingos. A

referência à avó que nasceu no local, em 1825 [Joana de Jesus Cassimiro?]87,

mostra a profunda memória dos moradores que, com essa referência, comprovem a

antiguidade da presença do grupo no local.88 Constatamos ainda, a reiteração dos

87 No registro de bens de Joana Cassimira de Jesus Vieira encontrado por Seu Ulisses Potiguar, descobrimos que a viuva de Manoel Fernandes Vieira que faleceu em data de 21/07/1896, era moradora do riacho do Gavião. Manoel recebeu em herança a propriedade dos seus pais Domingos Fernandes da Cruz e Josefa Maria da Conceição.

88 Os pais de Seu Emiliano eram: Maria Luiza da Conceição, ou Mãe Galdina, filha de André Fernandes Vieira; o pai - Antônio Fernandes da Cruz, Antônio Moreno ou Toto, era filho de Inácio Roberto da Cruz. Segundo Dona Chica e Manoel Miguel, Inácio Roberto teria nascido nos anos 1820 e tinha um irmão chamado André casado com Isabel (Cabel). Inácio Roberto e André eram filhos de

Page 95: Relatorio Boa VistacomAnexos

95

nomes de família tanto na memória dos nossos interlocutores, nas genealogias,

quanto nos registros escritos. Porém, encontramos distorções entre as duas fontes,

pois nem sempre as datas correspondem. Como se evoca o nome de pessoas que

morreram há 20 ou até 50 anos, é natural que haja trocas e imprecisões na

atribuição do laço de parentesco. Porém, a leitura dos documentos encontrados

desperta o interesse dos nossos interlocutores, reconhecendo nomes de ancestrais e

lamentando que os seus pais não contaram a sua história. A experiência, como

veremos, é enriquecedora.

De qualquer modo, se analisarmos a árvore genealógica elaborada com o

auxílio dos registros históricos encontrados durante a pesquisa, verificamos que,

apesar da distância temporal, os atuais quilombolas reconhecem alguns ancestrais:

Figura - 2 - Árvore genealógica reconstituída a partir dos registros históricos encontrados.

Antônio Lotério. Encontramos um registro, em 1859, de um Antônio Eleotério, solteiro, que participa como testemunha do casamento, realizado em Parelhas, de Joaquim Manoel Fernandes (filho de Manoel Fernandes da Cruz, inventariante em 1859) e de Antônia Maria da Conceição.

Page 96: Relatorio Boa VistacomAnexos

96

No entanto, a leitura comparada dos documentos escritos e dos registros

orais mostra que se trata de uma mesma história. Os documentos sobre a

comunidade quilombola de Boa Vista, que nunca foram objeto de um estudo

historiográfico, são esparsos e não permitem reconstruir um encadeamento

temporal dos eventos; limitaremo-nos a compará-los aos registros memoriais. A

reiteração dos nomes de família indica, antes de tudo, a existência de casamentos

entre “primos” que os donos da terra não dispunham de uma grande fortuna e, já

na secunda metade do século XIX, estavam preocupados em estabelecer estratégias

endogâmicas com a finalidade de conservar um patrimônio fracionado pela

herança. Por sua vez, a memória narrativa do grupo em questão trabalhou os

eventos e as personagens que marcaram a vida de Boa Vista, apresentando-os

integrados numa seqüência lógica e aceitável pelo grupo, constituindo-se numa

lenda heróica fundada na ancestralidade da retirante Tereza.89

Analisando a atribuição e a transmissão dos nomes, encontramos uma lógica

que corresponde a uma divisão entre os universos masculinos e femininos e, por

conseqüência, à transmissão do patrimônio fundiário. No caso dos homens,

constatamos uma freqüente repetição do nome e do sobrenome de uma geração

para outra: por exemplo, existem três José Vieira (pai-filho-neto). Não sabemos as

datas de nascimento e óbito de José Viera (pai), mas temos datas para José Viera

Filho (1893-1973) e José Viera Neto (1925-2007) – porém, se contamos um período

entre 20 e 30 anos para uma geração, o José Vieira Pai teria nascido entre 1860 e

1870. Da mesma forma, encontramos vários registros orais e escritos para Manoel

Fernandes da Cruz, nome também dado a Manoel Gino, seu filho, e a Manoel

Vieira, seu sobrinho. Temos vários registros paroquiais e cartoriais de Manoel

Fernandes da Cruz, filho de Domingos Fernandes da Cruz e de Josefa Maria da

Conceição, que deve ter nascido no final do século XVIII e morreu em 1856.

Encontramos, no nosso levantamento genealógico, um registro de Manoel

Fernandes da Cruz (Manoel Vieira), que nasceu em 1880 e morreu em 1930, casado

89 Iremos analisar a seguir a transmissão dos nomes e das terras.

Page 97: Relatorio Boa VistacomAnexos

97

com Júlia Maria da Luz ou da Conceição ou ainda Júlia Miguel, pais de Dona

Quintina. Por sua vez, Manoel Fernandes da Cruz era filho de Imbém com José

Vieira ou da Cruz. Segundo Zé de Paulina, Manoel Fernandes da Cruz, chamado

também de Manoel Gino ou Timbu, era o nome do seu avô materno, pai de Paulina

Maria da Conceição. Manoel F. da Cruz era casado com Beliza Maria da Conceição,

filha de Leocádia com Teodôzio que era, por sua vez, filho de Manoel Fernandes da

Cruz.

Ainda, quando olhamos para a genealogia de Maria das Graças Fernandes da

Cruz ou ‘Preta’, encontramos um Manoel Fernandes da Cruz que era casado com

Maria Pequena, pais de Gregório Fernandes da Cruz e de Marssonila Maria da

Conceição. Tiveram como filho Zé Preto (José Fernandes da Cruz) [1934-1989], pai

de Preta. Segundo seu de Zé de Biu, Manoel Fernandes da Cruz (Manoel Gino), era

filho de João Gino e de Severina Fernandes do Amaral (Rosário ou Biu) - era o avô

de Zé de Biu. Porém, a esposa de Manoel F. da Cruz é designada como sendo

Tereza Maria da Conceição. Desta forma, a repetição dos nomes em várias gerações

assinala para uma vontade de conservar um patrimônio simbólico inscrito no

nome: a memória. Também, muitas referências são feitas a Theodôzio Fernandes

da Cruz ou a André Fernandes da Cruz que se projetam como os maiores

detentores de terra; eles são os herdeiros de Domingos Fernandes da Cruz.

Finalmente, encontramos o nome de Manoel Fernandes da Cruz nas atas das

reuniões da Irmandade do Rosário, ao lado de outros irmãos que tem como

sobrenome Fernandes da Cruz, Fernandes Vieira ou Vieira: André Fernandes

Vieira, irmão do Rosário em 1865, tinha sido, em 1859, testemunha do casamento

de Antônio Fernandes da Cruz - este filho de Manoel Fernandes da Cruz era um dos

herdeiros da Boa Vista. Na mesma ata, encontramos Manoel Fernandes da Cruz –

devia ser Joaquim Manoel Fernandes da Cruz, também filho de Manoel Fernandes

da Cruz, pois este tinha falecido em 1856 -, já era casado, desde 1859, com Antônia

Maria da Conceição. A assinatura desses dois irmãos consta no livro de atas da

Irmandade do Rosário de Jardim do Seridó de 1865. O pertencimento à Irmandade

do Rosário comprova a ancestralidade negra desses dois moradores do município

de Jardim do Seridó. Da mesma forma, podemos deduzir que Manoel F. da Cruz e

Page 98: Relatorio Boa VistacomAnexos

98

seus filhos (Antônio e Joaquim) eram negros, inclusive porque Antonio tinha

escolhido um irmão do Rosário como padrinho de casamento, André. Enfim,

podemos afirmar que Manoel Fernandes da Cruz e seus filhos, irmãos do Rosário

eram libertos, pois no caso contrário, não podia ter estabelecido um inventário.

Assim, a reiteração dos nomes aparece como sendo uma estratégia para

conservar um patrimônio fundiário e simbólico centrado em torno do nome do pai,

pois as mulheres aparecem pouco na distribuição da herança em bens imóveis e na

atribuição do nome da família. Isso explica que nossos interlocutores mantiveram

em particular a memória genealógica em linha agnática; as mulheres aparecem em

casos excepcionais como, por exemplo, quando não tem descendência ‘natural’ e

que adotam uma criança que receberá a herança da família. Na transcrição da

conversa que tivemos na casa de Dona Geralda em 31/01/07, a estratégia de

conservação e de transmisssão em linha masculina das terras pertencendo ao grupo

domestico aparece claramente:

Manoel Miguel: (...) Porque os velhos só ensinaram eles, os homens. As mulheres nunca diziam. A mãe de papai, eu não sei quem é.

Geralda: Eu também não sei não.

Manoel Miguel: Os pais eu sei, mas as mães não.

Julie: Então assim: Galdina era filha de André. E Antonio, que era casado com Galdina, era filho de Inácio?

Manoel Miguel: Era. Quer dizer que eles eram primos. Inácio é irmão de Meméia.

Julie: E Izabel?

Manoel Miguel: Essa Izabel eu não sei não.

Geralda: Não era das Gonzaga que criaram papai? Ah, eu não sei quem era a mãe dela não.

Julie: Cabel, Cabel.

Geralda: Eram as tias de papai, que criaram ele. Agora eu não sei quem eram os pais e as mães delas. Isso é muito velho. Pois é, foi quem criou papai.

Julie: Quem?

Geralda: Essas Cabelas. Parecem que eram três. Era Cabela, que chamava Izabel, Gonzaga e a outra (?) (...)

Antonio: Então quem criou Papai Velho foram as Cabela, foram?

Geralda: (...) Porque papai era filho de Emídio. Agora Emídio era primo de Zé Vieira. Essas Cabela também não eram irmãs de Emídio? Ai pronto papai era sobrinho delas. Ai ele (Emídio) tinha doze filhos e elas pediram

Page 99: Relatorio Boa VistacomAnexos

99

papai pro mode criar. Ai eles deram. Ai pronto, as terras delas passaram para papai.

Essa conversa ilustra que havia estratégias desenvolvidas para o mantimento

das propriedades e esclarece as razões que explicam que a memória genealógica em

linha feminina é menos profunda do que a masculina, pois o interesse é menor:

nossos interlocutores deixam bem claro que as terras e os nomes são transmitidos

em linha agnatica. A doação de filhos a terceiros aparece como um fato normal,

justificado pela inexistência de herdeiros e/ou a ausência de fortuna da família. A

adoção acompanha-se de possíveis benefícios para o grupo domestico de origem.

Fotografia 8 - Seu Manoel Miguel e sua esposa, Guiomar (fev. 07).

Também encontramos uma seqüência lógica na atribuição dos nomes de

pessoa: as mulheres, normalmente, adotam “Maria da Conceição” como

sobrenome, incluindo algumas raras variantes: “de Jesus”, “do Amor Divino”, “do

Sacramento”, “da Incarnação”.90 Assim, encontramos, nas genealogias, várias

Antônia Maria da Conceição: uma primeira era casada com André Fernandes

90 Nos registros cartoriais e paroquiais, encontramos uma mesma pessoa com nomes diferentes.

Page 100: Relatorio Boa VistacomAnexos

100

Vieira. Um filho de André, Marcimino Fernandes da Cruz casou com Ana Maria da

Conceição e tiveram duas filhas: Severina Maria da Conceição e Luiza Maria da

Conceição (1900?-1970?); essa, casada com Martins, é mãe de nove filhos: Aprígio

Fernandes Vieira, Antônio Fernandes Vieira, José Mauro Vieira, Francisca,

Santina, Severina Maria da Conceição, Ana Maria da Conceição, Maria Melania do

Nascimento e Geralda Maria da Conceição, nascida em 1931, com quem

conversamos em várias ocasiões. Finalmente, encontramos uma outra Antônia

Maria da Conceição, conhecida como Maria pequena ou Maria Miguel, casada com

Cosme Miguel, filho de escravo fugido da Paraíba.

Poderíamos continuar a dar exemplos, mas, apesar da existência de nomes

diferentes numa mesma fratria, fato comum nas famílias nordestinas, verificamos

que nas gerações anteriores àquela dos quilombolas mais velhos, as mulheres

adotavam geralmente “Maria da Conceição” depois do primeiro nome e que os

homens adotavam de forma igual e simultânea, o sobrenome “Vieira”, “Fernandes

Vieira” ou “Fernandes da Cruz”. Sem poder entrar em detalhes, limitaremo-nos a

verificar que há uma plasticidade no emprego dos sobrenomes dos principais

troncos familiares que são considerados como ‘nativos’ (Vieira, Cruz, Fernandes),

em vez que outros sobrenomes não são considerados como ‘fazendo parte’ de Boa

Vista (Miguel, Santos), apesar da antigidade da presença dos seus membros na

localidade.

Também, como é freqüente em toda região, o indivíduo é conhecido pela sua

relação com uma outra pessoa, geralmente a mãe: José Fernandes da Cruz é

conhecido como Zé de Paulina; José Fernandes do Amaral responde ao nome de Zé

de Biu, nome da mãe. Assim, o sobrenome não é utilizado no interior da

comunidade e há uma certa flexividade dos nomes, pois o que prima é a relação que

existe entre os membros e, sobretudo, a filiação. Desta forma, algumas alcunhas ou

primeiro nome foram incorporados aos nomes de família: Gino, Timbu, Maria da

Page 101: Relatorio Boa VistacomAnexos

101

Conceição ou Miguel.91 Esses linhagens servem de referência aos herdeiros para

conhecer o grau de parentesco. Se existem algumas diferenças entre a versão da

história registrada nos documentos e a memória genealógica, é que essa funciona

com o registro dos parentes classificatórios: os mais idosos são chamados de pai ou

mãe “velho”, utiliza-se a categoria ‘primo’ ou ‘tio’ para designar um parentesco

mais longíquo.

Como o relato de Seu Emiliano indica, e apesar da fundadora de Boa Vista

ser uma mulher, podemos perceber que são os homens transmitam o nome e, ao

tudo que parece, são eles que herdam preferencialmente das terras; como veremos

a seguir, no levantamento que realizamos sobre a distribuição das terras no interior

do grupo, não há nenhuma mulher constando como herdeira, mesmo se, de fato,

herdam.92 Assim, parece haver um esforço para conservar os sobrenomes

“Fernandes da Cruz” ou “Vieira”, adotados pela maioria dos homens de Boa Vista.

Por exemplo, na genealogia de Seu Manoel Miguel Fernandes, encontramos um

caso interessante: a mãe dele chamava-se Severina Maria da Conceição e o pai dele,

João Miguel ou João Arcanjo da Cruz. Manoel adotou o nome do pai (Miguel) e do

avô materno (Fernandes), mas não herdou o nome diretamente da sua mãe. Os

arranjos da memória e a repetição na atribuição dos nomes, a recorrência dos

sobrenomes em linha masculina e feminina mostra o trabalho de memorização

intenso que fazem os membros das famílias; geralmente, todos são capazes de citar

no mínimo três gerações, em linha direta e colateral. Indica ainda uma vontade de

conservar a identidade do grupo que está inscrita no espaço, pois os nomes dos

ancestrais designam o local onde os herdeiros devem cultivar a terra. Como são os

homens que cultivam a terra, é normal que a memória seja transmitida em linha

masculina, apesar de haver referência a mulheres nos poucos inventários que

encontramos: é o caso de Joana Cassimira de Jesus Vieira, esposa de Manoel

91 Teria um estudo interessante a fazer sobre o sistema de nomeação, inclusive, com o emprego sistemático de alcunhas. 92 Ver mapa a seguir.

Page 102: Relatorio Boa VistacomAnexos

102

Fernandes Vieira (1825-1896), filho de Domingos Fernandes da Cruz e de Josefa

Maria da Conceição. Joana deixou em 1906 a herança de Domingos a seus filhos,

José Fernandes Vieira, Emídio Colecino Fernandes, Isabel Maria da Conceição.

Também, encontramos a herança de Domingos Fernandes Vieira no inventário,

datado de 1916, da viúva de André Fernandes Vieira, Antônia Maria da

Conceição e dos seus filhos: Manoel Fernandes da Cruz, Maria Rosalina da

Conceição, Teodôzio Fernandes da Cruz, Antônio Fernandes da Cruz

(Antônio Lotério) e Vicente Fernandes da Cruz. Também, no mesmo ano, Inácio

Fernandes Viera herdou de terras no riacho do Gavião, que sua esposa, Maria

Galdina de Jesus (1826-1886) recebeu de seu pai André, falecido em 1916, e que

provinha da herança de Domingos Fernandes da Cruz. Segundo nossa reconstrução

genealógica a partir dos registros cartoriais encontrados por Seu Ulisses Potiguar,

pelo menos um filha de Domingos e Josefa – Maria Galdina da Conceição ou da

Cruz ou de Jesus -, recebeu a herança dos pais, além de André Fernandes Vieira e

de Manoel Fernandes Viera.

Assim, a partir do estudo da genealogia das famílias Fernandes da Cruz,

Vieira e Miguel93, e contando com a memória dos moradores mais antigos,

encontramos pelo menos cinco gerações de quilombolas que nasceram e moram na

Boa Vista.

3.3. A irmandade do Rosário

O estudo da irmandade do Rosário abre outros caminhos para conhecer o

passado e a atualidade de Boa Vista, pois, como a narrativa de fundação, a dança do

Espontão tem um papel importante de legitimação do pleito coletivo no processo

93 Se tomarmos como referência Marciminiano, avô de Dona Geralda, Zé Viera, avô de Dona Chica, Teododôzio e Antônio Moreno, respectivamente avôs e bisavôs de Zé de Paulina e de Sandro, registramos também no mínimo cinco gerações de afro-descendentes em Boa Vista. Ver as árvores genealógicas em anexo.

Page 103: Relatorio Boa VistacomAnexos

103

de reivindicação étnica, insistindo sobre os aspectos tradicionais do ritual. Mas se a

dança é a ocasião do reconhecimento social de um grupo historicamente

marginalizado, é também um momento de festa durante a qual os corpos se

mostram e se libertam. Assim, graças à Festa do Rosário sabemos da presença das

populações africanas na região, desde o século XVIII até hoje. A festa, ao longo dos

séculos, sofreu transformações, o rito religioso tornou-se “folclore”, mas a devoção

continua. Atraindo curiosos e admiradores, o grupo recebe o auxílio intermitente

de agentes locais, sobretudo dos moradores, dos membros da igreja e das

prefeituras de Jardim do Seridó e de Parelhas ou, mais recentemente, do

movimento negro, sendo visitado regularmente por estudantes, professores,

fotógrafos, antropólogos, militantes, etc.

3.3.1. Irmandades negras no Seridó Por esse tempo [1900’s], a irmandade de Nossa S. do Rosário era composta de escravos e libertos que solenisavam a santa de sua devoção com uma festa pomposa e grotesca, na qual, alem de um rei e rainha, devidamente coroados, tomava parte um estado maior de oficiais devidamente uniformizados (Dantas 1941: 25).

Conhecidas em outros contextos etnográficos como congadas e, para

algumas delas, integradas ao ciclo das festas natalinas, as festas das irmandades

pretas foram incentivadas como parte do esforço de evangelização e controle das

populações escravizadas, sendo encontradas com grande freqüência ainda nos

séculos XIX e XX em todo território brasileiro (Abreu 1994; Cord 2003). A festa de

N. Sra. do Rosário dos Homens Pretos, segundo Luis da C. Cascudo (1962: 230;

1980: 44), existe no Nordeste desde o fim do século XVII, com a primeira coroação

dos Réis do Congo em Recife em 1674. No Seridó, encontramos o primeiro registro

da festa em partir de 1771 e da fundação da Irmandade em 1773 de Caicó, e no

decorrer do século XIX, nas outras cidades (Azevedo 1962-63: 32; Dantas 1961: 19,

Page 104: Relatorio Boa VistacomAnexos

104

56-62; Lamartine 1965: 69-80; Medeiros 1985: 25-26).94 Podemos pensar que as

irmandades negras se desenvolveram, sobretudo no século XIX, com a cultura do

algodão, pois essa atividade requereu um número maior de mão de obra escrava.

Fotografia 9 - Réis de congo (11/abr/1938), Pombal (PB).95

A presença da festa em todo Seridó, tanto no Rio Grande do Norte quanto na

Paraíba, é a prova de uma presença histórica de um número de escravos em nível

regional. Até as primeiras décadas do século XX, existiam fortes relações entre os

integrantes das Irmandades do Rosário de diferentes lugares do interior do Rio

Grande do Norte: em Caicó, em Jardim de Piranhas, em Jardim do Seridó, em

Acari, em São Manáu, no Riacho de Fora, no Rio do Peixe, em São João do Sabugi.

94 Até o final do século XX havia uma festa do Rosário. Parece ter sido também o destino da primeira capela de Caicó que foi doada para Irmandade do Rosário; no local, foi construída a igreja do Rosário entre 1826 a 1853 (Dantas 1961: 23) 95 Fotógrafo: Luis Saia. Fotografia da Missão de Pesquisas Folclóricas, imagem retirada do site < http://www.sescsp.org.br/sesc/hotsites/missao>.

Page 105: Relatorio Boa VistacomAnexos

105

Também havia festas do Rosário em Santa Luzia, Pombal e Cajazeiras. Para

organização das festas e as eleições anuais dos Réis e das Rainhas, os integrantes

das irmandades das diferentes cidades mantinham contatos regulares.

Mapa 3 - Lugares das Festas do Rosário e origem dos quilombolas (Boa Vista).

Quando colocamos, num mesmo mapa, a localização das Irmandades negras

junto com a referência geográfica dos lugares de origem de alguns moradores

radicados no local e de parentes que moram longe da Boa Vista, verificamos que

existem correspondências entre o registro memorial e o ritual.96 É o sinal, também

que, em torno das irmandades, devia existir uma ampla rede organizada de

solidariedades e que circulava informações. Ainda aqui, tudo converge para pensar

que, na segunda metade do século XIX, havia uma população escrava e liberta

importante em toda a região, para o cultivo do algodão. Assim, em Jardim do

96 Josefa Salete Cavalcante (1975) escreve uma das primeiras dissertações sobre uma comunidade rural negra do sertão nordestino, Talhado, no município de Santa Luzia, no Brejo paraibano onde se festeja Nossa Senhora do Rosário em outubro. Segundo a estudiosa, Talhado ficou relativamente isolado até os anos 1960, quando as primeiras estradas foram feitas.

Page 106: Relatorio Boa VistacomAnexos

106

Seridó, após a Lei do Ventre livre, encontramos um livro de registro de

nascimentos específico para os escravos utilizado entre 1871 e 1887. Encontramos

registros da realização da primeira festa em Jardim em 1863 e a criação da

Irmandade em 1885:97

Vindos de outras terras, trazendo seus próprios cultos fetichistas, os imigrantes negros fundaram essas confrarias mais como posição de resistência e defesa contra a prepotência os agressores brancos que por religiosidade. Unidos em organização permitida pelos seus senhores, eles poderiam lutar pelas suas reivindicações libertárias, ajudando-se uns aos outros (Melo 1973: 134).

A igreja dedicada a N. Sra do Rosário em Acari e as festas das Irmandades

negras atestam a presença de um número conseqüente de escravos na região, pelo

menos entre os séculos XVIII e XIX. Também, a existência desses grupos religiosos

compostos por escravos e, provavelmente, libertos, mostra a tentativa de controle

social e moral dessas populações por parte da Igreja. A atuação dessa Irmandade

negra, em todo Seridó, supõe ainda a existência de comunidades organizadas, de

solidariedades, de um sistema de ajuda mútua entre os mais pobres, de formas de

sociabilidade próprias aos grupos, de estratégias de sobrevivência e de valorização

do grupo. Em alguns momentos, esses agrupamentos serviram para fomentar

rebeliões de escravos, como ocorreu nas últimas décadas que antecedem a

Abolição: um ‘quilombo’ foi formado na mata da Mangabeira, no atual município

de Arês, reunindo mais de 100 irmãos do Rosário de São José do Mipibu, Arês,

Papari e Goianinha (Cavignac et alii.; Cascudo 1955: 194).

Assim, acompanhamos K. de Mattoso quando define as irmandades

religiosas como sendo “tecidos de solidariedade”:

(...) elo, refúgio, ajuda mútua e de um outro lado, instrumento de fiscalização, de coesão, de educação (...) centros de verdadeira solidariedade para toda espécie de ajudas mútuas que podiam ser de ordem moral ou material para os doentes e inválidos, até de pensões para viúvas, de dotes para as órfãs ou poupanças para libertação” (Mattoso 1999: 29).

97 No Rio Grande do Norte, somente Caicó e Jardim do Seridó continuam a tradição da festa.

Page 107: Relatorio Boa VistacomAnexos

107

Fotografia 10 - Igreja do Rosário, Acari - RN (fev. 07).

A presença de um número importante e contínuo de escravos no Seridó é

atestada pelo funcionamento das Irmandades do Rosário, a partir de 1771, em

Caicó, e no decorrer do século XIX, nas outras cidades (Azevedo 1962-63: 32;

Dantas 1961: 57-62; Lamartine 1965: 69-80; Medeiros 1985: 25-26). Inicialmente

sob a proteção de N. Sra da Guia, a atual igreja do Rosário de Acari foi construída

pelo sargento-mor Manoel Esteves de Andrade entre 1737 e 1738. Em 1863, fica sob

a responsabilidade da Irmandade do Rosário, após a construção da matriz de N.

Sra da Guia construída pelo vigário da freguesia Pe. Tomaz Pereira de Araújo "em

terreno por ele doado para constituição do patrimônio da capela" (Medeiros filho

1981: 109 e 176).98 Em Caicó, a Irmandade dos Negros do Rosário foi criada em

1771, e até hoje, comemora a festa em outubro, no mesmos modos do que os negros

98 Parte das imagens da igreja do Rosário datam do século XVIII: São Pedro, São Miguel, São Gonçalo Garcia e N. S. do Rosário (Souza 1981: 196).

Page 108: Relatorio Boa VistacomAnexos

108

do Rosário de Acari (Dantas 1961: 57). Existiam fortes relações entre os integrantes

das Irmandades do Rosário de diferentes lugares do interior do RN (Caicó, Jardim

de Piranhas, Jardim do Seridó [irmandade constituída em 1885], Acari [não há

mais festa do Rosário], São Manáu, Riacho de Fora, Rio do Peixe, São João do

Sabugi) e PB (Santa Luzia, Pombal, Cajazeiras) para organização das festas e as

eleições dos Réis e das Rainhas.99 Hoje, só as irmandades de Jardim do Seridó e de

Caicó continuam a tradição e recebem um apoio entusiasta da população local.

Assim, a existência das irmandades negras dedicadas à N. Sra. do Rosário é

a prova mais tangível da existência de uma presença contínua de descendentes de

escravos na região.

A Irmandade do Rosário era composta, em sua quase totalidade, de pretos e pessoas de cor. Anualmente elegiam um rei e uma rainha, os quais por sua vez, constituíam o seu estado-maior, nomeava as damas de companhia e sua própria guarda pessoal. Durante os três dias que duravam as festividades, permaneciam reunidos na casa chamada do Rosário, e ali se divertiam à larga – dançando, bebendo e comendo. Era um alarido ensurdecedor, pois tocavam tôda sorte de instrumentos: gaita, fole, viola, tudo acompanhado de tambores que não cessavam de azucrinar, dia e noite, os ouvidos dos vizinhos.

No derradeiro dia de festa, rei e rainha, ostentando mantos vistosos e uma coroa de papelão enfeitada com cacos de espelhos e fitas coloridas, dirigiam-se à igreja, acompanhados de todo o seu séqüito e precedido de sua guarda de honra, constituída de negros moços, armados de lanças, que cabriolavam à frente dos monarcas. Ao chegarem na Igreja, o rei e a rainha ocupavam duas cadeiras ao centro do templo, enquanto as damas de companhia e o estado-maior sentava-se em derredor, ali permanecendo até o fim da missa, quando se retiravam com o mesmo aparato (Lamartine 1965: 69).

Essa descrição mostra que o ritual encontra-se consolidado desde, pelo

menos, o início do século XX, pois há pouca variação na sua realização atual.

Um estudo sobre as “irmandades de preto” no sertão e o seu papel social

informaria sobre a presença de escravos no interior, ao longo dos séculos.

Possibilitaria, assim, mostrar a existência de solidariedades, de sistemas de ajuda

99 Informação coletada em Caicó em 28/10/1990 junto ao porta-bandeira da irmandade Seu Paulo Mariano. Autores registram também festas feitas em devoção a santos negros em outras localidades do estado: São Benedito, em Pau dos Ferros, São Gonçalo, em Portalegre, Santa Efigênia (Lima 1988: 120; Medeiros 1978: 99).

Page 109: Relatorio Boa VistacomAnexos

109

aos mais pobres, de formas de sociabilidade, de estratégias de sobrevivência e de

revalorização do grupo, etc. Hoje, ainda, encontramos algumas desses grupos

atuantes, com bastante dificuldade para manter uma tradição secular: são crenças e

práticas religiosas que sustentam uma afirmação identitária. No caso de Boa Vista,

verificamos que a Irmandade do Rosário permitiu que sejam mantidas, durante

séculos, redes de solidariedade internas e externas, tendo como principal resultado

o fortalecimento do grupo e sua constituição como entidade política autônoma.100

Antes conhecidos como “os Negros do Rosário da Boa Vista”, os quilombolas

reinvidicam hoje uma identidade étnica diferenciada na qual N. Sra. do Rosário

ocupa o lugar central.

3.3.2. Réis e Rainhas na casa do Rosário

O culto a Nossa Senhora do Rosário é um dos principais marcos da história e

da identidade do grupo que se mantém vivo até hoje na comunidade quilombola de

Boa Vista.

Além da festa, existe uma devoção à santa, sobretudo por parte das

mulheres, que expressam sua fé com muita emoção; é difícil abordar o assunto sem

provocar lágrimas que, rapidamente, se generalizam. A imagem, doada por Seu

Ulisses Potiguar, espera há 17 anos um abrigo: desde 2002, uma capela esta sendo

construída com o trabalho dos membros da Associação comunitária que organizam

eventos para arrecadar fundos para terminar a construção. Na terceira semana de

outubro de cada ano, é realizada a festa do Rosário na Boa Vista, mas o evento

festivo mais importante continua sendo a festa do Rosário, em Jardim do Seridó.101

100 Para uma discussão detalhada sobre a presença indígena e negra no Rio Grande do Norte, ver Cavignac 2003. 101 Cogita-se de fundar uma irmandade distinta da de Jardim, pois os devotos da santa são mais numerosos na Boa Vista.

Page 110: Relatorio Boa VistacomAnexos

110

Indagando nossos interlocutores sobre a existência de uma lenda sagrada

em torno da imagem da santa, encontramos somente algumas pessoas que A

história da santa relatada por Zé de Biu (junho 07) é a mesma contada que Seu

Turco, tesoureiro da Irmandade em Jardim do Seridó. A narrativa oferece uma

explicação sobre a origem do ritual e o papel dos “negros”102:

Nossa Senhora do Rosário foi encontrada em cima de um toco, “no meio do mato”. Foi levada para a igreja da cidade, mas a ‘santa sempre voltava para o toco” onde tinha aparecido. Os “padres iam com rezas, hinos e procissão”, reconduzindo a santa para a igreja mas, sempre voltava para o toco. Os padres mandaram os negros batendo tambores e cantando. Esses levaram a santa para uma capelinha pertencendo aos negros e a santa ficou lá para sempre. Mas ninguém sabe onde nem quando esse fato aconteceu.

A festa do Rosário representa um dos eventos mais importantes da cidade de

Jardim do Seridó e mobiliza os moradores, mas também, os “filhos ausentes”,

sobretudo pessoas que residem na capital, Natal. Em cooperação com a Igreja,

desde o mês de novembro, são organizadas novenas e arrecados fundos para

subsidiar as despesas da festa do fim do ano: os uniformes dos irmãos, a comida, o

transporte, entre outos, são fornecidos aos membros da Irmandade e a seus

familiares que vêm especialemente para Jardim do Seridó para a ocasião.

A festa começa no dia 30 de dezembro e termina dia primeiro de janeiro do

ano seguinte, seguindo o cerimonial das outras festas religiosas (novenas, missas,

procissões, benção, etc.) com o desfile e a dança ao som dos tambores. A

“brincadeira” reúne anualmente os irmãos de Boa Vista e de Jardim do Seridó bem

como devotos da santa, amigos e parentes: é uma ocasião ímpar de reencontrar os

familiares, de consolidar a devoção à santa e de festejar a passagem do ano com

muita dança e, sobretudo para alguns homens, muita cachaça. Segundo o que

nossos interloctores nos disseram, “antigamente”, a maior parte das famílias da

Boa Vista se mudava para a casa do Rosário levando, “no lombo de jumento” os

mantimentos necessarios para os três dias de festa: redes, lenha para cozinha,

panelas, alimentação – inclusive galinhas vivas! Percorriam à pé os quinze

102 Apresentamos uma versão resumida da história contada por seu Zé de Biu, pois, na ocasião, não foi possível gravar a entrevista.

Page 111: Relatorio Boa VistacomAnexos

111

quilômetros que separam Boa Vista de Jardim; os mais jovens aproveitavam o

passeio para namorar ou se distrair, comendo e bebendo no caminho. Hoje, “o

povo da Boa Vista” utilisa o ônibus fretado pelas prefeituras para ir “na casa do

Rosário”, ao encontro da família Caçote, para rezar, “pular” e “farrear” nas ruas de

Jardim.

Fotografia 11 - Dona Inácia Caçote com 91 anos (Jardim do Seridó, maio 07).

Tivemos a chance de conversar com Dona Inácia Maria da Conceição,

conhecida como Inácia Caçote (maio 07), que nós contou que sua avó era escrava:

esta morava no sítio São Roque, hoje situado no município de Ouro Branco, vizinho

a Jardim do Seridó.103 Segundo Dona Inácia, ela teria conseguido comprar sua carta

de alforria, libertando-se para criar seus filhos com o seu trabalho nos campos de

algodão. Na ocasião informou que foi seu pai que construiu a casa do Rosário,

comprando o material da casa com o preço da venda de um boi; este chamou os

homens da Boa Vista para participar da festa do Rosário em Jardim com a “família

Caçote”.

A tradição é mantida com muito cuidado, os integrantes do grupo ficando

sob a responsabilidade do mais antigo, hoje Zé de Biu, “chefe dos negros”, que

103 Dona Chica informa que escravos orginários da Boa Vista foram morar em Ouro Branco.

Page 112: Relatorio Boa VistacomAnexos

112

dirige o grupo nas suas apresentações e ensino ao mais novos os passos: José

Fernandes do Amaral, é chefe do grupo e ocupa o cargo há vinte anos; foi juiz

perpétuo durante 45 anos e é um do mais antigos a continuar participando da festa

de Jardim.104 Além de ser um dos mais antigos participantes da festa do Rosário, é

também leiloreiro durante as festas de Jardim do Seridó e de Carnaúba dos Dants,

no Monte do Galo. Seu Manoel Miguel, que não partipa mais, entrou na irmandade

em 1947 e ocupou vários cargos ao longo dos anos.

Fotografia 12 - Zé de Biu e a zabumba velha feita de caixa de bacalhau (jan. 07).

