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Relatório Final - Edital de Mediação em Arte CCSP / 2015 Grupo CRIA Histórias Cruzadas: jogo de composição de narrativas

Relatório Final - Edital de Mediação em Arte CCSP / 2015 ...centrocultural.sp.gov.br/.../11/...em_arte_historias_cruzadas_2015.pdf · trabalho junto ao CCSP. É por causa disso

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Relatório Final - Edital de Mediação em Arte CCSP / 2015

Grupo CRIA Histórias Cruzadas: jogo de composição de narrativas

Apresentação

A decisão de submeter o “Histórias Cruzadas” a este edital partiu da vontade do

Grupo CRIA de participar do debate atual sobre mediação, dentro de uma instituição que

vem estimulando a experimentação num campo ainda em construção.

Para este projeto, propusemos ações que se apoiaram na escuta de histórias

pessoais vividas no CCSP e que, posteriormente, serviram de base para a confecção de

um baralho. Este baralho foi usado para formar um jogo que resultou no cruzamento

das histórias oficiais antes coletadas. Nossa intenção foi brincar com a ideia de verdade,

das diversas possibilidades de versões sobre fatos, pessoas e lugares, bem como

explicitar as relações existentes entre o Centro Cultural e seus frequentadores. Sob esta

perspectiva, o projeto também contemplou a fixação de um mapa (afixado na sala da

DACE - Divisão de Ação Cultural e Educativa) onde puderam ser identificadas as histórias

resultantes das partidas.

A liberdade para a experimentação foi um dos pontos mais relevantes para esse

trabalho junto ao CCSP. É por causa disso que um dos pressupostos do "Histórias

Cruzadas", a escuta, tornou-se um procedimento e nos permitiu o redimensionamento

das ações, de acordo com as características da instituição e de seu público.

O projeto sofreu modificações ao longo do tempo, entretanto, a proposta

metodológica se manteve, sendo transformada e adaptada de acordo com os diferentes

interlocutores com quem nos relacionamos.

Para demonstrar esta trajetória, apresentamos neste relatório a descrição da

metodologia adotada nas ações e os formatos desenvolvidos para cada público. Por fim,

dividimos o que essa experiência provocou em termos reflexivos e apontamos aspectos

do trabalho de mediação que acreditamos ter agregado à pesquisa que já vínhamos

desenvolvendo no Grupo.

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Metodologia

Com a palavra “metodologia” queremos dar a entender como o projeto foi

executado, quais foram os procedimentos básicos para que conseguíssemos realizar as

ações que ao final, resultaram num mapa de histórias do CCSP, construído a partir das

narrativas pessoais de seus frequentadores. Além da metodologia das ações

propriamente ditas, desenvolvemos uma metodologia de registros. Iremos explicá-las

brevemente a seguir.

1) das ações

Estamos chamando de “ação” o momento do encontro com as pessoas, sejam

funcionários, grupos predefinidos ou o público espontâneo. Neste período, realizamos

atividades em 5 contextos diferentes: (1) ação voltada para funcionários, (2) ação

elaborada para o evento da semana das crianças, (3) ação elaborada para compor o

projeto “Missão de Pesquisas Folclóricas 1938-2015”, (4) ação com alunos da EMEF

Brigadeiro Henrique Raymundo Dyott Fontenelle e (5) ação com público espontâneo.

Houve variações nas ações realizadas com cada grupo, mas mantivemos os mesmos

procedimentos metodológicos em todas. Tais procedimentos giraram em torno da

criação de elementos para construção narrativa e da utilização do jogo como regra de

combinação das histórias. Indicaremos a seguir como estes procedimentos adquiriram

formas diferentes em distintos momentos do projeto.

a) apresentação/acolhimento: momento de instauração de um clima acolhedor de

conversa. Era o momento em que nos apresentávamos e apresentávamos o projeto aos

participantes, fazendo o convite para a troca de histórias. Usamos alguns elementos para

criar o clima de proximidade e de troca com aqueles que nos ofereciam um pedacinho

de sua história. Esses elementos foram café, biscoitos de polvilho e balinhas de café. A

escolha por estes ítens é uma referência à forma como fomos recebidas no interior de

Minas Gerais, quando desenvolvemos um projeto de mediação em uma residência

artística. Nesta experiência, ouvimos muitas histórias dos moradores locais e falamos

sobre ela aos participantes do Histórias Cruzadas sempre que queríamos nos referir a

um outro tempo, diferente daquele da cidade: o tempo de ouvir um “causo”.

