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1 RELATÓRIO ANTROPOLÓGICO DE FUNDAMENTAÇÃO PARA A IDENTIFICAÇÃO E DELIMITAÇÃO DA TERRA INDÍGENA KINIKINAU DO AGACHI Gilberto Azanha Antropólogo NOVEMBRO DE 2018

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RELATÓRIO ANTROPOLÓGICO DE FUNDAMENTAÇÃO PARA A

IDENTIFICAÇÃO E DELIMITAÇÃO DA TERRA INDÍGENA KINIKINAU DO

AGACHI

Gilberto Azanha

Antropólogo

NOVEMBRO DE 2018

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Sumário

Apresentação 3

PARTE 1 DADOS GERAIS E HISTÓRIA

1.1 Identificação étnica e filiação cultural 8

1.2 As fontes histórias e a aliança Chané-Guaná/Mbayá-Guaicurú para a colonização

do interflúvio Paraguai Oriental/Miranda-Aquidauana 8

1.3 O padrão histórico geral da ocupação Chané-Guaná 18

1.4 Os documentos do Império: a história oficial da ocupação territorial dos Chané-

Guaná (Kinikinau) na bacia do rio Miranda 21

1.5 A guerra com o Paraguai: a dispersão das aldeias e o abandono provisório dos

territórios tradicionais 28

1.6 O pós-guerra para os Kinikinau: fim do aldeamento em Albuquerque e a

sobrevivência no Agachi 32

PARTE 2 HABITAÇÃO PERMANENTE

Introdução: “marco temporal”, “esbulho renitente” e indigenato 35

2.1 A ocupação Kinikinau no Agachi: sua continuidade histórica segundo

documentos do SPI e a memória indígena 40

2.2 Os grupos locais Kinikinau hoje: seus troncos familiais e sua distribuição 53

PARTE 3 ATIVIDADES PRODUTIVAS

3.1 Atividades produtivas na situação de Reserva

3.1.1 A Agricultura 68

3.1.2 A criação de gado 72

3.1.3 A cerâmica 73

PARTE 4 MEIO AMBIENTE 76

PARTE 5 REPRODUÇÃO FÍSICA E CULTURAL

Introdução: Como é reproduzir-se física e culturalmente em terra alheia? 86

5.1 Estimativa populacional: a evolução demográfica da população Kinikinau 96

5.2 Origem e consequências dos conflitos Kinikinau-Kadiwéu na São João 103

5.3 As áreas necessárias para a reprodução física e cultural do povo Kinikinau 104

PARTE 6 LEVANTAMENTO FUNDIÁRIO

6.1 O processo de expropriação das terras Kinikinau no Agachi 105

6.2 A situação fundiária atual 114

PARTE 7 CONCLUSÃO E DELIMITAÇÃO 123

MEMORIAL DESCRITIVO 128

BIBLIOGRAFIA CONSULTADA 133

RELAÇÃO DOS ANEXOS 137

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Apresentação

Em uma série de ofícios e documentos1 datados do início deste século XXI (Anexos),

lideranças do povo KINIKINAU buscaram junto à Fundação Nacional do Índio (FUNAI)

reivindicar a constituição de um Grupo Técnico para a identificação e delimitação de seu

território original na região do córrego AGACHI (ou como citam alguns daqueles

documentos, Vakxú). A Informação nº 01/CGID de 29/05/2008 (cópia anexa), por exemplo,

informa que “(...) foi decidido fazer consultas com o antropólogo Gilberto Azanha, com o

historiador Giovane José da Silva e (sic) entre outros indicados, visando a composição do

grupo técnico para proceder os (sic) estudos necessários à identificação e delimitação das

terras de ocupação tradicional Kinikinaw (sic), por eles reivindicada, na área designada

AGACHI, localizada junto ao córrego Agachi, nos municípios de Miranda e Aquidauana no

Mato Grosso do Sul, grupo técnico este que deverá ser instituído ainda no ano de 2008”. A

mencionada consulta nunca foi realizada e o grupo técnico jamais constituído.

Em vista da omissão do órgão responsável pelos procedimentos de reconhecimento

das terras de ocupação tradicional dos povos indígenas no Brasil, em novembro de 2017

lideranças do povo Kinikinau presentes na 12ª Assembleia do Povo Terena, realizada na

aldeia Água Branca (TI Taunay-Ipegue) solicitaram ao antropólogo Gilberto Azanha, ali

presente, a realização dos mencionados estudos. A partir daquela data, o referido antropólogo

iniciou estudos de pesquisa documental no material por ele utilizado durante a elaboração dos

RCIDs das TIs Terena no Buriti, Cachoeirinha e Taunay-Ipegue, complementados por buscas

no Acervo do SPI digitalizados e disponibilizados pelo Museu do Índio/FUNAI, além de duas

incursões a campo (fevereiro e agosto de 2018) junto aos Kinikinau hoje assentados nas TIs

Cachoeirinha, Lalima, Nioaque e Taunay-Ipegue para a tomada de depoimentos de idosos

daquele povo para, por fim, compor os estudos antropológicos de fundamentação ora

apresentados. Em 15 de novembro de 2018, durante a realização da 5ª Assembleia do Povo

Kinikinau na aldeia Mãe Terra (TI Cachoeirinha), estes estudos foram lidos para os presentes

e aprovados.

O Decreto 1.775 de 08/01/1996 que dispõe sobre o procedimento administrativo de

demarcação das terras indígenas, estabelece no seu Artigo 2º que “A demarcação das terras

tradicionalmente ocupadas pelos índios será fundamentada em trabalhos desenvolvidos por

antropólogo de qualificação reconhecida, que elaborará, em prazo fixado na Portaria de

1 Estes documentos forma entregues ao antropólogo responsável pelo presente Relatório pela senhora Júlia de

Góis, viúva do líder kinikinau Ambrósio de Góis.

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nomeação baixada pelo titular do órgão federal de assistência ao índio, estudo antropológico

de identificação”. Por razões inerentes ao órgão federal de assistência, a Portaria para

nomeação e fixação do prazo para a realização dos Estudos de Fundamentação jamais foi

baixada e os Kinikinau não podem ser punidos por mais esta, entre tantas outras e como aqui

se demonstrará, omissão do órgão federal, a FUNAI. Desta forma, na citada 5ª Assembleia do

Povo Kinikinau os integrantes do povo Kinikinau ali presentes determinaram que este

Relatório Antropológico de Fundamentação da Identificação e Delimitação fosse, como o foi,

protocolado junto à FUNAI para os devidos e necessários encaminhamentos administrativos.

De início é preciso deixar claro que os Kinikinau jamais foram considerados

“extintos”, seja por eles mesmos ou pelos Terena (junto aos quais foram realocados pelo SPI

na década de 1920) ou mesmo pelos Kadiwéu (que, diz a história, convidaram algumas

famílias daquele povo a se estabelecerem na TI Kadiwéu nos anos de 1930). O fato de se

exporem novamente em sua plena identidade étnica e, sobretudo, como um povo

diferenciado dos Terena, na primeira década desde século XXI2, tem uma possível

explicação no processo de revisão das Terras Indígenas Terena (Buriti, Cachoeirinha e

Taunay-Ipegue) ocorrido nos primeiros anos daquela década. Como que despertados por

aquele processo algumas pessoas que se identificam como kinikinau procuraram o

antropólogo coordenador do Grupo Técnico (GT) responsável pelos RCIDs3 das terras Terena

para indagarem sobre os documentos encontrados que mencionavam seu povo e a “aldeia do

Agachi”. E entende-se a razão deste fato: não existe afirmação plena de um povo sem sua

base territorial. Desde então (estávamos no ano 2000) uma destas lideranças Kinikinau

(infelizmente falecida recentemente), Ambrósio de Góis, iniciou a saga de buscar junto à

FUNAI o reconhecimento das terras tradicionais do seu povo no Agachi.