Como nos Réisados ou nas Congadas, há uma eleição anual para escolher o

Rei e a Rainha do ano, o Juiz e a Juíza do ano e perpétuos, o Escrivão, a Escrivã, e,

finalmente o Rei e a Rainha Perpétuos. Todas as irmandades do Rosário obedecem

à mesma lógica:

Tem o rei perpétuo e a rainha perpétua. É Pedro Mariano e Trindade, irmã dele. No ano que não aparece um pra ser rei, ele é que assume no lugar e a rainha também. Mas quando aparece, ele cede a coroa para o rei, paga promessa. O rei e a rainha dá um almoço a nós no dia de hoje a todos os negros do Rosário e ao povo que acompanha o Reinado (Seu Paulo, Caicó, 1990)(Cavignac 1994: 214).

104 Hoje, Zé de Biu é também responsável da casa em Jardim do Seridó durante as festas.

Page 113: Relatorio Boa VistacomAnexos

113

Há também o porta-bandeira (bandeirista), que acompanha os dançarinos

(lanceiros) que são comandados pelo Capitão de lança, geralmente uma pessoa

experient. Finalmente, os caixeiros se juntam ao tocador de pífano de Jardim que

nem sempre é presente nas apresentações.

Fotografia 13 - Tambor e Espontão do Rosário (Jardim do Seridó, dez. 2006).

A tradição vem sendo mantida ao longo dos anos, sem muita modificação:

(...) Tem os bombos, tem os pontão que é uns pau’ com as fita’ que eles pilam e tem os tambor´ de bater. São três, quatro tambor. Tem as caixa’... Ai pronto, eles tem parte pra festivo... tem a rainha, tem o réis. A rainha, o juiz, e a juíza do ano, juíza do ano e juiz do ano, juiz perpét´o e a juíza perpet´a, e tem também a escrivã... agora eles são tudo de traje comprido, sabe?... E o Réis com a coroa na cabeça, tem a coroa e agora o outro pessoal não tem não... divisa umas fita, assim do lado, ai aquelas fita’, ´tá indicando que é o Réis perpét´o, que é juiz perpét´o, juiz do ano, ai quando chega o dia da festa, na véspera da festa, ai o pessoal vão se preparar pra aquele encontro do Réis, em jardim do Seridó. É muito bonito o encontro, o pessoal fica, vão pra lá, o Réis e a Rainha fica e se prepara. Ai vão se encontrar lá na porta da igreja... vai no dia 30 ai só vem no dia 1º à noite. Antigamente a gente ai de pés, daqui... ai passa a fita todinha lá .. aí pronto quando eles vão ensaiar aquele encontro, que é o inicio da festa, ai sai o pessoal batendo , batendo pra se encontrar, aí ficam batendo ... aí depois quando é pra ir pra missa, vão tudo preparado, tudo preparado, também tem guarda de honra, que é um menino com u´a menina ... Todas elas têm véus e capela, só quem tem coroa, a juíza do ano e a juíza perpet´a é de véu e capela... Como u´a noiva... Lá em jardim do Seridó, todo ano, é assim, um ano é daqui de Boa Vista e outro ano é de lá, um ano é de lá, o outro é daqui... junta tudo, é os negro´ do Rosário de Jardim e o negro´ do Rosário daqui da Boa Vista, aí lá tem uma missa, se prepara naquele dia, no dia da festa, e quando é de 9 horas, o tesoureiro que é o pessoal de lá, aí vão preparar aquela missa. Aí, na hora daquela missa é que fica, é como fica a passagem do outro ano, aí fica tudo na hora pra saber quem é o Réis do ano e o juiz do ano, todo ano muda, o Réis e o juiz, só nunca muda, é um só, toda vida é o juiz perpét´o, toda vida ele é um só... Desde da vespera, aí assiste ao encontro de Réis, depois, vem tudo pra casa, vem tudo batendo.

Page 114: Relatorio Boa VistacomAnexos

114

Troca roupa, quando é à noite vai pra novena, tudo formando, tudo vestido com o pessoal... Aí, no outro dia, se arrumam, vão à missa, a missa é de 10 horas, depois da missa vem, quando é de 4 hora´, aí é a procissão. Mas aí eles sai´, tem as barracas, vão todos formado´ lá pras barracas, são convidado´ pra ir pras casas assim, pessoas de lá, de jardim do Seridó, Dr. Paulo, esse povo, aí vão tudo pronto, não sabe? ... Tinha um jantar, era na casa da gente mesmo, sabe? Apesar quando esse povo, aí tudo pronto, não sabe? ... Tinha um jantar era na casa da gente mesmo, sabe? (Chica 1991).

Fotografia 14 - Tereza participando da festa do Rosário da Boa Vista (foto de Tereza,

s.d., Boa Vista).

A hierarquia é rigorosamente cumprida para que os irmãos possam dançar e

‘brincar’ juntos durante os três dias da festa. A brincadeira e a dança são reservados

aos homens, pois além do esforço físico intenso que é requerido, há um grande

consumo de álcool. Porém, as mulheres participam da festa, dançando e

acompanhando o cortejo. Também são encarregadas das crianças, das tarefas da

casa e da preparação das refeições.

Luis da Câmara Cascudo (1962: 297-298) que participou da festa em 1943,

define a dança como “um bailado de guerra, ao som do tambor marcial”:

Até 1944, havia no Jardim do Seridó, uma cerimônia alusiva ou semelhante: coroação dos Réis (sem denominação do Reino), missa em lugar privilegiado, e nas ruas, um longo bailado guerreiro, acompanhando a tambor a dança do Espontão, pequena lança, sem versos e sem cantos. Apenas um bailado ginástico de ataque e defesa, com lanças e à pé”. (Cascudo 1980: 46)

Page 115: Relatorio Boa VistacomAnexos

115

Fotografia 15 - Irmandade do Rosário de Currais Novos (1943).105

Até a roupa lembra soldados e a dança ensaia um combate, com gritos, pulos

e muito ritmo. Ao desfilar nas ruas, os dançarinos param em algumas residências,

para pedir alimentos e dinheiro: a lança é colocada no ombro para significar que a

pessoa deve colaborar com comida, bebida ou dinheiro. A ameaça ritual lembra a

todos que a colaboração é obrigatória e que precisa abrilhantar a festa com a

presença de cada um. O tesoureiro, tradicionalmente, um branco, recebe todo ano

o grupo para fazer uma colação e, geralmente, mantém relações amistosas com os

membros do grupo.106

A Dança do Espontão se destaca das outras festividades realizadas por

irmandades negras por ser antes de tudo uma dança masculina – em traje de

guerreiros - ritmada por percussões, sem canto:

As músicas tocadas pelo pífaro (eles chamam ‘pifa’) com acompanhamento das caixas ou zabumbas, chamam-se “Baionada”, “Catingueira”,

105 Fotografia reproduzida do Dicionário do folclore brasileiro de Luís da Câmara Cascudo (1962: 298). 106 Seu Turco é o tesoureiro da irmandade há mais de dez anos e é auxiliado, na organização da festa por sua esposa, Helena; porém, a contra-gosto, terá que se afastar do cargo em breve por razoes de saúde.

Page 116: Relatorio Boa VistacomAnexos

116

“Palmeirinha” e “Piauí”. São melodias vivas e alegres. Próprias da festa ou do grupo de Boa Vista, pois nada ouvimos semelhante noutros folguedos do Estado. Interessante é que os negros não cantam nenhuma melodia. Tocam e dançam apenas, improvisando passos, gingando (Melo 1973: 132).

Fotografia 16 - Os negros do Rosário com Dr. Mauro, então prefeito de Parelhas.107

Na dança do Espontão, não há letras nem melodias, só loas. O ritmo dos

tambores é envolvente e chama atenção do público assistente. Tambéem, durante

os dias de festa, os irmãos do Rosário visitam casas para abençoá-las e arrecadar

bens e dinheiro para a festa. Ao chegar nos domicílios e depois de terem dançado,

os irmãos abençoem a casa visitada, com a fórmula seguinte: “Viva Nossa Senhora

do Rosário! Viva São Sebastião! Viva as pessoas de bem! Viva a boa sociedade,

tronco, ramos e raízes!”.108 Desta forma, o ritmo ocupa todo o espaço musical, o

pífano podendo ser dispensado. Nesse aspecto, se distingue das outras formas de

religiosidade ligadas a irmandades de Pretos, pois, geralmente, a dança

acompanha-se de cantos ou de rezas.

107 SEMECR 1994. 108 Antônio Capitão, 01/01/2006 citado por Góis 2006: 22.

Page 117: Relatorio Boa VistacomAnexos

117

Fotografia 17 - Nossa Senhora do Rosário e São Sebatião (Jardim do Seridó, abril 07).

A performance é inteiramente realizada pelos homens, pois a participação

das mulheres é proíbida na celebração oficial e religiosa. Porém, seguindo o cortejo,

mulheres e crianças dançam em louvor a Nossa Senhora do Rosário e a São

Sebastião. Assim, é inegável que a festa e a devoção a N. Sra. do Rosário ocupam

um lugar de destaque no universo cultural e religioso dos quilombolas de Boa

Vista; são eles os principais precursores do evento do fim do ano em Jardim do

Seridó, deslocando-se nos últimos dias do ano, em número importante para passar

três dias na “casa do Rosário” e mantendo acesa a chama da lembrança do passado.

Ocasião, também, de reatar laços de parentesco reais ou rituais e de afirmar uma

diferença.

De fato, a dimensão festiva e ritual da festa não esconde o caráter étnico da

manifestação cultural na qual é ensaiado um cortejo real ao som dos zabumbos.

Seu Zé de Biu, interlocutor privilegiado para os assuntos que dizem respeito à

irmandade, lamenta que alguns grupos quilombolas não queiram mais continuar a

Page 118: Relatorio Boa VistacomAnexos

118

tradição: “não querem ser negros”. Essa declaração confirma a importância da

dança na definição identitaria. Assim, podemos definir a Festa do Rosário como um

ritual de inversão controlado pela igreja que, visivelmente, é muito bem aceito por

todos os segmentos da sociedade seridoense (Matta 1981; Turner 1990). Nele, é

regularmente lembrada a opressão sofrida pelos descendentes as populações

escravizadas que aparecem como guerreiros. Apesar de ser vista como ‘folclore’

pela sociedade englobante, em Boa Vista, a performance ritual não perdeu sua

dimensão étnica e memorial: é a expressão dos sentimentos e de uma visão do

passado de um grupo historicamente estigmatizado e marginalizado. Pela

encenação do ritual que atualiza o passado, a identidade do grupo encontra-se

reforçada. É o que Carlo Severi (1993: 361) chama de ‘memória ritual’: é “um tipo

de memória que somente uma ação ritual parece capaz de preservar e que não é

sujeita à mudança histórica”. A Festa do Rosário nós ensina, encenando uma luta

que lembra o tempo de opressão que é silenciado, inclusive pelos próprios

interessados. Efetivamente, na dança do Espontão, que é masculina, não há canto

nem uma trama narrativa. Assim, a dança não deixa de ser uma memória que não

precisa se transformar em palavras: a memória e o ritual formam um conjunto e

expressam uma identidade que se fundamenta num território ocupado

ancestralmente.

Page 119: Relatorio Boa VistacomAnexos

119

AS TERRAS DA BOA VISTA

O coronel fez perguntas, leu e releu as escrituras, viu o outro riscar no chão o problema da divida (...) Dia e hora determinado, presentes os litigantes, o coronel apeia da burrinha-de-sela, dá as horas a todos, examina uma e outra escritura, escuta razoes, verifica a picada da cerca, a “cama” da pedra (marca) deslocada e, depois de matutar no problema, chama uns trabalhadores e manda repô-la no lugar. Desabotoa a braguilha e depois de “batizar” a pedra, profere a sentença:

- Agora enquanto tiver catinga de furão macho, quem quiser que se atreva a bolir nesta pedra!

Dizem que até hoje a divisa é respeitada...109

109 Juvenal Lamartine, Velhos costumes do meu sertão, p. 50.

Page 120: Relatorio Boa VistacomAnexos

120

Nesse capítulo, iremos mostrar que o sentimento de pertencimento ao

grupo, se é fundado no compartilhamento de uma memória e de uma história, é

também ligado a práticas e a representações simbólicas que são inscritas num

espaço geográfico imediatamente reconhecido ao evocar a “Boa Vista dos Negros”.

A memória genealógica do grupo se apóia na lembrança da distribuição da terra

entre os herdeiros e na relação das invasões realizadas por proprietários vizinhos.

Se o sentimento de autoctonia é presente entre todos os quilombolas, o medo do

enfrentamento dos conflitos foi se atenuando a medida em que a consciência do

direito de ‘retomada’ das terras foi crescendo ao longo dos meses que

acompanhamos o processo; o que se traduz pelo uso da expressão “não podemos

desistir agora, senão vão tomar tudo”. Ao se reapropriar parte do território

tradicional, com o objetivo de obter do título coletivo, aparece a ocasião até então

inédita, para os quilombolas, de reinvidicar direitos e de repensar um passado que

foi silenciado.

Na recomposição da história da “terra da Boa Vista” que ensaiamos,

encontramos várias dificuldades: além da inexistência de arquivos organizados e de

estudos históricos sistematizados sobre a localidade, deparamo-nos com problemas

inerentes ao tratamento dos registros orais. Assim, existem versões contrastivas

dos fatos, dependendo dos estatutos sociais, dos posicionamentos políticos e do

ponto de vista dos nossos interlocutores – que seja o dos quilombolas ou dos

proprietários fundiários vizinhos -, a memória local destacando eventos que são

expressos segundo uma linguagem própria ao grupo. Essa lógica social (Wachtel

1990) precisa ser reencontrada para podermos entender como se constituiu o

território ocupado pelos “Negros da Boa Vista”.

4.1. A transmissão das terras

Encontramos vários registros documentais nos quais aparecem os ancestrais

dos nossos interlocutores e, às vezes, é indicada, também a filiação e o cônjuge da

Page 121: Relatorio Boa VistacomAnexos

121

pessoa citada: nos inventários, aparecem como herdeiros, nos livros de registros

das igrejas nos momentos importantes da vida (nascimento, casamento, morte) ou

são padrinhos de batizado ou testemunhas nos casamentos. Porém nem sempre é

possível reencontrar uma correspondência entre os membros das famílias que tem

um registro oficial e os que coletamos na memória dos entrevistados; a atribuição

repetida dos nomes gera confusões. Além disso, as memórias dos grupos familiares

constituem-se de maneira relativamente autônoma, cada um selecionando

indivíduos e eventos em função de interesses particulares.

4.1.1. “... que assinou somente ele, juiz, por ela ser mulher e não saber escrever...”

Para iniciar a viagem no tempo, partimos da leitura de inventários datados

do meado do século XIX. Há um primeiro documento, datado de 1859, estabelecido

na vila de Acary, na “casa de residência do juiz municipal e de órfãos, segundo

suplente em exercícios do termo da dita vila, o tenente coronel João José Dantas”.

Refere-se à partilha de bens do defunto Manoel Fernandes da Cruz (17??–

1856) que era casado com Victorina Maria da Conceição.

Consta, no documento, o registro de uma parte de terra “no Olho d’Água do

Boi”, propriedade que tinha sido anteriormente comprada por 200.000 réis e que

encontra-se indivisa com outros dois proprietários, ambos de nome Antonio: um

era o genro do casal e já havia falecido na época, o outro Antonio era tio de

Victorina e tinha uma parte da propriedade de um valor de 30.000 réis. A parte do

casal foi avaliada em 110.000 réis e contava com uma casa (10.000 réis). Uma

outra terra é registrada em Boa Vista (do rio Cobra) e foi avaliada em 8.000 réis.

Fora as propriedades fundiárias, há poucos bens relacionados para tantos

herdeiros: a viúva, cabeça de casal, e dez filhos. Cada um deles recebe partes de

terras, objetos, e/ou animais (uma vaca magra ou gorda, uma novilhota, uma mesa

velha, uma caixa, uma mala velha, um par de argolas de ouro, etc.). Os semi-

moventes – havia seis cabeças de gado - representavam a metade dos bens da

família (145$000). O total da herança soma 318.000 réis e não há dívidas – a filha

Page 122: Relatorio Boa VistacomAnexos

122

Maria tinha emprestado a seus pais 22$000 e um primo chamado Roberto, devia

4$000.110 Assim, a família aparece numerosa para tão poucos bens: contamos 12

adultos, sem contar os cônjuges dos filhos e os netos de Manoel e Victorina que não

são relacionados. As seis vacas de Manoel não chegam a constituir um rebanho,

comparando com o dos grandes fazendeiros como Manuel Pereira Monteiro da

Dinamarca, proprietário em Serra Negra do Norte que deixa aos seus herdeiros

mais de quatro mil cabeças de gado em 1838 (Cunha 1971: 231-234). Desta forma,

podemos deduzir que esta família de agricultores seridoense vivia em condições

precárias; apesar de serem proprietários fundiários, os herdeiros de Manoel

Fernandes da Cruz não pertenciam à classe abastada.111 Para podermos ter uma

idéia do nível sócio-econômico da família, é também possível comparar o valor

total da herança com os preços dos escravos que, no final do século XIX, variavam

entre 600 e 800.000 réis (Mattos 1985: 140). Assim, por exemplo, em 1852,

Joaquim, um mulato de 44 anos, escravo de José Dantas da Silva, morador de

Acari, comprou sua liberdade por 600.000 réis, o que representa o dobro do valor

da partilha dos nossos inventariantes e mais de vinte vacas (Macedo 2004b)!

Assim, ao verificarmos que os escravos conseguiam reunir um pecúlio substancial

para comprar uma carta de alforria, observamos, também, que o escravo

representava um bem muito mais valioso do que a terra.

Ao mesmo tempo, parece natural que os moradores atuais de Boa Vista não

se lembram dos herdeiros de Manoel e de Victorina, sabendo da distância temporal

existente entre eles e os então proprietários de Boa Vista. Porém, ao ler para nossos

interlocutores o nome dos herdeiros de Manoel, constatamos reações de alguns, os

mais velhos, que reconheciam os nomes e os sobrenomes dos seus antepassados. É

como se, ao herdar dos bens, os indivíduos herdava também dos nomes dos seus

110 Além das duas partes de terras, constam no inventário “uma casa muito ruim”, três pares de argolas de ouro, duas caixas velhas, uma mesa velha, um veio de roda e um varão, uma caixa encourada com broxas”, “duas vacas, três novilhotas e duas garrotas”. O inventário foi transcrito por Sebastião Genicarlos e encontra-se no Labordoc – CERES/UFRN, Caicó. Este mesmo documento tinha sido encontrado anteriormente por Dr. Ulisses Potiguar no cartório de Jardim do Seridó. 111 Mesmo se não possuíam muitos bens, os herdeiros tiveram que registrá-los perante as autoridades, pois havia órfãos.

Page 123: Relatorio Boa VistacomAnexos

123

pais: Thomásia Manoella da Conceição (viúva), Joaquim Manoel Fernandes

da Cruz (Casado), Joaquina Maria da Conceição (29 anos), Anna Victorina da

Conceição (27 anos), Antonio Fernandes da Cruz (25 anos), Laurentino

Silvestre dos Santos (26 anos), Catharina Maria da Conceição (23 anos),

Victória Maria da Conceição (19 anos), Lorença Maria da Conceição (13

anos).

Além disso, como demostramos, existem correspondências entre as

informações orais e as informações documentais encontradas. Assim, podemos

inferir que há uma relação do inventariado com o grupo estudado: Manoel

Fernandes da Cruz e Victorina Maria da Conceição eram negros e livres,

pertencendo à mesma linha genealógica dos “negros da Boa Vista”. Também,

podemos pensar que filhos do casal foram se instalar no sítio Boa Vista para

cultivar a terra e que os dois grupos aparentados, tendo interesses e bens em

comum (o sítio do Olho d’Água do Boi), continuaram a tecer relações ao longo dos

anos – inclusive, a contratar alianças matrimoniais.

4.1.2. Domingos, Manoel, André...

Ao consultar os registros coletados por Dr. Ulisses Potiguar, encontramos

elementos que permitem relacionar a memória dos moradores atuais de Boa Vista

com os documentos escritos dos seus ancestrais.

O registro de óbito no nome de Domingos Fernandes da Cruz (1784-

1857) informa que este morreu de cólera aos 73 anos em Parelhas. Neste

documento encontram-se registrados os ancestrais dos quilombolas de Boa Vista

como herdeiros: Manoel Gino que também chamava-se Manoel Fernandes da

Cruz e, como vimos, era também conhecido como Manuel Timbu; Antônio

Fernandes da Cruz (1869-1954), também conhecido como Antônio Moreno,

Page 124: Relatorio Boa VistacomAnexos

124

pai de Seu Emiliano112; e, finalmente, Theodôzio Fernandes da Cruz (1866-

1951), que segundo nosso levantamento genealógico, era casado com Leocádia,

nascida em 1864, filha de André Fernandes Vieira com Antônia Maria da

Conceição.113 Existe um registro de nascimento encontrado por Seu Ulisses

Potiguar, que indica que Teodôzio era filho de Inácio Fernandes Vieira ou da Cruz

que era casado com Maria Galdina da Conceição, chamada “Tia Galdina” por Dona

Chica; esta última nasceu na Boa Vista em 1864. Por sua vez, Maria Serafina da

Conceição – Imbém (1840-1946) é apresentada por nossos interlocutores como

irmã de Teodôzio, de Antônio Moreno e de Manoel Gino, mas não consta no

inventário.

Quando escutamos nossos interlocutores contar a história dos seus pais, dos

seus avós, ou mesmo dos seus bisavós, voltamos, às vezes, 150 anos atrás,

justamente na fundação da cidade de Parelhas, na ocasião da morte de Domingos

Fernandes da Cruz que, apesar termos encontrado o seu registro de óbito,

nenhuma pessoa viva hoje conheceu; possivelmente muitos dos seus filhos também

morreram de cólera nesse período e precisava conhecer os herdeiros: ao todo,

contam-se seis pessoas que receberam uma parte da herança de Domingos.

Também, aparecem referências freqüentes a famílias e parentes oriundos da

Paraíba. De fato, há um número significativo de pessoas vindas do Brejo (Cuité),

das cidades paraibanas próximas a Parelhas (Taperoa, Lagoa Seca [?],Várzea, Nova

Floresta) ou mesmo das localidades próximas de Boa Vista (Mata Besta). Assim, as

famílias Fael e Miguel ou Mubuca vieram todas da Paraíba e, se levamos em conta a

112 Com certeza, não se trata do mesmo Antonio Fernandes da Cruz, herdeiro de Manoel, que tinha nascido em 1834, mas pode se tratar de um dos parentes com o mesmo nome. 113 A reconstituição genealógica de Dona Chica apresenta Inácio Roberto casado com Antônia, outros dizem que foi André. [Será o ‘primo Roberto’ que aparece no inventário de Manoel F. da Cruz¿]. Também, encontramos na genealogia de Manoel Miguel, Antônia Maria da Conceição, conhecida como Antônia Miguel, pois adotou o nome do seu marido. Precisamos também desconfiar dos registros cartoriais, pois, no século XIX, encontramos a mesma pessoa registrada em ocasiões diferentes com nomes diferentes e também do hábito de mudar de nome que encontramos até hoje: os moradores da Boa Vista adotam os sobrenomes “Viera” e “Fernandes” de forma indiferenciada – é o caso de Zé de Paulina.

Page 125: Relatorio Boa VistacomAnexos

125

memória genealógica, provavelmente antes da Abolição114: Manoel Miguel vem

morar na casa da pedra situada perto de Juazeiro, sítio vizinho. Segundo Dona

Chica, é o bisavô do atual Manoel Miguel, cujo filho, Cosme Miguel dos Santos

(“Pai velho”) se casa em Boa Vista com Mãe Antônia ou Mãe Velha (Antônia Maria

da Conceição), originária da Várzea, na Paraíba. Assim, não podemos descartar que

tratam-se de indivíduos ou de famílias que fugiram da escravidão, encontrando em

Boa Vista um refúgio seguro.

Fotografia 18- Maria Serafina da Conceição, Imbém (1840-1946).

Assim, mesmo se existe uma decalagem entre os indivíduos encontrados nos

registros documentais e as genealogias reconstruídas com o auxílio dos detentores

da memória do grupo, surgem alguns elos entre as famílias de Manoel Fernandes

da Cruz e de Domingos Fernandes da Cruz: dois filhos de Manoel Fernandes da

Cruz – falecido em 1856 - Joaquim Manoel Fernandes [da Cruz] e Antônio

Fernandes da Cruz, provavelmente após terem recebido sua parte do inventário, se

114 Lembramos que a pessoa mais antiga da Boa Vista, Imbém, nasceu na Boa Vista em 1840.

Page 126: Relatorio Boa VistacomAnexos

126

casam em 1859. Outro indício da ancestralidade quilombola encontra-se no fato de

que as testemunhas dos casamentos foram identificadas pelos mais idosos: André

Fernandes Vieira que era conhecido em Boa Vista como André Lotério casado com

Antônia Maria da Conceição e Antônio Eleotério da Cruz que nasceu em 1834 e

que, seguindo a nossa reconstrução genealógica, era o tio da noiva, irmão de

(Inácio) Roberto. Parece bastante razoável pensarmos que, como os nossos

interlocutores não se cansam de repetir, os herdeiros de Domingos são todos

membros da comunidade e são detentores da terra há várias gerações.115 Também é

lógico que Domingos fosse negro, pois todos os descendentes dos seus herdeiros,

Antônio Moreno, Teodôzio e Manoel Gino que foram respectivamente

reconhecidos como sendo o pai de Seu Emiliano, o irmão de Imbém e proprietário

de terras, o avô materno de Zé de Paulina, se reconhecem como quilombolas.

Fotografia 19 - Zé de Paulina fumando cachimbo (maio 07).

115 A árvore genealógica não é mais segura para as pessoas que nasceram antes de 1850, sabendo a distância temporal que separam as gerações.

Page 127: Relatorio Boa VistacomAnexos

127

Porém, provavelmente, Domingos Fernandes da Cruz que encontramos nos

registros cartoriais não era escravo, nem seus herdeiros que, por sua vez, deixam

bens e terras ao morrer. Ainda acompanhando a versão oral da história,

percebemos como a hipótese do estabelecimento definitivo de famílias libertas

numa terra pouca cobiçada se confirma, pois todos os moradores do sítio Boa Vista

insistem sobre o fato de que os seus ancestrais não conheceram a escravidão,

mesmo sabendo que fora da Boa Vista existia pessoas que não eram livres e que

‘índios’ viviam escondidos nas serras. O exemplo dos irmãos Theodôzio, Antônio

Moreno e Imbém que os moradores mais velhos conheceram bem, pois, ambos

faleceram nos anos 1950, mostra que era possível a permanência de libertos em

terras devolutas ou tendo um estatuto similar em pleno período escravista.

No entanto, a existência de inventários de libertos que possuíam terras

parece ser um fato novo que deve ser melhor investigado pelos historiadores. De

fato, se nos estudos consultados, não encontramos inventários de escravos,

existem, porém, alguns inventários de libertos: eram escravos que conseguiram

reunir uma quantia suficiente para comprar sua liberdade e adquirir bens. Como

vimos, geralmente, o capital era reunido em cabeças de gado e servia aos escravos

para se alforriar: de fato, o proprietário tinha, pelo trabalho acumulado do seu

escravo, uma espécie de poupança de que podia dispor a qualquer momento e

impor suas condições.116 Porém, nos estudos consultados, não encontramos

referências especificamente a libertos que irão se estabelecer em terras compradas.

Assim, a hipótese da “doação” faz sentido, sabendo da presença do grupo na Boa

Vista antes da Lei de Terras (1850). Finalmente, podemos pensar também que a

epidemia de cólera de 1856 e as secas de 1877 e 1911 provocaram uma

desorganização da sociedade tradicionalmente voltada para a pecuária e tiveram

como principal conseqüência uma súbita deflação populacional; o que deixou

116 Assim, Mattos (1985: 225) reproduz o inventário da liberta Mariana, em 1877, onde são registradas 11 cabeças de gado, mas não constam terras, só deixa bens móveis e semoventes (animais). Ver também Juvenal Lamartine e Olávo Medeiros que descrevem Feliciano, liberto, proprietário da fazenda Cacimba de Cabras (Acari) nos meados do século XVIII (Lamartine 1965: 56, 99; Medeiros filho 1981: 125-126).

Page 128: Relatorio Boa VistacomAnexos

128

espaço para libertos que não tinham terras para se instalar em propriedades

abandonadas por seus donos ou em terras devolutas.

Além da herança de Domingos encontramos, em Boa Vista, um “papel da

terra” que a família de Dona Geralda conservou ao longo dos anos: é o registro de

compra de “quatro partes de terras no sítio Boa Vista do Monte do rio Cobra” que

Teodôzio Fernandes da Cruz adquiriu em 1889 a sua sogra, Antônia Maria da

Conceição que era casada com seu tio André Fernandes Vieira ou André Lotério,

irmão do pai de Teodôzio, Inácio Fernandes Viera. Teodôzio casou com uma filha

de André, Leocádia. Parece difícil pensar que, um ano após a Abolição, um jovem

de 23 anos, tendo saído recentemente da condição de escravo e que,

provavelmente, já tinha filhos para criar, conseguisse reunir um capital que lhe

permitisse comprar terras.117 Curiosamente, há um registro de partilha dos bens de

Domingos Fernandes da Cruz (1784-1857) somente em 1906 – possivelmente na

ocasião da morte de um dos herdeiros, José Fernandes Vieira (?). Aliás, quase

todos os inventários apontam para Domingos como o primeiro “dono” de Boa

Vista, o que vem corroborar a versão oral da história.

Seria necessária uma pesquisa aprofundada e sistemática em arquivos para

poder reconstruir fielmente a genealogia das famílias, porém, verificamos que uma

leitura conjunta dos relatos orais e dos documentos históricos aponta para a

ancestralidade do grupo no local e permite uma visão mais completa da história.

4.1.3. Terras herdadas, terras compradas

Procuraremos, aqui, agrupar as informações disponibilizadas pelos

documentos encontrados por nós e por Dr. Ulisses Potiguar. Verificamos que, de

um modo geral, as informações contidas nos registros cartoriais acompanham os

117 Na época, o vizinho era José Marcolino da Silva, pai de Liciano Luciano, com o qual existem vários conflitos relativos à terra.

Page 129: Relatorio Boa VistacomAnexos

129

registros memoriais coletados durante a pesquisa genealógica das famílias de Boa

Vista.

Se a história oficial de Parelhas e da Boa Vista inicia com o surto de cólera

morbus, 1859 é a data dos primeiros registros de casamento de dois filhos de

Manoel Fernandes da Cruz que era casado com Victorina Maria da Conceição:

Joaquim Manoel Fernandes e Antônio Fernandes da Cruz que herdaram do

patrimônio de Domingos.118 No processo aberto no Incra em 2004, consta um

documento datado de 1889 – a terra foi comprada por Theodôzio Fernandes da

Cruz (1866-1951), que, segundo nosso levantamento genealógico, era casado com

Leocádia, filha de André F. Vieira com Antônia Maria da Conceição, nascida em

1864.119 Um registro de nascimento encontrado por Seu Ulisses Potiguar indica que

Teodôzio era filho de Inácio Fernandes Vieira e de Maria Galdina da Conceição e

que nasceu na Boa Vista em 1864. Theodôzio aparece ainda no inventário de

Manoel Fernandes da Cruz e de Antônia Maria da Conceição, com data de 1916,

junto com Marcimino Fernandes da Cruz, de Antônio Fernandes da Cruz e de

Vicente Fernandes da Cruz como sendo os herdeiros de André Fernandes Vieira

que, por sua vez, herdou de Domingos, seu pai.

Retomando as informações coletadas, encontramos informações que

indicam a transmissão das terras da Boa Vista através de herança. Assim, segundo

o inventário de 1859, sabemos que Manoel Fernandes da Cruz era casado com

Victorina Maria da Conceição e tiveram como filhos: Francisca, Vitória Maria,

Tereza. Tereza, por sua vez, teria casado com Domingos Fernandes da Cruz e

tiveram um filho chamado também Domingos Fernandes da Cruz. Assim,

Domingos herdou da parte da propriedade do seu avô (Manoel). Domingos

(filho) casou com Josefa Maria da Conceição e tiveram como filhos Inácio

118 Ver em anexo a relação dos documentos cartoriais e da paroquias. 119 Ver em anexo o documento reproduzido. Na reconstituição da genealogia de Dona Chica, encontramos um Inácio Roberto casado com Antônia, que eram pais de Teodozio Fernandes da Cruz (1864/66-1951) e de Maria Serafina da Conceição – Imbém (1840-1946).

Page 130: Relatorio Boa VistacomAnexos

130

Fernandes Viera, André Fernandes Vieira e Manoel Fernandes Viera.120

Encontramos também Maria Galdina da Conceição (Mãe Galdina), constando

como herdeira.

Sistematizando as informações coletadas, chegamos aos seguintos quadros:

Herdeiro Cônjuge filho Cônjuge do filho

netos

Domingos Fernandes da

Cruz

Tereza Domingos Fernandes da

Cruz

Josefa Maria da Conceição

Inácio Fernandes Viera

André Fernandes Vieira

Manoel Fernandes Viera

Cônjuges dos netos

Inácio Fernandes Viera

Maria Galdina da Conceição (ou da Cruz ou de Jesus)

Ana

Cassiano

Romana

Delmira

Teodôzio Fernandes da Cruz

Leocádia

Beliza Maria da Conceição

Manoel Fernandes da Cruz

Manoel Fernandes Vieira

Joana Cassimira de Jesus Vieira

José Fernandes Vieira

Emídio Colecino Fernandes

Isabel Maria da Conceição

Manoel Vieira

Imbém

Júlia Maria da Luz ou Julia Miguel

Dona Quintina

André Fernandes Vieira

Antônia Maria da Conceição do Sacramento ou

Marcimino Fernandes da

Ana Maria da Conceição

Severina Maria da Conceição

120 Sabemos que Inácio Fernandes Viera herdou de terras no riacho do Gavião que sua esposa, Maria Galdina de Jesus (1826-1886) recebeu de seu pai André, falecido em 1916, e que provinha da herança de Domingos Fernandes da Cruz.

Page 131: Relatorio Boa VistacomAnexos

131

ou André Lotério

da Incarnação – chamada também Cabel

Cruz

Antônio Fernandes da Cruz

Vicente Fernandes da Cruz

Leocádia

Maria Galdina da Conceição

Luiza Maria da Conceição

Martins

[filhos: Aprígio Fernandes Vieira, Antônio Fernandes Vieira, José Mauro Vieira, Francisca, Santina, Severina Maria da Conceição, Ana Maria da Conceição, Maria Melania do Nascimento, Geralda Maria da Conceição]

Maria Galdina da Conceição (Mãe Galdina)

Antônio Fernandes da Cruz (Antônio Moreno) [filho de Inácio Roberto da Cruz]

Seu Emiliano

Assim, a leitura comparada dos documentos e da memória aponta para uma

ancestralidade comum e uma história compartilhada; a herança das terras segue a

lógica da transmissão preferencial em linha agnática. Mesmo se, nos documentos, a

ligação de parentesco entre as duas famílias mais antigas de Boa Vista – a de

Manoel Fernandes da Cruz e a de Domingos Fernandes da Cruz -, não fica evidente,

encontramos, no entanto, alguns elos que permitem explicar as relações entre os

dois troncos familiares. Porém, graças às informações coletadas, conseguimos

entender como, ao longo dos séculos, os quilombolas desenvolveram estratégias de

casamento endogamico para conservar seu território.