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b) apresentação/troca de histórias: neste momento, as histórias que ainda seriam

transformadas em baralho eram reunidas e organizadas no formato de um pequeno

texto, um microconto, algo em torno de um ou dois parágrafos.

Este foi um dos procedimentos que sofreu pequenas alterações de acordo com o grupo

com o qual a atividade foi realizada e seu objetivo. Com os funcionários, os alunos da

EMEF Fontenelle e o público espontâneo, trabalhamos com histórias trazidas pelas

pessoas que participaram da atividade. Para o dia das crianças e para a oficina para

educadores no evento das “Missão de Pesquisas Folclóricas”, nós trouxemos pequenas

histórias prontas para a atividade. No primeiro caso, tivemos o cuidado de reunir

histórias pessoais de crianças e, no segundo, reunimos histórias pessoais de

experiências religiosas, bem como narrativas oficiais de diversas religiões.

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c) Confecção do baralho: com exceção da atividade realizada para o dia das crianças

(para a qual já levamos o baralho infantil pronto) e da ação com os funcionários (para os

quais, devido a quantidade de trabalho, decidimos prepará-lo com as histórias que

coletamos) os baralhos usados nas partidas foram confeccionados pelos próprios

participantes. As histórias reunidas deviam ser divididas em sete partes (ou naipes).

Demos nomes para estes naipes e os dividimos em: “quem contou”, “quem”, “o que”,

“quando”, “onde”, “como” e “por que”. Este era um momento em que o apoio e a

orientação para a fragmentação da história foi essencial. Trata-se de ensinar a separar e

a escolher os elementos da narrativa que serão privilegiados, bem como imaginar

combinações possíveis destes elementos com outros na formação de novas histórias.

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d) Jogo: momento em que ocorre a partida. A partida acaba quando um jogador

consegue formar uma história com os sete naipes citados anteriormente. Neste

momento ele deve reunir as cartas e contar a história aos demais, atribuindo elementos

de coesão, em contraposição à fragmentação do momento de confecção do baralho,

para o arranjo das sete cartas. A ideia do jogo não é a competição e sim mostrar as

diversas vozes que compõem uma história. Deste modo, quando o jogador acabava de

contar sua versão, a mesa era consultada sobre alterações que desejariam fazer na

história. Neste momento, se algum jogador quisesse substituir ou acrescentar uma carta

à narrativa, era possível fazê-lo. Assim, as histórias resultantes eram sempre

composições coletivas.

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e) Intervenção no espaço: como mais um modo de presentificar as histórias pessoais e

seus cruzamentos, que têm o espaço do CCSP como cenário, instalamos um mapa no

vidro da sala da DACE (Divisão de Ação Cultural e Educativa), para que as histórias

pudessem ser apreciadas não apenas por quem participou da ação, mas também pelo

público passante. Inicialmente o mapa indicaria o local onde a história teria ocorrido e,

neste local, esta poderia ser encontrada fixada no espaço. Por dificuldades que surgiram

em relação ao modo como fixar os microcontos, optamos por colocá-los ao redor do

próprio mapa mantendo assim a correspondência entre o espaço e as narrativas.

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2. dos registros

Como indicamos anteriormente, no item "metodologia das ações", para que o

jogo aconteça, é preciso que tomemos contato com histórias. Na etapa inicial do projeto,

escutamos muitas histórias, sobretudo dos funcionários do CCSP. Fizemos também

pesquisa de histórias religiosas na ocasião do seminário “Missão de Pesquisas Folclóricas

1938-2015” e na ação realizada no dia das crianças. Escutamos muito! Com os ouvidos,

com a cabeça aberta, com o corpo paciente e comunicativo. Percebemos que a escuta

para ser efetiva e produtiva requer uma disposição geral do corpo e da mente. E que,

além disso, pode ser muito cansativa. Esta é a primeira forma de registro que pode ser

evidenciada em nossa metodologia. O registro interno, da escuta consciente e ativa,

corporal, por assim dizer. Ele é fundamental para que o grupo possa seguir o próximo

passo, qual seja, o de registrar por escrito as histórias que ouvimos e os encontros que

vivemos.