É preciso ainda ressaltar que essa busca intensificou-se nos meados dos anos 1990

devido ao clima de tensão e de conflitos com algumas famílias Kadiwéu na aldeia São João

(TI Kadiwéu) para onde os Kinikinau foram levados por agentes do Serviço de Proteção aos

Índios (SPI) no final dos anos 1930 – iniciando então nova etapa da diáspora daquele povo

indígena (infra, título 5.2).

Em anos recentes trabalhos acadêmicos importantes reconstituíram a história e a

territorialidade dos Kinikinau (Iara Castro, 2010; Veron e Silva, 2001), a especificidade da

sua língua (Valéria Couto, 2005; Ilda de Souza, 2008) e da sua arte e persistência (Aila

2 Castro, op. cit.: 258 e ss.

3 Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação - TI Buriti (ver na Bibliografia: Funai_2011_Buriti);

TI Cachoeirinha (Funai_2003_Cachoeirinha) e Taunay-Ipegue (Funai_2004_Taunay-Ipegue).

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Bolzan, 2003; Giovani da Silva, Aila Bolzan & Rosaldo Souza, 2017). A síntese destes

trabalhos somada às pesquisas realizadas pelo antropólogo que assina o presente documento

compõem os capítulos da Parte 1 deste Relatório Antropólogico.

A Parte 2, relativa ao tópico sobre a Habitação Permanente, versa sobre os fatos em

razão dos quais os Kinikinau foram impedidos, por fazendeiros com o apoio das elites

políticas locais e regionais, de permanecerem em seu território tradicional no Agachi. Para

tanto se recorreu a fontes históricas (relatórios de presidentes de província; de diretores de

índios e de aldeamentos, de inspetores e agentes do extinto Serviço de Proteção aos Índios –

SPI, entre outros) e a depoimentos atuais de anciãos Kinikinau, a fim de possibilitar o

contraponto entre a história documentada e a oral, metodologia básica exigida em razão das

características deste relatório antropológico.

Neste tópico buscou-se determinar, com o maior grau de precisão possível, a

localização da antiga aldeia Kinikinau no córrego Agachi (ou “Agaxi” ou “Agachy” como

grafado nas fontes históricas). Para tanto se recorreu a especialistas (em geoprocessamento)

para, com o auxílio dos Kinikinau mais velhos, confeccionar um mapa (Figura 1) a partir das

informações constantes nos processos de “legitimação” das posses “São João da Barra do

Agachy”, “Paraíso do Agachy” e “Bahia Maria do Carmo” depositados no Acervo Fundiário

da AGRAER-MS.

A Portaria nº 14 de 09 de janeiro de 1996, baixada para orientar os coordenadores do

GT quanto aos tópicos exigidos pelo Decreto 1.775, assim reza quanto ao capítulo da

Habitação Permanente:

a) descrição da distribuição da(s) aldeia(s), com respectiva população e

localização;

b) explicitação dos critérios do grupo para localização, construção e

permanência da(s) aldeia(s), a área por ela(s) ocupada(s) e o tempo em que se

encontra(m) na(s) atual(ais) localização(ções).

Resta claro que, no caso dos Kinikinau, os critérios para a localização e permanência

das suas aldeias não foram estabelecidos por eles, mas por terceiros, como aqui se

demonstrará. Ocuparam sem interrupção o médio curso do córrego Agachi até 1915-20 e é

esta a reivindicação deste povo indígena. A “continuidade histórica da ocupação”, que o

Decreto 1.775 pressupõe no capítulo da Habitação Permanente, é assumida pelo juiz federal

Tourinho Neto (então integrante do TRF da 1ª Região) nestes termos – e aqui agasalhados:

"Os indígenas detêm a posse das terras que ocupam em caráter

permanente. Certo. Todavia, se provado ficar que delas foram

expulsos, à força ou não, não se pode admitir que tenham perdido

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a posse, quando sequer, como tutelados, podiam agir

judicialmente; quando sequer desistiam de tê-la como própria ...

Para identificar-se uma posse indígena é preciso observar se há

ainda, na área, palpitante influência indígena, demonstrativa de

que, há não muitos anos, os índios ali tinham seu habitat -

tradicionalmente a ocupavam - e que dali foram expulsos, a força

ou não" (in, Duprat, Parecer MS nº 6279/DF, grifos nossos).

Aqui se provará que os Kinikinau foram expulsos da região do ribeirão Agachi, “à

força ou não”, como também se demonstrará que a “palpitante influência” kinikinau na área

foi (premeditadamente ou não) apagada por agentes do Estado brasileiro. Muitos destes

agentes, do extinto SPI à atual FUNAI, premeditadamente ou não, contribuíram para este

apagamento da história dos Kinikinau na região, tanto por fazer desaparecer o seu etnônimo

em relatórios e ofícios, quanto por reduzi-los metonimicamente aos “Terenas”.

O Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação da TI Taunay-Ipegue

e seus anexos, então nos demonstram com clareza a existência da aldeia do

Agachy - pelo menos até 1900 -; demonstram também que a “regularização” das

posses São João da Barra do Agachy e Bahia da Maria do Carmo, em nome do

Tenente Francisco Pereira Mendes e Anna Gertrudes de Castro (posteriormente

em nome de José Alves Ribeiro); ocorreram sobre áreas de uso e ocupação

tradicional dos Terena daquela aldeia e utilizando-se de interpretação

equivocada da legislação existente quando dessa ocorrência. Demonstra também

que a “regularização” da posse Paraíso/Agachy, em nome do Tenente Francisco

Pereira Mendes, ocorreu após 1900 (em 1912), sobre um território onde estava

erigida a própria aldeia Agachy, que então foi extinta, utilizando-se

equivocadamente a legislação então vigente e todo um aparato jurídico e estatal

para legitimar o esbulho sobre as terras tradicionais Terena daquela aldeia e de

sua área de uso tradicional.(Pereira Neto, Parecer nº 120/CDA/CGID/

FUNAI/2004:17).

Em 2004, o antropólogo da FUNAI responsável pelo Parecer acima continuará a ler

com lentes “Terena” (e apesar destes) as fontes consultadas pelo Grupo Técnico responsável

pelo RELATÓRIO DE FUNDAMENTAÇÃO da TI Taunay-Ipegue. O documento

comentado pelo parecerista da FUNAI está abaixo reproduzido:

Quanto ao terceiro quesito, os senhores peritos assim se manifestaram: ‘que o

limite mais verdadeiro e conhecido hoje entre o Agachi e Cutape, Aldêa Ipegue,

Nachedache e posse Maria do Carmo é a vazante do Nachedache a partir do

marco do Cutape que está no caminho que de Miranda leva ás aldêas Ipegue e

Nachedache e que está a quarenta metros mais ou menos da passagem do

corrego Nachedache e por esta acima, deixando a esquerda a tapera d’Aldêa

Nachedache, seguindo em linha recta atravessa o corrego Nachedache já em

demanda do espigão denominado Taquarussú que é o prosseguimento do

morrinho que faz o limite entre as terras ocupadas pelos Indios Quiniquinaos.

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Com este limite, nem o Cutape e o Pequi e nem as Aldêas Ipegue e Nachedache e

a posse Maria do Carmo soffrem prejuizo’ (fs. 34-35)”. ( p. 77 do RCID da TI

Taunay-Ipegue).