Também, há outros tipos de relações sociais que reforçam os laços de

parentesco, como é o caso dos padrinhos de casamentos: forma escolhidas,

preferencialmente, entre os membros da família mais próxima. Essas pessoas

foram identificados pelos atuais quilombolas: André Fernandes Vieira e Antônio

Eleotério da Cruz foram presentes nos casamentos dos filhos de Manoel Fernandes

Page 132: Relatorio Boa VistacomAnexos

132

da Cruz.121 Assim, aparece bastante razoável pensarmos que, como os nossos

interlocutores não cansam de repeti-lo, Domingos – dependendo das versões é

filho ou esposo de Tereza - e todos seus herdeiros, são membros da comunidade e

estão nas terras há várias gerações.

Podemos afirmar que o Domingos encontrado nos registros históricos

também era negro, pois todos os descendentes de Antônio Moreno, de Teodôzio e

de Manoel Gino se reconhecem hoje como quilombolas. Porém, isto não quer dizer

que Domingos fosse escravo, pois possuía bens; de fato, não encontramos, na

historiografia local, escravos com inventários – apenas podiam receber dinheiro e

como vaqueiro, gado. Ainda acompanhando a versão oral da história percebemos

que tudo converge para a idéia de que havia libertos instalados no local, pois os

moradores da Boa Vista dos Negros insistem sobre o fato de que nunca foram

escravizados. Efetivamente, os inventários estabelecidos nos meados do século XIX

indicam a existência de títulos de propriedade no período anterior à Abolição e,

como vimos com a comparação entre a genealogia e os documentos, há uma grande

probabilidade de que os occupantes da terra eram negros libertos.

Hoje, porém, força é de constatar que o território tradicionalmente ocupado

pelos quilombolas encontra-se reduzido. Seu Ulisses Potiguar recolheu do morador

mais antigo, Seu Zé Vieira, falecido no início de 2007, o registro dos limites da terra

que eram situados muito além do atual território ocupado. Havia marcos precisos

que delimitavam as “terras dos negros”: o território estendia-se até as “águas de

Carnaúba”, no topo da serra do Marimbondo, a Pedra furada – hoje situada na

localidade vizinha de Juazeiro -, o sítio Maracujá – no limite com a cidade de

Parelhas -, e a Mareca, lugar que não foi identificado por nenhum dos nossos

interlocutores.

121 Encontramos a certidão de casamento de Joaquim Manoel Fernandes da Cruz datada de 1859 nos arquivos da igreja de Jardim do Seridó que esta reproduzida em anexo.

Page 133: Relatorio Boa VistacomAnexos

133

Fotografia 20 - Marco da terra na serra do Marimbondo (junho 07).

Ainda, encontramos pedras fincadas na terra que servem para delimitar as

propriedades, sobretudo em áreas que são pouco freqüentadas, como as serras; são

mais seguras para conhecer os limites do que as cercas efêmeras que podem ser

deslocadas por vizinhos inescrupulosos.

4.2. “Essa terra é da gente, dos negros”122

Como já demonstramos, a versão oral da história informa que a terra “dos

negros” foi doada por um proprietário branco e, depois, foi herdada de geração em

geração. Também, a narrativa não ressalta a origem étnica da ancestral fundadora e

transforma a antiga escrava em retirante, estatuto menos estigmatizante aos olhos

de todos. Assim, a história de Tereza e dos seus descendentes foi reproduzida nas

diferentes gerações, sendo atualizada por cada locutor. No entanto, na versão oral

da história, ninguém menciona as transações financeiras realizadas para aquisição

122 Dona Chica Vieira (1991).

Page 134: Relatorio Boa VistacomAnexos

134

de terras que foram feitas no interior do grupo, entre parentes. Analisando os

documentos coletados por nós e comparando-os com a memória genealógica,

descobrimos que a lógica de transmissão das terras é ligada às relações de

parentesco como garantia da integridade do patrimônio fundiário.

4.2.1. O fracionamento das terras

O antigo documento de compra de quatro partes de terra no sítio Boa Vista

do Monte Cobra, com data de 1889, em nome de Theodôzio Fernandes da Cruz,

bisavó materna de Zé de Paulina, serve para iniciar uma viagem na história

relativamente recente de Boa Vista e acompanhar o destino das famílias residentes.

Neste documento reencontramos os primeiros moradores do ‘monte do rio Cobra’ e

que a memória local esqueceu.123

O “papel da terra” foi conservado por Maria do Carmo, filha de Geralda

Maria da Conceição e de José Fernandes da Cruz. São os descendentes de Antônia

Maria da Conceição, falecida em 1896 e de André Fernandes Viera, falecido em

1916; este último era filho de Domingos Fernandes da Cruz (1784-1857), herdeiro

das terras da Boa Vista e do Olho d’Água do Boi. Essa breve reconstituição da

história feita a partir dos documentos cartoriais e dos registros paroquiais

encontrados apresenta a hipótese mais plausível que explica a presença contínua

do grupo na Boa Vista, desde pelo menos o início do século XIX: os primeiros

moradores, ex-escravos, teriam ocupado terras devolutas, como aconteceu em

outras comunidades quilombolas do Rio Grande do Norte ou teriam ‘recebido’ uma

terra em contrapartida de serviços, como existe no caso dos moradores (Cavignac

et alli. 2006; Queiroz 2002). Mais tarde, com a Lei de Terras de 1850, os

moradores de Boa Vista tiveram que regularizar a posse das suas terras; deve ser

por essa razão que, a partir de 1859, encontramos documentos que comprovam o

esforço dos herdeiros para conservar um patrimônio fundiário que foi, em parte,

123 Ver em anexo o documento.

Page 135: Relatorio Boa VistacomAnexos

135

transmitido por herança e complementado através da aquisição de novas partes de

terras.

Fotografia 21 - Os herdeiros de Theodôsio: Zé de Paulina e Sandro (maio 07).

Assim, na produção historiográfica regional, achamos pistas que confirmam

a hipótese da ocupação das terras por famílias pobres – sem especificar se essas

eram constituídas por escravos, libertos, mestiços ou brancos -; sobretudo para o

século XVIII, encontramos vários registros de “sobras”, de sesmarias não ocupadas,

de partes de terras sem títulos de propriedade e de terras devolutas (Guedes 2006:

106, 112; Macêdo 2007: 80; Mattos 1985). Sabemos que as sesmarias nem sempre

foram ocupadas e, quando o foram, era raro que o próprio sesmeiro as ocupassem e

vimos que, de um modo geral, os escravos eram mandados pelos seus proprietários

para ocuparem as terras (Guedes 2006: 120). Vimos ainda que, em 1735, o Cel.

Lourenço de Góis e Vasconcelos, morador da Paraíba, obtém a data de sesmaria no

riacho da Cobra: este rio, ainda hoje, é um marco tradicional que serve para

delimitar o território atual dos quilombolas.124 No documento de requerimento das

terras, encontramos indícios de que houve uma doação, mas, ao tudo que pareça, o

sesmeiro não chegou a ocupar efetivamente a área (Medeiros Filho 2002: 33-34):

124 Também encontramos uma carta de sesmaria de João Soares de Vasconcelos, datada de 1724, que reproduzimos em anexo, e que designa uma doação de terras próximas ao rio Seridó. Não encontramos a reprodução dos originais das cartas de sesmaria de D. Josefa Maria Bandeira de Mello, José Fernandes e Luciano da Silva.

Page 136: Relatorio Boa VistacomAnexos

136

O coronel Lourenço Góes e Vasconcellos, morador nesta capitania [Paraíba] tem seus gados e não tem onde os possa crear; e porque no rio Seridó desagoa um riacho que lhe chamarão da Cobra que corre para parte do norte, o qual haverá 12 annos pouco mais ou menos que pediram D. Josefa Maria Bandeira de Mello, José Fernandes e Luciano da Silva, cada um três legoas de terras para cada banda, como é de estylo; e porque entre os ditos D. Josefa e Luciano da Silva a pretenção que toca a dito José Fernandes se acha prescrita e devoluta sem povoação de gado algum, que elle dito fisesse, havendo a tantos annos pedido a dita terra, requeria por isto lhes concedesse a dita sorte de terras que coube a dito José Fernandes que são três legoas de comprido e uma de largo para cada banda pelo riacho abaixo. Fez-se a concessão conforme pedido no governo de Pedro Monteiro de Macedo (Tavares 1982: 146-147). [grifo nosso]

Assim, a sesmaria acima descrita foi finalmente atribuída a José Fernandes e

engloba parte do território tradicionalmente ocupado pelos remanescentes de

quilombo da Boa Vista, pois inclue o rio Cobra que ainda hoje serve de limite

natural. A área doada era imensa e correspondia às doações feitas naquela época

(1x3 léguas) e, provavelmente, o sesmeiro não sabia exatamente onde terminava

sua propriedade. Além da imprecisão dos limites entre as propriedades,

freqüentemente motivo de conflito entre vizinhos, sabemos que havia ‘sobras de

terras’, pois, “entre um e outro terreno cedido deveria existir um vácuo de légua e

meia para uso comunal” (Guedes 2006: 106; Macêdo 2007: 77). Nesse caso, é bem

capaz que, pelo menos até a metade do século XIX, havia terras sem título que

foram regularizadas posteriormente; é possível, também, que essas terras nunca

foram regularizadas, tendo em vista que existem poucos títulos de propriedade

regulares. Os títulos de propriedade que encontramos hoje pertencem apenas a

grandes proprietários fundiários, no caso, Liciano Luciano da Silva. Como vimos,

os nomes são indícios suplementares que sugerem uma continuidade das famílias

tanto brancas quanto negras na região: assim, José Fernandes pode ter sido o

proprietário de terras que tinha escravos que, em algum momento, conseguiram

libertar-se. Esses, geração após geração, retomaram seu nome, para conservar o

direito sobre a terra. Também, “Luciano da Silva”, solicitante das terras no século

XVIII lembra o nome dos atuais vizinhos dos “Negros da Boa Vista”, supostos

proprietários da fazenda Boa Vista.

Finalmente, a referência sistemática ao “coronel Gurjão” na narrativa de

fundação, nós projeta para os meados do século XVIII, sendo Francisco Pedro de

Page 137: Relatorio Boa VistacomAnexos

137

Mendonça Gurjão governador da Paraíba em 1734.125 Assim, a memória oral

conservou a marca dos primeiros documentos históricos coloniais que existem para

a localidade. Porém, não podemos continuar a fazer uma leitura comparada entre a

memória e o documento, porque, após 1735, encontramos somente registros

escritos datando do final do século XIX: é o contrato de compra e venda entre

Teodôzio e Antônia Maria da Conceição que foi assinado em 1889. Desta forma, a

leitura comparada dos registros paroquiais e das genealogias permite ‘tapar’ as

zonas de esquecimento para reencontrar os laços existentes entre os antigos

moradores de Boa Vista e os atuais quilombolas: é nesse intervalo que deve ter

acontecido a instalação dos primeiros negros livres na Boa Vista.126 É justamente

esse momento que foi apagado da memória coletiva: o grupo criou uma versão

mítica, eliminando o estigma da escravidão e explicando a presença dos ancestrais.

O que podemos avançar, à luz dos estudos que retratam o processo de colonização

do espaço regional, é que as terras doadas aos sesmeiros nas primeiras décadas do

século XVIII deram nascimento a fazendas de criar. Uma delas era a fazenda Boa

Vista que, por sua vez, foi desmembrada em pelo menos três sítios: a Boa Vista dos

negros, dos Luciano e dos Barros. A prova histórica explicando a presença secular

dos “negros” no meio dos “brancos” ainda não foi encontrada, porém, a narrativa

insista sobre dois elementos: a liberdade e as terras de Tereza; eventos fundantes

permitindo a emergência do grupo. Assim, a tese da Boa Vista ser formada, na sua

origem, por libertos e, possivelmente ter se tornado um lugar de refúgio para os

que desejavam sair da escravidão se confirma: já no final dos anos 1980, o

Professor Crispin afirmava que “esta colônia não tem a sua origem em uma

formação quilombola, mas sim na ‘concentração de negros libertos em terra livres e

disponíveis’” (in Mattos 1985: 121).

125 Em outro momento, vimos que a toponimia conserva a história local: aqui, encontramos um município “Gurjão” nas proximidades de Campina Grande, na Paraíba.

126 Solicitamos uma pesquisa cartorial sobre a existência de possíveis documentos e registros cartoriais relativos aos moradores de Boa Vista.

Page 138: Relatorio Boa VistacomAnexos

138

Voltando aos documentos, encontramos de novo Theodôzio Fernandes

da Cruz (1866-1951), herdeiro de Domingos Fernandes da Cruz (1784-1857) e

de Josefa Maria da Conceição (?-1896). Theodôzio tentou ampliar seu

patrimônio e garantir sua posse, pois em 1889 e 1896, compra terrenos a seus

vizinhos e parentes. A existência de um contrato escrito, numa sociedade onde a

oralidade dominava, mostra o quanto o patriarca da Boa Vista dos Negros estava

preocupado em oficialisar o ato de compra. Assim, a existência de documentos de

compra e venda, mesmo sem valor legal, além de atestar a antiguidade da presença

do grupo no local, é a prova cabal de uma autonomia econômica dos remanescentes

de quilombo; em plena expansão da cultura do algodão127, Theodôzio devia ter

economizado um pecúlio suficiente para adquirir essa propriedade e construir uma

casa de tijolos – sinal de certa prosperidade.

Quando Theodôzio encontra o Padre Pinto, em 1930, a situação do velho

capitão parece ter mudado radicalmente, o que aparece claramente no seu

depoimento:

- Antigamente éramos uns 500 negros residentes aqui em Bôa-Vista, começou o capitão, com certo orgulho. Mas devido aos anos consecutivos de seca eles foram emigrando para os brejos. Na serra do Coité (Pb.) há outra aldeia de negros. Outrora isso aqui tinha vida e era divertido, seu doutô. O zambe rolava noite e dia ao som do pife, do tabuque e da puita. A beberragem era franca. Tempo de festa, este terreiro se enchia de gente e luminária. A dança preferida era o pulachi, saracoteado lascivo dos quadris e das umbigadas. Havia também o xangô e os pagés que preparavam a surema (sortilégios) para a cura de mandiga e de espinhela caída.

Hoje, nada mais disso existe, acrescentou, finalmente, o velho Capitão, baixando a voz cheia de saudades. A seca veio e acabou com nosso povoado e com os nossos divertimentos (Pinto 1934).

Escutando o velho Teodozio relatar as conseqüências da seca de 1877 que

obrigou muita gente a sair da Boa Vista para poder ‘escapar’, ecoa a fala dos

moradores mais antigos sobre as dificuldades que conheceram. Em algumas

ocasiões, a fome era tão grande que se fazia de tudo para obter comida:

127 O período áureo do algodão durou do inicio do século XIX até os anos 1930 (Dantas 2004: 30).

Page 139: Relatorio Boa VistacomAnexos

139

Manoel Miguel: Olhe, o sistema daqui, não é do meu tempo não, mas eu ouvi meus avôs dizer... Tinha umas nega’ aqui, até da família de Geralda, que ganhavam isso ou aquilo outro (...)

Geralda: Trocava as terras por cachimbo de fumo, saca de farinha. O marido de Joana Grande não trocou uma filha por uma saca de farinha? Ele vinha do Brejo, ai vinha com cinco filhas e um menino. Ai ele vinha com fome, ai deu a menina. Trouxe a farinha e veio comendo até aqui. (31/01/07)

Assim, a escassez de alimentos levou os antepassados a situações extremas,

como doar crianças: ao deixar um filho na casa de quem podia sustentá-lo, salvava

também o resto a família. Esse retrato das dificuldades de existência no passado

que inclue uma memória dos deslocamentos, remete à história de Tereza e ao mito

de fundação que analisamos. Mostra, também, situações sociais que podem ser

associadas à escravidão, através da referência velada aos ‘criados’.

A existência de documentos escritos e a presença de uma ‘memória longa’

(Zonabend 1986), são indícios que apontam para uma autonomia do grupo bem

antes da abolição da escravidão, mesmo se, na próxima vizinhança, havia escravos

até 1877.128 É também possível que o passado ligado à escravidão foi apagado da

memória do grupo por ser um evento traumático; de qualquer forma, como aponta

a lembrança dos mais velhos, a Boa Vista dos Negros existe independentemente de

um contexto escravista. Junto, os relatos orais e os documentos históricos

comprovam a ancestralidade do grupo e permitem uma visão mais completa da

história local e, sobretudo, possibilita a coleta de uma visão nativa do passado.

4.2.2. Os esbulhos: “a terra sumiu”

128 Mesmo se não foram encontrados cartas de alforria nas nossas pesquisas nos arquivos paroquiais e no acervo particular de Seu Ulisses, há, pelo menos um registro de óbito do escravo Domingos em 1877, no sitio Boa Vista.

Page 140: Relatorio Boa VistacomAnexos

140

Como aconteceu em outras comunidades quilombolas existentes no Seridó,

notadamente em Currais Novos e Acari, houve uma redução progressiva das terras

de uso comum oriundas de um processo de herança (Queiroz 2002: 80). Escutando

os relatos de esbulho das terras, deparamo-nos com uma situação na qual os

moradores foram ‘imprensados’ pelos seus vizinhos inescrupulosos. Recolhemos

vários testemunhos contando como as terras foram invadidas, os vizinhos puxando

as “cercas”. 129

Os problemas de terra entre vizinhos eram geralmente resolvidos com o

recurso a uma autoridade que decidia onde iam ser colocadas as cercas. Seu

Manoel Miguel (11/05/07) contou, em várias ocasiões, uma partilha que deve ter

acontecido no início do século XX e que inaugurou o processo de invasão das terras

ocupadas pelos moradores mais antigos:

Teodôzio chamou Zé Bezerra que era um capataz de Currais Novos, ai Zé Bezerra ficou de vir não pode vir, mandou Dr. Tomaz que era filho dele, filho de Zé Bezerra. Ai no dia certo, Dr. Tomaz não pode vir. Ai mandou Alonso Bezerra. Ai Alonso veio e dividiu as terras:

- Olha aqui, eu vou deixar um corredor aqui, de quatro braças, de corredor. Ai nem Teodôzio descem pro rio e nem Marcolino sobe pra serra morre aqui. Esse corredor nem fica pra Teodôzio nem fica pra Marcolino. Esse corredor eu vou dar pra Maria Felix

Ai essa Maria Felix... Ficou pra ela. Ai foi um tempo que deu uma chuvada aqui grande, ai o riacho botou a cerca abaixo ai Sinia, já era de Sinia, tirou a cerca dele e ficou só a de Teodôzio. Ai tomou as quatro braças, e na dele, né? Porque não era dele nem de Teodôzio, era dessa Maria Felix.

Esse episódio relativamente recente na história do grupo revela que os

moradores eram subjugados ao poder dos grandes proprietários que, tendo acesso

aos representantes do poder local, conseguiam impor seu ponto de vista; também,

Dona Geralda (30/01/07) relata que Dr. Arno Macedo, então prefeito de Parelhas,

pediu para o seu pai, Martins – João Gomes da Silva – para entregar o “papel da

terra” para ser remetido ao Banco, mas nunca houve retorno e o “papel” se perdeu.

129 Ouvimos diversas histórias sobre a venda de terras na Boa Vista “trocadas por cachimbo de fumo” (Manoel Miguel).

Page 141: Relatorio Boa VistacomAnexos

141

Sem ter a possibilidade de se defender, porém inconformados, os quilombolas

contestavam as invasões e conservam a memória destas.

Destacamos o papel de intermediário – um personagem inflente - que

ajudava a resolver os conflitos entre vizinhos. Seu Ulisses, confirmando a versão

contada por Manoel Miguel, acrescenta detalhes:

Julie: chamaram uma pessoa... Alonso Bezerra

Ulisses: Era meu tio.

Julie: Era seu tio?

Ulisses: Era meu tio, irmão do meu pai (...) Ele era mediador, era tarado por isso. Antigamente existiam os mediadores. Meu avo, dizem, que eu não conheci, ele morreu um ano antes de eu nascer, ele era um homem muito comedido e muito austero e hoje aqui numa questão de terra... A gente chamava o velho Joaquim dos Santos, mas era Joaquim Martiniano dos Santos ... com o velho que é da família Mendonça Pacifico, uma questão de terra, besteira! Então ele chamou meu avô, o Pacifico, para ser o intermediário dele. Seu Joaquim dos Santos, chamou seu Antão. Seu Antão era bom nisso, entendeu tudo de acordo, meu avo era mais austero...(16/03/07).

Apesar das relações de patronagem existentes entre personalidades

influentes e os moradores da Boa Vista, o esbulho das terras aconteceu.

Numa conversa com Dona Geralda, Manoel Miguel (31/01/07) detalhou o

caso e torna-se mais claro no que diz respeito aos corredores que eram traçados

para possibilitar o acesso ao rio e às serras. Esses corredores ainda servem para

delimitar as propriedades:

Manoel Miguel: Ai a luta de Duda [Marcolino] é que tinha a cerca

Julie: Duda era do pessoal daqui?

Manoel Miguel: Era. Ele não era da família da gente, mas era daqui.

Manoel Miguel: Ai ele tinha uma cerca aqui... Essa cerca passava dentro do rio... Ai, bem aqui, tinha uma casa, que se chamava casa de Maria Vicente (...) tinha uma briga aqui na Boa Vista. Essa nega tinha uma parte de terra aqui. Ai ninguém sabe essa terra onde está. (...) Ai essa cerca vinha aqui, tirava no rio e passava ali perto. Passava ali bem encostado numa casa que ele fez ali... Ai chegava descia assim, chegava lá no Riacho arrudeava fazia um corredor. Foi a questão que eu disse ontem... então foi Alonso Bezerra (...) Zé Bezerra não pode vim. Era para vir Dr. Tomás [Tomás Salustino] não pôde vir... Ai ele colocou Zé Bezerra (...) Como esses dois não pôde vim, ai botou Alonso Bezerra que é da família também, não sabe... Esse morava aqui em Parelhas... Ainda tem família dele ai em Parelhas (...) Ai ele foi e disse:

Page 142: Relatorio Boa VistacomAnexos

142

- Olhe, essa terra aqui nem Marcolino sobe para a serra e nem Teodôzio desce para o rio. Isso ai (...) pode me chamar para ir que eu vou...

E disse:

- Essa cerca não emenda. Nem Teodôzio tira a cerca dele, nem Marcolino tira a dele. Fica o corredor aqui. E esse corredor aqui nem fica pra Teodôzio, nem fica para Marcolino. Que eu vou dar a Maria Félix. Ai Sinia foi e desmanchou o corredor, emendou a terra acolá e tomou o canto da terra (...)

Geralda: Quando Duda era vivo a cerca era para lá daquela pedra preta, tu se lembra?

Manoel Miguel: Lembro. Sinia pode ter tomado essa parte de cá.

Geralda: … ter tomado de Eduardo. Ai Eduardo veio e entrou na terra dos negros.

Manoel Miguel: Ai não pode. Nós não somos bestas. Porque se fosse comigo eu tinha dito:

- A cerca daqui não sai!

Seu Manoel, que passou mais de quinze anos morando na serra de Cuité, na

Paraíba, voltou a morar na Boa Vista com sua esposa Guiomar. Isso explica que não

acompanhou “o avanço das cercas”. A falta de reação dos ‘negros’ explica-se pelas

alianças políticas que os vizinhos brancos conseguiam para tornar os casos a seu

favor e pelo medo de represalhas. O que não era explicitado, no início da nossa

pesquisa, ficou cada vez mais claro ao longo das conversas que tivemos com os

moradores. Notamos o mesmo sentimento de injustiça e de revolta face aos

avanços dos proprietários vizinhos.

Mesmo com o auxílio de seu Florêncio Luciano, antigo grande proprietário

vizinho do sítio Maracujá e prefeito da cidade de Parelhas durante vários

mandatos, as terras foram tomadas nos anos 1950:

Manoel Miguel: Amaro Ferreira [sogro de Sinia] foi quem cercou ali. Ai foi um bocado de negro lá em seu Florêncio. Ai seu Florêncio veio. Era um bicho amigo da gente (...) Aqui quem resolvia as coisas, era seu Florêncio. Ele dizendo uma coisa, os negros atendiam. O capataz daqui era ele. Era fazendeiro. Era rico ele. Antigamente, do rio até a rua, era terra dele. Hoje não tem mais nada. Ele não tinha filho, aí passou para o sobrinho (...) Ai ele [seu Florêncio] veio. Ele disse:

- Compadre Amaro você entrou nas terras dos negros

(...) Ai por causa disso brigaram... Quer dizer, brigaram não, trocaram palavras (...). Ai disse:

- Como você já puxou a cerca pra cá, daqui você não passa, a serra você não sobe. É dos negros!

Page 143: Relatorio Boa VistacomAnexos

143

Ai ele foi, com raiva, não apareceu mais por lá... Aí também foi num tempo que vieram fazer uma demarcação aqui. Ai Sinia foi mandou colocar uma cerca. Ai disse:

- Isso aqui é meu e sobe aqui.

Ai nós disse:

- Não, nós vamos tomar...

Foram deixando pra lá, deixando pra lá e eles entrando, viu. Porque eu alcancei um cerca que passava aqui, arrodeava esse serrote. Ainda domingo nós fomos por ela. Tem até umas coisas lá que eles botaram, pra que as varas num encoste no chão… Ai essa terra chamava de Professor Guerra… Seu Guerra, era um professor de Caicó, ele foi embora, arrendou a terra à Amaro Ferreira, ai Amaro Ferreira puxou a cerca pra frente. Ai nós fomos, quer dizer nós não, eu era muito novo os outros mais velhos, foram a Zé Florêncio. Zé Florêncio era um bichão aqui. Ai Zé Florêncio disse:

- Compadre Amaro, você tomou as terras dos meus filhos, você tomou que sua terra num passava acolá não!

- Não! Eu não tomei não…

E morreram intrigados. Ai seu Amaro disse:

- A cerca fica onde tá, eu não mexo não!

O apoio de representantes políticos e de pessoas influentes visando a

impedir o avanço das cercas não foi suficiente. Apesar da oposição dos

quilombolas, não houve a possibilidade de reverter o quadro e o processo de

esbulho das terras foi se intensificando. Com o tempo, os invasores agiram como se

fossem os donos legítimos e a impunidade foi reconduzida: as terras foram

“tomadas” e vendidas a terceiros. Os invasores de ontem hoje reinvidicam um

direito, mesmo sem possuir títulos de terras. Após a venda das terras, ficou mais

difícl ainda dos quilombolas reintegrar suas posses, tendo em vista a inexistência

de regularização fundiária.

Page 144: Relatorio Boa VistacomAnexos

144

Fotografia 22 - Os herdeiros de Theodôzio no local onde era a casa de Maria

Vicente (junho 07).

Outros casos, mais recentes, são lembrados por Manoel Miguel, Dona

Geralda e Maria, sua filha (31/01/07):

Manoel Miguel: E ele [Pretinho] veio parar nessas terras aqui porque ele comprou a Lucas Marcolino.

Geralda: Essa daqui?

Manoel Miguel: Tudo. A terra toda. Mas não tinha não, aqui não.

Geralda: (...) Ai depois que ele comprou a Lucas Marcolino, aí foi que aumentou, passando pra terra dos outros. Que dizem que Lucas Marcolino foi falar que não tinha terra na serra. Só tinha dez braças da cerca para lá. Ele disse que a terra do pai só tinha dez braças da cerca para lá... Que a gente chamava as cachoeiras. Ai ele disse:

- Não, é até subir a serra!

Mentira! (...) Apois, é Pretinho [José Clemêncio] que botou a terra de José no papel dele. Ai José quando aqueles meninos vieram, num tempo desse, falaram a José pra tirar. Ai José foi lá no filho dele, que ele morreu. Ai o filho dele disse que fazia o negócio com José para ficar como ‘tava mesmo, porque ele não tinha condições de tirar. Ai nisso ficou.

Julie: Ele não demarcou? Mas a terra vai até lá na serra?

Geralda: É de José. De José não, é da família toda, é gente que só...

Julie: José quem, como é o nome dele?

Geralda: A terra acho que não ‘tá no nome dele não. Deve tá no nome do finado Teodôzio.

Manoel Miguel: De Augusto. Augusto é neto de Teodôzio. E José já é bisneto, não sabe?

Geralda: Quando Augusto veio aqui falou com o delegado, mas nada resolveu. Só que o delegado disse que ele não tirasse um cavaco lá.

Julie: Eles tão tirando é lenha né?

Page 145: Relatorio Boa VistacomAnexos

145

Geralda: É, tirando lenha. (31/-1/07)

A existência de conflitos anteriores ao início do processo de regularização

fundiária explica o receio e alguns moradores a enfrentar novos embates e a medir

forças com proprietários com quem mantem ainda laços de dependência. A

impunidade de indivíduos com maior poder aquisitivo e disponde de apoios

políticos locais foi relatada em várias ocasiões e ao longo da história da espoliação

das terras da Boa Vista.

Fotografia 23 - Zé de Paulina explicando os limites da terra (maio 07).

Também, os moradores de Juazeiro, localidade vizinha, se apossaram das

terras, provavelmente, aproveitando-se do falecimento do seu dono. Uma vez a

cerca instalada, é difícil retira-la sem represalhas.

Maria: Olhe, essas terras aqui, ela vai do rio até a lagoa de Carnaúba, ela não era partida em canto nenhum. Duardo130 cercou essa frente todinha, porque o homem de quem ele comprou essa terra... Ele vendeu a parte todinha que tava cercada. Ele disse:

- Eu vendi o que estava cercado, e o que estava cercado era de meu pai.

Pronto, a cerca ‘ta lá, do jeito que ele vendeu. Só que depois que ele vendeu, ele foi aprofundando a cerca, aprofundando a cerca, e onde ele botava a

130 Duardo é alcunha de Eduardo Barros. Hoje, seu filho, Inácio Barros da Silva, o representa.

Page 146: Relatorio Boa VistacomAnexos

146

cerca ele dizia que era dele, ai por fim ele já tava tomando todinha até em cima da serra. Só no ano passado, quando o INCRA veio, eu tive conversando com o dono, o que foi o dono da terra, ele disse que não vendeu um palmo sem ser cercado.

Julie: Quem era esse homem?

Maria: Zé Marcolino. O INCRA foi lá na casa dele e ele explicou tudo bem direitinho.

Manoel Miguel: É que disseram que pra cerca de Duardo ainda tem um pedacinho, mas lá na frente ele tomou todinho (...)

Geralda: Lucas Marcolino disse que só tinha dez braças da cerca pra lá, da cerca velha, agora da nova eu não sei dizer...

Maria: Ele apavorou, quando ele viu o INCRA, ele apavorou.

Geralda: Ele ficou doido. No dia que o INCRA veio, a gente passou aqui por cima. Ai ele ‘tava lá em cima, ficou em pé e passou o tempo todinho olhando. Quando ele veio de lá, veio direto pela Boa Vista procurar saber quem era o pessoal que tinha passado. Ele sabia que era o INCRA. Ai pronto, no dia que a gente foi, a gente foi por aqui, nessa avenida aqui. (31/01/07).

A estratégia para um proprietário vizinho se apossar de terras, é abusar da

boa fé e da amizade dos quilombolas: assim, o pai de Eduardo fez amizade com

uma senhora já idosa e, quando esta morreu. A busca de títulos de propriedade

realizada pelo Incra foi negativa para os vizinhos conhecidos como Eduardo Barros

(hoje, seu filho, Inácio Barros da Silva), Joel (Joel Paulino Dantas) e Pretinho (José

Clementa da Silva), mas mesmo assim, alguns dos ocupantes da terra continuam

intimidando os quilombolas. Ao longo dos meses foram relatadas tentativas de

pressão para o grupo desistir do processo de regularização fundiaria. Assim, a

ausência de um controle e de uma proteção em relação aos ocupantes tradicionais

de terras sem título de propriedade, abre brechas para os conflitos e despertar a

velha lógica do despotismo mantido durante séculos pelos representantes da elite

local. A impotência do poder público em fazer respeitar o direto dos herdeiros,

aliada ao constrangimento da perspectiva de um conflito entre vizinhos, explica o

desamparo dos membros do grupo.

Atualmente, dois membros da comunidade têm título de posse (Zé Vieira,

com 2 ha. e Manoel Miguel, com 5 ha.). Os títulos de posse fazem referência ao

“sítio Boa Vista”; pesquisa cartorial realizada pelo Incra confirme que não há títulos

regular de propriedade. Todos os moradores da Boa Vista dos Negros e alguns

Page 147: Relatorio Boa VistacomAnexos

147

moradores de Parelhas reconhecem que houve ‘avanços de cercas’ e que vizinhos

(“Eduardo”, “Sinina” e “Pretinho”) ‘tomaram’ terras que foram desocupadas por

seus antigos moradores que, na época, não quiseram ou não puderam contestar o

acontecido. Constatamos que, em todos os casos de esbulho relatados por nossos

interlocutores, e mesmo com o apoio de personalidades influentes, os interessados

conseguiram reverter a situação.

Hoje, encontramos um território cujo uso coletivo foi impossibilitado pela

aposição, por terceiros, de cercas no interior do espaço produtivo. Usando de uma

autoridade conferida pela situação econômica e social que ocupavam, os vizinhos

invadiram as terras da Boa Vista dos Negros, de modo sistemático e sem ser

impedidos pelas autoridades locais, mesmo após a intervenção de Florêncio

Luciano. Parece normal, então, que os interessados não puderam reagir.

Atualmente, são aproximadamente 200 hectares ocupados pelos quilombolas: isso

significa que mais da metade do território tradicionalmente ocupado foi “tomado”.

Assim, quando visitamos a comunidade, em maio de 2006, encontramos uma cerca

atravessando o campo de futebol, colocada por “Duardo” que insiste, até hoje, em

afirmar-se dono de quase 30 há de terras encravadas dentro do território

quilombola: chegou a construir uma casa no pé da serra, num local antes ocupado

por uma senhora idosa, sem herdeiros, que teria prometido, ao morrer, de doar sua

terra ao atual ocupante.131 As autoridades locais tiveram que intervir para reverter

essa situação constrangedora e retirar a cerca que partia a comunidade em dois e

impedia a utilização do campo de futebol. Dois outros vizinhos invadiram, em

épocas diferentes, terras: Joel Paulino Dantas, aproveitou da ausência de um dos

herdeiros para cercar uma parte da serra do Marimbondo (27,6 há.), no limite com

o município de Carnaúba dos Dantas. Também, os herdeiros de José Clementa da

Silva (Pretinho), com os quais alguns quilombolas mantêm relações de vizinhança e

de trabalho, se declaram, sem apresentarem a documentação legal, como “donos”

de terras, estendendo a propriedade até a serra. Finalmente, Liciano Luciano da

131 Informação fornecida por D. Geralda (fev. 07). Hoje, é seu filho, Inácio Barros da Silva, que responde no lugar de Eduardo Barros.

Page 148: Relatorio Boa VistacomAnexos

148

Silva, grande proprietário de terras no município, afirma possuir 209,7 há. em duas

partes, ao leste e ao oeste, cercando os moradores e dividindo o território coletivo.