O contexto em que as ações aconteceram foram marcantes neste momento de

transcrição das histórias ouvidas. O que escutamos está retido em nossas memórias,

pautado pelas apropriaçõs que fazemos delas e, neste momento, passam pelo primeiro

cruzamento e seleção. Alguns destes momentos foram alegres e descontraídos, outros

tiveram um tom introspectivo, silencioso até, configurando uma diversidade de situações

vividas pelo grupo. A segunda fase do registro, por sua vez, é o momento em que

transformamos as histórias escutadas em um pequeno relato escrito, tentando passar

para o texto um pouco do clima vivenciado nos momentos de escuta.

Na sequência, realizamos o terceiro registro, a separação das narrativas nos sete

naipes que compõem o jogo. Utilizamos uma tabela para que, durante este processo,

pudéssemos testar as diferentes possibilidades de combinação das histórias e perceber

se elas "davam jogo". Além disso, adotamos a metodologia das anotações sobre o

processo criativo e sobre as observações em relação ao jogo na forma de diários: ao final

de cada ação, seja de coleta de histórias ou de jogos, uma de nós se responsabilizava por

registrar por escrito as reflexões e percepções vivenciadas no dia. Tivemos o cuidado de

realizar, também, diversos registros fotográficos das ações, como estes que compõem

este relatório.

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Ação e experimentação: 5 baralhos em 1 projeto

Dentro das possibilidades de experimentação desenvolvemos:

Ação com funcionários

Do final de julho até meados de setembro, uma vez por semana, nossas

atividades tiveram como foco ações junto aos funcionários. Como circularíamos bastante

pelo Centro Cultural São Paulo, imaginamos que uma boa forma de chegar até eles seria

nos apresentando e apresentando o projeto. Nossa ideia era compor assim o baralho

inicial. Circulamos por vários setores para ouvir histórias: Biblioteca Sérgio Milliet,

Biblioteca Louis Braille, Contabilidade, Gráfica, Elétrica, Central de Informações e

Recepção. Sentimos que a repercussão foi grande. Começamos a receber indicações de

setores e pessoas com as quais não poderíamos deixar de conversar. Pouco a pouco

fomos chegando, sendo reconhecidas e sendo recebidas com muito carinho.

Percebemos que poderíamos fazer um projeto inteiro só ouvindo histórias dos

funcionários, mas o “Histórias Cruzadas” precisava seguir. Faltaram muitos lugares e

muitas pessoas, certamente. Chegamos a criar um dispositivo para que ampliássemos as

possibilidades de reunir suas histórias. Tratava-se de uma caixa, que deixamos nos

setores pelos quais passamos, com uma carta ao lado convidando os funcionários a

escrever e depositar suas histórias. Mas esse dispositivo teve pouco impacto. Isso nos

indicou algo que já desconfiávamos: contar histórias pessoais é da ordem do afeto e de

um grau mínimo de intimidade e as lindas histórias que recebemos foram contadas pela

relação estabelecida. Como registramos em um de nossos diários:

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Após a coleta de histórias junto aos funcionários para formação do baralho inicial,

decidimos que uma forma de mostrar a eles o resultado daquelas trocas era convidá-los

para uma partida. Nos preparamos para este momento com algum receio uma vez que

tínhamos dúvidas sobre o quanto essa ação atrapalharia o trabalho ou seria vista como

uma obrigação. Nossa intenção era simplesmente mostrar o que tínhamos feito com

suas histórias e, deste modo, tratava-se de um convite. Por fim, acabamos realizando

partidas com os funcionários por três semanas e nos surpreendemos por diversas vezes

com alguns aspectos do jogo. Um deles foi a possibilidade de funcionários, que em

alguns casos não se conheciam, estabelecerem relação através de suas histórias. Foi

interessante notar que os funcionários também se surpreendiam com histórias que

tinham acontecido no Centro e que eles sequer conheciam.

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O receio que tínhamos de que o jogo pudesse não despertar muito interesse dos

adultos também se dissipou nessas ações.

Algumas partidas foram realizadas no refeitório. Isso nos possibilitou conversar

com funcionários que não tínhamos ouvido e contar sobre o projeto a outros.