Ver-se-á ainda neste tópico que todo o esforço de apagamento da identidade Kinikinau

não foi suficiente para fazer com que os próprios kinikinau se esquecessem de seu território

tradicional. Os depoimentos de anciãos tomados por pesquisadores, indígenas e não indígenas

e pelo antropólogo responsável por este Relatório de Fundamentação demonstrará que a

“palpitante influência indígena” no Agachi perdura, se não na memória dos expropriadores,

naquela dos Kinikinau, como também dos Terena habitantes da TI Taunay-Ipegue,

Cachoeirinha, dos de Lalima, de Nioaque e dos Kadiwéu – memória esta como que reativada

na esperança concreta de reocupação daquele território levantada com os trabalhos do GT de

revisão das TIs Terena na década de passada (2000-2010).

A Parte 3 diz respeito às Atividades Produtivas. Como falar das atividades produtivas

em um território expropriado? É possível reconstituir tais atividades no tempo que ocupavam

aquele território (até a década de 1910), como se verá. Seria uma descrição muito parecida

com qualquer descrição da diáspora judaica: antes da retomada do território judaico na

Palestina, como os judeus (em seus vários subgrupos) realizavam suas “atividades produtivas”

em território alheio? Dada estas premissas, optou-se por imaginar, com os kinikinau, as

atividades produtivas às quais irão se dedicar no território reocupado – dando continuidade

àquelas atividades que sempre fizeram no Posto São João do Aquidabã, em Lalima e por onde

mais estiveram na sua diáspora4: roças, criação de gado, confecção de artesanato – e para

tanto, além dos depoimentos dos Kinikinau, os registros ainda preservados do SPI no Museu

do Índio e na FUNAI fundamentarão essa descrição. As áreas necessárias para as atividades

produtivas do povo Kinikinau são aqui delimitadas prevendo a sua expansão populacional

quando da reocupação do Agachi.

A Parte 4 diz respeito à descrição das áreas ambientalmente imprescindíveis e

necessárias ao bem estar do povo Kinikinau. Aqui se utilizou de um conjunto de imagens

satélites da região do Agachi que foram apresentadas, debatidas e analisadas por especialistas

com os Kinikinau. O conjunto das áreas ambientalmente necessárias ao bem estar dos

Kinikinau e aquelas necessárias para as suas atividades produtivas e as necessárias à sua

reprodução física e cultural (objeto da Parte 5 deste documento) comporão a delimitação da

Terra Indígena Kinikinau do Agachi.

4 “O termo diáspora (em grego clássico: διασπορά, "dispersão") define o deslocamento, normalmente forçado

ou incentivado, de grandes massas populacionais originárias de uma zona determinada para várias áreas de

acolhimento distintas” – Wikipédia.

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O tópico relativo ao levantamento fundiário (Parte 6) tratará dos fatos relativos ao

processo de expropriação das terras Kinikinau no Agachi, no qual os documentos das

legitimações das posses “São João da Barra do Agachy”, “Paraíso do Agachy” e “Bahia Maria

do Carmo” (cujos originais estão depositados no Acervo Fundiário da AGRAER-MS) foram

objeto de uma análise cuidadosa e minuciosa – tendo em vista sua importância para a

discussão jurídico-política a respeito da questão do “marco temporal”, levantada pelo pleno

do STF quando da discussão da Pet. 3.388 (TI Raposa-Serra do Sol). Neste ponto utilizou-se

dos pareceres lavrados por Gilmar Ferreira Mendes (então Procurador da República e datado

em 10 de abril de 1987 – anexo) e pelo constitucionalista José Afonso da Silva (2015, anexo)

para fundamentar a não aplicabilidade daquele conceito (“marco temporal”) no presente caso.

PARTE 1 DADOS GERAIS E HISTÓRIA

1.1 Identificação étnica e filiação cultural

Quiniquinau, Quiniquinao, Kinikinau são grafias que designam um povo indígena de

língua Aruak cujos membros hoje grafam a sua autodenominação como Koenükunoe.

Documentos do SPI, disponibilizados digitalmente no “Acervo SPI” do Museu do Índio,

mencionam explicitamente os "kinikinau" desde os anos 1915 até 1967, um ano antes de

aquele órgão ser extinto e substituído pela FUNAI. A partir da década de 1920 estes

documentos retratam a diáspora Kinikinau, mencionando-os em Lalima, no Posto São João do

Aquidabã, no Brejão (Nioaque), Taunay-Ipegue e em Cachoeirinha após a saída forçada do

grupo da “aldeia do Agachy”, provavelmente ocorrida entre os anos de 1903-19155 (tópico a

ser tratado na PARTE 2, infra).

1.2 As fontes históricas e a aliança Chané-Guaná/Mbayá-Guaicuru para a colonização

do interflúvio Paraguai Oriental/Miranda-Aquidauana.

A menção aos Kinikinau enquanto subgrupo Chané-Guaná6 remonta ao século XVII,

conforme aponta Castro (2010: 23):

5 RONDON, 1949: 81 – vide p. XX, infra.

6 “a designação Guaná é usada –a autora esclarece – quando se tratar especificamente dos grupos Aruak localizados no

Chaco Boreal e que historicamente se deslocaram junto com os Mbaya-Guaicuru.” (Castro, 2010: 21 – Nota de Rodapé)

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(...) uma das referencias especificas mais antigas sobre os Kinikinau,

registrada pelo governador do Paraguai, Don Felipe Rexe Gorbalan,

através da Cédula Real de 1678, refere-se aos Quiniquina (Pastells, III,

1912); Aguirre (1898 [1793]) menciona os Kinikinaos-Quainoconas-

Caynocoe, que seriam chamados pelos Mbaya-Guaicuru como Equini

Quinao ou Eguriquinas. Não obstante o entrevero etnonímico, pode-se

afirmar que os grupos hoje conhecidos como Terena, Layana, Kinikinau e

Guaná compartilham um passado comum como unidades socioculturais

Guaná, que viveram no Chaco entre o século XVI e o XVII.

Contudo e diferentemente dos seus vizinhos Terena, a memória dos atuais kinikinau não

registra a vinda do Chaco (êxiva em língua terena)7.

Todos os cronistas que tiveram contato, nos séculos XVI e XVII, com os povos

Chané-Guaná constataram a existência entre eles de "cativos" - presos de guerra de outras

etnias chaquenhas, como os Chamacoco, Chiquito e Guató, principalmente. Notaram ainda

que tais "cativos" recebiam um tratamento suave, não humilhante, revelando ao mesmo tempo

em que estavam empregados em tarefas domésticas e agrícolas e que forneciam prestígio

social aos seus senhores, mais do que um valor propriamente econômico (Cardoso de

Oliveira, 1968: 20-21). Reforça esta constatação, o fato dos cativos serem tratados como

"estrangeiros" e o termo "kauti" - utilizado ainda hoje pelos Terena - ser uma corruptela da

expressão hispânica (e portuguesa) "cativo". Quer dizer: eram "cativos" apenas porque assim

os ocidentais os viam. Estavam "inseridos" na estrutura social Chané-Guaná e

desempenharam um papel importante no expansionismo posterior destes povos na região.

Estas observações são de suma importância, pois fornecem elementos para a

compreensão do ethos dos atuais Kinikinau (seu caráter aliancista e integracionista, nas

palavras de Castro, 2010: 204) e, sobretudo, para entendermos o significado social e político

da aliança dos Guaná-Chané com os Mbayá-Guaycuru, aliança esta diretamente responsável,

como se verá, pela grande migração destes povos para as margens orientais do rio Paraguai,

nas últimas duas décadas do século XVIII.