Com a presença de técnicos do Incra fazendo o levantamento dos limites do

território, a pressão exercida pelos confinantes aumentou e o sentimento geral,

entre os quilombolas, que era de medo, se transformou em indignação: todos

sentem a urgência de uma regularização fundiária antes de serem expulsos das suas

próprias terras.

A demanda territorial encaminhada pela Associação comunitária, que

representa em torno de 445 hectares e que foi discutida em várias ocasiões em

reuniões públicas, visa reverter uma série de esbulhos acontecidos recentemente.

Podemos representar a situação atual num croqui ilustrativo:

Mapa 4 - Ocupantes do território quilombola.132

Importante salientar, finalmente, que as terras contempladas pela

solicitação de regularização fundiária em favor dos quilombolas foram invadidas

por terceiros num período recente e que ficou na memória de todos – ao longo do

século XX. Até este momento, e mesmo sabendo que o território não era suficiente

132 Croqui elaborado a partir do mapa realizado pelo técnico do Incra-RN, Ivan da Costa Brito (21/10/07).

Page 149: Relatorio Boa VistacomAnexos

149

para atender às necessidades da população num futuro próximo, os quilombolas

não quiseram, requerer terras que foram invadidas anteriormente, mas, conforme

depoimentos orais – inclusive coletados por Dr. Ulisses -, as ‘terras da Boa Vista’

eram muito mais extensas. Desta forma, a demanda territorial poderá ser

reformulada em função das necessidades do grupo.

4.3. Patrimônio: território e família

Analisando as genealogias e escutando as histórias das famílias de Boa Vista,

podemos perceber estratégias endogâmicas na escolha dos cônjuges, mesmo se

verificamos alianças matrimoniais realizadas fora do grupo de origem.

Assim, as relações de parentesco formam a base da organização social,

espacial e política do grupo: quando indagados, todos, sem nenhuma exceção,

reconhecem uma ancestralidade comum e sabem como tornaram-se parentes.

Assim, o lugar de nascimento, os laços consangüíneos e as alianças matrimoniais

produzem limites e fronteiras no que se refere à ocupação e à reivindicação do

direito sobre o território tradicionalmente ocupado (Arruti 2003: 35). A regra de

filiação bilateral aplica-se para herança das terras, mesmo se os homens parecem

privilegiados, e determina a repartição do uso das terras que fica sob a

responsabilidade do pai de família.133 Assim, a lógica que rege as relações de

parentesco encontra-se materializada no solo, na forma de repartição do uso das

terras coletivas que, antes das invazões feitas por vizinhos, não eram cercadas:

através da leitura das árvores genealógicas e das narrativas do grupo, podemos

encontrar a origem da divisão das terras entre as famílias da comunidade.

Com o auxílio de alguns moradores, elaboramos um mapa que retrata a

distribuição das terras entre os herdeiros de Domingos, com seu tamanho

133 Lembramos que, pelo menos até o final do século XIX, a forma de aquisição de terra mais comum era a herança (Mattos 1985: 82 – 112).

Page 150: Relatorio Boa VistacomAnexos

150

respectivo indicado em braças. O mapa reflete o uso da terra até os anos 1970,

momento em que a economia algodoeira irá afundar, provocando uma mutação

drástica das condições de vida dos moradores. Até a crise da economia local, o

algodão era cultivado por pequenos e grandes proprietários que recorriam à mão-

de-obra externa à propriedade. Os trabalhadores alugavam sua força de trabalho,

sobretudo no momento da colheita. Também, encontramos o cultivo do ‘ouro

branco’ era consorciado com culturas de subsistência em pequenos roçados (feijão,

milho, jerimum, fava, etc.), que permitia o sustento das famílias mais pobres:

O algodão como cultura comercial, desenvolveu-se como parte integrante da produção de subsistência, na qual o lavrador produzia não só alimento para o auto-consumo, mas também alimentos ou outras mercadorias para a venda (Takeya 1985: 68).

Incluímos, no mapa, os limites do território tradicionalmente ocupado pelo

grupo, fronteiras marcadas por acidentes naturais (rio, serra, pedras), e a

localização de monumentos históricos (a casa da pedra, a cruz do escravo) e de

casas dos antigos moradores:

Page 151: Relatorio Boa VistacomAnexos

151

Mapa 5 – Mapada ocupação tradicional de Boa Vista.134

134 Mapa elaborado a partir dos relatos de Manoel Miguel, Dona Chica e Dona Geralda (fev. 07).

Page 152: Relatorio Boa VistacomAnexos

152

Constatamos uma diferença importante entre a ocupação tradicional e o

espaço hoje ocupado pelos quilombolas. Segundo o depoimento de Seu Manoel

Miguel, as “terras dos Negros” iam até o atual açude de Zeca Barros, até a barragem

de Casimiro. Seu avô, chamado também Manoel Miguel, veio do Brejo para morar

na Boa Vista e se instalou no lugar nas primeiras décadas do século XX.

Hoje, os descendentes de Teodôzio, de Marcimino, de Antônio Moreno e de

Zé Vieira continuam morando e plantando nas terras dos seus avôs, com a exceção

da serra que não é mais utilizada, em parte, por causa da ocupação desta por

indivíduos externos ao grupo que proibiram o seu acesso, colocando cercas. Assim,

a memorização da genealogia parece responder a uma necessidade material e

simbólica: a preservação e o controle das terras herdadas – o que representa

também a memória do grupo. Verificamos, ainda, que nas genealogias, aparecem

de modo preferencial os homens, responsáveis do cultivo dos roçados e do

mantimento do grupo doméstico – porém, seria imprudente caracterizar o grupo

como tendo uma descendência agnática. A transmissão do nome e o acesso à terra

se faz de forma indiferenciada, pelos homens ou pelas mulheres, no entanto que

trata-se de parentes consangüíneos. De modo geral, é o homem que comanda o

trabalho da terra (roçado e animais de criação), a mulher, os filhos e os colaterais

“ajudam”. Assim, uma das principais funções da longa memória genealógica

encontrada em Boa Vista é a identificação de quem está habilitado a receber a terra

em herança, pois a lógica de transmissão diz respeito, de maneira estrita, aos laços

de parentesco.

Como demostramos, o uso tradicional do território é múltiplo e permite

certa autonomia para os grupos camponeses. Responde à lógica do sítio, definido

como um “espaço total complexo, constituído de espaços menores articulados entre

si, correspondendo cada um destes limites a determinadas atividades igualmente

articuladas, como que numa relação de insumos-produtos” (Woortman 1998: 167).

No Seridó, o “sítio" pode designar um "sítio de terras", quer dizer, uma parte de

uma propriedade rural ou faz referência a uma pequena propriedade, fazendola

(Mattos 1985: 82–112). Enfim, de maneira mais geral, serve para opor o rural à

Page 153: Relatorio Boa VistacomAnexos

R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7

153

cidade. Por definição, o sítio designa um espaço delimitado onde há uma produção

agrícola e frutífera sucetível de surprir as necessidades do grupo doméstico.

O que encontramos hoje na Boa Vista, é o resultado do uso intenso e

contínuo de um espaço natural desde pelo menos o fim do século XVIII, a serviço

das atividades de subsistência (pecuária, cultivo do algodão e agricultura familiar).

O território tradicionalmente ocpado pelos quilombolas está ainda claramente

dividido entre moradia, cultivo, coleta, criação e pasto para animais (gado). Mesmo

se as condições ecológica e sócio-econômicas sofreram mudanças drásticas, os

moradores continuam realizando trabalhos agrícolas, mesmo se não tiram mais o

seu sustento da terra. O abandono forçado das atividades agrícolas, em grande

parte ligado ao intenso processo de desertificação, aliado ao impedimento do

acessso a partes do seu território que foram invadidas. As famílias dos primeiros

herdeiros continuam instaladas nas suas terras, com habitações agrupadas em

torno da “casa mãe”, o que revela uma tendência de uma residência matrifocal: as

casas dos filhos são construídas nos quintais ou nas proximidades da residência

principal, o que permite a realização de pequenos serviços domésticos mútuos e

uma vida social mais intensa. Notamos uma circulação intensa dos vizinhos que se

deslocam para fazer uma visita, mandar um recado, assistir televisão ou pedir um

alimento. De dia, as casas ficam de portas abertas e são fechadas unicamente

quando a família se recolhe para dormir. Assim, a segmentação do grupo leva à

formação de linhagens patrimoniais que são inscritas no espaço: cada núcleo

familiar é formado por uma casa central de onde sairão os filhos que irão se

estabelecer nos arredores. Assim, em Boa Vista, o acesso à terra e à moradia se faz

essencialmente por herança. Coloca-se em ação um sistema complexo obedecendo

a regras de descendência e de aliança que determinam os direitos do uso do solo.

Aqui, como em todo sertão nordestino, a unidade elementar (a família nuclear) se

espelha numa unidade maior, o “sítio”, que é vista como o território do conjunto

das unidades familiares que são inter-ligadas por laços de parentesco (Woortman

1995). De fato, a noção de casa elaborada por Claude Lévi-Strauss (1974), pode ser

Page 154: Relatorio Boa VistacomAnexos

R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7

154

aplicada ao nosso caso, com algumas modificações. A ‘casa’ é antes de tudo um

princípio organizador em torno do qual as sociedades, sobretudo as camponesas, se

organizam: é uma pessoa moral que detém um patrimônio material, composto

essencialmente por um domínio fundiário e por bens imateriais (nome, crenças,

tradições). Essa noção, que é muito próxima do “estabelecimento” de M. Mauss

(2003: 437) ou do território, permite analisar conjuntamente elementos da

organização social e aspectos simbólicos.135

Desta forma, não se pode pensar um grupo social fora da sua inscrição num

determinado espaço geográfico, desvencilhado das condições ecológicas e materiais

que dispõe. Também, devem ser levadas em conta as dimensões culturais que, em

muitos casos, servem para marcar uma fronteira étnica. No nosso caso,

encontramos na história de fundação de Boa Vista, na atribuição dos nomes, nas

estratégias matrimoniais, elementos constitutivos de um sistema cultural próprio

ao grupo. Esses elementos tendem a convergir num mesmo sentido, o da

conservação do patrimônio fundiário e da continuidade do grupo no território.

4.4. Á margens das fazendas e das cerâmicas

Na Boa Vista, encontramos diferentes modalidades sociais de produção

econômica: a exploração agropecuária, a criação de pequenos animais, o cultivo de

culturas temporárias realizado nas terras próximas ao açude, na vazante do “açude

dos Negros”, no rio Cobra e do riacho Gavião, nos quintais das residências e em

hortas domésticas onde são cultivadas algumas hortaliças. Porém, fica claro que

sabendo das condições ecológicas atuais e a quantidade de terras disponíveis para o

135 A leitura simbólica do território está presente em autores clássicos de tradição francesa (Halbwachs 1990; Leenhardt 1971).

Page 155: Relatorio Boa VistacomAnexos

R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7

155

grupo, a população local não consegue sobreviver das atividades desenvolvidas em

meio rural e os jovens devem se deslocar da comunidade para encontrar seu

sustento. Iremos descrever, aqui, as atividades econômicas realizadas pelas

famílias quilombolas e o uso do seu território.

4.4.1. Brocar o mato

Se, na origem, trata-se de uma região agrícola, organizada tradicionalmente

em torno das fazendas de criar gado e da cultura de algodão, hoje, atividades

agrícolas de pequeno alcançe servem de complemento para o sustento das famílias

e para responder à lógica de uma economia informal que utiliza a troca e é fundada

nas relações de inter-conhecimento.136

No Seridó, a produção do algodão durou do inicio do século XIX até os anos

1930, época em que as atividades agrícolas declinaram rapidamente; o que teve

como principal conseqüência um forte êxodo rural: entre 1950 e 2000, a população

seridoense que era majoritariamente rural passou a ser urbana (Dantas 2004: 30,

74). Mesmo se, nessas últimas décadas, a organização econômica e social da região

se modificou profundamente, pois, como vimos, a produção agrícola e o seu

consumo respondiam a uma lógica fundada nas relações de parentesco e eram

tradicionalmente voltadas para o provimento das necessidades das unidades

domésticas. Constatamos ainda hoje que a solidariedade inter-geracional é forte e o

convívio cotidiano entre os membros da família multiplica as ocasiões de trocas de

bens, de serviços, de favores e de informações. As formas de sociabilidade são

136 Parelhas, em 1921, era descrita por Manoel Dantas (1941: 72) como uma “prospera vila” que “sustenta galhardamente o desenvolvimento do nosso progresso”. Para informações sobre a formação da economia e da sociedade do Seridó, ver Macêdo (2005 e 2007).

Page 156: Relatorio Boa VistacomAnexos

R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7

156

determinadas pelas relações de consangüinidade e de aliança que caracterizam as

sociedades rurais, sobretudo as do Nordeste brasileiro (Woortman 1995).

Historicamente, como vimos, o destino dos trabalhadores – livres ou

escravos – estava diretamente ligado ao fazendeiro ou coronel. A expressão

“camponês sem terra empregado numa propriedade” encobre, de fato, várias

realidades e diferentes estatutos (Garcia Jr., 1989: 117-120; Santos, 1981: 60-83)137.

Em geral, o agricultor firma um contrato com um proprietário que cede uma

parcela de sua terra em troca de uma parte de sua produção e/ou de serviços. Esse

contrato não é habitualmente escrito e baseia-se num contrato oral e numa relação

de confiança entre os dois contratantes (Garcia Jr. 1989: 28). À cultura do algodão,

era associada culturas de subsistência, como o feijão, a mandioca ou o milho, e a

criação de animais, o que garantia uma certa autonomia para o grupo. Monteiro

(2002: 131) demonstra que, ao longo do século XIX e XX, diferentes contratos são

travados entre os proprietários de terras e os pequenos agricultores, geralmente

também vizinhos, que não tinham terra suficiente. Se, nessa configuração

econômica e nas formas de contratos de trabalho, existe certa autonomia social e

econômica dos grupos camponeses, a dependência dos pequenos agricultores com

os fazendeiros encontra-se reforçada. O fazendeiro, que era ao mesmo tempo

patrão e compadre, construtor de capela, hoje médico e homem político, detinha

um poder quase absoluto, numa sociedade na qual as leis eram feitas por ele e para

ele, o que Juvenal Lamartine chama de “obediência respeitosa” (Lamartine 1965:

47-50):

A organização das famílias sertanejas, de forma quase patriarcal, mantinha os parentes próximos e até os mais distantes reunidos em torno de um ascendente de maior prestígio, ao qual dedicavam uma certa obediência e lhe seguiam os conselhos e a orientação (Lamartine 1965: 47).

137 Ver a classificação dos tipos de agricultores do IBGE: proprietário, arrendatário, parceiro, ocupante; e do INCRA: trabalhador rural, assalariado, empregador rural. Aqui, seria preciso distinguir o rendeiro do proprietário.

Page 157: Relatorio Boa VistacomAnexos

R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7

157

Podemos pensar que, na região de Parelhas, algumas famílias abastecidas

mantiveram relações hierárquicas com os moradores de Boa Vista. Assim, podemos

pensar que foi o caso de Virgínio Vaz de Carvalho, proprietário do sítio vizinho

(Juazeiro), que, no local, construiu um cemitério para enterrar as vítimas da cólera

(1856).

Fotografia 24 -

Bernardo de Sena e Silva, fundador e

professor da escola do sítio Juazeiro entre

1883 e 1914.138

Fotografia 25 - Florêncio Luciano, prefeito de Parelhas.139

O seu filho, Bernardo de Sena e Silva, fundou uma escola em 1883 onde

estudaram personagens influentes na vida política local como, por exemplo,

Florêncio Luciano, fazendeiro que foi prefeito de Parelhas e, antes, líder do Partido

Popular no Seridó ou os "Perrepistas”, como eram conhecidos:140

Nos anos vinte, Florêncio Luciano já era influente empresário e político da região, posição que nunca perdeu até os dias atuais. Chefe político dos mais categorizados, ele foi prefeito de Parelhas durante três mandatos, desenvolvendo principalmente o setor educacional do município (...)

138 Ver em anexo “Resenha de Parelhas” (2005). 139 SEMECR 1994. 140 Fonte: “Parelhas” <http://pt.wikipedia.org/wiki/Parelhas> [capturado em 04/05/07].

Page 158: Relatorio Boa VistacomAnexos

R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7

158

Agricultor, ele também foi pioneiro na implantação de várias práticas modernas, tendo sido um dos primeiros a adotar a utilização de sementes selecionadas de algodão Mocó, melhorando a produtividade de suas plantações de fibra longa. (Parelhas, 1977: 4)

Fotografia 26 - Rio Cobra (março 07).

Assim, Dona Geralda conta as dificuldades que ela conheceu, tendo que

deixar Boa Vista com seu esposo que ficou empregado durante mais de vinte anos

em fazendas vizinhas. Insiste sobre o fato da impossibilidade de sustentar sua

família com as atividades de subsistência; essa situação foi amenizada com a

implantação da indústria de cerâmica, sobretudo a partir dos anos 1990:

Julie: Eu pensava que lá no brejo era melhor do que aqui.

Geralda: Não sei, ele veio do brejo.

Manoel Miguel: As coisas só não eram mais ruins aqui por causa do algodão.

Julie: Lá, não tem algodão não

Manoel Miguel: Não. O povo vem pra cá, da serra do Cuité, do Brejo (...)

Geralda: Uma turva de gente...

Manoel Miguel: Uns ia daqui pra lá e se casava, ai pronto ficou aqui e lá, no Brejo. Mas acabou foi tudo, ai ta tudo passando fome, aqui e lá. Se não fosse essas cerâmicas, já tinha morrido todo mundo de fome.

Page 159: Relatorio Boa VistacomAnexos

R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7

159

Geralda: É que em Carnaúba tem um homem, ele já é rico, tem umas sete cerâmica.

Manoel Miguel: Genilson.

Geralda: E ele sustenta esse povo todinho graças a Deus... Dodoca vai, ele assina a carteira, ai compra um carrinho (...).

Maria: Aqui o proprietário que tem mais terra é o (...), ele já é falecido, que é da família de Carlinea, acho que você já foi lá... É o proprietário que tem mais terra, mas tá todinho... Algum trabalhador quiser é por conta, porque eles não querem mais se responsabilizar (março 07).

Apesar das mudanças ocorridas do ponto de vista da organização social e

econômica na região, as relações de dependência em relação aos vizinhos brancos

aparecem claramente na fala dos quilombolas: às formas de contrato de trabalho,

acrescentam-se laços de sociabilidade característicos da vizinhança em meio rural e

de trocas de bens e serviços. As atividades agrícolas realizadas hoje em Boa Vista,

são um pálido reflexo do que se fazia, até os anos 1970: pelos depoimentos dos

nossos interlocutores, aparece claramente que, apesar das dificuldades, o grupo

conseguia se manter em grande parte graças às atividades agrícolas.

Fotografia 27 - Roçado na vazante do açude (maio 07).

Page 160: Relatorio Boa VistacomAnexos

R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7

160

Seguindo o modo tradicionalmente utilizado no Seridó, o cultivo é realizado

nas vazantes do açude, do rio Cobra e do riacho do Gavião: feijão, milho, batata

doce, melões, melancias e pastagem para os animais, sobretudo (Lamartine 1965:

43; Mattos 1985: 174).

Fotografia 28 - Vegetação na serra do Marimbondo (jun. 07).

Fotografia 29 - Cultivo em vazante - açude (Boa Vista, jun. 07).

A cultura em vazante permite aproveitar os sedimentos depositados nos

leitos dos rios e dos açudes: são propícios a uma exploração agrícola e, geralmente,

as terras são relativamentes fertéis.141 Na região, as áreas desmatadas e utilizadas

para a agricultura são, em geral, ocupadas pelas culturas de palma forrageira, agave

e algodão, além de milho e feijão, porém, na Boa Vista somente as culturas de

subsistência são cultivadas. Devido à qualidade do solo encontrado nas serras, que

é pouco espesso, cascalhento ou pedregoso, e mesmo com fertilidade natural alta,

praticamente não há cultivo devido ao relevo acidentado e à falta d’água (Souza et.

alli. 2004). A extração de lenha e madeira para uso doméstico foi proibida em

141 Solicitamos ao Incra um estudo agronômico que não foi concluído até este momento.

Page 161: Relatorio Boa VistacomAnexos

R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7

161

razão do estado de desertificação da região, porém, sabe-se que áreas distantes dos

núcleos habitados pelos quilombolas são desmatadas por vizinhos.

Fotografia 30 - Área desmatada na serra do Marimbondo (jun. 07).

A pecuária, que sempre foi determinante na economia da região, foi

complementada recentemente com a introdução de uma pequena criação de ovinos

e caprinos devido à adaptação desses animais frente aos bovinos, alimentando-se

predominantemente do pasto natural. Essa atividade, essencialmente feminina, é

considerada como acessória, porém, representa uma reserva para a economia

doméstica em caso de necessidade ou nas ocasiões festivas.

Fotografia 31 - Criação de porcos (jan. 07).

Page 162: Relatorio Boa VistacomAnexos

R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7

162

Se, como vimos, a posse das terras, a liberdade e a endogamia são afirmadas

simultaneamente como marcas definidoras do grupo, no entanto, em várias

ocasiões, nossos interlocutores lembram que os moradores da Boa Vista

mantinham laços de dependência com seus vizinhos mais ricos. É o que a

afirmação de Dona Chica traduz:

Essa terra é da gente, dos negros, mas quase todo mundo tem roçado fora. Não dá para se manter. Só casava negro com negro (Chica 1991).

A autonomia do grupo sempre foi frágil, pois, como Dona Chica lembra, os

moradores precisavam trabalhar fora da comunidade para se sustentar. Mesmo

inscritos numa rede de parentesco endogâmica e vistos como ‘fechados’, os negros

da Boa Vista estavam numa situação de dependência econômica como seus

vizinhos que eram reforçados por laços de compadrio. Corresponde à situação

descrita por Afrânio Garcia Jr. (1989: 28) quando explica a estratégia dos grandes

proprietários fundiários que disponibilizavam suas terras em troca de uma ampla

rede de dependentes com quais mantinham laços de tipo hierárquico:

Os senhores utilizavam assim seu patrimônio fundiário para criar uma rede ou uma clientela de indivíduos submetidos à sua dependência, rede que lhes garantia um poder social tão grande quanto maior fosse o número de indivíduos que o compunha.

Os laços de dependência fundados numa desigualdade social instituída e

num preconceito racial permitiram que, depois da época áurea do algodão, durante

a crise estrutural do sistema econômico que fragilizou o grupo e esvaziou a Boa

Vista, vizinhos gozando de apoios políticos puderam se apossar de partes de terras

sem encontrar uma resistência aberta por parte dos moradores. A situação

histórica de dependência evocada pelos quilombolas em várias ocasiões explica o

receio de alguns em participar mais ativamente do processo atual de ‘retomada’ das

terras.

Se, hoje, com as transformações da paisagem econômica da região, a

situação evoluiu, encontramos, no entanto, marcas dessa dominação sofrida pelas

Page 163: Relatorio Boa VistacomAnexos

R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7

163

camadas subalternas; alguns grandes proprietários de terra souberam se adaptar à

nova configuração e mantiveram seu prestigio e seu poder em nível local, pois as

formas de contrato de trabalho, mesmo assalariado, geram relações de

dependência econômica, política e moral.

4.4.2. A erosão: gado e cerâmicas

Considerando o território atual, as atividades econômicas agrícolas já não

podem sustentar o grupo. A tendência da economia local, sobretudo a partir dos

anos 1990, foi de se reconvertir para a produção de cerâmica.

Como já foi apontado por A. Ratts ou Elisabeth Silva142, o uso intensivo do

solo com a cultura do algodão e a pecuária associado ao desmatamento para uso

doméstico e industrial, teve como principal conseqüência o aparecimento de um

processo de desertificação que é considerado atualmente como sendo muito grave.

As condições ecológicas e as formas de desenvolvimento econômico da região

foram redefinidas. O abandono gradativa das atividades agrícolas foi acompanhado

do desaparecimento gradual das pastagens naturais ou plantadas, e do aumento

significativo da vegetação de caatinga baixa e esparsa.

142 Ver no processo, estudos dos autores sobre a comunidade Boa Vista dos Negros solicitados pela Fundação Palmares em 1998. Em um artigo publicado em 2000, Alecsandro Ratts faz referência à Boa Vista como uma das seis comunidades quilombolas do Nordeste que foram registradas até 1998 (Ratts 2000: 321). Em 2007, existem 15 comunidades certificadas pela Fundação Palmares no Rio Grande do Norte.

Page 164: Relatorio Boa VistacomAnexos

R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7

164

Fotografia 32 - Cerâmica e gado (mar. 07).

A água dos açudes é usada principalmente para o abastecimento da

população em água, enquanto as águas subterrâneas são pouco abundantes,

ocorrendo de modo esparso em pequenas falhas no substrato cristalino ou no leito

de rios e riachos possuindo, em geral, alto teor de salinidade.

O estudo realizado no Seridó paraibano por Sousa et. alli. (2004), numa

região vizinha ao município de Parelhas, resume bem a crise enfrentada pelas

populações rurais durante o final do século XX. Note-se uma evolução dos fatores

socioeconômicos mais importantes no que diz respeito ao processo de

desertificação, durante o período de 1970 a 1995. Também, de 1960 a 1996,

observa-se, uma diminuição significativa da população, devida, em parte, a uma

forte migração da população rural para a área urbana.143 As dificuldades da vida no

campo, principalmente na época das secas. Enquanto a pecuária conhece uma

expansão, agravando os problemas de erosão do solo, a participação da agricultura

na economia local diminuía de maneira considerável, pois não existe projeto de

agricultura irrigada na região. Sendo assim, o estado crítico em que se encontra o

143 Entre 1950 e 2000, a população do Seridó, que era majoritariamente rural, passou a ser urbana (Dantas 2004: 74).

Page 165: Relatorio Boa VistacomAnexos

R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7

165

território dos quilombolas de Boa Vista demanda um esforço conjugado de vários

órgãos governamentais e não-governamentais para desenvolver projetos de

preservação ambiental e de sustentabilidade econômica.

Assim, verificamos que, além de uma redução drástica do território

quilombola tradicionalmente ocupado – de quase 500ha., hoje os moradores tem

acesso a 200ha. -, houve uma degradação generalizada do meio natural, devido, em

parte, à ação predatória da atividade cerâmica. O uso não predatório dos recursos

naturais do território ocupado pelas famílias de Boa Vista, no passado e no

presente, garantiu a preservação do meio e a reprodução social do grupo. Sendo

assim, o desenvolvimento de projetos produtivos alternativos envolvendo a criação

de gado bovino e outras espécies resistentes ao clima do sertão, associado ao

desenvolvimento de uma agricultura familiar em terras de uso comum parece ser a

melhor saída para a comunidade quilombola. Porém, além de ser primordial para a

sustentabilidade do grupo, o território quilombola de Boa Vista tem uma dimensão

social e cultural que deve ser destacada.

Page 166: Relatorio Boa VistacomAnexos

R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7

166

A BOA VISTA DOS NEGROS:

ORGANIZAÇÃO SOCIAL

O fazendeiro não queria

Sua filha apaixonada

Por aquele vaqueiro moço

Viraram um gadinho manço

Dentro da mata feixada...

A paixão de um vaqueiro, J. C. Barbosa, Natal, 1980.

Page 167: Relatorio Boa VistacomAnexos

R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7

167

Ao lado da pecuária (criação e manejo de gado), a cotonicultura e as culturas

de subsistência foram os pilares da formação e da reprodução da sociedade

tradicional no Seridó. Hoje, a indústria da cerâmica, apesar dos múltiplos danos

ambientais que essa atividade proporciona, serve de sustentação para a economia

local.144 Constatamos que a economia mudou de uma agricultura de subsistência

associada a um trabalho assalariado em fazendas vizinhas, marcado pela

precariedade dos contratos, para uma oferta de mão de obra essencialmente

masculina. Assim, atualmente, Boa Vista tende a ser utilizada como um lugar de

morada de famílias cujo chefe é empregado numa cerâmica e um espaço de refúgio

em caso de dificuldade econômica de um membro da parentela: aposentados,

crianças, viúvos, mulheres solteiras são acolhidos na comunidade. É o que explica a

distribuição relativamente homogênea das rendas constituída, em grande parte, de

aposentadorias e pensões. Porém, mesmo se não se constitui mais numa unidade

econômica, constatamos que a comunidade quilombola de Boa Vista soube

desenvolver estratégias para manter uma coesão social que passa por uma

solidariedade tendo como base as relações de parentesco.

5.1. A Boa Vista dos Negros: autonomia perdida e mudanças

Sabemos, por experiência própria, que não podemos contar com o socorro público (...) seu efeito nas populações flageladas tem sido, sobretudo, deslocá-las, habitua-las à madraçaria, humilha-las por meio da esmola, implantando nelas hábitos de corrupção e vírus de moléstias contagiosas (Dantas 1941: 127).

Podemos pensar que, pelo menos no período entre o fim do século XIX até

os anos 1970, a “comunidade de Boa Vista” gozava de certa autonomia: segundo o

144 Manoel Dantas (1941: 117) cite outras ‘industrias’: “extração da borracha, industria do leite, o couro salgado, as peles de cabra”.

Page 168: Relatorio Boa VistacomAnexos

R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7

168

relato dos nossos interlocutores, a agricultura de subsistência e o “trabalho

alugado” nas propriedades vizinhas, representavam as principais fontes de renda.

No entanto, o grupo era marginalizado e vivia numa situação de exclusão social.

Assim, percebemos que a comunidade quilombola de Boa Vista destacava-se dos

outros agrupamentos familiares existentes na zona rural do município por serem

excluídos socialmente por pertecerem a um grupo étnico diferenciado e

participarem da Festa do Rosário. Essa identidade diferenciada reforça as provas

da presença dos quilombolas no local desde, pelo menos, antes da primeira metade

do século XIX.

A diferenciação racial e social observada durante a investigação, começa pela

terminologia utilizada localmente para designar a comunidade e para diferenciar

“os Negros da Boa Vista” dos seus vizinhos brancos. Pois existem pelo menos três

Boa Vista: a “dos negros”, que nós ocupa aqui, a dos Barros e dos Luciano, famílias

brancas com os quais os quilombolas mantém relações de trabalho e de vizinhança.

Denominada como “Boa Vista dos Negros” para diferenciá-la dos outros sítios de

Boa Vista. Nas vizinhanças, existe a “Boa Vista dos Barros” e “dos Luciano” onde

moram famílias que mantém relacionamentos de trabalho, de compadrio e de

amizade.

Como o território atualmente ocupado pelo grupo é descontínuo, com cercas

que separam o grupo familiar de “Zé de Paulina” do resto do grupo, existe

constrangimento para as famílias residentes: o trânsito entre os diferentes núcleos

residenciais é difícil. Parte do território tradicional é ocupada por unidades

familiares que mantém laços de parentesco e de cooperação – o que representa em

torno de 200ha. de terras, situadas entre o rio Cobra (ao sul), a serra do

Marimbondo (ao norte), o “Serrote” (ao leste) e o “corredor de Mariquinha” que faz

limite com o sítio Juazeiro. Vários conflitos existem com os ocupantes do entorno

do território, entre outros, relativos à impossibilidade do uso do território pelos

quilombolas no que diz respeito à plantação, à criação de animais e ao acesso à

água.

Page 169: Relatorio Boa VistacomAnexos

R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7

169

As quarenta e duas famílias da comunidade estão concentradas em trinta

casas, formando pequenos núcleos habitacionais que são distribuídos ao longo das

duas estradas de terra que atravessam a Boa Vista, não longe da estrada asfaltada

(RN 086).145 As estradas de barro dão acesso à outras localidades, em particular,

Juazeiro, onde estão situadas as escolas de nível primário e alguns serviços (posto

de saúde e pequenos comércios).

Fotografia 33 - Antiga escola de Boa Vista, hoje centro comunitário (maio 06).

O núcleo social de Boa Vista situa-se em torno do antigo grupo escolar, do

posto de saúde e da capela dedicada a N. Sra do Rosário que ainda está em

construção, mas onde já foram realizados cultos e algumas reuniões. Nesse centro,

são desenvolvidas as atividades coletivas: o trabalho associativo, as reuniões

comunitárias, as novenas, as festas, etc. Assim, há quatro anos acontece a festa do

Rosário, em outubro: visa arrecadar fundos para a construção da igreja, a

realização de projetos comunitrários e a organização da festa de dezembro que

continua sendo o evento social mais importante do local.

145 Em 1997, havia aproximadamente 170 habitantes, distribuídos em 30 famílias (Parelhas 1997).

Page 170: Relatorio Boa VistacomAnexos

R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7

170

Do ponto de vista da infra-estrutura, as casas são todas de alvenaria, com

banheiro, água encanada e tratada. Há um açude, um poço comunitário, dois

reservatórios de água e um desanilizador. O posto de saúde atende as famílias do

local e conta com uma agente de saúde que pertence à comunidade. Não há serviço

de transporte municipal, os moradores que não dispõe de meio de transporte, tem

que utilizar o sistema de moto-táxi para ir até a sede do município. A antiga escola,

criada em 1958 para atender a comundiade quilombola, cuja primeira professora

foi Dona Chica, não funciona mais desde 1998; no local, são realizadas as reuniões

e funciona como centro comunitário. Até o primeiro grau, os alunos de Boa Vista

vão estudar na Escola Estadual Bernardo de Sena e Silva do povoado Juazeiro que

começou a funcionar em 1883.146 As crianças de Boa Vista estudam, tendo acesso

pelo transporte escolar disponibilizado pela prefeitura de Parelhas.

Apesar dos problemas ligados à falta de infra-estrutura e à ausência, durante

décadas, de políticas públicas voltadas para a população quilombola, ao longo dos

anos, e graças à mobilização das suas lideranças comunitárias, a comunidade

conseguiu manter laços com autoridades locais, trazendo benefícios e construíndo

pequenas obras. A mobilização e a atuação das lideranças femininas possibilitaram

o desenvolvimento de projetos de melhoria das condições de vida, no que diz

respeito ao acesso à educação, à saúde e ao emprego.

146 Ver em anexo “Resenha de Parelhas” (2005).

Page 171: Relatorio Boa VistacomAnexos

171

Mapa 6 - Croqui da Boa Vista (maio 2006).

Page 172: Relatorio Boa VistacomAnexos

172

Interessante verficarmos que Boa Vista se destaca, no município, como

sendo uma das poucas comunidades rurais que continuam tendo uma atividade

agrícola de subsistência, apesar das mudanças econômicas ocorridas na região,

tanto do ponto de vista econômico e ecológico; assim, verifica-se uma população

residente relativamente estável ao longo dessas duas décadas. Porém, a população

quilombola de Boa Vista tem uma renda per capita inferior a do município (99,25

R$ em vez de 125,00 R$); desta forma, encontra-se em risco social.

Os laços de parentesco e as relações sociais construídas historicamente com

os vizinhos e os proprietários fundiários definem os limites do grupo quilombola e

sua ocupação espacial. Porém, como pudemos demostrar, o território

tradicionalmente ocupado até início do século foi drasticamente reduzido, quando

os esbulhos de terras se acentuam. De modo progressivo, chegamos à situação atual

em que o território já não corresponde mais àquele ocupado pelos primeiros

herdeiros de Domingos. Além disso, o território quilombola encontra-se numa das

áreas mais críticas de desertificação da região. Como conseqüência direta,

observamos uma redução drástica das atividades agrícolas desde os anos 1990,

levando, assim, os segmentos mais jovens a sair da Boa Vista para procurar

empregos nas cerâmicas circunvizinhas, e a morar na sede do município, nas

cidades vizinhas, nas capitais da região e do Sudeste.147 Verificamos também que

muitas mulheres deixaram de morar em Boa Vista por falta de opção de trabalho.