Realizar a ação primeiramente com eles também nos possibilitou refletir sobre a

proposta. A partir disso, percebemos que era importante usar um dispositivo como a

lousa para auxiliar no acompanhamento do jogo; que ao realizar a ação com outros

grupos seria interessante que as histórias tivessem relação com este grupo; que o grau

de intimidade do grupo influenciaria o desenrolar da partida e sua dinâmica. Estas

observações nos ajudaram a pensar em como conduzir as ações com os diferentes

grupos que surgiram posteriormente, realizando as devidas adaptações tanto no que diz

respeito à confecção do baralho, quanto à condução das ações. Vale lembrar também

que em nossas ações utilizávamos uma camiseta feita exclusivamente para o projeto, o

que facilitava a identificação no espaço e a unidade visual do grupo.

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Ação para Gincana Cultural CCSP - Um fim de semana com a família

No dia 10 de outubro, realizamos uma ação integrada à programação do dia das

crianças que foi oferecida pelo Centro Cultural, a "#Gincana cultural CCSP - Um fim de

semana com a família". Esta participação ocorreu em função de uma partida do jogo que

realizamos com alguns funcionários do Centro nos dias anteriores, da qual participou

Lizette, curadora de teatro infanto-juvenil.

Ela se mostrou interessada no jogo, e foi uma das jogadoras mais ativas e

disposta a ganhar, naquela partida! Acabou por nos fazer uma proposta para compor a

programação do dia das crianças. Foi uma oportunidade muito interessante de testar o

funcionamento do jogo com o público majoritariamente infantil, uma vez que havíamos

jogado apenas com duas crianças até aquele momento.

Aceitamos a oportunidade e nos dedicamos a elaborar as mudanças necessárias

para o jogo funcionar: precisávamos de histórias novas e que fizessem referência ao

universo infantil. Para isso, colhemos histórias com algumas crianças e lembramos de

outras que já havíamos vivido com elas; construímos o baralho com menos texto e

pensamos ainda algumas estratégias para facilitar a compreensão e o desenrolar da

partida.

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O jogo aconteceu tranquilamente com algumas crianças que circulavam pelo

Centro aguardando a programação que começaria em breve. Montamos a mesa e a

lousa com instruções no foyer, próximo a entrada da sala Jardel Filho. Ali, tivemos uma

visibilidade privilegiada e não demorou para que algumas famílias se aproximassem

interessadas no baralho. Logo tínhamos um grupo disposto a jogar. Tivemos o cuidado

de explicar detalhadamente o jogo, atentando para elementos que poderiam facilitar a

compreensão. Passada a dificuldade de entendimento inicial, o jogo fluiu. As crianças e

mães ali presentes entenderam as regras e começaram a brincar e se divertir com a

proposta.

Algumas observações sobre a partida com crianças ficaram evidentes:

inicialmente a importância de desenvoltura na leitura, já que se tratam de cartas com

conteúdo escrito e não só imagético. Deste modo, para se jogar é necessário saber ler

com alguma fluência ou jogar em dupla com alguém que saiba ler. Percebemos que no

início foi confuso entender que o objetivo do jogo era juntar na mão as cartas que

faltavam à mesa para completar uma história com sete cartas e sete naipes. O uso das

cores, facilitou muito este processo indicando que para completar a história, por

exemplo, era necessária a carta "quem" ou a carta roxa.

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As rodadas foram ficando mais rápidas e a ansiedade por bater para poder ler sua

história cruzada, tornou-se um componente do jogo. O objetivo, que antes era executado

sem muita atenção aos conteúdos foi, aos poucos, sendo entendido de modo que as

crianças começaram a brincar também com o que estava escrito em cada carta, isto é,

com as possibilidades narrativas.

Ação para educadores no Projeto “Missão de Pesquisas Folclóricas: 1938 - 2015”

Outras tantas adaptações foram necessárias para pensarmos a atividade com os

professores que se inscreveram no seminário sobre a exposição “Medo, fascínio e

repressão na Missão de Pesquisas Folclóricas 1938-2015” . Nesta ocasião, optamos por 1

realizar uma oficina que desse conta de passar a metodologia do jogo para os

educadores interessados, isto é, não só as regras da partida mas o processo de escuta

de histórias e confecção do baralho. Além disso, nos dedicamos a realizar uma breve

pesquisa de narrativas religiosas que contemplassem as principais religiões professadas

no Brasil, buscando tanto narrativas pessoais quanto narrativas oficiais, encontradas em

livros ou nas tradições orais de cada religião. Mantivemos a metodologia e novamente

trocamos o conteúdo das cartas, construindo assim, um novo baralho.