Schmidel (1534-1554), nos seus relatos, foi o primeiro europeu a constatar a

excelência da agricultura destes índios e ao mesmo tempo avaliar o caráter das relações deste

povo com os Mbayá. Diz ele:

7 "Eu tenho a história comigo, história do meu pai. Aqui na Cachoeirinha não havia ninguém. Meu pai é daqui mesmo. O

bisavô dele veio do Êxiva (Chaco), meu pai contava. Eles tinham sido atacados por outros índios diferentes lá do Êxiwa. Ai

eles vieram de lá, atravessaram o rio Paraguai até Porto Esperança, atraz da morraria. Ficaram um pouco perto de

Corumbá e depois fizeram aldeia aqui, em Miranda...Naquele tempo não tinha purutuyé, só mesmo índio Terena, Laiana,

Kiniquinao, Echoaladi, Caduveo..." (Felix, ancião de 87 anos, morador da aldeia Cachoeirinha, apud "Relatório do

Programa de Educação do CTI", 1996). Outro ancião ainda descreve o modo como foi feita a travessia do rio Paraguai:

"Minha avó, meu avô vieram do Êxiva (...). Eles usaram uma taquara bem grande para atravessar o rio(...).Eles trançaram

cipó (hymomó) para fazer canoa para atravessar o huveonókaxionó ("rio dos paraguaios")..." (João Martins, ancião de 83

anos morador da aldeia Cachoeirinha, idem, id.). in: RCID da TI Cachoeirinha, p. 13.

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"Depois seguimos adiante e chegamos a uma nação chamada

Chané, que está sujeita aos ditos maipais (Mbayá), do mesmo

modo que os rústicos da Alemanha a seus senhores. Pelo caminho

achamos muitos campos de cultivo de milho, raízes e outros frutos

mais, que ali se encontram frutas e comida todo o ano. Quando

eles colhem um roçado, o outro já está amadurecendo e quando

este está maduro, já se plantou num terceiro, para que em todo o

ano se tivesse alimento novo nas roças e nas casas" (1945:23).

Felix Azara afirmava, no século XVII, que:

"(...) à época da chegada dos espanhóis, os Guaná iam, como

atualmente vão, se reunir em bandos aos Mbayá para lhes

obedecer, servi-los e cultivar suas terras...é verdade que (essa)

escravidão é bem doce, porque o Guaná se submete

voluntariamente" (apud Cardoso de Oliveira, 1976: 32).

O processo político e social que envolveu uma sociedade demograficamente superior e

estratificada (os Chané-Guaná) e outra inferior em população e predominantemente caçadora

e coletora é ainda pouco estudado. Porém, eram relações claramente de aliança e baseadas na

troca de serviços (roças x proteção guerreira) e de produtos de ferro conseguidos pelos Mbayá

nas suas excursões guerreiras contra os estabelecimentos espanhóis.

Os dados históricos nos levam a suspeitar que foi a agricultura Guaná que permitiu

aos Mbayá ampliarem sua potência guerreira que, somado aos cavalos tomados aos espanhóis,

transformaria este povo no mais aguerrido adversário da colonização das margens do rio

Paraguai, entre o Apa e o Taquari. A dependência observada pelos cronistas era na verdade

mútua e gerou um sistema social único na América do Sul, responsável pelo domínio, durante

quase dois séculos, de um território superior ao da França.8

Os estudiosos dos povos chaquenhos constataram que os Guaná-Chané dispunham de

uma base social muito mais sofisticada dos que seus vizinhos Mbayá. Estavam estratificados

em camadas hierárquicas, os "nobres" ou "capitães" (os Naati ou "os que mandam"; "gente

8 "A designação de 'terra mbaiânica' dada ao território delimitado aproximadamente pelo polígono que tem por

lados: a Serra de Maracaju, os rios Paraguai, Jejuí e Mboteteu (ou Miranda) aparece em vários documentos do

século XVIII...Uma das referências mais antigas do predomínio dos chaquenhos na região data dos anos vinte

do século XVIII. Antonio Pires de Campo recua o limite da terra mbaiânica para um pouco mais ao norte, até o

Taquari. O território possuia condições para que nele se instalasse a cultura dos Mbayás, nômades, senhores da

região, vivendo em verdadeira simbiose com o guanás, por aqueles protegidos em suas roças contra qualquer

outra nação...Mais tarde no final do século XVIII, Ricardo Franco, deixando parecer certa indignação,

qualificava os guanás de escravos dos guaicurus" (Assis Bastos, op. cit.: 126/127).

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boa") e a "plebe" ou "soldados" (Wahêrê-xané, ou "os que obedecem"; "gente ruim"). E no dizer

de Sanches Labrador "(...) procuram continuar a mística nobreza de seu sangue casando-se

entre si aqueles de igual hierarquia" (apud Cardoso de Oliveira, op. cit.: 42).

As relações de aliança Guaná-Mbayá estavam alicerçadas no casamento9: os chefes

Guaná cediam mulheres da sua casta para casar-se com os "maiorais" Mbayá. A relação entre

os dois grupos, por essa via, consolidaria, ao longo do tempo, uma estrutura social complexa:

de um lado, um segmento social autônomo (e Sanches Labrador não se cansa de enfatizar a

"independência das comunidades Guaná") na posição de fornecedor de mulheres e alimentos;

de outro, uma casta guerreira recebedora de mulheres e responsável pela segurança dos

grupos locais e doadores de instrumentos de ferro e cavalos. Talvez decorresse desta estrutura

social mesma o infanticídio feminino praticado pelos Mbayá e observado pelos cronistas: pois

casar com suas próprias mulheres equivaleria a desfazer a base mesma da aliança com os

Chané-Guaná10

.

Na década de 1760, a pressão crescente dos espanhóis sobre os territórios Mbayá

localizados nas margens ocidentais do Paraguai, somada a disputas internas por prestígio

guerreiro, forçariam a migração de inúmeros subgrupos Mbayá e seus aliados Guaná-Chané

para o lado oriental do rio. Essa migração provavelmente se estendeu até as primeiras décadas

do século XIX. Os subgrupos Guaná-Chané que se estabeleceram ao leste do Chaco

9 "Relações por meio do casamento podem ser iniciadas com os membros de outras tribos de duas maneiras,

normalmente, quer um homem aruaque tome uma esposa estranha, ou uma mulher aruaque seja entregue a um

homem estranho. Em ambos os casos forma-se pelo matrimônio uma ligação muito forte entre os parentes de

ambos os lados...... sempre me deu na vista a relação extremamente íntima entre os cunhados, isto é entre o

marido e os irmãos de sua esposa" (Schmidt, idem, ib: 26).

10 "As tribos aruaques não se expandiram em massas compactas, partidas de um ou mais centros, por sobre a

atual região influenciada por sua cultura; foi a classe dominante, como a portadora propriamente dita dessas

culturas que difundiu sua influência sobre unidades étnicas cada vez maiores na região selvagem da América do

Sul. Mas exatamente se designaria essa espécie de expansão com o termo “colonização”, pois ela eqüivale, em

seus traços essenciais, àquilo que do ponto de vista europeu se quer designar por essa expressão. A espécie de

expansão que ocorre com as culturas aruaques seria mais acertadamente comparada com a colonização pela

cultura européia, tal como ela se verifica atualmente no continente africano. Por conseguinte as diferenças nas

diversas tribos aruaques não devem ser atribuídas a modificações sofridas por uma população originalmente

uniforme, devidas as condições de meio ou de tempo ou ainda a contatos externos com outras culturas, mas

baseiam-se simplesmente no fato de terem os aruaques, durante a sua grande obra colonizadora, entrado em

contato com tribos diversas nos diferentes lugares. As diversas tribos, após terem sucumbido ante os portadores

da cultura aruaque que nelas penetram tornando-se classe dominante, formaram a partir de então várias

pequenas subtribos da grande massa étnica que, pela superioridade dos Aruaques, se transformaram em

unidade cultural. A multiplicidade dos dialetos aruaques explica-se assim pela ligação do idioma aruaque com

diversos outros idiomas. Pelo mesmo motivo explica-se a grande variedade de bens culturais dentro da unidade

étnica pertencente à cultura aruaque, e a grande diferença no nível cultural da população... Digno de nota na

expansão das culturas aruaques por colonização é o fato de nada ter a ver com o poderio político, baseando-se

num fundamento puramente econômico-administrativo ... Explica-se assim por si mesmo, essa espécie de

colonização, o extraordinário fenômeno de não se achar o poder político nas mãos dos Aruaques em várias

regiões sul americanas, apesar da evidente predominância de sua cultura e seu sistema econômico-

administrativo (Schmidt, idem, id: 42-43).