Assim, Boa Vista perdeu sua frágil autonomia que era constituída por uma

economia primitiva (coleta/caça/pecuária/agricultura) combinada a um trabalho

assalariado. Hoje, se configura como um bairro rural destinado a oferecer moradia

para as famílias quilombolas – encontramos muitos aposentados e crianças -, e

acolher os parentes menos favorecidos. Constatamos, ao entrar na Boa Vista, e

apesar da taxa de desemprego e das condições de vida dificieis, não haver um

147 Segunda Tereza (45 anos) há muitas famílias originárias da Boa Vista morando em São Paulo, na favela do Rubacão.

Page 173: Relatorio Boa VistacomAnexos

R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7

173

índice preocupante de alcolismo nem presença de droga, sobretudo entre os mais

jovens.

Desta forma, os membros da comunidade quilombola conservam laços de

solidariedade importantes para a reprodução social e a transmissão dos valores do

grupo; é por isso que, em relação a outras comunidades quilombolas do Rio Grande

do Norte, Boa Vista aparece como um modelo de organização e de coesão social.

5.2. Migração

Segundo as palavras de Teodôzio relatadas pelo Padre Otávio Pinto em 1934,

antes da terrível seca – quer dizer, anes de 1877 -, havia mais de 500 pessoas na

Boa Vista. Hoje, contam-se um pouco mais de cem pessoas. O declínio demográfico

explica-se pelas dificuldades econômicas enfrentadas secularmente pela

comunidade, agravadas pela crise da cotonicultura que acabou desorganizando a

economia agrícola do Seridó. Atualmente, notamos que uma parte conseqüente da

população residente na Boa Vista é composta por idosos e crianças que, nem

sempre, são integrados em programas sociais.

O processo de migração, que já foi muito importante nas décadas anteriores,

concretiza-se pela referência a parentes “morando fora”. Historicamente,

constatamos que há uma circulação de pessoas que mantém relações de trabalho,

de afinidade e de parentesco com pessoas oriundas da Serra do Cuité. Também,

verificamos um grande número de indivíduos que tiveram que sair da Boa Vista

para procurar emprego nas cidades vizinhas, na capital do estado (Natal) ou

mesmo no Sudeste (São Paulo). Nas últimas décadas, com as possibilidades de

emprego no setor cerâmico, constatamos uma tendência a estabilização da

população residente em Boa Vista, apesar de constatarmos ainda a saída das

mulheres; os homens encontrando mais possibilidades de emprego do que suas

esposas.

Page 174: Relatorio Boa VistacomAnexos

R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7

174

Verificamos, ao longo da nossa pesquisa empírica, que existem laços

seculares mantidos entre os moradores da Boa Vista e os da serra do Cuité.148

Temos informações de que, pelo menos desde o início do século, havia relações

regulares entre o Seridó e a Paraíba: Juvenal Lamartine (1965: 43) afirma que o

feijão e a farinha de mandioca vinham da serra do Teixeira, na Paraíba, a lombo de

jumento e a rapadura vinha do Cariri, no Ceará. Assim, o fundador de Carnaúba

dos Dantas, Caetano Dantas Corrêa (2°), continuava a se aprovisionar na Paraíba

vizinha, onde há serras férteis:

(...) o mesmo morou na sua fazenda Carnaúba, ainda existindo vestígios de sua velha residência, à margem do rio do mesmo nome (...) certo dia foi fazer uma farinhada na serra do Cuité (Medeiros filho 1981: 195).

Interessante notar que, ainda no início do século XIX, os proprietários da

fazenda Carnaúba, no município vizinho, mantinham roçados e uma casa de

farinha na serra de Cuité (Dantas 2004: 18-19). Porém, como vimos, a situação

ecológica e econômica da região sofreu modificações importantes. Dr. Ulisses

Potiguar (16/03/2007), sublinha as consequencias da crise da economia local:

Não deu mais para eles viver ali, que o terreno é muito pouco não tem agricultura, não tem meio de vida. É tanto que muitas mocinhas que trabalhando aqui de domesticas, outros trabalham naquelas propriedadezinhas a agricultura, tem umas que foram para Currais Novos, como eles têm um rumo que foi para Cuité ali a Serra do Cuité.

Assim, Como pudemos constatar, as estratégias para conservação da

unidade familiar e as formas de solidariedades são múltiplas. Essas funcionam

além das fronteiras do grupo residente em Boa Vista: notamos que há uma

mobilidade geográfica dos “parentes” que podem contar com seus “primos” ou

“tios” que vivem nas localidades como Parelhas, Acari, Caicó, Currais Novos, Natal,

148 Não foi possível investigar essa temática em profundidade durante a pesquisa atual.

Page 175: Relatorio Boa VistacomAnexos

R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7

175

Rio de Janeiro, São Paulo, etc.149 De modo recíproco, os ‘parentes’ são

constantemente recebidos nas casas de Boa Vista, podendo ficar longos períodos

hospedados sem que haja constrangimento. São formas de relacionamento

fundadas em solidariedades tradicionais.

Existe uma rede de parentes e agregados que têm experiências em comum

compartilhadas na Boa Vista, nas casas da ‘família’ ou durante as festas de Jardim

do Seridó. Ao encontrar-se, cada indivíduo lembra ao outro quais são os laços que

os unem. A circulação de ‘parentes’ desenha redes de sociabilidade e laços de

reciprocidade.

Fotografia 34 - Parentes da Boa Vista: Sebastião G. dos Santos (Caicó), Luiz E. do Nascimento Neto (Jardim), Seu Veríssimo e Dona Nina (Parelhas)

[Parelhas, março 2007].

149 Segundo nosso censo realizado entre outubro 2006 e maio 2007, das 30 unidades familiares, 11 chefes de família migraram para outras localidades do Rio Grande do Norte e cidades no Centro-Sul, sobretudo São Paulo.

Page 176: Relatorio Boa VistacomAnexos

R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7

176

Também, pudemos constatar que existem vários membros dos núcleos

familiares que se deslocaram para as capitais regionais ou no centro-sul. Essa

situação parece ter se intensificada com a crise da economia tradicional que

podemos verificar desde as últimas décadas do século XX. Já em 1991, Seu

Emiliano afirmava:

Hoje em dia já tem pouco porque também este mais moço vai se deslocando para São Paulo, pra Minas, pra Bahia... muita gente da família aqui já está espalhada. Muita gente e a gente não. Os mais velhos vão ficando aqui porque os velhos não tem mais pra onde ir (Seu Emiliano 1991).

Assim, mesmo se muita gente migrou para conseguir um trabalho ou

melhorar de vida, não significa que os laços familiares e a solidariedades se

desfizeram totalmente. Várias pessoas voltaram para morar na Boa Vista após ter

passado várias décadas fora, sendo acolhidos por parentes que ficaram no local; é o

caso típico dos netos sendo criados por seus avós. Outros migrantes exprimem o

desejo de voltar ou visitam regularmente os parentes. Também, é freqüente que as

famílias se encontram em ocasiões especiais, como por exemplo, a festa do final do

ano. Então, hoje, mais do que ser uma unidade de produção, Boa Vista

desempenha um papel cultural e social fundamental: é um lugar de referência para

os ‘parentes’ que saíram e que, a todo momento, são susceptíveis de voltar.

5.3. Os quilombos velhos

Os elementos que fundamentam a ordem social e que permitem entender a

lógica de reprodução e continuidade do grupo são as relações de consangüinidade e

de aliança.

Page 177: Relatorio Boa VistacomAnexos

R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7

177

5.3.1. Parentesco

O parentesco é o principal elemento que se destaca na hora da afirmação

identitária bem como aparece como um princípio de organização da história (Le

Goff 1988: 115); uma prova disso é que as comunidades quilombolas identificadas

no estado são conhecidas regionalmente por seus patrônimos (Cavignac et alli.

2006).150 No caso de Boa Vista, vimos que o pertencimento do individuo ao grupo é

determinado pelo seu lugar na parentela e que este é um elemento regulador da

distribuição das terras entre os herdeiros.

Segundo Zé de Biu, antigamente, não havia casamentos inter-étnicos e

pudemos observar as estratégias matrimoniais para conservar as terras “na

família”. Porém, a consaguinidade reinvidicada pelos moradores deve ser

relativizada, pois encontramos casamentos com outros membros de comunidades

quiombolas, sobretudo na serra do Cuité, na Paraíba, pessoas que são pensadas

como parentes. Assim, entre muitos outros, Seu Manoel Miguel e Dona Quintina

procuraram seus parceiros na Paraíba vizinha: eles, e seus descendentes, podem

reinvidicar o acesso à terra. Também, podemos lembrar Seu Veríssimo que, ao se

casar, passou a morar em Parelhas, mas continuou, até se aposentar, a cultivar um

roçado em Boa Vista, passando o dia com os parentes. Da mesma forma, um

individuo externo ao grupo continua trabalhando as terras de Seu Zé Vieira, não

pode pleitear terras.

Assim, o principal critério de definição dos limites étnicos que pudemos

observar em campo segue a lógica do "sangue" que tem como principal funçao

identificar os herdeiros das terras. As relações de consangüinidade definem quem

pertence ou não ao grupo. Assim, todos se reconhecem com os descendentes de

150 Podemos citar, por exemplo, os “Leandro” em Sibaúma (Cavignac et alli. 2006). Também, grupos indígenas seguem a mesma lógica - "os Mendonça" do Amarelão (João Câmara), "os Eleotérios" do Catu (Canguaretama).

Page 178: Relatorio Boa VistacomAnexos

R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7

178

Teodôzio, Marcimino, Gregório Timóteo e Antônio Fernandes da Cruz. São os mais

velhos ocupantes do território que as gerações atuais “alcançaram”.

01 02

03 04 05 06

07 08

09 1011

12 1314 1516 17 18 19 20 2122

23 24 25 26 2728

29 30

31 3233 34

35 36 37 38 39 4041 42

43 44

45 46 47 48 49 50 51 52 53

54 55 56 57 58 59 60 61 62

63 64

6566

67 68 69 70

71 72 73 747576

77

78

7980

81 82

838485

86 87 8889 90 91

92939495 96 97

104

105106107108

109

110 111 112113 114 115 116117

118

119 120 121 122 123

124 125 126

127 128 129 130 131

132

133 134 96

136 137 138

139

98 99 100 101 102 103140

141 142

143

144 145

146

147 148 149

150

151

135

Árvore genealógica 1 - Geral (Famílias da Boa Vista)151

Através do exame das árvores genealógicas, podemos observar a ocorrência

de vários casamentos na parentela, como era de praxe no Seridó, pelo menos até o

fim do século XIX: Dom José Adelino Dantas, encontra uma solicitação de

dispensa de consangüinidade datada de 1870, pois os noivos Manoel André de

Medeiros e Felicidade Maria de Jesus, “nimiamente pobres por si e por seus pais;

mas trabalhadores, morigerados e capazes de cumprir as obrigações do estado a q.

151 Ver em anexo o nome dos indivíduos.

Page 179: Relatorio Boa VistacomAnexos

R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7

179

Aspirão”, eram parentes em quarto grau tripilicado, ou ‘primos’: os seus bisavôs

eram irmãos que tinham casado com duas irmãs (Dantas 1961: 159-160). Esse

registro, entre outros, mostra a preocupação dos Seridoenses com a sua genealogia

e comprova que há uma ampla memória relativa a seus ancestrais. No discurso

sobre o passado e na observação dos fatos registrados, o aparece que o processo de

segmentação do grupo se efetuou a partir dos ancestrais comuns, uma mulher,

Tereza e seu filho, Domingos. Como em Santa Luzia (Cavalcanti 1975), em Boa

Vista, importante frizar que as lideranças são mulheres, na ausência dos homens

que trabalham fora da comunidade, nas cerâmicas.

A pesquisa genealógica e da terminologia utilizada para designar relações de

parentesco, deixou aparecer estratégias matrimonias e formas de sociabilidade

próprias à família de Boa Vista. Sem poder falar de uma endogamia em termo

estrito, verificamos que existem poucas uniões matrimoniais de moradores fora do

núcleo de Boa Vista ou da Serra de Cuité. Também, podemos constatar que existem

práticas cotidianas, estratégias matrimoniais e momentos rituais – como a festa do

Rosário -, que servem antes de tudo para manter as alianças já constituídas ou para

renovar laços com parentes vivendo em outras localidades no Rio Grande do Norte

(Parelhas, Currais Novos, Acari, Jardim do Seridó, Caicó), na Paraíba (Cuité, Picuí)

ou em outros estados, notadamente São Paulo. Como em outras sociedades

fortemente endogâmicas e, sobretudo, nos grupos onde exemplifica-se o modelo do

"casamento árabe", em Boa Vista encontramos a união de filhos de irmãos, numa

prática preferencialmente agnática. Aqui, encontra-se associada estruturalmente a

filiação e a aliança, a consangüinidade e a afinidade (Barry 2000: 68; Bonte 2000:

39-40). Também, encontramos formas de parentesco espiritual: a "parteira" é

chamada de ‘comadre’ pela parturiente e de ‘mãe’ pela criança 152 Assim, a relação

matrimonial não é a única forma de aliança. Essas relações, fundadas numa rede de

152 Imbém e Mãe Galdina eram as parteiras de Boa Vista.

Page 180: Relatorio Boa VistacomAnexos

R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7

180

parentes reais e rituais formam uma parentela estendida e na sociabilidade de

interconhecimento, servem de base à vida social. Assim, o sistema de parentesco e

de aliança que encontramos em Boa Vista é fundado na indiferenciação dos primos

e das formas de casamento "num grau próximo": o casamento com alguns parentes

é autorizado ("primo/a", "tio/a", "sobrinho/a") sem que possamos identificar uma

regra prescritiva para as alianças. Porém, aparece uma "ideologia agnática", pois

como vimos, de um modo geral, são os homens que legam os seus nomes, que

fundam as linhagens e asumam o papel riutal. Porém as mulheres são as

representantes mais estáveis dos grupos domésticos, no caso de uniões sucessivas

ou múltiplas.

Assim, a idéia compartilhada de ser um grupo familiar reforça o sentimento

de identidade fundado num sentimento de uma ancestralidade compartilhada e de

um compadrio ritual que se forma ao participar da Festa do Rosário.

5.3.2. Moradia e sociabilidade

Em Boa Vista, a família estendida e a co-residência formam a base da

organização social e da sociabilidade. Segue o modelo do sítio camponês tal qual

encontramos nas zonas agricolas do Nordeste brasileiro (Woortman 1995)

Em torno dos núcleos familiares, que tem como principal função a

residência, são desenvolvidas atividades múltiplas, sobretudo em termos de

reprodução social, cultural, econômica e política. Em cada unidade residencial ou

em cada núcleo habitacional, podem residem várias famílias nucleares que mantém

laços de consangüinidade ou de aliança. A tendência é que se mantém a unidade

residencial da família em torno da casa “sede”, que pode ser a da mãe, da irmã ou

de um dos cônjuges. Encontramos, então, uma lógica de agrupamento residencial.

A família extensa que reside no núcleo familiar é composta pelos parentes em linha

direta - avôs, pais, filhos, irmãos -, os agregados e seus respectivos filhos que

constroem suas casas no “terreiro” da família-tronco. Não é raro de encontrar três

Page 181: Relatorio Boa VistacomAnexos

R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7

181

gerações dividindo um mesmo “quintal” e muitas vezes, a criação dos filhos fica a

cargo dos avôs, pois os pais trabalham fora de casa. Notamos que os laços de

parentesco formados na geração ascendente / descendente formam a base que

possibilita a atualização das relações de vizinhança. Assim, a unidade residencial é

definida pelas relações de parentesco e de vizinhança e essas se concretizam através

da troca de bens e de serviços.

Quando Boa Vista ainda tinha uma vocação agrícola, os grupos domésticos

eram também unidades de produção: "A relação entre a casa, esfera doméstica e de

reprodução, e a produção é principal elemento formador de unidades sociais no

plano aqui chamado de unidade de vizinhança" (Castanhede 2006: 27). As formas

de produção mudaram, porém, como já apontamos, as formas organizacionais e de

solidariedade permaneceram: a permanencia de espaços de trabalho comum e a

lógica da residência em torno das unidades domésticas dos pais são um exemplo

entre outros. Desta forma, o tipo de organização social que descrevemos aqui, as

relações de parentesco tem um papel fundamental.

Fotografia 35 - Quintal de uma casa (fev. 07).

Assim, podemos encontrar similitudes com estudos realizados em

sociedades onde não há unidades de trocas matrimoniais claramente identificáveis;

esses casos representam o maior desafio dos especialistas da antropologia do

parentesco. Dessa forma, o parentesco aparece como a construção socialmente

Page 182: Relatorio Boa VistacomAnexos

R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7

182

definida de uma identidade considerada como natural onde é transmitido

sexualmente um principio que se expressa como substância (Barry 2000: 67-73).

Aqui, é o sangue que determina o pertencimento ao grupo, pela atribuição dos

nomes das duas linhagens principais (Fernandes da Cruz, Vieira) e outras menos

importantes (Silva, Miguel, Santos) que, no final, formam "uma confusão só".

Também o pertencimento a um ‘tronco’ ordena o princípio de identidade. Porém,

os que ficaram são vistos como os herdeiros "mais legítimos", pois descendem em

linha direta de Tereza ou, mais recentemente, de Teodôzio, o dono das terras.

Fotografia 36 - Casa de Zé de Paulina e família (maio 07).

Apesar das mudanças na organização da economia local, verificamos que há

uma relativa manutenção da organização social. A configuração espacial da Boa

Vista responde a uma lógica de agrupamento familiar. A vida doméstica ocupa o

cotidiano das esposas cujo marido trabalha fora da Boa Vista. Enquanto os homens

são ausentes durante o dia, as mulheres e as crianças estão onipresentes na

comunidade: as tarefas domésticas estão sendo realizadas por eles. Além da casa,

Page 183: Relatorio Boa VistacomAnexos

R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7

183

as mulheres cuidam dos animais e dos quintais onde são realizadas as atividades

domésticas: lavagem de louça, de roupas, hortas, etc.

Fotografia 37 - Quintal com tanque de lavar roupa (março 07).

Diante das mudanças observadas na organização social e econômica do

grupo, observamos, no entanto, a manutenção das atividades rurais, refletidas

através das falas coletadas, mostrando que as estratégias de sobrevivência tem

como projeção para o futuro do grupo o desenvolvimento das atividades agro-

pecuárias. Assim verificamos que, geralmente, são as pessoas mais idosas que

continuam exercendo uma atividade agrícola, mesmo se essa não é suficiente para

suprir as necessidades do grupo familiar, pois podemos considerar o grupo em

situação de precariedade econômica.

5.4. Organização política

Em Boa Vista, a liderança emerge das relações de parentesco, do convívio

entre vizinhos, mas, também, da capacidade do indivíduo em se relacionar com os

representantes do poder local e, com isso, trazer benefícios para o grupo. Ao longo

Page 184: Relatorio Boa VistacomAnexos

R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7

184

da pesquisa, verificamos que a discussão em torno do processo de “retomada das

terras” consolidou a identidade do grupo e proporcionou uma reflexão interessante

sobre a história do grupo.

5.4.1. Insersão local e fronteiras étnicas

Aparecem duas formas de relações que os moradores da Boa Vista tecem

com a sociedade englobante: a primeira é tradicionalmente ligada ao universo

masculino, pois são as relações definidas pelo trabalho, tendo como referência a

figura do “patrão”, seja ele fazendeiro ou ceramista. O outro tipo de relacionamento

pode ser encontrada no estabelecimento de relações com fundamento festivo, ritual

ou religioso, que é também, tradicionalmente, ligado ao mundo dos homens.

Porém, cada vez mais, as mulheres ocupam o espaço das relações com a sociedade

civil, se constituindo como os atores políticos mais atuantes no interior do grupo.

Além da festa do fim do ano em Jardim, o compadrio aparece como uma

possibilidade de reforçar laços sociais existentes e representa uma alternativa para

garantir um apoio financeiro no caso de necessidade (doença, transporte, emprego,

etc.). Com as mudanças ocorridas nas relações de trabalho, com uma maior

fiscalização do trabalho assalariado nas cerâmicas, a tendência é de que os

padrinhos sejam, cada vez mais, procurados entre os “parentes da Boa Vista”.

Desde 1998, com o levantamento de dados realizado pela Fundação Palmares e,

mais tarde, em 2004, com a formalização da solicitação de regularização fundiária

através da abertura de um processo no Incra, o grupo reinvidicou, com o auxílio de

um vereador, o território atualmente ocupado; porém, naquela época, não estava

muito claro para todos, a possibilidade de requerer as terras que pertenciam à

comunidade.153 A ausência de clareza em relação aos procedimentos a serem

153 É o que explica a necessidade de identificar, novamente, os limites do território a ser pleiteado.

Page 185: Relatorio Boa VistacomAnexos

R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7

185

tomados, à legislação, à ausência de interlocutores diretos para expressar as

dúvidas, à falta de uma articulação com outros grupos quilombolas inibiram o

processo. A decisão de retomar as terras que foram invadidas ao longo dos anos

não foi uma decisão fácil de ser tomada, em grande parte, com medo das

represálias dos vizinhos. Várias reuniões públicas, a participação em oficinas em

nível regional e nacional e, sobretudo, muitas conversas com as pessoas mais

idosas foram necessárias para fortalecer a posição das lideranças no tocante à

regularização fundiária e consolidar a demanda territorial.

Fotografia 38 - Placa que anuncia a comunidade quilombola de Boa Vista

(maio 06).

Já no mês de janeiro, muitos já expressavam o seu desejo em “retomar as

terras”. Assim, Dona Geralda, que morou durante um tempo fora da Boa Vista e

retornou par criar seus filhos, ficou inconformada ao saber das tentativas de

intimidação por parte de proprietários:

Geralda: Eu quero...

Maria: Nós quer, do jeito que eles tão imprensando... imprensa uns dacolá, imprensa outros do outro lado. Quando for por fim, as novas gerações que vão nascendo não vão ter nem onde pôr uma casa. Porque eles tão imprensando e ta ficando só essa tirinha aqui, dessa cerca daí, daqui a pouco não vai ter canto mais para construir uma casa!

Manoel Miguel: Do campo. Do campo não, da estrada pra cá.

Page 186: Relatorio Boa VistacomAnexos

R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7

186

Maria: É, eles colocaram um marco bem pertinho da casa de Matilde... Porque essa estrada ai não é mais. Eduardo disse que não era mais terra da gente, era dele.

Geralda: Mentira! (...) Ele tem um papel falso! Ele fez um papel falso, que ele chegou numas terras que um pessoal tava cortando lenha... Ele chegou lá e disse:

- Ó aqui, o papel da terra!

O homem que é uma pessoa, que é um agricultor, olhou e disse que o papel era falso, que àquele papel não tava registrado no cartório. Se no caso já tivesse registrado, mas ele disse que não tinha nada a ver, que a gente não se preocupasse que a briga dele não ia ser entre nós e ele, ao ser dele e do INCRA. A gente paga o sindicato direto...

Maria: Eles se apavoraram, quando o INCRA veio aqui. O homem lá em Carnaúba passou uma cerca bem no meio da terra do meu avô. Ai achou pouco passar a cerca, fez mais uma barragem. Eu nem fui lá, mais depois disso, mas a barragem ele está concluindo, mesmo no meio, mesmo no centro das terras do meu avô.

A consciência do direito constitucional de reinvidicar as terras

tradiconalmente ocupadas e perdidas, é presente nos discursos dos mais velhos que

vivenciaram as espoliações e os conflitos existentes se exacerbaram; o que teve

como conseqüência direta a maior participação dos homens na decisão sobre os

limites da terra que antes não paricipavam ativamente das reuniões coletivas.

Além disso, como já demonstramos, os processos de afirmação étnica

tradicionalmente acionados se realizem através das vias simbólicas, sobretudo no

plano ritual e na instrumentalização de elementos relacionados à religiosidade,

pelo pertencimento à irmandade do Rosário. Essas marcas identitárias estão sendo

reelaboradas, com a entrada do grupo no campo político, o aparecimento e o

‘apoderamento’ de algumas lideranças que se materializa no pedido de

regularização fundiária. Porém, ainda aqui, além da tomada de consciência política

por parte dos membros mais jovens que se caracteriza com o uso de uma

linguagem militante e uma reapropriação da palavra “quilombo”, constatamos que

a tradição vem sendo reinterpretada de maneira singular: há uma importância

dada ao corpo, com o uso de sinais de africanidade (cabelos) e a ‘retomada’ da

dança do Espontão pelos mais jovens, integrada com outros modos de expressão

Page 187: Relatorio Boa VistacomAnexos

R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7

187

musicais e corporais que pertencem ao universo cultural contemporâneo,

sobretudo através da organização de um grupo de percussão e bandas de forró.

Apesar de uma inserção razoável no município e uma ‘paz racial’, os

quilombolas sofrem com discriminação que encontra suas raízes na historia local.

Isso é perceptível a partir das formas de tratamento que são utilizadas por

membros externos ao grupo: são tratados com condescendência pelos

representantes da elite local e pela sociedade englobante que utilizam expressões

como “a negralhada”, “meus neguinhos”, “os pretinhos”, etc. A discriminação

latente aparece nas entrelinhas da conversa que tivemos com Manoel Miguel

(11/05/2006):

Julie Cavignac – Quer dizer que aqui a comunidade nunca teve problema?

Manoel Miguel – Não.

Manoel Miguel – Tratava bem. A gente nessa vida aqui, toda vida fomos [bem tratados], logo hoje que tem esse negócio de racismo, mas graças a Deus, pra gente nunca houve não. Se houve, não sei. A parada é dura pro lado do negro viu!

Julie Cavignac - Mas é porque tem gente que diz que os meninos são maltratados nas escolas, que brigam…

Manoel Miguel - Tomará que não, assim brigar, briga. De brigar, briga, mas de ser maltratado, eu não sei não!

Julie Cavignac – Vocês se importavam em serem chamados de negro?

Manoel Miguel - Não nunca se importemos não. Tem uns cabras que ainda hoje são semvergonhosos, dizem:

- Nego!

- Eu vou lhe entregar…

Ai respondem:

- Eu não lhe chamei de nego!

Julie Cavignac - Mas porque… assim, às vezes as pessoas chamam “os pretinhos”...

Manoel Miguel – Não, mas aqui… quando vai assim, é “Os negros da Boa Vista”. Agora, mais novo, agora, é os quilombos! Tem uma história de quilombos. Tem os quilombos velhos e os quilombos novos.

Julie Cavignac – Quem são os quilombos velhos?

Manoel Miguel – É a gente. É eu, é Zé de Biu, esse povo mais velho, não sabe? Agora, os quilombinhos. Foi Dr. Antonio que inventou isso. Dr. Antonio, prefeito.

Page 188: Relatorio Boa VistacomAnexos

R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7

188

Fotografia 39 - Casa da Irmandade do Rosário (Jardim do Seridó) - 1863.

O sucesso regional do grupo de dança do Espontão, aliado à divulgação de

temas ligados à luta contra a discriminação racial incentivou ações por parte da

municipalidade em relação ao grupo, sobretudo de um ponto de vista cultural. Os

“quilombinhos”, grupo de dança composto por crianças que reproduzem o ritmo e

a dança do Rosário, foi criado há três anos. Outro grupo de percussão surgiu

recentemente. Apesar das mudanças sociais e econômicas, a dança do Espontão

não foi abandonada, pelo contrário, foi retomada como sinal de afirmação étnica,

conjuntamente com outras expressões musicais e corporais que fazem diretamente

referência à imagem da África veiculada em eventos culturais quilombolas

(percussão, dança, capoeira). Ao sair do domínio sagrado e passando para a esfera

do político, a tradição se renova: os ‘negros do Rosário’ recebem constantemente

convites para se apresentarem e foram incluídos como atração turística no roteiro

do Seridó elaborado pelo Sebrae local em 2004! Em 2005, com o auxílio da

prefeitura de Parelhas, foi formado um grupo de dança composto por 25 crianças,

chamado “os quilombinhos”, que se apresentam com uma certa freqüência em

Page 189: Relatorio Boa VistacomAnexos

R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7

189

eventos de âmbito local.154 Recentemente, as mulheres também criaram o grupo de

dança africana, as “Perolas Negras”, com referências claras a passos, figurinos e

cabelos de inspiração africana.

154 Revista Prea, Natal, Fundação José Augusto, n. 15, nov/dez. 2005, [http://www.fja.rn.gov.br/arquivos/Prea_15Net2.pdf, p.60], capturado em 30/04/2007.

Page 190: Relatorio Boa VistacomAnexos

R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7

190

Seguindo uma tradição iniciada por seus ancestrais, os quilombolas de Boa

Vista expressam na dança e na música sentimentos de pertencimento a um grupo

étnico e uma visão do passado de um segmento social historicamente estigmatizado

e marginalizado. Assim, a dimensão étnica e memorial das novas formas de danças

encontra–se reproduzida e atualizada.

Fotografia 40 - As pérolas negras (fev. 07) e a dança do Espontão (set. 06).

Page 191: Relatorio Boa VistacomAnexos

R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7

191

Fotografia 41 -Reunião comunitária (maio 07).

Um dos principais pontos que dificultou a tomada de decisão em relação às

terras foram as boas relações travadas com os vizinhos; muitas famílias escolheram

os proprietários brancos, detentores de um estatuto social mais elevado para serem

padrinhos dos seus filhos. O compadrio, tipo de relação desigual presente em

contextos etnográficos diferentes revela-se na sua dimensão mais completa: aos

laços de dependência, acrescentam-se relações de trabalho ou afetivas. Assim, há

várias pessoas originárias de Boa Vista dos Negros morando nas “Boas Vistas dos

brancos”, empregados domésticos que, ao crescer na vizinhança, se integraram à

família.

5.4.2. As mulheres de Boa Vista

Vista como uma comunidade organizada e atuante, apesar das dificuldades

econômicas e da marginalização secular do grupo, Boa Vista adquiriu um

reconhecimento local por manter uma das tradições mais antigas da região e ser,

ainda hoje, a maior festa de Jardim do Seridó. Durante a pesquisa, verificamos que,

na sua grande maioria, são as mulheres que se envolvem nas questões políticas

Page 192: Relatorio Boa VistacomAnexos

R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7

192

locais e que, na vida pública, são elas que se projetam como lideranças. Foram

nossas interlocutoras privilegiadas, ocupando os cargos representativos cujas

funções necessitam um nível de estudo superior ao resto do grupo: são professoras,

enfermeiras e presidentes da associação comunitária além de serem mães de

famílias e conselheiras.

Com o auxílio de Florêncio Luciano, então prefeito de Parelhas, Dona Chica

começou a ensinar em 1954 na escola de Boa Vista. Na época, a escola era de palha

e, em 1958, Dona Chica conseguiu construir a primeira escola em tijolo que foi

batizada do nome de “Maria Serafina de Jesus. Ao lado do “salão” foi também

construída uma casa onde a professora morava com sua família, durante 24 anos.

No início, Dona Chica era também merendeira e tinha em torno de 20 alunos.

Depois, em 1962, houve um projeto de construção de casas e Dona Chica se mudou

para sua casa atual. Recebeu o auxílio de Tereza, Teca, filha de Dona Geralda, que

passou 14 anos trabalhando como merendeira.155 Em 1968, Dona Chica terminou o

curso primário em Juazeiro e depois, participou de diferentes projetos (Madureira,

Saci) e finalizou o segundo grau antes de se aposentar.

Fotografia 42 - Reunião informal na casa de Dona Chica (março 07).

155 Ensinou durante trinta anos, de 1954 a 1989.

Page 193: Relatorio Boa VistacomAnexos

R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7

193

Assim, a atuação de Dona Chica, primeira professora negra do local, serviu

de exemplo para as lideranças atuais que se espelharam na sua experiência,

mostrando que, apesar das dificuldades, era possível introduzir melhorias na

comunidade. Assim, desde os anos 1960, Boa Vista recebeu alguns benefícios

conseguidos com alianças feitas em nível local. Porém, a patronagem continuava

sendo o modo mais comum de se relacionar com pessoas influentes. Assim, em

1962, com verbas do governo do Estado, foi construído o açude e as primeiras casas

de tijolo (Cruz 2004: 45).

Fotografia 43 - Eleição na Associação (maio

06).

Fotografia 44 - Discurso de Maria das

Graças (Preta) reconduzida na presidência (maio 06).

Atualmente, vários projetos ligados à municipalidade estão presentes na

comunidade quilombola de Boa Vista. A Secretaria municipal de assistência social,

através do Programa de atenção integral à família (PAIF), implantou um centro de

referência e assistência social – CRAS, Casa das famílias, e atende as necessidades

do grupo (Silva 2006: 22). Também, no município existem vários programas

sociais que beneficiam a comunidade quilombola de Boa Vista: o Programa de

erradicação do trabalho infantil - PETI (Ministério do desenvolvimento social), o

Page 194: Relatorio Boa VistacomAnexos

R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7

194

Programa sentinela (Ministério do desenvolvimento social), a Bolsa família

(Ministério do desenvolvimento social), o Programa de saúde da família

(Ministério da saúde), o Programa Brasil alfabetizado (Ministério da educação) e,

finalmente, o Projeto quilombolas (Secretaria especial de políticas de promoção da

igualdade racial-Presidência da República).156

Fotografia 45 - Cisternas do projeto Água de beber (jan. 07).

A Prefeitura municipal de Parelhas, a COECQRN e a SEPPIR organizaram,

em março de 2007, um curso de capacitação quilombola do Rio Grande do Norte

intitulado "Participação política e controle social das políticas públicas". Um

projeto chamado “Água de beber”, implantado pelo Governo do estado do Rio

Grande do Norte, recebendo apoio do Ministério do Meio ambiente e contando

com uma parceria da Secretaria dos Recursos Hídricos-SERHID, de Agricultura e

Pesca - SAPE e a prefeitura de Parelhas foi instalado em setembro de 2005. O

156 Dados disponibilizados no site da VIOLES/SER/UnB: <www.caminhos.ufms.br>, capturado em 02/03/07.

Page 195: Relatorio Boa VistacomAnexos

R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7

195

projeto, que associa um desanilizador de água à criação de peixes (tilápia), tem

como principais objetivos a melhoria da dieta, o aumento da renda da população

local e a redução dos riscos ambientais.157 Assim, a continuidade de projetos

implementados aparece como sendo um dos maiores desafios para Boa Vista.

Fotografia 46 - Reunião na Boa Vista sobre os limites da terra - 17/05/07 (Suelma, Elsa e Manoel Miguel).

Desta forma, as mulheres assumem um papel importante na vida cotidiana e

política do grupo, o que se acompanha de um aparente desinteresse dos homens

por questões políticas: são as mulheres que, nas instâncias externas que

representam a Boa Vista (professoras, agentes de saúde e presidente da

157 Ver o artigo: “Águas residuais são usadas para a criação de peixes”, Diário de Natal - cidades – 29/09/2005. Após uma interrupção no programa em 2006-07, o projeto foi retomado em maio 2007, mas encontra, de novo, problemas de funcionamento ligados ao fornecimento da água.