1 A exposição, aberta para visitação a partir de 17/10/2015 (até 06/03/2016), trata do acervo da Missão de Pesquisas Folclóricas, cujo mentor foi Mário de Andrade, em colaboração com Oneyda Alvarenga e Dina Lévi Strauss. A mostra, que reune referência significativas da arte sacra de matriz africana permite pensar a intolerância religiosa histórica no Brasil e contribui para a discussão e desenvolvimento de discursos mais plurais sobre a história das nossas raízes, tema muito caro ao grupo e a proposta do projeto Histórias Cruzadas.

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Foi uma experiência em que pudemos trocar observações com outros educadores

a respeito da aplicabilidade da metodologia em outros contextos. Curiosamente, não

participaram da nossa formação professores da rede municipal ou estadual de

educação. Estiveram presentes educadores de outros programas e que têm contato com

as crianças fora do contexto escolar. Construímos um diálogo interessante com os

participantes em que pudemos trocar experiências sobre cada etapa do processo do

jogo e da construção das cartas. Eles se mostraram interessados em adaptar a

metodologia para seus ambientes de trabalho, ora mudando o conteúdo das histórias,

como é o caso da educadora que trabalha no Aquário de São Paulo, ora associando a

ferramenta com alguma atividade de expressão teatral, sugestão feita por uma

educadora do Projeto Piá . 2

2 O Projeto Piá é um programa municipal da secretaria da cultura que promove iniciação artística para crianças entre 5 e 14 anos, nas bibliotecas públicas e teatros distritais, e, em parceria com a Secretaria Municipal de Educação, também nos Centros Educacionais Unificados (CEUs).

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Além disso, a mistura de histórias proporcionada por cartas com conteúdos

relacionados à religiões distintas trouxe para a oficina uma mensagem ao mesmo tempo

leve e profunda sobre o tema da intolerância religiosa e sobre a construção das verdades

através das histórias. Resultado esse que é fruto de nossa busca por tratar de temas

complexos através do jogo, da brincadeira. Conversamos e buscamos fazer reflexões em

conjunto com os jogadores. No entanto, podemos considerar que a atividade deu certo

quando essas reflexões se dão de maneira mais espontânea, não necessariamente

faladas, mas percebidas por alguns movimentos e comentários, pela vontade dos

participantes em bater e contar aos outros sua versão da história.

A oficina com os professores nos proporcionou uma experiência de

meta-mediação, em que pudemos conversar com outros educadores sobre a própria

metodologia do nosso “mediar”, do projeto Histórias Cruzadas em geral, momento em

que também ouvimos sugestões, pensamos juntos outras possibilidades de realização e

de conexão com as linguagens artísticas.

Ação agendada com EMEF Brigadeiro Henrique Raymundo Dyott Fontenelle

Se nos primeiros meses de experiência das ações, fomos contagiadas pelo clima

de interesse e cordialidade dos funcionários do CCSP em nos contar histórias sobre seu

local de trabalho, outubro foi o mês de testar nosso jogo com públicos diferentes

(crianças / famílias e educadores), embora tenhamos mantido a escuta para as histórias

dos funcionários, novembro foi o momento de ousar: a proposta foi trazer ao CCSP um

público que tivesse já uma convivência entre si que proporcionasse uma experiência

divertida na medida em que compartilhariam histórias conhecidas de todos, um público

que não conhecesse ainda, ou que não circulasse com tanta frequência pelo CCSP, mas

principalmente, um público que fizesse links entre nosso jogo e conteúdos já

trabalhados. Daí, tivemos a oportunidade de trazer, no dia 18/11, a EMEF Fontenelle.