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mantiveram contudo, no novo território, a forma tradicional de organização em metades e

estratos sociais endógamos, suas roças e também a aliança com os Mbayá-Guaykuru (Cardoso

de Oliveira, 1976: 26).

A resistência dos Mbayá-Guaykuru - aos quais “pouco faltou para que exterminassem

todos os espanhóis do Paraguai” (Azara, apud Baldus in Boggiani, 1945) - diante do avanço

dos paulistas que se dirigiam à região de Cuiabá, manteve os Guaná-Chané distantes de

maiores relações com europeus. Essa situação se manteve até a última década do século

XVIII, quando, em 1791, é assinado o tratado de paz entre a Coroa portuguesa e os Mbayá-

Guaykuru.

Esse tratado permitiu a fixação de forças portuguesas na margem direita do Paraguai,

ao mesmo tempo em que propiciaria o desgaste da aliança entre os Chanée os Mbayá. Pois

como visto, um dos sustentáculos desta aliança era o fornecimento de instrumentos de ferro

aos Chané-Guaná pelos Mbayá – e que os primeiros começariam a obter agora,

independentemente, através do comércio com os portugueses. Certamente, os Chané-Guaná

viram na aliança com os portugueses mais vantagens do que aquelas que lhes propiciavam os

Mbayá. O fato marcante é que as fortificações portuguesas estabelecidas nos primeiros anos

do século XIX na banda oriental do rio Paraguai se localizariam precisamente nas

proximidades das aldeias Chané-Guaná. Enquanto isso, os Mbayá se isolariam no interflúvio

Aquidabã-Nabileque.

A relação com os Mbayá (e que durou pelo menos três séculos) forneceu aos Chané-

Guaná, além de uma segurança que lhes facultou um crescimento demográfico significativo,

o conhecimento dos trabalhos em metal e, sobretudo, do pastoreio. Estes novos meios de

subsistência propiciaria àqueles grupos um domínio sobre o meio e a geração de excedentes

enormes no contexto das sociedades tribais sul-americanas. Daí os comentários admirados dos

viajantes e cronistas europeus que os conheceram nas primeiras décadas do século XIX.

A história do povo Kinikinau foi objeto da tese de doutorado de Iara Quelho de Castro

(Castro, 2010) e é a mais completa fonte sobre esse tema hoje encontrada. Os pontos

principais da trajetória histórica desse povo, minuciosamente descritos na tese citada, seguem

no quadro abaixo:

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Localização Período Fonte População

Chaco Boreal ... até meados

do séc. XVIII

Cabeza de Vaca;

Schmidl.

?

Margem ocidental do Paraguai

Séc. XVIII Azara 2.000

Margem oriental do Paraguai -

Presidio de Albuquerque

Final do séc.

XVIII até

1845.

Castelnau 700/800

Miranda - AGACHY 1850 até 1902 Castelnau,

Rondon

300-400

Somente a partir de meados do século XVIII as referencias etnonímicas (aos

Kinikinau), diferenciando-os dos Chané-Guaná conforme os subgrupos existentes, iriam se

tornar mais comuns (Castro, 2010: 195). Assim, Azara (1969 [1809]), que esteve na região

dos Chané-Guaná na segunda metade do século XVIII, relacionou os grupos localizados na

margem ocidental do rio Paraguai, considerando os Guaná o grupo mais numeroso do Chaco e

que compreendiam cinco “hordas”, que foram assim denominadas: Layana ou Eguaachigo,

cerca de três mil indivíduos; Chabarana ou Echoaladi, seis mil pessoas; Equiniquinau,

aproximadamente duas mil pessoas divididas em dois grupos, um no Chaco e outro

incorporado aos Mbaya; Ethelena, sete mil pessoas localizadas parte no Chaco, perto dos

Equiniquinau e outra parte a leste do rio Paraguai e os Nequecactemic, com trezentas pessoas,

que não se deslocaram para a margem oriental do rio Paraguai.

Francis Castelnau (1949 [1845]) testemunha que os “Quiniquinaus”, tinha sua

principal aldeia nas proximidades de Albuquerque, aldeia esta visitada por ele, anotando que

“possuem eles ainda um aldeamento perto de Miranda”11

. Este viajante estimou que a aldeia

dos Quiniquinau nas vizinhanças daquela vila (existia à época uma outra de "Guanás" -

provavelmente Echoaladi - e que também visitou) "compunha-se de setecentas ou oitocentas

11

“Os Guana ou Uanas dividem-se em quatro tribos principais: 1) os Guanás propriamente ditos, ou

Chualas, os quais, em sua maioria residem perto de Albuquerque, mas possuem uma pequena

ramificação nas proximidades de Miranda; 2) os Terenos, que possuem quatro aldeias perto de

Miranda, uma das quais (...) muito grande. São índios cavaleiros, agricultores e hábeis canoeiros; 3) os

Laianos, instalados em três ou quatro aldeamentos nas vizinhanças de Miranda e com hábitos muito

parecidos com os dois precedentes. 4) finalmente, os Quiniquinaus, cuja principal taba, nas

proximidades de Albuquerque foi visitada por nós. Possuem eles ainda um aldeamento perto de

Miranda (p. 308, grifo nosso).

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pessoas". Informa ainda que "estes índios são muito laboriosos e entretêm com os brasileiros

um grande comércio de farinha de mandioca e de arroz.; suas lavouras são extensas e muito

bem plantadas" (1949, tomo II: 280-281).

Segundo a interpretação de Castro, “(a) afirmação da nomeação dos Kinikinau,

portanto, se deu através da conjugação de diversos fatores e da presença de diferentes

agentes sociais, além dos militares, missionários e outros funcionários reais que atuaram e

circularam na região do Alto Paraguai, entre o final do século XVIII e o seguinte: viajantes;

botânicos e desenhistas de expedições geográficas; cartógrafos e engenheiros, o que colocou

as populações indígenas da região em contato com um contingente plural de novos sujeitos

sociais. Ainda que os encontros tivessem sido temporários eles proporcionaram o registro

das impressões europeias sobre a região, sua flora, fauna e os seus povos, gerando dados e

informações que concorreram para consolidar as nomeações e divulgar os costumes dos

diversos povos presentes nos territórios visitados pelos europeus a partir do final do século

XVIII” (op. cit: 204).

Continuando, a autora avalia que “(a) segunda situação que considero produtora de

possibilidades de se visualizar a manifestação das estruturas e princípios gerais

organizadores da atuação dos Kinikinau, em suas tendências aliancistas, apropriadoras e

integradoras, e aquela ocorrida no período que se estendeu do final do século XVIII a

meados do seguinte, correspondente ao tempo em que os Kinikinau, como os demais Guaná

migrantes, converteram-se em súditos portugueses e, em seguida, em um dos grupos

indígenas da emergente nação brasileira. Em um primeiro momento, eles buscaram os

agentes da Coroa portuguesa e por eles foram acolhidos, nas proximidades dos fortes

militares da província de Mato Grosso, hoje Mato Grosso do Sul, nas atuais regiões de

Corumbá e Miranda. Do ponto de vista dos luso-brasileiros tratava-se de uma estratégia que

visava assegurar a ocupação de fronteiras recentemente estabelecidas, e que coincidia com a

movimentação dos Guaná na transposição do rio Paraguai, para as suas margens orientais,

movimento que foi muito bem recebido pelos luso-brasileiros, como se vê nos documentos da

época.” (op. cit: 204).