Page 196: Relatorio Boa VistacomAnexos

R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7

196

Associação158, participando de projetos em cooperação com a prefeitura). Os

homens, em idade de trabalhar, são empregados nas cerâmicas circunvizinhas e

nem sempre se projetam como atores do desenvolvimento local.159 Apesar dos

homens continuarem a ser os provedores do lar, constatamos que as mulheres,

cada vez mais, ocupam o espaço político: estão à frente dos principais cargos e

responsabilidades, pois, além da disponibilidade, existe uma disparidade entre

homens e mulheres quanto ao nível educacional e as profissões: são professoras,

enfermeiras, membros da associação comunitária que tem um trânsito facilitado

nas secretarias, nos órgãos representativos e representam a Boa Vista nas reuniões

estaduais ou nacionais. Estão à frente das decisões coletivas e dos projetos

comunitários, inclusive na discussão sobre o território a ser pleiteado. Porém, a

atuação das mulheres no campo político interno e externo não implica numa

mudança radical das relações de parentesco – sobretudo na escolhas dos cônjuges

– e na divisão sexual do trabalho. Mesmo se, entre os mais jovens, sobretudo os

homens, há pouco interesse para a história do grupo e os assuntos políticos,

percebemos, no entanto, uma forte consciência étnica que se expressa nos cuidados

com a aparência física e com a preocupação em continuar a tradição da “Dança do

Espontão”.160

158 A Associação de desenvolvimento da comunidade negra de Boa Vista - ADECONB, foi criada em 2002 e tem como presidente eleita em maio de 2006 Maria das Graças Fernandes da Cruz - Preta. 159 Existe um site que apresenta fotografias da comunidade quilombola de Boa Vista, ligado a um projeto de defesa dos direitos humanos. Ver: http://www.dhnet.org.br/w3/cedan/index.html 160 Chamou-nos bastante a atenção o número de pessoas da comunidade (maioria de mulheres, mas também alguns homens mais jovens) que fazem penteados chamados “afros”.

Page 197: Relatorio Boa VistacomAnexos

R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7

197

Fotografia 47 - Irmandade do Rosário (s.d.).161

Assim, aparece claramente que, além da questão política, é preciso que a

dimensão simbólica e cultural esteja presente na definição dos grupos étnicos, pois

essa tem um papel importante: são experiências religiosas, culturais e históricas

compartilhadas – ainda que alguns de seus elementos sejam também utilizados

parcialmente pelos grupos vizinhos. Sabemos, desde Barth (1988) e outros autores,

como N. Wachtel (1990), que a identidade étnica pertence ao universo simbólico; é

construída e acionada de modo diferente, dependendo dos contextos sociais e

políticos em que os agentes a reivindicam. Aqui, o auto-reconhecimento como

quilombola passa pela reiteração da história, a dança do Espontão, a devoção à

santa e o sentimento em relação à terra. Todos esses elementos apontam para uma

identidade em constante reelaboração a partir de um fundo cultural comum

designado pelos própios autores como tradicional.

161 Fotografia retirada do jornal “Parelhas, um pouco da sua história e do seu espaço geográfico” (SEMECR 1994). Interessante notarmos a presença de mulheres dançando. Provavelmente, dever ser durante as visitas realizadas pelos membros da irmandade nos arredores da Boa Vista para solicitar ajuda para despesas da festa.

Page 198: Relatorio Boa VistacomAnexos

R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7

198

ÁREA PROPOSTA E RECOMENDAÇÕES

Daqui, essa zona de silêncio, por quase meio século, pela perda dêsses preciosos documentos, que se desprezaram e se transformaram em pó, sob o olhar indiferente de muitos reverendos curas. O certo, porém, é que, da série acima enumerada, o primeiro traz a data de 1788, rico de cicatrizes e de mutilações gloriosas, é verdade, mas teimando em não perecer.

Dom José Adelino Dantas, Bispo de Garanhuns, Homens e fatos do Seridó antigo, 1961, p.9.

Page 199: Relatorio Boa VistacomAnexos

R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7

199

As informações coletadas durante a pesquisa empírica, nos arquivos e na

bibliografia consultada para elaboração deste relatório antropológico, informam

sobre a presença ancestral dos remanescentos de quilombo em Boa Vista e fornece

elementos para subsidiar a solicitação de regularização fundiária. Como

verificamos, a comunidade de Boa Vista consta em documentos históricos que

datam de quase duzentos anos e em registros da literatura local. Além disso, a

presença de uma longa memória genealógica e a existência de conflitos territoriais

nos registros memoriais comprovam que os quilombolas ocupam o espaço desde

pelo menos o início do século XIX e que manifestam a vontade em continuar no seu

território.162 Assim, os levantamentos documentais e empíricos comprovam que o

pleito dos remanescentes de quilombos é legítimo. Por outro lado, condizem com o

a legislação em vigor na definição, delimitação e titulação dos territórios dos

remanescentes de quilombos.163

Após a descrição da história da comunidade e considerando a

ancestralidade, as tradições culturais e as formas de organização socioeconômica

das famílias que residem em Boa Vista dos Negros, foi identificado o território a ser

titulado.

6.1. Delimitação do território

162 Ver capítulo 2 deste relatório. 163 Artigo 68 dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias ; Artigos 215 e 216 da Constituição Federal; Lei nº 4.132, de 10 de setembro de 1962; Lei nº 4.504, de 30 de novembro de 1964; Decreto nº 59.428, de 27 de outubro de 1966; Decreto nº 433, de 24 de janeiro de 1992; Lei nº 8.629, de 25 de fevereiro de 1993 e alterações posteriores; Decreto nº 4.887, de 20 de novembro de 2003; Decreto nº 4.886, de 20 de novembro de 2003; Convenção Internacional nº 169, da Organização Internacional do Trabalho – OIT (decreto Legislativo no 143, de 20 de junho de 2002 e decreto 5.051, de 19 de abril de 2004).

Page 200: Relatorio Boa VistacomAnexos

R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7

200

Segundo o conhecimento local, o grupo sofreu perdas territoriais ao longo

dos anos. Apesar de saber que perderam áreas importantes para o seu sustento, os

quilombolas reconhecem de maneira absoluta que Boa Vista é limitada ao sul pelo

rio Cobra, ao norte, as águas de Carnaúba, na chã da serra do Marimbondo, a leste

pelo “corredor de Mariquinha” e a oeste pela estrada RN-086. Corresponde, em

parte às terras herdadas que pertenciam à Domingos Fernandes da Cruz que

morreu de cólera aos 73 anos em Parelhas e de Manoel Fernandes da Cruz cuja

partilha foi realizada em 1859.164

Lembramos que é imprescindível o acesso ao território natural composto

por serras, planície, rios e açudes seja facultado aos quilombolas para reprodução

de práticas produtivas e de valores próprios ao grupo. Também, como o território

identificado deve ser necessário e suficiente à reprodução social do grupo em

conformidade com as especificidades de seus usos, costumes e tradições, é

importante que esteja facultado o domínio e o uso de áreas de caatinga e de serras

ainda preservadas para a coleta de frutas silvestres e, se for o caso, a caça.

O processo aberto em 2004 no Incra visa à reivindicação de um direito

assegurado constitucionalmente, a saber, o direito de ter acesso a uma propriedade

coletiva e definitiva do território ocupado e utilizado imemorialmente pela

comunidade quilombola de Boa Vista. O grupo chegou, em maio 2007, após várias

reuniões, a um acordo, sobre a demanda territorial a ser solicitada e corresponde,

em parte, ao território tradicionalmente ocupado:

164 Foi solicitado aos Cartórios de Jardim do Seridó e de Parelhas o registro dos imóveis oriundos da herança de Domingos Fernandes da Cruz (1784-1857) e de Manoel Fernandes da Cruz (17??–1856).

Page 201: Relatorio Boa VistacomAnexos

201

Mapa 7 - Demanda territorial

Page 202: Relatorio Boa VistacomAnexos

R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7

202

6.2. O estatuto das áreas requisitadas

O território quilombola de Boa Vista corresponde, em parte, a antigas

sesmarias de Tomás de Araújo Pereira (1734 - n. 238 com 3x1 léguas) e de

Lourenço de Góis e Vasconcelos (1735, com 3x1 léguas no riacho da Cobra)

(Medeiros Filho 2002: 33-34; Tavares 1982: 146-147). Corresponde, em parte,

às terras herdadas que pertenciam à Domingos Fernandes da Cruz e à

Manoel Fernandes da Cruz. Consta ainda que, em 1889, através de escritura

particular, foi estabelecido um documento de compra de “quatro partes de

terras no sítio Boa Vista do Monte do rio Cobra” entre Teodôzio Fernandes

da Cruz (1866-1951) e Antônia Maria da Conceição, sogra e tia do comprador. 165

No que diz respeito às terras de propriedade de Liciniano Luciano da

Silva que, em grande parte encontram-se sob penhora judicial desde 1999166, e

as que foram invadidas por vizinhos (Licianao Luciano da Silva, Inácio Barros

da Silva e Joel Paulino Dantas), é preciso fazer cumprir a LEI Nº 8.629, de 25 de

fevereiro de 1993 da função social da terra. Até hoje, parte das propriedades são

improdutivas, pois contam com grandes áreas de caatinga em parte degradadas,

sobretudo na serra ou são constantemente alvo de desmatamento por parte dos

invasores.

Acompanhando um dos eixos principais da política pública atual, a saber,

a superação da pobreza e a garantia da segurança alimentar das populações de

baixo poder aquisitivo, uma das prioridades do Ministério de Desenvolvimento

Agrário é a redução das desigualdades, da pobreza e da falta de perspectivas em

que se encontra cerca de 25% da população brasileira. A criação de um Plano

territorial de desenvolvimento sustentável (PTDS) permite:

165 Dr. Ulisses Potiguar encontrou um outro registro de compra de terras com data 22/07/1896, passado entre Theodôzio Fernandes da Cruz e Joaquim Bião dos Santos. 166 Ver as fls. 119, 120 do processo Memo/Incra/SR-19/G/n°127/04.

Page 203: Relatorio Boa VistacomAnexos

R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7

203

[...] a formulação de uma proposta centrada nas pessoas, que leva em conta os aspectos de interação entre os sistemas socioculturais e os sistemas ambientais, e que considera a integração produtiva e a utilização competitiva dos recursos produtivos como meios que permitem a cooperação e co-responsabilidade ampla de diversos atores sociais (Brasil, Ministério do desenvolvimento agrário 2003: 31).

Assim, a recente Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos

Povos e Comunidades Tradicionais (PNPCT) foi instituída por meio do Decreto

nº 6.040, de 7 de fevereiro de 2007, e a Convenção 169 da Organização

Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário por meio do

Decreto Legislativo nº 143, de 20 de junho de 2002, e promulgada pelo Decreto

5.051, de 19 de abril de 2004, garante o direito à propriedade da terra,

determinado pelo artigo 68 da Constituição Federal do Brasil de 1988.167

A comunidade quilombola de Boa Vista (RN) esta situada numa área

semi-árida que recebe atenção especial do governo Brasileiro, por isso deve

receber uma atenção prioritária (PAN Brasil 2004). As conseqüências são

múltiplas e tem um efeito direto sobre o bem estar das populações locais: há

uma redução da cobertura vegetal, verifique-se um assoreamento dos rios,

açudes e barragens. Nas áreas de sobrepasto, como existem vários na área da

comunidade quilombola, constata-se uma perda da produção agrícola de

subsistência e uma salinização dos solos. No entanto, segundos estudos do

Ministério das Minas e energias, existem várias fontes de abastecimento de água

subterrâneas que devem ser preservadas:

167 A PNPCT “tem como principal objetivo promover o desenvolvimento sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais, com ênfase no reconhecimento, fortalecimento e garantia dos seus direitos territoriais, sociais, ambientais, econômicos e culturais, com respeito e valorização à sua identidade, suas formas de organização e suas instituições.” (art. 2o) e “reconhecer, com celeridade, a auto-identificação dos povos e comunidades tradicionais, de modo que possam ter acesso pleno aos seus direitos civis individuais e coletivos.” (art 3o VI)

Page 204: Relatorio Boa VistacomAnexos

R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7

204

Figura 3 - Fontes de águas subterrâneas.168

Desta forma, é preciso que sejam implementadas ações de

reflorestamento e de remanejamento das áreas ainda preservadas,

acompanhando as diretrizes do Plano Estadual de Combate à Desertificação.

Ainda não é possível avaliar exatamente os danos que uma devastação desse

tipo representou para população local que tirava parte do seu sustento da coleta

não predatória de espécies nativas e auxiliava na preservação do meio natural.

É necessário que sejam tomadas medidas emergenciais, pois existe uma

situação de risco de um ponto de vista social, devido às condições ambientais.

Assim, apontamos para a necessidade de criação de áreas protegidas por

legislações específicas. É necessário acompanhar o que determina o artigo XIII

do cap. II da lei no 9.985, de 18 de julho de 2000 que instituiu o Sistema

nacional de unidades de conservação da natureza – SNUC e que tem como

objetivo "proteger os recursos naturais necessários à subsistência de populações

tradicionais, respeitando e valorizando seu conhecimento e sua cultura e

168 Ministério das minas e energia, 2005, disponível em: http://www.cprm.gov.br/rehi/atlas/rgnorte/mapas/PARE179.pdf (caputado em 03/04/2006).

Page 205: Relatorio Boa VistacomAnexos

R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7

205

promovendo-as social e economicamente". Efetivamente, o território

tradicionalmente ocupado inclui uma área ainda relativamente preservada de

vegetação nativa. Como são áreas de risco ambiental, entendemos que é

necessário que a emissão de um título coletivo da área, no seu conjunto, em

favor da população quilombola.

6.3. Perspectivas para a comunidade

Várias possibilidades se desenham para um desenvolvimento sustentável

que deverá ser realizado em acordo com as características sócio-culturais e

históricas da comunidade quilombola de Boa Vista. Para que haja um

desenvolvimento sustentável, é preciso haver uma compatibilidade entre

objetivos sociais, econômicos e ambientais em todos os níveis; a justiça e a

equidade sociais devem ser priorizadas, com o reconhecimento da diversidade

cultural e da efetivação de uma política de preservação eficaz da biodiversidade

(Arruti 2003a: 253).

Diante a situação de risco social em que a população quilombola

encontra-se e a diversidade do ecossistema, ora ameaçada, existem várias

possibilidades de desenvolvimento sustentável. Entre outras, destacamos:

1- Projetos de reflorestamento e preservação da fauna

a – Reflorestamento

É importante que os projetos de reflorestamento que poderão ser

realizados, estejam elaborados em acordo com as necessidades da comunidade

quilombola que deve ser parte na elaboração destes, bem como deve ser

envolvida no gerenciamento da área a ser preservada e tornar-se agente na

fiscalização das áreas protegidas.

Page 206: Relatorio Boa VistacomAnexos

R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7

206

Ações de proteção e de recuperação das matas ciliares nas margens e

leitos do rio Cobra e riacho Gavião devem ser realizadas, visando a garantir a

manutenção das nascentes e, se for o caso, reverter o quadro atual de

assoreamento. Faz-se necessária, portanto, a reposição da cobertura vegetal das

margens dos rios e riachos, sobretudo as que foram desmatadas e que o

reflorestamento seja feito com espécies nativas. Além disso, devem ser

implementadas ações de proteção e de recuperação dos mananciais para manter

a floresta nativa próxima aos cursos d’água que passam pela comunidade,

assegurando sua existência futura.

b - Preservação da biodiversidade das espécies animais e

vegetais169

O projeto de manejo florestal que pode vir a ser implantado deve ser

voltado para o benefício coletivo, e deve receber o auxílio do governo federal, do

governo estadual, da municipalidade, podendo receber assessoria técnica de

Ong's.

Devem ser priorizadas as áreas de matas primárias;

Associada à preservação ambiental é interessante que haja uma

reintrodução de espécies nativas (abelhas, aves e mamíferos).

2- Projetos produtivos e geração de renda

169 cf. Convenção de Diversidade Biológica (CDB) e Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama)].

Page 207: Relatorio Boa VistacomAnexos

R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7

207

É importante que sejam implementados projetos de desenvolvimento

sustentável visando a melhoria da vida cotidiana das famílias quilombolas, a

geração de renda e a criação de empregos em nível local.

a- Projetos de pecuária em áreas coletivas (serras) e de agricultura

familiar na áreas cultiváveis (sobretudo nas vasantes dos rios e açudes) e cultivo

de espécies frutíferas locais como meio para incrementar a renda das famílias

quilombolas.

b- Realização de atividades extrativistas e processo de beneficiamento

das frutas nativas (por exemplo o umbu). Aqui se incluem atividades de coleta

seletiva de espécies vegetais e animais e o uso múltiplo de produtos florestais

(madeira, cipós, folhas, raízes, seivas, frutas, etc.);

c - Ampliação de projetos de aqüicultura orgânica, criação de uma

cooperativa de pescadores e de instalações para tratamento, beneficiamento e

distribuição do pescado.

3 - Projetos culturais e geração de renda alternativa

a- Implementação de ações do IPHAN-Minc visando a preservação do

patrimônio cultural, sobretudo manifestações ligadas à Irmandade do Rosário, a

Page 208: Relatorio Boa VistacomAnexos

R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7

208

documentação histórica que encontra-se em arquivos particulares, cartórios e

paróquias, e tombamento da “casa do Rosário” como patrimônio construído; a

Irmandade e a Associação comunitária devem ser consultadas nas ações a serem

implementadas, pois pertencem a um conjunto cultural “de reminiscências

históricas dos antigos quilombos” 170;

b – Manutenção e implementação de cursos e de capacitação (sobretudo

artesanato); essas ações poderiam ser realizadas em curto prazo no sentido de

implementar ações imediatas relevando do Programa Brasil quilombola e

atender a população de jovens que estão numa situação de risco social.

c - Implementação de uma estação digital e de cursos de informática para

responder às necessidades locais;

d- Implantação do projeto do museu de Boa Vista apresentando aspectos

relevantes da história e da cultura do grupo e incluindo trilhas de descoberta do

meio ambiente (serra e caatinga);171

A implementação de projetos de desenvolvimento sustentável

possibilitariam uma boa integração em nível local e nacional do grupo em

questão, tendo como principal objetivo o bem estar e a integridade da população

local que atualmente vive numa situação de risco social e terão, como benefício,

a preservação da história e da cultura local.

170 Tratando-se de documentos referentes a escravos ou a remanescentes de quilombos, conforme o artigo 68, do Ato das disposições constitucionais transitórias (ADCT) de 1988: "ficam tombados todos os documentos e os sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos" (parágrafo 5o, artigo 216). 171 Já existe um projeto de museu por parte da associação comunitária que deve iniciar ainda em 2007. Foi elaborado um projeto de Ponto de cultura (Minc) pela Associação comunitária.

Page 209: Relatorio Boa VistacomAnexos

R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7

209

Recomendações:

- Solicitação de uma ação de salvaguarda da documentação histórica e ao

patrimônio construído referente à Irmandade do Rosário;

- Acompanhamento do processo de titulação pelo Ministério Público

Federal;

- Agilização do Incra nos processos adminitrativos.

6.4. Parecer conclusivo

O território coletivo aqui descrito, além do compartilhamento de um

espaço comum, possibilite a inscrição material da história do grupo e o uso

comum da terra; como vimos, o uso coletivo do espaço natural e cultivado foi,

durante o passado, uma estratégia escolhida para que o grupo se mantivesse no

local, a terra aparecendo como essencial para a subsistência das famílias e a

reprodução dos valores comuns.

Para as famílias quilombolas, a titulação irá assegurar o domínio e a

posse de suas terras tradicionalmente ocupadas. Além de suprir as necessidades

econômicas do grupo, a terra tem um valor histórico-cultural inestimável: o

território sustenta os processos que visam o reconhecimento e a elaboração de

uma história diferenciada em nível local. Garante a continuidade das famílias

quilombolas, sua reprodução física, além de permitir o reconhecimento político

e a valorização de um grupo historicamente marginalizado e que continua a ser

alvo de preconceitos.

Como já mostramos, a identidade coletiva deve ser levada em conta na

discussão sobre a questão fundiária: elementos diferenciais como a identidade

étnica, a ancestralidade comum, as formas de organização social e política

distintas, os elementos lingüísticos e religiosos devem entrar em consideração

na discussão da demanda territorial a ser realizada pelos quilombolas. A

pesquisa histórico-documental e genealógica mostra que a comunidade

Page 210: Relatorio Boa VistacomAnexos

R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7

210

quilombola de Boa Vista é ocupada de maneira contínua desde, pelo menos, os

meados do século XIX, sofrendo contínuas ameaças ao seu território.

A titulação do território da comunidade quilombola de Boa Vista se

adequa ainda às diretrizes presentes na Constituição Federal de preservação e

sustentabilidade dos territórios quilombolas visando a melhoria das condições

de vida e o fortalecimento da organização das comunidades remanescentes de

quilombos por meio da promoção do acesso aos bens e serviços sociais

necessários ao desenvolvimento, considerando os princípios sócio-culturais

dessas comunidades. As políticas públicas a serem implementadas devem ser

voltadas para o desenvolvimento da comunidade, respeitar a singularidade

cultural do grupo e as práticas sociais tradicionais e comunitárias.

Das razões para titulação:

A ocupação ancestral foi comprovada documentalmente e pela pesquisa

etnográfica. Apesar de haver somente dois títulos de posse emitidos em nome

dos quilombolas, existe um uso contínuo e comprovado do território requerido;

o que tem como conseqüência a aplicação do direito constitucional. Até a década

de 1980, a população tirou seu sustento do rio (água potável), dos terrenos

cultiváveis, das serras e das matas nativas. Desde pelo menos o início do século

XX, os moradores sofreram pressões, sobretudo, por parte do atual proprietário

das terras circunvizinhas (Liciniano Luciano da Silva) e do seu pai (José

Marcolino da Silva), sendo impossibilitados por eles e outos intrusos de ocupar

certas áreas indispensáveis à reprodução de um modo de vida tradicional;

Page 211: Relatorio Boa VistacomAnexos

R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7

211

Existem registros orais que relatam tentativas de cooptação de membros

da comunidade, há comprovação do uso de má fé na cessão das terras por parte

de ocupantes externos à comunidade;172

A população local não pode usufruir plenamente dos recursos naturais

necessários para o seu sustento (serra, mata). Há mais de trinta anos, a

comunidade sofre com as conseqüências de um desenvolvimento predatório,

com o desmatamento da maior parte do seu território tradicional, de danos

irrecuperáveis no rio após os anos 1940, o que representa um perigo para a

integridade do grupo e sua reprodução. De fato, os quilombolas foram lesados

com esses danos ambientais e por diversos ocupantes que cercaram

indevidamente terrenos historicamente ocupados pelo grupo;

As terras que foram cedidas por membros da comunidade e que

encontram-se de posse de indivíduos externos a elas foram desmatadas e

degradas. Também algumas delas não atendem à função social da terra, pois

não são produtivas. Por tanto, recomenda-se a aplicação da legislação em vigor

para o benefício de uma população que encontra-se numa situação de risco

social;173

São necessárias ações urgentes visando a preservação do meio ambiente

que encontra-se seriamente degradado e a aplicação das diferentes legislações

ambientais, pois parte da comunidade esta situada numa área de alto risco de

desertificação. Também, recomenda-se que haja uma implementação de

projetos ambientais no sentido da melhoria das condições de vida atuais e

futuras das populações locais.

172 É o que explique que o Ministério Público foi acionado através de uma denúncia feita em julho 2007. 173 Ver arts. 3º e 12 da lei n. 4.504 - de 30 de novembro de 1964. Dispõe sobre o estatuto da terra e arts. 2º e 9 da lei nº 8.629, de 25 de fevereiro de 1993. Ver também a resolução da CONAMA n.237, de 19.12.1997, arts.3 e 10 da Lei n.6.938, de 31.08.1981, e art. 02 Lei n. 4.771, de 15.09.1965 e a medida provisória n 2.166-67, de 24.08.2001.

Page 212: Relatorio Boa VistacomAnexos

R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7

212

Page 213: Relatorio Boa VistacomAnexos

R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7

213

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Page 214: Relatorio Boa VistacomAnexos

R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7

214

ABA. 2006. Prêmio ABA/MDA Territórios quilombolas, Associação

brasileira de antropologia, Brasilia, Ministério do desenvolvimento agrário,

Núcleo de estudos agrários e desenvolvimento rural.

ABREU, Marta. 1994. Festas religiosas no Rio de Janeiro: perspectivas de

controle e tolerância no século XIX, Estudos Históricos, 7, 14: 183-203.

ALBUQUERQUE, Ulysses Lins de. 1989. Um sertanejo e o sertão, Belo

Horizonte, Itatiana.

ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. 2002. Os quilombolas e as novas

etnias, In: O’DWYER, Eliane Cantarino. (org.) Quilombos: identidade étnica e

territorialidade, Rio de Janeiro, Editora FGV: 43-82.

ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. 2006. Os quilombolas e a base de

lançamento de foguetes de Alcântara: laudo antropológico, Brasília, MMA.

ANDRADE, Manuel Correia de. 1973. A terra e o homem no Nordeste,

São Paulo, ed. Brasiliense.

ANDRADE, Manuel Correia de. 1990. A produção do espaço norte-rio-

grandense, Natal, cooperativa cultural, 2a. Edição.

ANDRADE, Mário de. 1982. Danças dramáticas do Brasil, Belo

Horizonte, ed. Itatiaia, vol. 2

ARAÚJO, Douglas. 2005. A morte do sertão antigo no Seridó: o

desmoronamento das fazendas agropecuaristas em Caicó e Florânia, Fortaleza,

Banco do Nordeste do Brasil.

ARRUTI, José Maurício Andion. 1997. A emergência dos

"remanescentes": notas para o diálogo entre indígenas e quilombolas. Mana.

[on-line]. out., vol.3, no.2 [citado 26 Abril 2006], p.7-38. [Disponível no site:

<http://www.scielo.br/].

ARRUTI, José Mauricio. 2003a. Relatório técnico-científico sobre a

comunidade remanescente de quilombos da ilha de Marambaia, município de

Mangaratiba (RJ), Rio, Koinonia, Fundação Cultural Palmares.

Page 215: Relatorio Boa VistacomAnexos

R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7

215

ARRUTI, José Maurício Andion. 2006. Mocambo: antropologia e

história no processo de formação quilombola, São Paulo, Edusp (Premio

Anpocs).

ASSUNÇÃO, Luiz Carvalho de. 1988. Os negros do Riacho, um estudo

sobre estratégias de sobrevivência e identidade social, Natal, UFRN,

dissertação de mestrado (Antropologia).

AUGUSTO, José. 1954. Seridó, Rio, Borsoi ed.

AZEVEDO, Antídio de. 1962-63. Subsídios a história de Jardim do

Seridó, Revista do Instituto Histórico Geográfico do Rio Grande do Norte, LV:

27-32.

BALLET, Claire. 1981. Le journal le ‘libertador’ et la province brésilienne

du Ceará à l’époque de l’abolitionnisme (1881-1884), Paris, Université de Paris

I, thèse de 3e. Cycle (Histoire).

BARROSO, Gustavo Dodt. 1912. Terra de sol. Natureza e costumes do

Norte, Rio, Benjamim de Aguila.

BARRY, Laurent S. 2000. L'union endogame en Afrique et à Madagascar,

L'Homme, 67-100.

BARTH, Frederik. 1988. Grupos étnicos e suas fronteiras. In:

POUTIGNAT; STREIFF-FENART (orgs.). Teorias da etnicidade, São Paulo,

Unesp: 187-227.

BEZERRA, José Fernandes. 1978. Retalhos do meu sertão, Rio de

Janeiro, Graf. e Pap. Leão do Mar.

BEZERRA, Maria do Nascimento. 1987. A estratégia do paternalismo na

parceria, Natal, Ed. Univ., PROED.

BONTE, Pierre. 2000. L’échange est-il un universel ?, L’Homme, 154-

155: 39-65.

BOURDIEU, Pierre. 1980. Le sens pratique, Paris, Les éditions de

minuit.

Page 216: Relatorio Boa VistacomAnexos

R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7

216

BOURDIEU, Pierre; CHAMBOREDON, Jean-Claude; PASSERON, Jean-

Claude. 1983. Le métier de sociologue, Paris, Mouton.

BRANDÃO, Luiz Eduardo Suassuna (org.). 1997. História do Rio Grande

do Norte, Natal, Natal ed.

CABRAL, João Pina; LIMA, Antónia Pedroso de. 2005. Como fazer uma

história de Família: um exercício de contextualização social, Etnográfica, IX

(2): 355-388.

CANDEAU, Joël. 1998. Mémoire et identité, Paris, PUF.

CARVALHO, José Jorge. 1998. A tradição mística afro-brasileira, Serie

Antropológica, 238, UNB [http://www.unb.br/ics/dan/Serie238empdf.pdf]

CASCUDO, Luis da C. 1955. História do Rio Grande do Norte, Rio, Mec.

CASCUDO, Luis da C. 1956. Tradições populares da pecuária

nordestina, Rio de Janeiro, Ministério da agricultura, serviço de informação

agrícola, documentário da vida rural, n. 9.

CASCUDO, Luis da C. 1975. Viajando o sertão, Natal, Fundação José

Augusto.

CASTRO, Eduardo Viveiros de. 2002. A inconstância da alma selvagem,

São Paulo, Cosac e Naify.

CAVALCANTI, Josefa Salete Barbosa. 1975. Talhado. Um estudo de

organização social e Política, Universidade Federal do Rio de Janeiro, UFRJ.

Mestrado em Antropologia Social.

CAVIGNAC, Julie. 1994. Mémoires au quotidien. Histoire et récits du

sertão du RN. (Brésil), Université de Paris X, Nanterre (tese de doutorado).

CAVIGNAC, Julie. 1995. A índia roubada: estudo comparativo da história

e das representações das populações indígenas no sertão do Rio Grande do

Norte, Cadernos de História, UFRN.

CAVIGNAC, Julie. 2003. “A etnicidade encoberta: ‘Índios’ e ‘Negros’ no

Rio Grande do Norte”, Mneme, vol. 5, n. 8, maio/julho

[www.seol.com.br/mneme].

Page 217: Relatorio Boa VistacomAnexos

R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7

217

CAVIGNAC, Julie. 2006. A literatura de cordel no Nordeste do Brasil.

Da história escrita ao relato oral, Natal, Edufrn, Coleção nordestina, tradução

de Nelson Patriota.

CAVIGNAC, Julie; LINS, Cyro Holando de Almeida; MOREIRA,

Stéphanie Campos Paiva; MAUX, Augusto Carlos de Oliveira. 2006. Uma

Sibaúma só! Relatório antropológico da comunidade quilombola de Sibaúma

(Rn), Natal, Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária - INCRA,

Departamento de Antropologia da Universidade Federal do Rio Grande do

Norte, UFRN.

CORD, Marcel Mac. 2003. Identidades étnicas, Irmandade do Rosário e

Rei do Congo: sociabilidades cotidianas recifenses – século XIX, Campos, 4: 51-

66.

CRUZ, Maria do Socorro da. 2004. A comunidade rural de Boa Vista dos

negros: territorialidade, identidade étnica e invisibilidade social de um povo

quilombola, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Ceres, monografia

de fim de curso (História).

CTmineral. 2002. Arranjos produtivos de base mineral e demanda

mineral significativa no Brasil, Aglomerado: região de Parelhas, Rio Grande do

Norte e Paraíba, Cerâmica não refratária de uso estrutural, CTBrasil, CNPq

CUNHA, Manoela Carneiro da. 1987. Antropologia do Brasil. Mito,

história, etnicidade, São Paulo, USP, 2a. ed.

CUNHA, Manoela Carneiro da. 1994. O futuro da questão indígena,

Estudos avançados [online], 8, 20 [citado 2006-05-13]: 121-136. [Disponível

em: <http://www.scielo.br>]

DANTAS, Dom José Adelino. 1961. Homens e fatos do Seridó antigo,

Garanhuns, Graf. d’”O Monitor”.

DANTAS, Manoel. 1941. Homens de outr’ora, Rio, Pongetti (edição fac-

similar Natal, Sebo Vermelho, 2001).

DANTAS, Maria da Paz Medeiros. 2004. Desvendo o viver nas fazendas

dos Azevedo, Carnaúba dos Dantas - RN (1870-1940), Mneme, revista de

Page 218: Relatorio Boa VistacomAnexos

R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7

218

humanidades, 9-3 [http://www.seol.com.br/mneme/ed9/060.pdf], capturado

em 10/03/2007.

DELLA CAVA, Ralf. 1985. Milagre em Juazeiro, Rio, Paz e Terra.

DENIS, Ferdinand Jean. 1839. Histoire et description du Brésil.

Colombie et Guyanes, Paris, F. Didot frères.[www.gallica.bnf.fr, capturado em

10/05/2006].

DURKHEIM, Émile. 1990. As formas elementares da vida religiosa,

Paris, PUF, 4ed.

FARIA, Oswaldo Lamartine de. 1980. Sertões do Seridó, Brasília, Senado

Federal.

GARCIA, Afrânio Jr. 1989. Libres et assujettis. Marché du travail et

modes de domination au Nordeste, Paris, ed. Maison des Sciences de l’Homme.

GEERTZ, Clifford. 1997. Do ponto de vista dos nativos: a natureza do

entendimento antropológico, In: O saber local. Petrópolis, Vozes: 85-107.

GOIS, Diego Marinho de. 2006. Entre estratégias e táticas: enredos das

festas dos negros do Rosário em Jardim do Seridó, Universidade Federal do

Rio Grande do Norte, Ceres, monografia de fim de curso (História), mimeogr.

GOVERNO DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE; Secretaria de

planejamento e finanças-Seplan; Instituto interamericano de cooperação para a

agricultura-Iica; Conselho de desenvolvimento sustentável do Seridó. 2000.

Plano de desenvolvimento sustentável da região do Seridó do Rio Grande do

Norte, mimeogr.,vols. 1 e 2.

GUEDES, Paulo Henrique Marques de Queiroz. 2006. A colonização do

sertão da Paraíba: agentes produtores do espaço e contatos interétnicos

(1650-1730), João Pessoa, Programa de Pós-graduação em Geografia

(Mestrado).

GUERRA, Otto de Brito Guerra. 1989. Vida e morte do nordestino;

análise retrospectiva, Natal, editora universitária, Fundação Otto de

Brito/PROED .

Page 219: Relatorio Boa VistacomAnexos

R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7

219

HALBWACHS, Maurice. 1990. A memória coletiva, São Paulo, Editora

Revista dos Tribunais.

HEMETERIO filho, Petronildo. 1983. História do município de Patu,

Natal, s. éd.

IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 1991; 2000. Censo

demográfico do Brasil (Características gerais da população – população por cor,

raça e sexo segundo as Mesorregiões, as microrregiões e os municípios).

JOFFILY, Geraldo Irineu. 1977. Notas sobre a Parahyba. Seleção das

crônicas de Irineu Joffily (1892-1901), Brasília, Thesaurus, 2a. ed.

KOSTER, Henry. 1978. Viagens ao Nordeste do Brasil, Recife, Secretaria

de Educação e cultura, governo de Pernambuco, trad. Luis da C. Cascudo.