O contato foi feito com um professor da escola, apaixonado por tudo que se cria

lá, o Professor Fábio Rodrigues. Ele dá aulas de audio-visual, disciplina que proporcionou,

por exemplo, a criação de um canal de TV interno (FonTV), onde agora estão

desenvolvendo um programa / série semanal de incentivo à leitura e já produziram

vários curtas-metragens. Contactado e feliz em participar do nosso projeto, a primeira

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etapa foi enviarmos uma carta aos alunos dos 8° anos e Educação de Jovens e Adultos

(EJA), contando um pouco da história do Grupo CRIA, o que era o jogo Histórias Cruzadas

e falar um pouco do CCSP. Essa carta foi levada à escola pessoalmente por uma das

mediadoras do Grupo CRIA, atitude percebida como muito importante para adesão dos

alunos ao passeio que, entusiasmados, se colocaram disponíveis para a atividade.

Como a escola pediu para levar alunos dos 3 turnos ao passeio (matutino e

vespertino: 8° anos; e noturno: EJA), a ação de ouvir todas as histórias dos alunos, eleger

as que seriam escolhidas, fragmentar nos 7 naipes e, por fim, jogar seria longa demais

para o tempo que tínhamos. Então, criamos um vídeo explicando que eles deveriam

iniciar a atividade na escola: com a ajuda dos professores, fizeram, em aula, uma

atividade de contar histórias acontecidas na escola (ambiente comum a todos) e

elegerem as 8 “mais votadas” para nos levar de presente.

Chegando ao CCSP, fizemos uma rápida mediação do espaço com as turmas que,

em sua grande maioria, não o conheciam (alguns inclusive nunca tinham andado de

trem / metrô). Foi bonito vê-los se encantando com o despojamento das pessoas que

frequentam o Centro Cultural, especialmente com os grupos que dançavam em frente às

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vidraças. Na sala da DACE, local de desenvolvimento da nossa ação, as outras

mediadoras já os esperavam com o cafezinho, os biscoitos e o clima acolhedor que a

ação pede. Assim se iniciou: nos apresentamos rapidamente, porque eles já sabiam

muitas informações sobre nós, eles contaram as histórias eleitas, nós os ajudamos (junto

com os professores que acompanhavam os grupos) a fragmentar as narrativas nos sete

naipes e o jogo aconteceu em duas partidas - como eles eram em torno de vinte alunos,

metade jogou primeiro e a outra metade ajudou, trocando os participantes na segunda

partida.

O clima de brincadeira e adesão ao jogo que esperávamos fluiu naturalmente, na

medida em que trouxeram histórias deles mesmos e as “Histórias Cruzadas” resultavam

absurdas e muito engraçadas por misturar elementos e pessoas de casos diferentes,

acontecidos em épocas diferentes.

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No final, embora as ações levassem em torno de 3 horas, todos ainda pediam aos

professores para darem uma última voltinha no CCSP (era até difícil reunir todos para

irem embora) e prometeram voltar sempre, até porque descobriram que é muito fácil

pra eles o acesso ao Centro: a EMEF Fontenelle fica no bairro Jaraguá, do lado da estação

de trem, que faz baldeação na Luz - linha 1 azul do metrô.

No dia seguinte, a escola produziu um clipe com as imagens recolhidas pelos

professores e postaram na página da FonTV no facebook. E as “Histórias Cruzadas” 3

foram enviadas de presente pra eles. Foi uma experiência intensa e muito feliz para

todos nós!

Ação com público espontâneo no espaço aberto

A partir de 4 de novembro iniciamos a última fase do projeto. Com a bagagem

acumulada nas diversas ações com diferentes grupos, nos lançamos à experimentação

aberta com o público frequentador. Esse acúmulo foi essencial para termos a segurança

de agir no espaço público, que em muitos momentos é imprevisível, com a receptividade

e a escuta tão necessários a este projeto.

Para esta fase, colocamos uma mesa com cadeiras no foyer e a lousa para auxiliar

na explicação e no acompanhamento do jogo. A lousa também foi um dispositivo para

sinalizar nossa presença no espaço e realizar o convite. Com o “cenário” montado,

começávamos a jogar entre nós e automaticamente as pessoas começavam a nos olhar.

Essa era a abertura necessária ao convite.

No primeiro dia contamos com a participação das bailarinas do Atelier Balé Jovem

da Escola de Dança de São Paulo que iriam fazer uma apresentação a noite. Os demais

participantes tinham vindo ao CCSP para vê-las. Elas disseram que nunca tinham

conhecido “um público” delas.