Portanto, as fontes e mapas históricos do período (final do século XVIII e primeiras

décadas do seguinte) confirmam que foram os povos Chané-Guaná os verdadeiros

colonizadores da região compreendida entre a margem oriental do rio Paraguai até o

interflúvio dos rios Mboitetey (Mondengo ou Miranda) e Aquidauana.

Almeida Serra, em seu Parecer sobre a Defesa da Capitania de Mato Grosso, de 31 de

janeiro de 1800, salientava a importância estratégica da região de Albuquerque, a necessidade

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de se manter os povos indígenas como aliados, e os esforços dos luso-brasileiros para atrai-los

e mantê-los afastados dos espanhóis:

Este morro [Albuquerque] e um lugar importante do Paraguay, e que pede,

no caso de guerra, uma reforçada patrulha: porque elle dista uma milha do

angulo, que formam neste lugar as Serras de Albuquerque em que esta a

povoação deste nome, angulo que forma o lado oriental dellas (...) e o outro

lado que deste ponto volta para o poente; e como nas escarpas deste angulo

e correspondentes campos vivem fronteiros ao dito morro os mil e

quatrocentos índios Guaicurus e Guanas, nossos aliados, esta patrulha e

indispensável para segurar estas tribus na nossa amizade, e dissipar lhes o

terror e o pânico que conceberam pelos estragos, e mortandades que lhes

fizeram os hespanhoes; e evitar as persuasões desta vizinha nação, que

eficaz e simuladamente solicita chama-los a sua antiga amizade, e terras

(Serra, 1840: 37 [1800]).

Afastada a ameaça dos constantes ataques dos “índios cavaleiros”, pequenos núcleos

populacionais portugueses começariam a se estabelecer em torno das fortificações avançadas

que vinham sendo construídas na região nos anos que antecederam a assinatura do tratado de

paz com os Mbayá - e em função da disputa de limites com a Espanha: Forte Coimbra (1775),

Forte de Príncipe da Beira (1776) e Presídio de Miranda (1778).

As relações de amizade12

entre portugueses e Guaná-Chané seriam reforçadas pelos

agentes da Coroa: em 1797, um dos principais chefes destes povos, recebeu uma carta patente

do Governador Geral das Capitanias do Mato Grosso, em troca da sua fidelidade e vassalagem

à Coroa portuguesa. O documento recomenda aos agentes oficiais portugueses que:

(ao "capitão" Guaná e "a todos os seus") tratem e auxiliem com

todas as demonstrações de amigos e de vassalos da Coroa

Portuguesa, deixando-os gozar de todas as liberdades, privilégios

e isenções de que gozam os demais vassalos da mesma Coroa (...)".

(documento original depositado no Arquivo Público do Estado do

Mato Grosso, apud Carvalho & Carvalho, 1998).

Em 1803, o sargento engenheiro Ricardo Franco de Almeida Serra apresentou seu

"Parecer - Sobre os aldeamentos dos índios uaicurús e guanás". Neste texto, já se

12

"Em todos os lugares em que a literatura menciona a relação das tribos aruaques com os invasores europeus

é frisada sua disposição amistosa para com eles (...) e o motivo dessa harmonia com os invasores europeus está

intimamente ligado aos motivos da expansão das culturas aruaques. A fundação e manutenção da posição

dominante perante outras tribos de modo algum pode ser tão bem alcançada como meio das vantagens

oriundas de relações amigáveis com culturas mais elevadas. Característica é a maneira pela qual os Aruaques

procuram se prevalecer de sua boa relação com os europeus em detrimento de outras tribos que visam

subjugar" (Schmidt, idem, ib: 46)

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mencionava os Guaná (na verdade, os Kinikinau) vivendo há alguns anos em um aldeamento

com 600 "almas" nas cercanias de Albuquerque. Noticiava ainda que:

"(os Guaná) vendem todos os anos em Coimbra algumas redes e

panos, bastante galinhas, grande soma de batatas e alguns porcos,

tendo assim essas permutações enriquecido mais esta nação que os

uiacurús...".

Este autor estimou a população indígena (que incluía os Guaicuru) entre o forte

Coimbra e Miranda em dois mil e seiscentos indivíduos (Almeida Serra, 1845: 199).

As relações com os portugueses e brasileiros após 1791, tiveram variações entre os

diversos subgrupos Guaná. Hercule Florence descreveu, em 1828, um grupo ao qual

denominou “guanás” - provavelmente os mesmos Echoaladi de Albuquerque visitados mais

tarde por Castelnau - da seguinte maneira:

"De quantas tribo tem o Paraguai (o rio, esclarecemos), é esta que

mais em contato está com os brasileiros. Lavradores, cultivam o

milho, o aipim e mandioca, a cana-de-açúcar, o algodão, o tabaco

e outras plantas do país. Fabricantes, possuem alguns engenhos de

moer cana e fazem grandes peças de pano de algodão com que se

vestem, além de redes e cintas. Industriais, vão, em canoas suas ou

nas dos brasileiros, até Cuiabá para venderem suas peças de

roupa, cintas, suspensórios, cilhas de selim e tabaco.(1977: 103-

104).

Outros cronistas enfatizaram as diferenças entre os sub-grupos Chané-Guaná em suas

relações com os brasileiros, sempre mencionando que os Terena eram mais avessos à

intensificação das relações com os brasileiros. Por exemplo, Castelnau, em XXXXX:

"A 5 de abril fomos visitar o aldeamento dos Terenos (a aldeia

Bôocôti, atual Cachoeirinha), índios que pertencem à mesma nação

dos precedentes (Guaná), mas que até aqui têm muito poucas

relações com os brancos. É uma nação guerreira que conserva em

toda integridade os costumes de seus antepassados" (op. cit: 301).

Estes testemunhos nos levam a inferir que, até pelo menos a invasão das forças

paraguaias em 1865, os vários subgrupos Chané-Guaná aqui mencionados mantinham sua

autonomia e se relacionavam diferentemente com uma rarefeita população brasileira. Os

relatos enfatizam que, apesar de pequenas diferenças linguísticas, estes subgrupos

compunham uma mesma "nação", pacífica, industriosa e que supria as necessidades dos

poucos núcleos populacionais brasileiros na base do comércio.

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Os relatos dos cronistas da época mostram, com clareza, que as relações entre os

Guaná e os brasileiros estavam centradas na troca recíproca; era uma relação entre iguais,

mesmo que alguns testemunhos (o de Florence, sobretudo) indiquem a prestação de serviços

por parte dos índios aos brasileiros em algumas tarefas domésticas e a venda de mulheres.

Mesmo este fato não implicava qualquer tipo de servidão (e nenhum cronista chega a

mencionar algo próximo a isso nas suas descrições das relações entre aqueles índios e os

brasileiros), pois eram livres e espontâneas - ao contrário do que em geral sucedia em outras

regiões do país. É cabível supor que, do ponto de vista dos Guaná, eram eles os verdadeiros

colonizadores da região, tirando vantagem da relação com os brasileiros para, ao mesmo

tempo, livrarem-se (como o fizeram) dos Mbayá e imporem seu domínio sobre os demais

grupos indígenas da região.