LAET, Jean de. 1640. L’histoire du Nouveau Monde ou description des

Indes occidentales, Leyde, chez A. et B. Elseviers, imprimeurs ordinaires de

l’Université.

LAMARTINE, Juvenal. 1965. Velhos costumes do meu sertão, Natal,

Fundação José Augusto.

LE GOFF, Jacques. 1996. História e memória, Campinas, Unicamp.

LEENHARDT, Maurice. 1971. [1947] Do Kamo, la personne et le mythe

dans le monde mélanésien, Paris, Gallimard.

LÉVI-STRAUSS, Claude. 1949. Les structures élémentaires de la

parenté, Paris, PUF.

LÉVI-STRAUSS, Claude. 1983 [1950]. Introduction à l´oeuvre de Marcel

Mauss, in: MAUSS, Marcel. Sociologie et anthropologie, Paris, PUF, 8e ed.

LÉVI-STRAUSS, Claude. 1989. O Pensamento selvagem, São Paulo,

Papirus.

LÉVI-STRAUSS, Claude. 1991. Minhas palavras, São Paulo, ed.

Brasiliense.

LÉVI-STRAUSS, Claude. 2003. Antropologia estrutural, 6ed. Rio de

Janeiro, Tempo brasileiro

Page 220: Relatorio Boa VistacomAnexos

R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7

220

LIMA, José Ayrton de. 1988. A escravidão negra no Rio Grande do

Norte, Natal, Cooperativa dos Jornalistas de Natal.

LOPES, Martins Fátima. 2005. Em nome da liberdade: as vilas de índios

do Rio Grande do Norte sob o diretório Pombalino no século XVIII, Recife,

Universidade Federal do Pernambuco (tese de doutorado em história do Norte-

Nordeste).

MACEDO, Antônio Pereira de. 1942. História da cidade de Parelhas,

mimeogr.

MACEDO, Helder Alexandre Medeiros de. 2002. Vivências índias,

mundos mestiços: relacionamentos interétnicos na freguesia da gloriosa

senhora santa Ana do Seridó entre o final do século XVIII e início do século

XIX, Caicó, Monografia de final de curso (História), UFRN, CERES.

MACEDO, Helder Alexandre Medeiros de. 2004a. Remanescentes

indígenas numa freguesia colonial do Brasil: Santa Ana, no sertão do Seridó, Rio

Grande do Norte (Sécs. XVIII-XIX), Congresso virtual Naya, Disponível no site

[http://www.naya.org.ar/index.htm] (capturado em 23/03/2007).

MACEDO, Helder Alexandre Medeiros de. 2004b. Fontes judiciais do

Seridó potiguar sobre ecravidão e sua possibilidades de pesquisa, Revista JH

[http://www.tj.rs.gov.br/institu/memoria/revistajh/vol4n8/02] (capturado em

03/05/2007).

MACEDO, Muirakytan K. 2005. A penúltima versão do Seridó. Uma

história do regionalismo seridoense, Natal, Sebo Vermelho.

MACEDO, Muirakytan K. de. 2007. Rústicos cabedais. Patrimônio e

cotidiano familiar nos sertões do Seridó (séc. XVIII), Natal, tese de doutorado,

Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio

Grande do Norte.

MATTA, Roberto da. 1981. Carnavais, malandros e heróis. Para uma

sociologia do dilema brasileiro, Rio de Janeiro, Zahar.

MATTOS, Maria Regina Mendonça Furtado. 1985. Vila do Príncipe –

1850-1890. Sertão do Seridó, um estudo de caso da pobreza, Niterói, Instituto

Page 221: Relatorio Boa VistacomAnexos

R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7

221

de Ciências e filosofia, Centro de estudos gerais, Universidade Federal

Fluminense (dissertação de mestrado).

MATTOSO, Katia de Queirós. 1999. Les inégalités socioculturelles au

Brésil à la fin du XIX siècle, Salvador de Bahia, vers 1890, In: Mattoso, K. de

Queirós; Santos, Idelette F. dos; Rolland, Denis. Matériaux pour une histoire

culturelle du Brésil. Objets, voix et mémoires, Paris, l’Harmattan: 21-35.

MAUSS, Marcel. 2003. Ensaio sobre as variações sazonais das sociedades

Esquimó, In: Sociologia e Antropologia, São Paulo, Cosac Naify.

MEDEIROS filho, Olávo de. 1981. Velhas famílias do Seridó, Brasília,

Centro Gráfico do Senado Federal.

MEDEIROS filho, Olávo de. 2002. Cronologia Seridoense, Mossoró,

Fundação Guimarães Duque, coleção Mossoroense, vol. 1268.

MEDEIROS Maria da Paz Dantas. 2004. Desvendo o viver nas fazendas

dos Azevedo, Carnaúba dos Dantas - RN (1870-1940), Mneme, revista de

humanidades, 9-3 [http://www.seol.com.br/mneme/ed9/060.pdf], capturado

em 10/03/2007.

MEDEIROS, Bianor. 1985. Paróquia de Acari, Natal, Fundação José

Augusto, Prefeitura Municipal de Acari.

MEDEIROS, Manuel Batista de. 2003. Capitania holandesa da Paraíba:

o condado dos países de açúcar numa visão do século XVII, João Pessoa,

Unipê.

MEDEIROS, Tarcisio. 1973. Aspectos geopolíticos e antropológicos da

história do RN, Natal Imprensa Univ.

MEDEIROS, Tarcisio. 1978. O negro na etnia do Rio Grande do Norte,

Revista do Instituto Histórico Geográfico do Rio Grande do Norte, 70.

MELLO, José Antônio G. de. 1978. Tempo dos flamengos. Influência da

ocupação holandesa na vida e na cultura do Norte do Brasil, Recife,

Pernambucana, Governo do Estado de Pernambuco, 2e. ed.

Page 222: Relatorio Boa VistacomAnexos

R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7

222

MELO, D. K. 2005. Desertificação resultante dos desmatamentos e dos

processos de trabalho inerentes à indústria da cerâmica vermelha no

município de Parelhas – RN, Natal, Programa de Pós-graduação em geografia

(dissertação de mestrado).

MELO, Veríssimo de. 1973. Ensaios de antropologia brasileira, Natal,

Imprensa Univ.

MENEZES, Marilda Aparecida de (ORG.). 1992. Histórias de migrantes,

São Paulo, ed. Loyola, CEM.

MONTEIRO, Denise. 2002. Introdução à história do Rio Grande do

Norte, 2º ed., Natal, EDUFRN.

OLIVEIRA, Roberto Cardoso de. 1988. Sobre o Pensamento

antropológico, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro.

OLIVEIRA, Roberto Cardoso de. 1995. O lugar (e em lugar) do método,

Série antropológica, Brasília, http://www.unb.br/ics/dan/Serie190empdf.pdf.

PAN Brasil. 2004. Programa de acción nacional de combate a la

desertificación e mitigación de los efectos de la sequia, Brasília, Ministério del

Médio Ambiente, Secretaria de recursos hídricos. <http//desertificação.cnrh-

srh.gov.br>

PARELHAS. 1997. 150 anos de história, Parelhas, mimeogr.

PINTO, Otávio. 1934. Uma aldeia de negros no Seridó, A República, 1.

POLLAK, Michael. 1989. Memória, esquecimento, silêncio, Estudos

Históricos 3, Memória, Rio de Janeiro, 2, 3: 3-15 (

http://www.cpdoc.fgv.br/revista/arq/43.pdf)

PORPINO, Gustavo. 2004. Carnaúba dos Dantas, terra do Monte do Galo

e de grandes músicos, revista de cultura Prea, 9,

www.fja.rn.gov.br/arquivos/Prea9.pdf. (capturado em 12/04/07)

PORTO ALEGRE, Maria Sylvia; MARIZ, Marlene da Silva; DANTAS,

Beatriz Goís (org.). 1994. Documentos para a história indígena do Nordeste:

Ceará, Rio Grande e Sergipe, S. Paulo, Núcleo de história indígena e do

Page 223: Relatorio Boa VistacomAnexos

R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7

223

indigenismo, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de S. Paulo, Secretaria

da Cultura e do Desporto do Estado do Ceará.

PUNTONI, Pedro. 1999. A mísera sorte. A escravidão africana no Brasil

holandês e as guerras do tráfico Atlântico sul – 1621-1648, São Paulo, Edusp,

Hucitec.

PUNTONI, Pedro. 2002. A Guerra dos Bárbaros. Povos indígenas e a

colonização do sertão Nordeste do Brasil – 1650-1720, S. Paulo, Edusp,

Hucitec.

QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. 1968. Os cangaceiros, les bandits

d´honneur, Paris, Juillard.

QUEIROZ, Pedro Fernandes de. 2002. O sertão: negros e brancos. Uma

amostra do preconceito racial no município de Currais Novos – RN, Campina

Grande, Programa de Pós-graduação em sociologia rural, Universidade Federal

da Paraíba.

RATTS, Alecsandro J. P. 2000. (Re)conhecer quilombos no território

brasileiro. Estudos e mobilizações, in: Fonseca, Maria Nazareth Soares (org.).

Brasil afro-brasileiro, Belo Horizonte, Autêntica.

RESENHA DE PARELHAS. 2005. Memorial, Parelhas, Casa de Cultura,

edição IV, julho.

REVISTA DE PARELHAS. 1977. Os Negros do Rosário, Parelhas, Revista

de Parelhas, 1: 40

SAHLINS, Marshall, 1987. Ilhas de História, Rio de Janeiro, Zahar.

SALES, Dom Heitor de Araújo. 1990. Diocese de Caicó, meio século de fé,

Natal, Graf. União.

SANTOS, Paulo Pereira dos. 1994. Evolução econômica do Rio Grande do

Norte (do séc. XVI ao séc. XIX), Natal, Clima.

SCHWARTZ, Stuart B. 2001. Escravos, roceiros e rebeldes, Bauru,

Edusc.

Page 224: Relatorio Boa VistacomAnexos

R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7

224

SEMECR. 1994. Parelhas, um pouco da sua história e do seu espaço

geográfico, Parelhas, Secretaria municipal de Educação, cultura e recreação,

mimeogr.

SEVERI, Carlo. 1993. La mémoire rituelle. Expérience, tradition,

historicité, in : Becquelin, Aurore ; Molinié, Antoinette : Mémoire de la

tradition, Paris, Société d’ethnologie : 347-364.

SIGAUD, Lygia. 1993. Des plantations aux villes: ambiguités d’un choix,

Études rurales, 131/132, 19-37.

SILVA, Josefa Tereza de Araújo. 2006. A evolução da educação negra:

desafios e conquistas dos moradores da comunidade Boa Vista dos Negros –

Parelhas, RN, Monografia de final de curso de pedagogia da Universidade

Federal do Rio Grande do Norte, Ceres, Caicó.

SILVA, Z. B. 1989. As transformações sócio-espaciais em Parelhas – RN

e suas relações com a indústria extrativa mineral, Natal, Universidade Federal

do Rio Grande do Norte.

SOUTO-MAIOR, Armando. 1978. Quebra-quilos. Lutas sociais no

outono do Império, São Paulo, cia. ed. Nacional, Mec.

SOUZA, Bartolomeu I. de; SILANS, Alain M. B. P. de; SANTOS, José B.

dos. Contribution to study of desertification in the Taperoá Basin. Rev. bras.

eng. agríc. ambient., Campina Grande, v. 8 , n. 2-3, 2004. Disponível em:

<http://www.scielo.br/(capturaado em 23/05/07)

SOUZA, Oswaldo Câmara de. 1981. Acervo do patrimônio histórico e

artístico do estado do Rio Grande do Norte, Natal, ed. Fundação José Augusto.

TAKEYA, Denise M. 1985. Um outro Nordeste: o algodão na economia

do Rio Grande do Norte, Fortaleza, Banco do Nordeste do Brasil.

TAVARES, João Lyra. 1982. Apontamentos para a história territorial da

Parayba, Brasília, Gráfica do Senado Federal.

TERRA, Ruth Brito Lemos. 1983. Memória de Lutas. Literatura de

folhetos no Nordeste, 1893-1930, São Paulo, Global ed.

Page 225: Relatorio Boa VistacomAnexos

R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7

225

TURNER, Victor. 1990. Le phénomène rituel. Structure et contre-

structure, Paris, PUF.

WACHTEL, Nathan. 1990. Le retour des ancêtres: les indiens Urus de

Bolivie, XXe-XVIe siècle. Essai d’histoire regressive, Paris, Gallimard.

WEBER. Max. 1971. Economie et société, Paris, Plon.

WECK, João Tadeu. 2000. A produção do vídeo: questões étnico-

culturais de uma comunidade rural negra, Programa de pós-graduação em

educação, Natal, UFRN.

WOORTMANN, Ellen Fensterseifer. 1995. Herdeiros, parentes e

compadres : colonos do sul e sitiantes do Nordeste, São Paulo, Hucitec,

Brasilia, Edunb.

WOORTMANN, Ellen Fensterseifer. 1998. Família, mulher e meio

ambiente no seringal, In : Niemeyer, Ana Maria ; Godoi, Emília P. de. Além dos

territórios. Para um diálogo entre a etnologia indígena, os estudos rurais e os

estudos urbanos, Campinas, Mercado de letras: 167-200.

ZONABEND, Nicole. 1986. La mémoire longue, temps et histoires au

village, Paris, PUF.

Page 226: Relatorio Boa VistacomAnexos

R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7

226

ZONABEND, Nicole. 2000. Les maîtres de parenté. Une femme de

mémoire en Basse-Normandie, L’Homme , 154-155:505-524.

Page 227: Relatorio Boa VistacomAnexos

R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7

227

ANEXOS

Documento 1 - Carta de Sesmaria de João Soares de Vasconcelos (1724).

Page 228: Relatorio Boa VistacomAnexos

R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7

228

Page 229: Relatorio Boa VistacomAnexos

R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7

229

Page 230: Relatorio Boa VistacomAnexos

R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7

230

Page 231: Relatorio Boa VistacomAnexos

R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7

231

Page 232: Relatorio Boa VistacomAnexos

R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7

232

Documento 2 - Inventário de Manoel Fernandes da Cruz (1859) – Caicó, Labordoc – Ceres, UFRN.

1859

ACARY

Defunto Manoel Fernandes da Cruz, casado que foi com Victorina Maria da Conceição. Deste

termo.

Escrivão e Herdeiros.

Auto

Ano do nascimento de nosso Senhor Jesus Cristo de mil oitocentos e cinqüenta e nove, aos vinte e dois dias

do mês de julho do dito ano, nesta Vila do Acary da Comarca do Seridó, e Província do Rio Grande do

Norte, em casa de residência do juiz municipal e de órfãos segundo suplente em exercício do termo da dita

vila o tenente coronel João José Dantas, onde eu escrivão de seu cargo vim; por ele juiz me foi dito que lhe

constava haver falecido Manoel Fernandes da Cruz, casado que foi com Victorina Maria da Conceição,

ficando herdeiros menores de vinte e um anos; e porque era do seu dever proceder a inventário e partilhas

de todos os seus me ordenara que sem perda de tempo, notificasse a viúva do dito finado Manoel

Fernandes da Cruz par no dia vinte e sete [parte ilegível]

Certidão

Dou fé notificar Victorina Maria da Conceição, viúva de Manoel Fernandes da Cruz, deste termo,

para no dia vinte e sete do mês corrente com pena de prisão comparecer na presença do juiz de

órfãos desta vila para receber juramento e fazer [acessórias?] declarações para se proceder no

inventário dos bens de seu casal. Acary 23 de julho de 1859.

Manoel Jorge de Medeiros.

Termo de juramento e declaração da cabeça de casal.

Aos vinte e sete dias do mês de julho do ano de mil oitocentos e cinqüenta e nove anos. Nesta vila do Acary,

em casa de residência do juiz municipal e de órfãos segundo suplente em exercício desta vila, o tenente

coronel João José Dantas, onde eu escrivão do seu cargo vim, e sendo aí presente Victorina Maria da

Conceição, viúva que ficou de Manoel Fernandes da Cruz, por ele juiz foi lhe deferido juramento nos santos

evangelhos [ilegível]... o dobro da sua valia, e incorrer no crime de perjúria. E sendo por ela aceito o dito

juramento declarou que o sobredito seu marido Manoel Fernandes da Cruz tinha falecido no dia quinze de

outubro de mil oito centos e quarenta e nove, sem testamento algum, deixando dez filhos cujos nomes e

idades declararia no título de herdeiros, e que prometia dar a carregação todos os bens, debaixo das penas

Page 233: Relatorio Boa VistacomAnexos

R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7

233

que lhe tinham sido anunciadas de que fiz este termo, que assinou somente ele juiz por ela ser mulher e

não saber escrever. Eu Manoel Jorge de Medeiros escrivão o escrevi.

Dantas.

TÍTULOS DE HERDEIROS

CABEÇA DE CASAL

Victorina Maria da Conceição

FILHOS

• Maria Victorina da Conceição – viúva

• Thomásia Manoella da Conceição - viúva

• Joaquim Manoel Fernandes da Cruz – Casado

• Joaquina Maria da Conceição – 29 anos

• Anna Victorina da Conceição – 27 anos

• Antonio Fernandes da Cruz – 25 anos

• Laurentino Silvestre dos Santos – 26 anos

• Catharina Maria da Conceição – 23 anos

• Victória Maria da Conceição – 19 anos

• Lorença Maria da Conceição – 13 anos

CERTIDÃO

Dou fé notificar a Antonio Manoel Dantas para em vinte e quatro horas vir a juízo com pena de prisão em

receber juramento de curador dos órfãos.

Acary 27 de julho de 1859.

Manoel Jorge de Medeiros.

TERMO DE JURAMENTO DO CURADOR

E logo no mesmo dia mês e ano e lugar, sendo aí presente Antonio Manoel Dantas, se lhe deferio o

juramento dos santos evangelhos, debaixo do qual se lhe encarregou que em tempo competente se louvasse

por parte dos órfãos, que requeresse em favor deles tudo quanto julgasse justo e proveitoso, e que desse ao

curador geral as informações que ele pedisse, assim o prometeu fazer debaixo de responsabilidade, de que

fiz este termo que ele assinou com o sobredito juiz. Eu Manoel Jorge de Medeiros escrivão o escrevi.

Page 234: Relatorio Boa VistacomAnexos

R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7

234

Dantas

Atonio Manoel Dantas.

CERTIDÃO

Dou fé notificar a viúva cabeça de casal, os herdeiros, o curador dos órfãos, e o promotor público na

qualidade de curador geral para hoje às duas horas da tarde se louvarem com a pena de revelia, e para

todos os mais termos deste inventário até a sentença final. Acary 27 de julho de 1859.

Manoel Jorge de Medeiros

TERMO DE LOUVAÇÃO

E logo no mesmo dia mês e ano e lugar, sendo presentes a viúva cabeça de casal, herdeiros maiores e

curadores se louvaram [...?] em Manoel Victoriano da Silva Santos, e em João Paulo Dantas para avaliarem

os bens deste inventário, de que fiz este termo eu Manoel Jorge de Medeiros digo termo, em que o juiz

assinou com os curadores, a rogo da viúva cabeça de casal, e co-herdeiros por não saberem escrever

assinou Joaquim Cesário Brasil. Eu Manoel Jorge de Medeiros

Escrivão o escrevi.

Dantas

Antonio Manoel Dantas

Targino Gomes pereira

A rogo da inventariante Victorina Maria da Conceição, e dos herdeiros Maria Victorina da Conceição –

viúva, Thomásia Manoella da Conceição – viúva, Joaquim Manoel Fernandes da Cruz – Casado, Joaquina

Maria da Conceição – 29 anos, Anna Victorina da Conceição – 27 anos, Antonio Fernandes da Cruz – 25

anos, Laurentino Silvestre dos Santos – 26 anos, Catharina Maria da Conceição – 23 anos, Victória Maria

da Conceição – 19 anos, Lorença Maria da Conceição – 13 anos.

Joaquim Cezario Brasil

CERTIDÃO

Dou fé ter notificado aos louvados retro nomeados para avaliarem os bens que a cabeça de casal der a

carregação, e para antes disso receber juramento.

Acary. 27 de julho de 1859

Manoel Jorge de Medeiros

Page 235: Relatorio Boa VistacomAnexos

R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7

235

TERMO DE JURAMENTO DOS LOUVADOS

E logo no mesmo dia mês ano e lugar, sendo presentes os louvados nomeados para avaliação dos bens

deste inventário por ele juiz, lhes foi deferido o juramento nos santos evangelhos, debaixo do qual lhes

encarregou que bem a na verdade, segundo entendessem em suas consciências, avaliassem os bens, que

lhes fossem apresentados, pertencentes a este inventário de Manoel Fernandes da Cruz. E sendo por eles

recebido o dito juramento assim o prometeram fazer debaixo de responsabilidade, de que fiz este termo

que todos eles assinaram como sobredito juiz. Eu Manoel Jorge de Medeiros escrivão o escrevi.

Dantas

João Paulo Dantas

Manoel Victoriano da Silva Santos

ASSENTADA

E logo no mesmo dia mês e ano e lugar, onde eu escrivão vim com os louvados, se procedeu a carregação e

avaliação dos bens pela maneira seguinte.

MÓVEIS

Um par de argolas de ouro com o peso de uma oitava por três mil réis.___3$000

Outro par de argola s de ouro com o peso de uma oitava por três mil réis._3$000

Outro par de argola s de ouro com o peso de uma oitava por três mil réis._3$000

Duas caixas velhas a mil réis cada uma que importam dois mil réis______2$000

[Transporte] onze mil réis.______________________________________11$000

Uma mesa velha por mil réis.____________________________________1$000

Um veio de roda e um varão por quatro mil réis._____________________4$000

Uma caixa encourada com broxas por três mil réis.___________________3$000

SEMOVENTES

Uma vaca gorda por trinta mil réis._______________________________30$000

Uma vaca solteira magra por vinte e cinco mil réis.__________________25$000

Três novilhotas a vinte mil réis cada uma, que importam sessenta mil réis._60$000

Duas garrotas a quinze mil réis cada uma, que importam trinta mil réis.____30$000

Page 236: Relatorio Boa VistacomAnexos

R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7

236

145$000

BENS DE RAIZ

Uma parte de terras no sítio Boa Vista do valor quatro mil réis por oito mil

réis.___________________________________________________8$000

Uma parte de terras no sítio Olho D’agua do Boi comprada por duzentos mil réis, sendo cento e

dez mil réis de seu casal, sessenta mil réis de seu finado genro Antonio, e trinta mil réis do finado

Antonio tio dela inventariante, cuja parte foi avaliada nos mesmos cento e dez mil réis

._____________________________________________________110$000

Uma casa no valor no mesmo sítio muito ruim no valor de dez mil

réis.__________________________________________________10$000

128$000

DÍVIDAS ATIVAS

Disse que devia a este casal sua filha Maria vinte e dois mil réis.___22$000

Disse que devia seu primo Roberto quatro mil réis._______________4$000

DÍVIDAS PASSIVAS, FUNERAL E BENS DECLARA–NADA

E logo pela viúva inventariante Victorina Maria da Conceição foi declarado na presença dele juiz,

e de mim escrivão, que entedia em sua consciência, havia dado a carregação todos os bens

pertencentes a este inventário, protestava dar todos os mais que lhe lembrassem até ao auto de da

partilha, fazendo esta sua declaração e protesto debaixo do juramento, que havia recebido, de que

fiz este termo que assinou somente ele juiz, por ele ser mulher, e não saber escrever eu Manoel

Jorge de Medeiros escrivão o escrevi.

Dantas.

TERMO DE DECLARAÇÃO DOS LOUVADOS

E logo pelos louvados abaixo assinados foi dito na presença do mesmo juiz, e de mim escrivão,

que eles sem ódio ou afeição e segundo entendiam em suas consciências haviam avaliado todos os

bens pertencentes a este inventário, e que faziam esta declaração debaixo do juramento que

haviam recebido de que fiz este termo , que eles assinaram com o sobredito juiz. Eu Manoel Jorge

de Medeiros escrivão o escrevi.

Dantas

Page 237: Relatorio Boa VistacomAnexos

R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7

237

João Paulo Dantas

Manoel Victoriano dos Santos

AUTO DE [ALIMPAÇÃO?] DA PARTILHA

Aos vinte e oito dias do mês de julho do ano do nascimento do nosso senhor Jesus Cristo de mil

oito centos e cinqüenta e nove, nesta vila do Acary, e casa de residência do juiz municipal e de

órfãos, segundo suplente em exercícios do termo da dita vila, o tenente coronel João José Dantas,

onde eu escrivão do seu cargo vim, e sendo aí presentes a viúva cabeça de casal, os co-herdeiros ,

e curadores, pelo dito juiz me foi ordenado que eu lesse a carregação e avaliação dos bens deste

inventário, bem como a carregação das dívidas ativas, e passivas, que a cabeça de casal tinha

declarado; e satisfazendo eu a esta determinação, disse ele a sobredita viúva, co-herdeiros e

curadores que, tendo alguma coisa a ponderar ou requerer o fizessem neste auto, para lhe deferir

como fosse de justiça no despacho da deliberação da partilha. A viúva, co-herdeiros e curadores

disseram que nada tinham a proceder, nem a requerer. O sobredito juiz ordenou que o inventário

se lhe fosse concluso: de tudo fiz este auto que todos assinaram. Eu Manoel Jorge de Medeiros

escrivão o escrevi, e assinei, assinando a rogo da viúva cabeça de casal, e dos co-herdeiros por não

saberem escrever. Joaquim Cesário Brasil.

Jorge de Medeiros

Dantas

Antonio Manoel Dantas

Targino Gomes Pereira

A rogo da inventariante Victorina Maria da Conceição, e dos herdeiros Maria Victorina da Conceição –

viúva, Thomásia Manoella da Conceição – viúva, Joaquim Manoel Fernandes da Cruz – Casado, Joaquina

Maria da Conceição – 29 anos, Anna Victorina da Conceição – 27 anos, Antonio Fernandes da Cruz – 25

anos, Laurentino Silvestre dos Santos – 26 anos, Catharina Maria da Conceição – 23 anos, Victória Maria

da Conceição – 19 anos, Lorença Maria da Conceição – 13 anos. Joaquim Cesário Brasil

CONCLUSÃO

E logo no mesmo dia mês e ano faço estes autos conclusos. Eu Manoel Jorge de Medeiros escrivão o

escrevi.

DESPACHO

Page 238: Relatorio Boa VistacomAnexos

R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7

238

O escrivã faça os autos com vistas as partes e curadores, e os notifique para se louvarem [os partidores?]

vila de Acary 28 de julho de 1859

Dantas.

TERMO DE PUBLICAÇÃO E DATA

E logo no mesmo dia mês e ano pelo juiz me foram dados estes autos com seu despacho supra de que fiz

este termo. Eu Manoel Jorge de Medeiros escrivão o escrevi.

TERMO DE VISTA

E logo no mesmo dia mês e ano faço estes autos com vistas as partes de que fiz este termo. Eu Manoel

Jorge de Medeiros escrivão o escrevi.

Vistas partes e curadores. 28 de julho de 1859.

DATA

E logo no mesmo dia mês e ano pelas partes e curadores m foram entregues estes autos sem resposta

alguma, de que fiz este termo. Eu Manoel Jorge de Medeiros escrivão o escrevi.

CERTIDÃO

Dou fé ter notificado a viúva cabeça de casal, co-herdeiros, e curadores, para se louvarem em partidores.

Acary. 18 de julho de 1859.

Manoel Jorge de Medeiros

TERMO DE LOUVAÇÃO

E logo no mesmo dia mês e ano sendo presentes a viúva cabeça de casal, co-herdeiros e curadores, se

louvaram unanimemente para partidores eu Joaquim Cesário Brasil e Joaquim Gomes da Silva Dantas, de

que fiz este termo, em que o juiz com os curadores assinou e a rogo da viúva cabeça de casal e co-herdeiros

por não saberem escrever, assinou Manoel Victoriano da Silva Santos. Eu Manoel Jorge de Medeiros

escrivão o escrevi.

Dantas

Antonio Manoel Dantas

Targino Gomes Pereira

Page 239: Relatorio Boa VistacomAnexos

R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7

239

A rogo de Victorina Maria da Conceição, Maria Victorina da Conceição, Thomasia Manoella da Conceição,

Joaquim Manoel Fernandes, Anna Victorina da Conceição, Laurentino Silvestre dos Santos, Antonio

Fernandes da Cruz, Victoria Maria da Conceição e Lourença Maria da Conceição.

Manoel Victoriano dos Santos.

CERTIDÃO

Dou fé ter notificado os louvados nomeados Joaquim Cesário Brasil, e Joaquim Gomes da Silva Dantas

para comparecerem em juízo prestarem juramento, e partirem os bens deste invetário. Acary 29 de julho

de 1859.

Manoel Jorge de Medeiros

TERMO DE JURAMENTO DOS PARTIDORES

E logo no mesmo dia Mês e ano sendo presentes os avaliadores digo presentes os partidores Joaquim

Cesário Brasil, e Joaquim Gomes da Silva Dantas, lhes deferio o juiz o juramento aos santos evangelhos,

encarregando-lhes de bem e fielmente sem dolo afeição ou malícia partirem os bens deste inventário; e

sendo por eles recebido o dito juramento assim o prometeram fazer de que fiz este termo. Em que o juiz

com os partidores assinou. Eu Manoel Jorge de Medeiros escrivão o escrevi.

Dantas

Joaquim Gomes da Silva Dantas

Joaquim Cesário Brasil

CONCLUSÃO

E logo no mesmo dia mês e ano faço estes autos conclusos. Eu Manoel Jorge de Medeiros escrivão o

escrevi.

CONCLUSOS

Somados os bens do monte se dividam em duas partes iguais, uma delas se adjudique a viúva, e a outra, se

divida em tantas partes iguais quantos os filhos do finado. Vila do Acary 29 de julho de 1859

Dantas

DATA

Page 240: Relatorio Boa VistacomAnexos

R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7

240

Aos vinte e nove dias do mês de julho do ano de mil oito centos e cinqüenta e nove, nesta vila do Acary e

casa de residência do juiz municipal e de órfãos segundo suplente em exercício do termo da dita vila o

tenente coronel João José Dantas, onde eu escrivão do seu cargo fui vindo. Sendo aí pelo dito juiz me

foram dados estes autos com seu despacho supra, e retro de que fiz este termo eu Manoel Jorge de

Medeiros escrivão o escrevi.

CERTIDÃO

Dou fé intimar o despacho retro a viúva, co-herdeiros, e curadores. Acary 29 de julho de 1859 Manoel

Jorge de Medeiros

PARTILHA

E logo no mesmo dia mês e ano e lugar,m sendo presentes os partidores Joaquim Gomes da Silva Dantas, e

Joaquim Cesário Brasil, aí por eles com o dito juiz se procedeu a partilha pela maneira seguinte.

Acharam eles juiz e partidores importarem os bens móveis em dezenove mil réis.

19$000

Acharam importarem os semoventes descritos neste inventário em cento e quarenta e cinco mil réis

145$000

Acharam importarem os bens de raiz também descritos na quantia de cento e vinte e oito mil réis

128$000

Acharam importarem as dívidas ativas em vinte e seis mil réis

26$000

318$000

acharam estas quatro verbas retro importaram na de trezentos e dezoito mil réis

318$000

Acharam que dividida esta quantia em duas partes iguais pertencia à meação da viúva cabeça de casal a

quantia de cento e cinqüenta e nove mil réis

159$000

Acharam que dividida esta quantia em dez partes iguais por serem dez os filhos vinha a pertencer a cada

um deles a de quinze mil e novecentos réis

Page 241: Relatorio Boa VistacomAnexos

R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7

241

15$000

E por esta maneira houveram eles juiz e partidores esta partilha, para na conformidade dela satisfazerem

os respectivos pagamentos, observando-se a maior igualdade possível: de que fiz este termo que todos

assinaram . Eu Manoel Jorge de Medeiros escrivão o escrevi.

Dantas

Joaquim Gomes da Silva Dantas

Joaquim Cesário Brasil

Pagamento feito a sorte da meação da viúva Victorina Maria da Conceição no inventário de seu defunto

marido Manoel Fernandes da Cruz, cuja meação importou na quantia de cento e cinqüenta e nove mil réis.

Haverá uma vaca gorda avaliada na quantia de trinta mil réis

30$000

Haverá uma vaca solteira magra avaliada em vinte e cinco mil réis

25$000

Haverá uma caixa avaliada em três mil réis

3$000

Haverá uma mesa velha avaliada em mil réis

1$000

Haverá a dívida da de Roberto de quatro mil réis

4$000

Haverá a parte de terras do sítio Boa Vista avaliada em oito mil réis

8$000

Haverá uma novilhota avaliada em vinte mil réis

20$000

Haverá na dívida da herdeira Maria da quantia de vinte e dois mil réis, a quantia de vinte mil réis

20$000

Page 242: Relatorio Boa VistacomAnexos

R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7

242

Haverá na parte de terras do sítio Olho d’agua do Boi avaliada em cento e dez mil réis a quantia de trinta e

oito mil réis

38$000

Haverá a casinha do mesmo sítio avaliada em dez mil réis

10$000

E por esta maneira houveram eles juiz e partidores por satisfeita a sorte da meação da sobredita viúva, de

que fiz este termo, que todos assinaram.

Dantas

Joaquim Gomes da Silva Dantas

Joaquim Cesário Brasil

Pagamento feito a sorte da legítima da herdeira Maria no inventário de seu pai Manoel Fernandes, cuja

legítima importou cna quantia de quinze mil e novecentos réis.

Haverá no que deve ao monte a quantia de dois mil réis

2$000

Haverá uma caixa avaliada em três mil réis

3$000

Haverá uma caixa avaliada em mil rés

1$000

Haverá na parte de terras do sítio Olho D’Água do Boi avaliada em cento e dez mil réis, a quantia de doze

mil e novecentos réis

12$900

E por esta maneira Houveram, eles juiz e partidores por satisfeita a legítima da he co-herdeira Maria, de

que fiz este termo que todos assinaram. Eu Manoel Jorge de Medeiros escrivão o escrevi.

Dantas

Joaquim Gomes da Silva Dantas

Joaquim Cesário Brasil

Page 243: Relatorio Boa VistacomAnexos

R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7

243

Pagamento feito a sorte da legítima da co-herdeira Thomasia, do que lhe pertenceu por morte de seu pai

Manoel Fernandes, que [?] a quantia de quinze mil e novecentos réis.

15$900

Haverá um par de argolas de ouro avaliado em e três mil réis

3$000

Haverá uma mala velha avaliada em mil réis

1$000

Haverá em uma garrota avaliada em quinze mil réis a quantia de sete mil e quinhentos réis

7$500

Haverá na parte de terras do sítio Olho D’agua do Boi avaliada em cento e dez mil réis, a quantia de quatro

mil e quatrocentos réis

4$400

12$900

E por esta maneira Houveram, eles juiz e partidores por satisfeita a sorte da legítima da he co-herdeira

Thomasia, de que fiz este termo que todos assinaram. Eu Manoel Jorge de Medeiros escrivão o escrevi.

Dantas

Joaquim Gomes da Silva Dantas

Joaquim Cesário Brasil

Pagamento feito a sorte da legítima do co-herdeiro Joaquim no inventário de seu pai Manoel Fernandes, e

que importou na quantia de quinze mil e novecentos réis.