Outro aspecto interessante dessa fase foi a troca de história e confecção do

baralho na hora. Tínhamos dúvidas se esta ação seria complexa demais para esse

formato. No entanto, percebemos que este foi um momento importante de troca

chegando a surgir histórias que haviam acabado de acontecer na própria mesa de jogo.

3 O clipe pode ser visto no endereço disponível em: https://www.facebook.com/permalink.php?story_fbid=984907631570962&id=945643965497329&comment_id=985219811539744&comment_tracking=%7B%22tn%22%3A%22R%22%7D

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Percebemos, que a transposição das histórias para as cartas é a parte da ação na

qual o fazer junto é bastante necessário. Todo esse processo, da escuta e registro da

história até a transposição para as cartas, pareceu gerar uma relação com o jogo mais

afetiva em que o surgimento da carta oriunda da história pessoal de cada jogador gera a

vontade de apresentá-la, de vê-la combinada com elementos das histórias de outros,

muitas vezes desconhecidos.

Por fim, mas ainda sobre a escuta de histórias, em um dos dias tivemos um

momento em que o participante queria apenas ser ouvido, e ficamos felizes de perceber

que o projeto também podia contemplar apenas a escuta em alguns casos.

O tipo de encontro, ao acaso, proporcionado pela ação em espaço aberto se

mostrou bastante rico. Reunir pessoas que não se conhecem, em torno da mesa de jogo,

possibilitar a troca de histórias pessoais bem como a mistura destas, criou uma

possibilidade de relação momentânea, porém afetiva e agradável.

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Reflexões

A cada nova etapa do projeto, novas perspectivas surgiam, novas adaptações,

novas ideias e novas potencialidades. Para facilitar a explicitação dos diversos assuntos

que surgiram em nossas reflexões, optamos por apresentá-los em forma de tópicos.

Acreditamos que assim facilitará também o entendimento.

● A liberdade para a experimentação foi um dos pontos mais relevantes desse

trabalho junto ao CCSP. Desta forma, um dos principais valores do "História

Cruzadas", que é a escuta, tornou-se também procedimento, nos permitindo

adaptar as ações para que dialogassem da melhor forma possível com lugar e seu

público;

● A ideia de iniciar o projeto com quem "é da casa", escutando histórias dos

funcionários, nos pareceu muito acertada, no sentido de conhecer melhor o

ambiente onde realizaríamos o trabalho durante todo o semestre, nos apresentar

como grupo e apresentarmos o projeto "Histórias Cruzadas";

● As “histórias” têm funcionado como disparadores para falarmos sobre o espaço

do CCSP, fazendo emergir as relações de convivência que se estabelecem nesse

espaço, entendendo-o como algo constituído pelo entrecruzamento de histórias

públicas e privadas, permeado por versões simultaneamente “verdadeiras”;

● Para ampliar a quantidade de histórias coletadas, optamos por deixar "caixas

coletoras" em alguns pontos específicos do CCSP. No entanto, encontramos

poucas histórias nessas caixas. Isso nos levou a refletir sobre a importância da

nossa presença para a criação de vínculo, o que afetaria diretamente a

disponibilidade das pessoas em oferecer uma história pessoal;

● Do jogo inicial, proposto no projeto, ficamos com uma versão simplificada, que

acreditamos valorizar mais as relações das pessoas e as histórias, e menos as

regras e dificuldades. Na prática, percebemos fluidez e a necessidade de abrir a

possibilidade do improviso: percebemos os jogadores ansiosos por contribuírem

com as cartas que tinham nas mãos;

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● A partir de observações sobre o jogo, percebemos o quanto é importante o

vínculo entre os jogadores e as histórias;

● Percebemos também a importância da escuta, isto é, de estarmos com ouvidos e

com a cabeça aberta, com o corpo paciente e comunicativo. Percebemos que a

escuta para ser efetiva e produtiva requer uma disposição geral do corpo e da

mente. E além disso, pode ser muito cansativa.

● O momento da fragmentação das histórias necessitou de apoio e orientação.

Potente para se trabalhar elementos narrativos e coesão; para explicitar as

dimensões arbitrárias, de escolhas, no modo como contamos algo: o que

omitimos, o que privilegiamos, etc.