“O engenheiro português Ricardo Franco de Almeida Serra, o comandante do

Real Presidio de Coimbra, Francisco Rodrigues do Prado, e o frei capuchinho

Jose de Macerata foram algumas das primeiras autoridades do Império luso-

brasileiro a registrarem a entrada dos Kinikinau no território da fronteira do

extremo oeste e a se relacionarem com aqueles grupos, e que entenderam que os

Guana, tangidos pelas tropelias dos Guaicuru, estariam em rota de fuga,

aportando na regiao guarnecida pelos lusos atraves do Comando Militar do Alto

Paraguai. Prado (1839 [1795]) registrou que em 1792, mais de trezentos Guana

‘vieram ao Presidio de Nova Coimbra pedir proteção dos Portugueses’ (p. 38).

Para Macerata, cerca de mil Kinikinau estariam fugindo da América espanhola,

a fim de ‘não sofrerem mais aos serviços e roubos da vagabunda e malfazeja

nação Guaicuru que os tinham ameaçado de tirar-lhes a vida’ (Macerata apud

Silva 2002: 37, apud Castro: 205-206).

Portanto, o caráter das relações entre os subgrupos Chané-Guaná e brasileiros era

pacífico e baseada na reciprocidade e respeito mútuos - e não há uma nota sequer, nos vários

cronistas ou nos documentos oficiais consultados, que faça alguma menção a choques ou

mortes entre aqueles dois grupos humanos. E o reconhecimento da importância da

manutenção desta relação para o Império brasileiro estava assentado na concessão de patentes

de "capitão" por parte do governo provincial do Mato Grosso a vários chefes Chané-Guaná.

Os documentos analisados indicam que, para os interesses estratégicos do Império na

região, era fundamental a aliança com os pacíficos e laboriosos Guaná-Chané- sobretudo em

uma fronteira cujo domínio português e posteriormente brasileiro, sempre foi problemático e

contestado pelos espanhóis e seus herdeiros. Contudo, o governo imperial tinha uma política

genérica para com os povos indígenas, política esta consolidada no "Regulamento das

Missões e Catequese dos Índios", baixada por Pedro II em 1845 e que jamais seria aplicada na

região.

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Os aspectos positivos da relação dos Chané-Guaná com os brasileiros seriam

reforçados pelo caráter da ocupação e a intenção da política do Império para a região:

“O avanço da ocupação espanhola na região efetuou-se através de

concessões do 'mercedes' de terras, com a obrigatoriedade dos

beneficiados arcarem com a responsabilidade da defesa do

território. Este último aspecto constitui a diferença essencial entre

os dois sistemas de colonização: o espanhol e o português. A

penetração deste último no vale do médio Paraguai processou-se

através de presídios guarnecidos por tropas regulares,

remuneradas e abastecidas com gêneros provenientes de outras

áreas e pelos índios. Por suas características, os fortes brasileiros

não entravam em conflito com os interesses indígenas (...). Na

capitania do Mato Grosso a mineração permitia poder aquisitivo

suficiente para utilização de escravo negro. Razão pela qual a

política do colonizador em relação ao índio foi mais branda. No

caso específico do guaicuru-guaná, os governadores perceberam

que a solução era de respeito mútuo. Esta atitude fez com se

estabelecesse um modus vivendi entre os dois grupos humanos”

(Assis Bastos, 1978: 135).

Este mesmo historiador afirma que até a década de 1860 não havia nenhum

estabelecimento de criação de gado digno de nota no interflúvio Miranda-Aquidauana-

Paraguai13

. Ou seja, as disputas territoriais com os Chané-Guaná (e outros grupos) somente

ocorrerão após a guerra com o Paraguai, quando se alterará radicalmente o caráter da

ocupação - e a intenção dos novos ocupantes - assim como a política oficial para a região

recém-conflagrada, como se verá adiante.

1.3 O padrão histórico geral de ocupação Chané-Guaná

O padrão de localização das aldeias (oneo) Chané-Guaná alterou-se ao longo dos anos

em função da limitação territorial imposta a estes grupos após a guerra com o Paraguai. Antes

da guerra - que aqui consideramos como os "tempos históricos" - quando a área ocupada pelos

sub-grupos Chané-Guaná era ainda grande, a distribuição das suas aldeias não diferia muito

do padrão "clássico" descrito por Sanches Labrador14

. Esse padrão combinava - como já

indicavam os primeiros cronistas, ainda no século XVII, para os Chané-Guaná do Chaco

meridional - uma agricultura bem desenvolvida com a caça, a pesca e, já no Brasil, a criação

de gado vacum e cavalar – com os quais aprenderam a lidar no longo período de convivência

13 “O território compreendido entre o Apa e o Miranda permaneceu domínio guaicuru (e Chané-Guaná,

acrescentamos) até a guerra do Paraguai. Somente após o término do conflito iniciou-se a implantação de

fazendas de pecuária na região.” (idem, ibidem: 131).

14 El Paraguai Catolico: 275-276

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que mantiveram com os Mbayá-Guaicurú.

No Chaco Meridional, a vida sazonal dos Guaná, dependente do regime de águas, foi

assim descrita:

"A maior parte do território consiste em terras baixas, que são

barrentas durante as estações chuvosas. Contudo, quando o calor

é intenso, a água extremamente escassa e mesmo água para beber

não pode ser encontrada, exceto próximo ao rio Paraguai ou a

outro rio que venha do interior e corra entre árvores. Quando a

água é escassa, a população se muda para lugares onde ela é

abundante, e subsiste caçando e pescando. Antes de deixarem seus

povoados, plantam milho, cabaças, algodão, tabaco e feijões que

abandonam, a fim de cuidarem de sí próprios. Quando pensam que

os grãos estão maduros, enviam um mensageiro para verificar. Se

este inspetor traz boas novas, eles retornam aos seus povoados e

cuidam de seus campos" (Sanches Labrador: 258, apud Cardoso de

Oliveira: 1976, grifo nosso).

Este modo de ocupação – com a fixação da aldeia em um ponto privilegiado do

território - exigia uma área de extensão considerável, posto que as roças (cawané),

pertencentes a um mesmo grupo de parentesco (liderado por um "capitão" ou chefe da família

extensa), iam se distribuindo em matas de "galeria" contíguas, ao longo dos anos.

De fato, os cronistas da época relataram que as aldeias Chané-Guaná possuíam, em

média, de 30 a 40 casas (ovocuti) e, segundo Sanches Labrador, cada casa "(media) de 16 a

20 jardas de comprimento por 8 de largura" e na qual viviam "(um) capitão (...) junto com

seus irmãos e seus parentes...(e) cada casa tem 5 portas". Se considerarmos que casas nestas

dimensões (15 x 7 metros no mínimo!) abrigariam entre 20-30 pessoas (cinco grupos

domésticos, delimitados pelas suas "portas"), então podemos estimar a população das aldeias

no Êxiva em cerca de 600 a 1.200 pessoas - cifra que, como vimos no tópico anterior, se

manteria no Brasil até a primeira metade do século XIX.

Os grupos domésticos (compostos por marido, mulher, filhos, genros e, eventualmente

abrigados de outros grupos indígenas, os chamados cauti/cativos) abriam áreas contíguas de

roças. Nenhum dos cronistas, do Chaco ou do Brasil, menciona as dimensões das roças nos

tempos históricos. Porém, os Terena atuais afirmam que as roças "de toco" de seus avós

possuíam, em média, 06 "tarefas" (uma "tarefa" é igual a 30 "braças" quadradas ou cerca de

3.600 m²) por grupo doméstico (ou seja, cerca de 2,16 hectares). Esta cifra é perfeitamente

compatível com os instrumentos então utilizados pelos Chané-Guaná em suas lides agrícolas

- equipamentos bem mais desenvolvidos que, por exemplo, aqueles utilizados pelos Guarani,

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seus vizinhos meridionais e também dependentes da agricultura15

.