15$900

Haverá um veio de roda e um varão avaliados em quatro mil réis

4$000

7$500

Haverá na parte de terras do sítio Olho D’agua do Boi avaliada em cento e dez mil réis, a quantia de onze

mil e novecentos réis

11$900

Page 244: Relatorio Boa VistacomAnexos

R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7

244

E por esta maneira Houveram, eles juiz e partidores por satisfeita a sorte da legítima do co-herdeiro

Joaquim, de que fiz este termo que todos assinaram. Eu Manoel Jorge de Medeiros escrivão o escrevi.

Dantas

Joaquim Gomes da Silva Dantas

Joaquim Cesário Brasil

Pagamento feito a sorte da legítima da co-herdeira Joaquina no inventário de seu pai Manoel Fernandes, e

que importou na quantia de quinze mil e novecentos réis.

15$900

Haverá um par de argolas avaliado em três mil réis

3$000

Haverá em uma garrota avaliada em quinze mil réis a quantia de sete mil e quinhentos réis

7$500

Haverá na parte de terras do sítio Olho D’agua do Boi avaliada em cento e dez mil réis, a quantia de cinco

mil e quatrocentos réis

5$400

E por esta maneira Houveram, eles juiz e partidores por satisfeita a sorte da legítima da co-herdeira

Joaquina, de que fiz este termo que todos assinaram. Eu Manoel Jorge de Medeiros escrivão o escrevi.

Dantas

Joaquim Gomes da Silva Dantas

Joaquim Cesário Brasil

Pagamento feito a sorte da legítima da co-herdeira Anna no inventário de seu pai Manoel Fernandes, e que

importou na quantia de quinze mil e novecentos réis.

15$900

Haverá um par de argolas de ouro avaliado em três mil réis

3$000

Haverá em uma garrota avaliada em quinze mil réis a quantia de sete mil e quinhentos réis

7$500

Page 245: Relatorio Boa VistacomAnexos

R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7

245

Haverá na parte de terras do sítio Olho D’agua do Boi avaliada em cento e dez mil réis, a quantia de cinco

mil e quatrocentos réis

5$400

E por esta maneira Houveram, eles juiz e partidores por satisfeita a sorte da legítima da co-herdeira Anna,

de que fiz este termo que todos assinaram. Eu Manoel Jorge de Medeiros escrivão o escrevi.

Dantas

Joaquim Gomes da Silva Dantas

Joaquim Cesário Brasil

Pagamento feito a sorte da legítima do co-herdeiro Laurentino no inventário de seu pai Manoel Fernandes,

e que importou na quantia de quinze mil e novecentos réis.

15$900

Haverá em uma novilhota avaliada em vinte mil réis, a quantia de dez mil réis

10$000

Haverá na parte de terras do sítio Olho D’agua do Boi avaliada em cento e dez mil réis, a quantia de cinco

mil e novecentos réis

5$900

E por esta maneira Houveram, eles juiz e partidores por satisfeita a sorte da legítima do co-herdeiro

Laurentino, de que fiz este termo que todos assinaram. Eu Manoel Jorge de Medeiros escrivão o escrevi.

Dantas

Joaquim Gomes da Silva Dantas

Joaquim Cesário Brasil

Pagamento feito a sorte da legítima do co-herdeiro Antonio no inventário de seu pai Manoel Fernandes, e

que importou na quantia de quinze mil e novecentos réis.

15$900

Haverá em uma novilhota avaliada em vinte mil réis, a quantia de dez mil réis

10$000

Page 246: Relatorio Boa VistacomAnexos

R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7

246

Haverá na parte de terras do sítio Olho D’agua do Boi avaliada em cento e dez mil réis, a quantia de cinco

mil e novecentos réis

5$900

E por esta maneira Houveram, eles juiz e partidores por satisfeita a sorte da legítima do co-herdeiro

Antonio, de que fiz este termo que todos assinaram. Eu Manoel Jorge de Medeiros escrivão o escrevi.

Dantas

Joaquim Gomes da Silva Dantas

Joaquim Cesário Brasil

Pagamento feito a sorte da legítima da co-herdeira Catharina no inventário de seu pai Manoel Fernandes, e

que importou na quantia de quinze mil e novecentos réis.

15$900

Haverá em uma garrota avaliada em quinze mil réis, a quantia de sete mil réis

7$500

Haverá na parte de terras do sítio Olho D’agua do Boi avaliada em cento e dez mil réis, a quantia de oito

mil e quatrocentos réis

8$400

E por esta maneira Houveram, eles juiz e partidores por satisfeita a sorte da legítima da co-herdeira

Catharina, de que fiz este termo que todos assinaram. Eu Manoel Jorge de Medeiros escrivão o escrevi.

Dantas

Joaquim Gomes da Silva Dantas

Joaquim Cesário Brasil

Pagamento feito a sorte da legítima da co-herdeira Victória no inventário de seu pai Manoel Fernandes, e

que importou na quantia de quinze mil e novecentos réis.

15$900

Haverá em novilhota avaliada em vinte mil réis, quantia de dez mil réis

10$000

Page 247: Relatorio Boa VistacomAnexos

R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7

247

Haverá na parte de terras do sítio Olho D’agua do Boi avaliada em cento e dez mil réis, a quantia de cinco

mil e novecentos réis

5$900

E por esta maneira Houveram, eles juiz e partidores por satisfeita a sorte da legítima da co-herdeira

Victória, de que fiz este termo que todos assinaram. Eu Manoel Jorge de Medeiros escrivão o escrevi.

Dantas

Joaquim Gomes da Silva Dantas

Joaquim Cesário Brasil

Pagamento feito a sorte da legítima da co-herdeira Lourença no inventário de seu pai Manoel Fernandes, e

que importou na quantia de quinze mil e novecentos réis.

15$900

Haverá em novilhota avaliada em vinte mil réis, quantia de dez mil réis

10$000

Haverá na parte de terras do sítio Olho D’agua do Boi avaliada em cento e dez mil réis, a quantia de cinco

mil e novecentos réis

5$900

E por esta maneira Houveram, eles juiz e partidores por satisfeita a sorte da legítima da co-herdeira

Lourença, de que fiz este termo que todos assinaram. Eu Manoel Jorge de Medeiros escrivão o escrevi.

Dantas

Joaquim Gomes da Silva Dantas

Joaquim Cesário Brasil

CONCLUSÃO

E logo no mesmo dia mês e ano faço estes autos conclusos. Eu Manoel Jorge de Medeiros escrivão o

escrevi.

[Conclusos?]

Vistas as partes e curadores vila do Acary 30 de julho de 1859.

Dantas

Page 248: Relatorio Boa VistacomAnexos

R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7

248

DATA

E logo no mesmo dia mês e ano pelo juiz me foram dados estes autos com seu despacho supra, de que fiz

este termo. Eu Manoel Jorge de Medeiros escrivão o escrevi.

TERMO DE VISTA

E logo no mesmo dia mês e ano faço estes autos com vistas as partes e curadores de que fiz este termo. Eu

Manoel Jorge de Medeiros escrivão o escrevi.

Vistas as partes e curadores em 30 de julho de 1859

O curador [gal?] Targino Gomes Pereira.

Conformamo-nos com as partilhas. Vila do Acary 30 de julho de 1859.

A rogo de Victorina Maria da Conceição, Maria Victorina da Conceição, Thomasia Manoella da Conceição,

Joaquim Manoel Fernandes, Joaquina Maria da Conceição, Anna Victorina da Conceição, Laurentino

Silvestre dos Santos, Antonio Fernandes da Cruz, Catharina Maria da Conceição, Victoria Maria da

Conceição, Lourença Maria da Conceição.

Manoel Victoriano da Silva Santos Antonio Manoel Dantas.

Tem estes autos a selar [cruz e iniciais?] folha de papel escritas da taxa de sessenta réis cada uma, e dez

quinhões hereditários da taxa de cento e sessenta réis cada um. Vila do Acary 9 de setembro de 1859.

O escrivão Manoel Jorge de Medeiros.

Nº3 Ra $660

P.G. de selo mil e seis centos réis, vila do Acary 9 de setembro de 1859.

O escrivão procurador

Dantas

P.G. De selo mil e seis centos réis, de dez quinhões [seriditanis?] da taxa de cento e sessenta réis cada um

vila do Acary 9 de setembro de 1859.

O escrivão procurador

Dantas

CONCLUSÃO

Page 249: Relatorio Boa VistacomAnexos

R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7

249

E logo no mesmo dia mês e ano faço estes autos conclusos, de que fiz este termo. Eu Manoel Jorge de

Medeiros escrivão o escrevi.

CONCLUSÕES

Visto que estas partilhas estão conformes com o despacho da deliberação as [prilgo?] por sentenças para

que paguem assim todas as custas [?], vila do Acary 10 de setembro de 1859.

João José Dantas

DATA

Aos dez dias do mês de setembro do ano de mil oito centos e cinqüenta e nove, nesta vila do Acary. Em

meu escritório pelo juiz municipal e de ófãos em exercício me foram dados estes autos com sua sentença

supra, e me foi prdenado que notificasse a viúva inventariante para comparecer em juízo, e prestar

juramento de tutoria dos órfãos seus filhos de que fiz este termo. Eu Manoel Jorge de Medeiros escrivão o

escrevi.

CERTIDÃO

Dou fé ter intimado a sentença retro as partes , e curadores. Vila do Acary 17 de setembro de 1859.

O escrivão Manoel Jorge de Medeiros.

CERTIDÃO

Dou fé ter notificado a viúva inventariante para comparecer em juízo, e prestar juramento de tutoria dos

órfãos seus filhos. Vila do Acary 17 der setembro de 1859.

O escrivão Manoel Jorge de Medeiros.

TERMO DE JURAMENTO A TUTORIA

Aos dezessete dias do mês de setembro do ano do nascimento de nosso senhor Jesus Cristo de mil oito

centos e cinqüenta e nove, nesta vila do Acary, e casa de residência do juiz municipal e de órfãos segundo

suplente em exercício do termo da dita vila o tenente coronel João José Dantas onde eu escrivão do seu

cargo fui vindo. Sendo aí presente a Victorina Maria da Conceião mãe dos órfãos descritos neste inventário

lhe deferio o dito juiz o juramento dos santos evangelhos encarregando-lhe de bem e fielmente administrar

as possessões dos órfãos seus filhos, cuidar de sua educação e administrar seus bens; e sendo por ela aceito

o dito juramento assim o prometeu fazer, e disse que renunciava todas as leis e isenções que a seu favor

alegar possa, de que para constar mandou o juiz fazer este termo em que a rogo da inventariante por não

saber escrever assinou. Eu Manoel Jorge de Medeiros escrivão o escrevi.

Page 250: Relatorio Boa VistacomAnexos

R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7

250

Dantas

A rogo de Victorina Maria da Conceição

Manoel Victorino da Silva Santos.

CUSTAS

Para o juiz

Jur. Ao inv, e louv.___1$400

Dito ao cur. E part.___$600

Part.______________2$000

Conta______________3$000

Auto e Jur._________2$000

Termos___________2$200

Publicações_______1$200

Not. E int._________30$000

Part.___________2$000

Raza______________________________________________________________

39$000

Av. [?] grates _____4$000

Part._____________4$000

Curadores________6$000

Selos___________2$260

62$000

Dantas.

Page 251: Relatorio Boa VistacomAnexos

R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7

251

Documento 3 - “Documento da terra” – contrato de compra e venda de Teodozio Fernandes da Cruz (1889).

Page 252: Relatorio Boa VistacomAnexos

R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7

252

Documentos 4 - Documentos paroquiais (Jardim do Seridó - Rn).

Casamentos Aos 29 de Janeiro de mil oito centos e cinqüenta e nove, ao meio dia, na capela das Parelhas, filial desta matriz, tendo precedido as canônicas denunciações, sem impedimento, confissão e exame de doutrina cristã, em minha presença, e das testemunhas, Miguel Ângelo da Cruz, casado, e Antônio Eleotério da Cruz, solteiro, moradôres nesta freguesia, se uniram em matrimônio por palavras de presente, e receberam as bênçãos nupciais os meosparoquianos Joaquim Manoel Fernandes e Antônia Maria da Conceição, filhos legítimos: elle de Manoel Fernandes da Cruz, já falecido e de Victorina Maria da Conceição: Ella, de Joaquim Teixeira da Fonseca, e de Brizida Maria da Conceição; de que para constar fiz lá mesmo e assento que assignei com as testemunhas á do qual lavro este termo, que tão bem assigno. O Vigrº. Vizº. Francisco Justino Pereira de Brito.

Em outros documentos, aparecem José Fernandes de Oliveira/ filho de Eufrazina Maria da Conceição. [livro I de casamentos. PG3 Frente] e Joaquim Garcia do Amaral [livro I Pg. 6 verso].

Aos sete dias do mez de junho de mil oito centos e cinqüenta e oito, pelas cinco horas da tarde, no sítio Boa Vista desta freguesia, tendo precedido as canônicas denunciações, sem impedimento, confissão, comunhão, exame de doutrina cristã, em presença do reverendo Manoel Teixeira da Fonseca, de minha licença, das testemunhas Monoel Martins Francisco de Medeiros, Manoel [Unscelino?] de Araújo, solteiro moradores nesta freguesia, se uniram em matrimônio por palavras de prezente, e receberão as bênçãos nupciais os meos paroquianos Joaquim Rodrigues Xavier, Raimunda Nonata de Jesus, naturais e moradores nesta freguesia, filhos legitmos: elle, de Severino Chaves Pequeno, e de Anna Joaquina dos Prazeres; ella, de Callisto Teixeira da Fonseca, e de Anna Maria da Conceição, de que para constar fez o dito padre assento, que assignou com as testemunhas, à vista do qual lavrei este termo que assigno. O Vigrº. Vizº. Francisco Justino Pereira de Brito.

Page 253: Relatorio Boa VistacomAnexos

R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7

253

Documento 5 - Casamento de Joaquim Manoel Fernandes da Cruz (filho de Manoel Fernandes da Cruz e de Vitória Maria da Conceição) e de Antonia

Page 254: Relatorio Boa VistacomAnexos

R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7

254

Maria da Conceição (filha de Joaquim Teixeira da Fonseca e de Priscila Maria da Conceição) em Jardim do Seridó (1859).

Page 255: Relatorio Boa VistacomAnexos

R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7

255

Documento 6 - Assinatura dos irmãos do Rosário, Livro da irmandade do

Rosário, Jardim do Seridó - RN (1865?) onde constam os nomes de Manoel Fernandes da Cruz e de André Fernandes Vieira.

Page 256: Relatorio Boa VistacomAnexos

R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7

256

Documento 7 - Livro de Batizado de Escravos (1871-1887), igreja de Jardim do Seridó - RN.

Page 257: Relatorio Boa VistacomAnexos

R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7

256

Documento 8 - Registros documentais

DOCUMENTOS PAROQUIAIS

CASAMENTOS

Data tipo lugar interessado1 interessado2 testemunha1 testemunha2 Párroco Fonte 29/01/185

9 casament

o Parelhas Joaquim Manoel

Fernandes (pai: Manoel Fernandes

da Cruz, já falecido; mãe: Victorina Maria da

Conceição)

Antônia Maria da Conceição (pai:

Joaquim Teixeira da Fonseca; mãe:

Brizida Maria da Conceição)

Miguel Ângelo da Cruz (casado)

Antônio Eleotério da Cruz (solteiro)

Vigrº. Vizº. Francisco

Justino Pereira de

Brito.

livro de casamentos da paróquia de Nossa

Senhora da Conceição/ Jardim do Seridó-RN.

Livro I, verso da página 13. Ano do livro 1857-

1885 Dr. Ulisses Potiguar

1859 casamento

- José Fernandes de Oliveira/ filho de

Eufrazina Maria da Conceição.

- - - - livro I de casamentos. PG3 Frente.

1859

casamento

- Joaquim Garcia do Amaral.

- - - - livro I Pg. 6 verso.

07/06/1858

casamento

sítio Boa Vista

Joaquim Rodrigues Xavier

(pai: Severino Chaves Pequeno;

mãe: Anna Joaquina dos Prazeres)

Raimunda Nonata de Jesus (Pai: Callisto

Teixeira da Fonseca; mãe: Anna Maria da

Conceição)

Manoel Martins Francisco de

Medeiros (morador nesta

freguesia)

Manoel [Unscelino?] de Araújo, solteiro (morador nesta

freguesia)

Vigrº. Vizº. Francisco

Justino Pereira de

Brito.

Livro I de casamentos, Pg. 8 Verso

08/09/1859

casamento

Jardim Antônio Fernandes da Cruz (I)

(pai: Manoel Fernandes da Cruz, falecido;

Mãe: Victorina Maria da Conceição)

Alexandrina Florentina do Amor Divino (pai: Roberto Fernandes da Cruz,

falecido)

André Fernandes Vieira

Laurentino Silvestre dos

Santos

Vigrº. Vizº. Francisco

Justino Pereira de

Brito.

livro I Pg. 19. verso

17/01/1854

casamento

? Herculano (filho natural de Ma. José do Rosário)

Gonçala (Pai: José Bernardo Fernandes;

mãe: Catarina Ma., nasc. Em Sta. Luzia,

PB)

- - - Dr. Ulisses Potiguar Filha: Romana

Page 258: Relatorio Boa VistacomAnexos

R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7

257

BATIZADOS

Data

tipo lugar interessado Pai Mãe Outros Párroco Fonte

01/08/1869 Batizado Parelhas Inácia Joaquim Bianor de Santana

Antonia Ma. de Jesus

Dr. Ulisses Potiguar

20/01/1875 Batizado Parelhas Margarida Antônio Fs. Da Cruz Alexandrina do Amor Divino

Dr. Ulisses Potiguar

19/05/1885 Batizado

Parelhas Felicidade - - Escrava Dr. Ulisses Potiguar

ÓBITOS

Data

tipo lugar interessado Pai Mãe Esposo(a) outros Fonte

10/01/1856 ÒBITO Parelhas Gonçalo Vieira da Cruz (1759-1856)

- - Viúvo de Joaquina Ma.

Morreu de Cólera em Parelhas aos 97 anos

Dr. Ulisses Potiguar

10/01/1857 ÒBITO Parelhas Domingos Fernandes da Cruz (1784-1857)

- - Josefa Maria da Conceição (?-

1896)

Morreu de Cólera em Parelhas aos 73 anos

Dr. Ulisses Potiguar

15/01/1873 ÒBITO Parelhas Petronila Antônio Vieira da Cruz

Alexandrina Laurentina do Amor Divino

Moradora em Boa Vista

Dr. Ulisses Potiguar

? ÒBITO Parelhas Joaquina José Fs. Vieira Ma. Serafina do Sacramento

Parda (8 dias) Dr. Ulisses Potiguar

26/02/1886 ÒBITO Parelhas Maria Galdina da Conceição (1826-1886)

- - Inácio Fs. Vieira Morreu aos 60 anos Dr. Ulisses Potiguar

Page 259: Relatorio Boa VistacomAnexos

R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7

258

DOCUMENTOS DE CARTÓRIO

Page 260: Relatorio Boa VistacomAnexos

R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7

259

Data Nº Regis

tro

Localidade/ Cartório

Inventariante Esposo(a) Herdeiro/Filho1

Herdeiro/ Filho2

Herdeiro/ Filho3

Herdeiro/ Filho4

Herdeiro/ Filho5

Outros herdeiros/filhos

Fonte

Xxx - Parelhas Domingos Fernandes da

Cruz (1784-1857)

Josefa Maria da Conceição

(?-1896)

Antônio Fernandes da Cruz

Teodozio Manuel Gino

- - - Cartório único de Parelhas (Dr. Ulisses

Potiguar)

1859 - Acary Manoel Fernandes da

Cruz (17??-1849) *

Victorina Maria da

Conceição (+)*

Tomásia Manoella

da Conceição

(viúva)

Joaquim Manoel Fs. da Cruz* (casado)

Joaquina Maria da

Conceição (1830-?)

Ana Victorina Maria da

Conceição (1832 -?)

Laurentino Silvestre

dos Santos

(1833-?)

-Antônio Fernandes da

Cruz (C) (1834-?)

-Catarina Maria da Conceição

[1836-?] {Catarina Fael?} -Victoria Maria

da Conceição (1840-?)

-Lorença Maria da Conceição

(1846-?)

Dr. Ulisses Potiguar

LABORDOC (CERES-UFRN)

1906? 1394 Parelhas José Fs. Vieira Ma. Luiza Gonzaga

Emidio Colecino Fernande

s

Isabel Ma. da Conceição

Herança de Domingos

Fernandes da Cruz /Josefa

Maria da Conceição

Cartório único de Parelhas (Dr. Ulisses

Potiguar)

11/09/1916

1395 Parelhas Antônia Ma. da Conceição

(viúva)

Manoel Fs. Da Cruz

Ma. Rosalina

da Conceição

[Leocádia] Teodozio Fs.

Da Cruz

Massimino Fs. Da Cruz

Antônio Fs. Da Cruz

Vicente Fs. Da Cruz

Herança de André Fs. Vieira

[Herança de Domingos

Fernandes da Cruz /Josefa

Maria da Conceição]

Cartório único de Parelhas (Dr. Ulisses

Potiguar)

11/09/1916

1395 Parelhas “Terra no Riacho do

Gavião”

Inácio Fs. Da Cruz

Maria Galdina de Jesus (+)

Herança de Maria Galdina

de Jesus (esposa)

[Herança de Domingos

Fernandes da Cruz /Josefa

Maria da Conceição]

Cartório único de Parelhas (Dr. Ulisses

Potiguar)

Page 261: Relatorio Boa VistacomAnexos

R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7

260

Títulos de compra de terras, herança e registros de bens

Data Tipo Nº registro lugar Proprietário/Herdeiro(s) Vendedor / nome de quem herdou

Estado civil /Infos. Fonte

22/07/1896 Escritura de compra

1462 ? Teodozio Fs. Da Cruz Joaquim Bião dos Santos

- Dr. Ulisses Potiguar

? Herança 668 ? Herança da mulher Antônia Ma. do

Sacramento [Herança de Domingos

Fernandes da Cruz /Josefa Maria da

Conceição (?-1896)]

? Escritura de compra

131 ? André Fs. Vieira “Laurentino de tal” Poente: Teodozio (genro)

José C. Dantas José P. Santos

Dr. Ulisses Potiguar

xxx Registro de bem 1394 Parelhas Joana Cassimira de Jesus Vieira (faleceu em 1906?)

Herança de Domingos Fernandes da Cruz

/Josefa Maria da Conceição

Viúva de Manoel Fs. Vieira que

faleceu em 21/07/1896, na

Boa Vista, Riacho do Gavião.

Cartório único de Parelhas (Dr. Ulisses

Potiguar)

Page 262: Relatorio Boa VistacomAnexos

R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7

261

GENEALOGIAS (Dr. Ulisses Potiguar)

Page 263: Relatorio Boa VistacomAnexos

R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7

262

Data Lugar Interessado Esposo(a) Filho1 Filho2 Filho3 Filho4 Filho5 Filho6 Filho7 Fonte

xxx Xxx Maria Serafina José Vieira Inácio Fernande

s Vieira

Dr. Ulisses Potiguar

xxx Xxx Inácio Fernandes Vieira

Maria Galdina da Conceição

(ou da Cruz o u

de Jesus)

Delmira (1871-?)

Teodozio (1864-?)

Ana(1860-?)

Cassiano (1862- ?)

Romana (1860-?)

Dr. Ulisses Potiguar

xxx xxx Manoel Fernandes da Cruz*

Victorina Maria da

Conceição*

Francisca (1840-?)

Vitória Maria

(1842-?)

Tereza (1836-1857?)

Dr. Ulisses Potiguar

xxx xxx Tereza (1836-1857?)

Domingos Fernandes da

Cruz

Domingos Fernandes da Cruz

Dr. Ulisses Potiguar

xxx xxx Domingos Fernandes da Cruz

Josefa Ma. da Conceição (?-

1896)

Antônia Ma. da

Conceição (da

Incarnação / do

Sacramento)

Dr. Ulisses Potiguar

xxx xxx Antônia Ma. da Conceição

André Fs. Vieira

Maria (1861-?)

Dorotéia (1863-?)

Leocádia (1865-?)

Joaquina (1866-?)

Massimo (1866-

?)(T)

Galdina (1868-?)

Josefa (1876-?)

Dr. Ulisses Potiguar

xxx xxx José Fs. Vieira Maria Balbina - Francisca Maria da

Conceição

Cosme (1866-?)

Damiana (1866-?)

Dr. Ulisses Potiguar

xxx xxx Teodozio Leocadia Beliza (casado

com Manoel Timbu)

Luis (louco)

Dionísio (casado

com Sebastiana

)

Manoel Ramira Maria Francisca Dr. Ulisses Potiguar

xxx xxx Dr. Ulisses Potiguar

Page 264: Relatorio Boa VistacomAnexos

R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7

263

Page 265: Relatorio Boa VistacomAnexos

R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7

262

Documento 9 - Artigo do Padre Otávio Pinto (A República, 1934)

Page 266: Relatorio Boa VistacomAnexos

R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7

263

Documento 10 - Árvores genealógicas

01 02

03 04 05 06

07 08

09 1011

12 1314 1516 17 18 19 20 2122

23 24 25 26 2728

29 30

31 3233 34

35 36 37 38 39 4041 42

43 44

45 46 47 48 49 50 51 52 53

54 55 56 57 58 59 60 61 62

63 64

6566

67 68 69 70

71 72 73 747576

77

78

7980

81 82

838485

86 87 8889 90 91

92939495 96 97

104

105106107108

109

110 111 112113 114 115 116117

118

119 120 121 122 123

124 125 126

127 128 129 130 131

132

133 134 96

136 137 138

139

98 99 100 101 102 103140

141 142

143

144 145

146

147 148 149

150

151

135

Árvore genealógico 1 - Geral

Page 267: Relatorio Boa VistacomAnexos

R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7

264

01 02

03 04 05 06

07 08

09 1011

12 1314 1516 17 18 19 20 2122

23 24 25 26 27

28

29 30

31 3233 34

35 36 37 38 39 4041 42

43 44

45 46 47 48 49 50 51 52 53

54 55 56 57 58 59 60 61 62

63 64

6566

67 68 69 70

71 72 73 747576

77

787980

81 82

838485

86 87 8889 90 91

92939495 96 97

104

105106107108

109

110 111 112113 114 115 116117

118

119 120 121 122 123

124125 126

127 128 129 130 131

132

133 134 96

136 137 138

139

98 99 100 101 102 103140

141 142

143

144 145

146

147 148 149

150

151

135

153 154

152 Árvore genealógico 2 - Árvore genealógica de Chica, Manoel, Quitina, Zé De Paulina.

Page 268: Relatorio Boa VistacomAnexos

R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7

265

154 123

187 188 189 190 191 192 193

167169

163 166 18 168

10 104

170

194 195 196 197 198 199 200 201

205 206 207204

215

208 209 210

213 214

212

202 203

216 217

211

218

113 155

156 157 158 159 162161 153

171 172 173 174 175 176 177 178

83 84

179

164 165

185 186181 182 183180 184

160

Árvore genealógico 3 - Árvore genealógica de Preta e Dona Geralda.

Page 269: Relatorio Boa VistacomAnexos

R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7

266

Page 270: Relatorio Boa VistacomAnexos

R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7

267

Relação dos nomes da árvore genealógica geral dos moradores de Boa Vista dos Negros

Page 271: Relatorio Boa VistacomAnexos

R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7

268

1. DESCONHECIDO 2. TERESA 3. DESCONHECIDO 4. DESCONHECIDO 5. DOMINGOS 6. JOSEFA MARIA DA CONCEIÇÃO 7. ANTONIO FERNANDES DA CRUZ

(ANTONIO LOTERO) 8. DESCONHECIDO 9. INÁCIO ROBERTO 10. ANDRE 11. ISABEL 12. ANTONIO FERNADES DA CRUZ 13. TEODOSIO FERNANDES DA CRUZ 14. MANOEL GINO 15. CASSIANO 16. MARIA SERAFINA 17. VICENTE 18. MARCIMINIO 19. JOSÉ ANDRE 20. GARDINA 21. LEOCADIA 22. MARIA ANDRE 23. MANOEL MORENO 24. EMILIANO FERNANDES 25. IZIDIO 26. SEVERINA MARIA DA CONCEIÇAO 27. ANA MARIA DA CONCEIÇAO 28. JOÃO ARCANJO DA CRUZ 29. MANOEL COSME 30. MARIA JOANA 31. MARIA MIGUEL 32. JULIA MARIA 33. JOSEFA MIGUEL 34. PEDRO ARCANJO DA CRUZ 35. MANOEL MIGUEL 36. JOSÉ MIGUEL 37. BEATRIS 38. ISAURA 39. MAURA 40. DIONISIA 41. GUIOMAR 42. CLOTILDES MARIA DE JESUS 43. JOSÉ MIGUEL 44. JOANA MARIA DA CONCEÇÃO 45. MARIA 46. TERESA 47. JULITA 48. FIRMINA 49. MARGARIDA 50. JULIETA 51. LAURA 52. ANTONIA 53. LAURO 54. JOSÉ MIGUEL 55. LAURO FERNANDES 56. MIGUEL FERNANDES 57. AMAURI 58. JOACI 59. MAURICIO 60. MARIA MARCIA 61. MARIA DO CÉU 62. JOANA DA CONCEIÇAO NETA 63. COSME MIGUEL 64. ANTONIA MARIA DA CONCEIÇÃO

65. JOSÉ COSME 66. JOSÉ FERNANDES VIEIRA 67. JOSÉ HERCULANO VIEIRA 68. MANOEL FERNANDES VIEIRA 69. APOLINARIA MARIA TOLENTINA 70. MARIA TOLENTINA 71. PEDRO 72. QUITINA 73. MARIA JULIA DA CONCEÇÃO 74. ISAURA 75. SEVERINO 76. MARIA FRANCISCA 77. MARIA BENVINDA 78. JOSÉ FERNANDES VIEIRA 79. FRANCISCA (CHICA) 80. JOSÉ FERNANDES DO AMARAL (Zé

de Biu) 81. JOÃO FERNANDES DA CRUZ 82. SEVERINA ROSARIO DO AMARAL 83. ROSENO 84. ROSARIO 85. ACENO 86. CHICO ROSENO 87. MARIA 88. DAMIANA 89. MARIANA 90. ANANIAS 91. BENEDITA 92. RAIMUNDO 93. DOMINGOS FERNANDES DO

AMARAL 94. SEVERINO ROSARIO DO AMARAL 95. TERESA 96. IRENE 97. BIBIANO 98. JOSÉ FERNANDES DO AMARAL

FILHO 99. ALDECI 100. ADEILSOM 101. ADMILSOM 102. ALDEMIRA 103. ALDECINA 104. ANTONIA MARIA DA CONCEIÇÃO 105. PEDRO COSME 106. SEVERINA COSME 107. ANA COSME 108. LUIZA COSME 109. MARIA 110. BELIZA 111. LUIZ 112. MARIA 113. MANOEL 114. DIONISIO 115. FRANCISCA 116. ZUMIRA 117. JOÃO GINO 118. TERESA MARIA DA CONCEÇÃO 119. MANOEL GINO 120. MIGUEL 121. ELIAS 122. PEDRO 123. MATILDE 124. PAULINA 125. JOSEFA 126. INACIO

Page 272: Relatorio Boa VistacomAnexos

R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7

269

127. ANTONIO 128. PETRONILA 129. MARIA 130. FRANCISCA 131. GORETE 132. SEBASTIANA MARIA DA

CONCEIÇÃO 133. FRANCISCO 134. AUGUSTO 135. GERONIMO 136. AUGUSTO 137. PAULO 138. MARIA 139. DESCONHECIDO 140. VITORIA 141. ISAQUE NEWTOM 142. MARIA ISABEL 143. JOSEFA 144. MISSIAS 145. MOISES 146. MARIA DAS DORES 147. ALEXANDRE 148. ALEILSOM 149. ALESSANDRA 150. HELIENE 151. ADISOM

Page 273: Relatorio Boa VistacomAnexos

277

Documento 11 - Registro de óbito de José Fernandes Vieira.

Page 274: Relatorio Boa VistacomAnexos

R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7

271

Documento 12 - Mapa das terras solicitadas (Reunião 22/04/07).

Page 275: Relatorio Boa VistacomAnexos

R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7

272

Documento 13 - Mapa das terras solicitadas (Reunião 06/05/07).

Page 276: Relatorio Boa VistacomAnexos

R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7

273

Documento 14 - Mapa explicativo dos limites oeste do território (Dodoca

09/05/07).

Page 277: Relatorio Boa VistacomAnexos

R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7

274

Page 278: Relatorio Boa VistacomAnexos

R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7

275

Tabela 9 - Perfil dos moradores de Boa Vista (dados levantados a partir do cadastramento das famílias quilombolas - INCRA).

Nº CRIANÇAS ATE 14 ANOS

ESCOLARIDADE RENDA FAMILIAR R$

LAÇOS DE PARENTESCO/OBS

0 3ºSERIE 600 Não quilombola

0 FUNDAMENTAL 400 Vive com parentes em casas separadas da comunidade.

1 FUNDAMENTAL 415 -

2 FUNDAMENTAL 195 Filha adulta que mora com os pais

0 ? 700 -

1 FUNDAMENTAL 565 Mora com sua família e toma conta do tio

1 FUNDAMENTAL 350 -

3 FUNDAMENTAL 95 Mora numa casa emprestada (parente)

0 5ºSERIE 700 Filho adulto mora com a mãe

0 FUNDAMENTAL 700 -

0 ? 1.100 Filha mora com o casal (idoso) e tomam conta de um neto de um outro filho

0 2ºSERIE 700 -

0 FUNDAMENTAL 350 Mora na casa do sobrinho

0 FUNDAMENTAL 700 Mora com filhos adultos

0 FUNDAMENTAL 350 Mora numa casa sozinha, perto do irmão e da cunhada.

0 FUNDAMENTAL 700 Maria de pedro

0 4ºSERIE 700 Não quilombola

0 FUNDAMENTAL 700 Um casal sem filhos (idosos)

0 FUNDAMENTAL 700 -

0 FUNDAMENTAL 350 -

2 FUNDAMENTAL 845 -

2 FUNDAMENTAL 445 -

7 FUNDAMENTAL 445 -

1 FUNDAMENTAL 400 -

1 FUNDAMENTAL 350 Viúva

2 2°GRAU 350 -

0 4ºSERIE 350 Chefe de família não quilombola, casado com uma quilombola

4 FUNDAMENTAL 445 Mora com parentes em casas separadas do resto do grupo

2 2°GRAU 95 Viúva

1 FUNDAMENTAL 150 Trabalha como empregada doméstica na casa de uma vizinha

1 FUNDAMENTAL 0 Vive com os pais

Page 279: Relatorio Boa VistacomAnexos

R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7

276

1 FUNDAMENTAL 260 -

1 2°GRAU 180 -

2 2°GRAU 600 Presidente da Associação, vive próximo à sogra

4 FUNDAMENTAL ?

1 FUNDAMENTAL 700

Page 280: Relatorio Boa VistacomAnexos

277

Documento 15 - Resenha de Parelhas

(2005).

Page 281: Relatorio Boa VistacomAnexos

R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7

278

Page 282: Relatorio Boa VistacomAnexos

R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7

279

Page 283: Relatorio Boa VistacomAnexos

R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7

280

Page 284: Relatorio Boa VistacomAnexos

R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7

281