● A mediação do jogo foi colocada à prova diante do inusitado: o depoimento de

um ex morador de rua, relatando seu ódio pelas pessoas, gerado pela violência

naturalizada nos atos das pessoas que passam por ele nas ruas. A ação se

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modificou totalmente, em improviso, para acolher e validar sua narrativa,

incluindo-a no jogo.

● Em termos pedagógicos, o jogo é uma boa ferramenta para se trabalhar

elementos narrativos. A montagem das cartas exigem adaptação das histórias

para que tenham coesão no maior número de arranjos possíveis, pensando nos

elementos de concordância (gênero e número), bem como flexão verbal, por

exemplo.

● A intervenção no espaço, através do mapa e da fixação das histórias pelo Centro

Cultural, foi um aspecto que gostaríamos que tivesse ocorrido de forma mais

simultânea às ações. Essa experimentação nos mostrou que seria mais fácil a

fixação das histórias junto ao painel e não pelo espaço e isso acabou fazendo com

que a intervenção funcionasse apenas ao final. A partir do momento que

começamos a preenchê-lo percebemos um maior interesse das pessoas pelo

projeto.

● A divulgação por evento no facebook foi uma estratégia interessante tanto de

compartilhamento das ações que iam ocorrendo, como de convite para as ações

futuras. Ao ouvir comentários e respostas de conhecidos sobre as partidas e seus

horários, percebemos que foi uma maneira eficaz de divulgação das ações.

Considerações finais

Nesses meses de intensas experiências no espaço do CCSP, ficamos felizes em

perceber que nosso projeto dialoga, numa espécie de metáfora com o lugar.

Enxergamos no Centro Cultural um espaço onde muitos elementos se cruzam: sons,

movimentos, pessoas, olhares e histórias. Quando fazemos referência à ideia de

metáfora queremos dizer que o jogo “Histórias Cruzadas” estabelece conexão com uma

característica do lugar que nos chama atenção: pessoas entrando em relação com tantas

outras mediadas pela própria arquitetura do lugar. E nessa relação temos diversos

cruzamentos uma vez que o que acontece no lugar nunca pertence só a um mas sim aos

muitos frequentadores. Um acontecimento passa a ser compartilhado direta ou

indiretamente por muitas pessoas.

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O edital de fato nos possibilitou muitas experimentações e vontade de

aprofundar algumas delas bem como testar outras possibilidades que surgiram em

nossas reflexões. Redesenhar as estratégias que foram pouco efetivas e experimentar

mais a presença no espaço aberto. Poderíamos citar como exemplos destas adequações,

a opção pela coleta de histórias e confecção do baralho anteceder o momento do jogo

entre os funcionários, percebendo que o tempo de que dispunham era melhor

aproveitado se fossem realizadas intervenções curtas. Outra adaptação bastante

importante para a conclusão do projeto foi a colagem das histórias no mapa, com

indicações precisas do local onde aconteceram, ao invés da disposição dessas histórias

em totens, no próprio espaço físico. Esta mudança ocorreu em função da alta mobilidade

desses totens, que a cada ora apareciam em lugares diferentes, fugindo da intenção

inicial de marcar o espaço.

Por fim, importante lembrar da oficina realizada com crianças da EMEF Brigadeiro

Henrique Raymundo Dyott Fontenelle em que optamos por fazer um contato inicial

solicitando que trouxessem para a oficina pequenas histórias que tivessem acontecido

na escola. Dois aprendizados estavam em jogo com esta ação: a melhor organização do

tempo, já que lembrar e redigir histórias pode ser uma tarefa um tanto demorada em

relação ao tempo que tínhamos para brincar com aquele grupo, e também, a percepção

de que o jogo fica mais emocionante quando os locais das histórias trazidas são comuns

ao grupo.

Finalizamos este processo com cinco baralhos produzidos e muitas histórias

reunidas. Algumas entraram para o jogo, foram cruzadas e podem ser apreciadas no

mapa fixado na sala da DACE. Outras guardamos com carinho em nossos registros e

agora fazem parte da história do Grupo CRIA. Para nós o fim desse projeto marca o início

de nova fase. Ficamos felizes em cruzar nossa história com a do Centro Cultural.

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