Considerando que a regeneração natural das "capoeiras" no planalto pré- pantaneiro

(habitat tradicional Chané-Guaná no Brasil e cujas características ecológicas se assemelham

ao Chaco meridional, de onde migraram - cf. Oberg: 1949) dura cerca de 20 anos, então a área

de roça necessária a uma aldeia padrão (30 casas, com 150 grupos domésticos no total) seria

de, no mínimo, 6.480 hectares. Se acrescentarmos a esta área aquelas necessárias à criação de

bois e cavalos em regime extensivo (criação evidenciada por muitos dos textos históricos aqui

já mencionados), e ainda os campos de caça e as áreas de pesca e de coleta (que era a base

complementar necessária ao regime de chuvas e à paisagem ecológica do habitat), então

poderíamos estimar a área de ocupação efetiva para habitação permanente de cada aldeia, nos

tempos históricos, em pelo menos 30 mil hectares.

Portanto, a escolha do local para o estabelecimento das aldeias Chané-Guaná deveria

levar em conta a disponibilidade de matas que denunciavam solos propícios para a formação

das roças e áreas de caça, coleta e pesca (lagoas, sobretudo), necessário para o período de

seca. Ademais, barreiras e limites sociais impuseram a fixação da maioria dos subgrupos

Chané-Guaná naquela região. Ao sul (nas cabeceiras do Miranda e serra de Maracaju) e a

leste (os chamados “campos de Vacaria”, além Aquidauana), os limites para expansão seriam

dados, de um lado, pelos índios Guaxi e “Coroados” (Ofayé-Xavante) e, de outro lado, pelos

Kaiowá-Guarani (interflúvio Brilhante-Dourados-Apa). Ao norte, a barreira era dada pelo

Pantanal e os índios Guató, seus inimigos históricos– como mencionam vários cronistas (por

exemplo, Castelnau: 1949) e estudiosos (como Metraux, 1946).

Outro fator de fixação seria a relação com os novos aliados, os purutuyé, como já

mencionado. Os documentos citados até agora (cronistas e fontes oficiais), indicam o papel

fundamental dos Chané-Guaná no fornecimento de gêneros alimentícios e alguns bens

manufaturados (em algodão, palha e couro) para os raros núcleos populacionais brasileiros na

região acima delimitada (os presídios e guarnições militares de Coimbra, Albuquerque e

Miranda). Este comércio acentuou-se depois de finda a aliança com os Mbayá-Guaicuru. Para

os Chané-Guaná, os purutuyé representavam uma aliança muito mais vantajosa, como já

15

"Os Chanás (Guaná) são um povo modesto , bem humorado. Êles têm uma forma peculiar de cultivar a terra.

Com as espátulas acima mencionadas (paus de cavar, ilome'i , feitos de 'pau santo' - nota nossa) êles cavam e

revolvem, não como os espanhóis o fazem, mas sentados no chão. Suas espátulas têm cabos de uma vara de

comprimento ou de vara e meia. Os Chanás sentam e trabalham com suas espátulas até onde podem alcançar e

depois se deslocam até que toda a terra tenha sido preparada para o plantio..." (Sanches Labrador, op. cit.:

291-292)

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visto, que aquela com seus antigos aliados, pois conseguiam o que queriam (ferramentas e

gado) sem ter de ceder suas mulheres.

1.4 Os documentos do Império: a história oficial da ocupação territorial dos Chané-

Guaná (Kinikinau) na bacia do rio Miranda

A farta documentação oficial depositada no Arquivo Público do Estado do Mato

Grosso, torna possível traçarmos, com segurança, o processo histórico de ocupação do

interflúvio Paraguai-Miranda/Aquidauana pelos vários subgrupos Chané-Guaná e também

suas relações com os colonos e agentes do governo, no período que vai de 1820 até as

primeiras décadas da República16

. Reforçando o exposto no tópico anterior, a partir de 1837

todos os Presidentes da Província, nos seus relatórios anuais apresentados à Assembléia

Provincial, mencionam os Chané-Guaná como nações pacificas e das quais "temos tirado não

pequena vantagem para o serviço e defesa do Baixo Paraguai (...)" (José Antônio Bueno,

em 1837).

A já citada Iara Castro (2010: 20) aponta que a aldeia dos Kinikinau de Albuquerque

era “(c)onsiderada a mais exemplar aldeia da província de Mato Grosso, Bom Conselho

recebeu de Taunay o seguinte registro: ‘o aldeamento modelo no Baixo Paraguai era

incontestavelmente o de Matto Grande ou do Bom Conselho perto de Albuquerque, onde os

Kinikinau, (...) apresentaram os frutos valiosos da catequese bem inspirada’. O memorialista

Taunay também ofereceu indícios sobre as tendências dos Kinikinau de se relacionarem com

os regionais e de incorporarem os discursos e recursos disponibilizados pela sociedade

envolvente. Ao narrar seu encontro com um cacique, durante a invasão de Mato Grosso pelos

paraguaios, observando que aquele havia sido educado na Missão Nossa Senhora do Bom

Conselho, Taunay registrou que o indígena, ‘(...) Narrou-nos, com cores vivas e expressivas,

a invasão em suas diversas phases. Elogiou o comportamento de vários indivíduos de sua

tribu, e nunca falou de si. Em fim, mostrando sempre os princípios da boa educação (...).

Sabia ler e escrever, este capitão mantinha em sua aldea severa disciplina (...). Organizara

uma escola de meninos, em que figuravam os seus dous filhos e sempre se mostrara

affeicoado aos brasileiros, a elles chegando nas horas de infortúnio” (Taunay, 1931: 13 apud

Castro, 2010: 230-31.

16

Essa documentação consiste nos "Relatórios dos Presidentes da Província de Mato Grosso" (abrangendo o

período de 1835 a 1912); nos "Livros de Correspondência da Diretoria Geral de Índios da Província do Mato

Grosso" (período de 1848-1873) e nos "Livros de Registros das Correspondências Oficial entre a Presidência da

Província do Mato Grosso e as Comarcas Municipais, Paróquias, Bispos, Juizes de Paz, Diretor Geral de Índios,

Administrador do Correio e Pessoas Particulares da Província" (período de 1834-1887). Esse material foi

compilado e analisado criticamente, no que diz respeito aos Aruaque e Guaná, por Silvia M.S. Carvalho e

Fernanda Carvalho ((inédito, 1997), trabalho que aqui se utiliza.

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Joaquim Ferreira Moutinho, na ocasião em que visitava a fazenda do Barão de Vila

Maria, cerca de trinta quilômetros de Corumbá, em 1862: “S. Excia., reunindo ali a gente

mais grata de Corumbá e Albuquerque, convidou também os Quiniquinaus, dos quais

apreciamos o adiantamento, que deviam os incansáveis esforços do frei Angelo de

Caramanico. Os rapazes formavam uma excelente banda de musica e as raparigas todas

muito bem vestidas e calcadas, dançavam perfeitamente. Formamos com elas uma quadrilha

de 16 pares, escolhendo dentre muitas outras as mais mocas e bonitas, e que trajavam

melhor. Seus vestidos eram de cambraia branca orlada de fitas azuis ou cor-de-rosa, com

cintos da mesma cor do enfeite, e tinham na cabeça grinaldas de flores naturais muito bem

dispostas. Ficamos pasmos das circunspeção e moralidade dessas raparigas, algumas das

quais de tipo belíssimo. Acabando de dançar, sentavam-se todas, não se negando a uma

conversa seria que entretinham muito bem” (Moutinho, 1869: 222 apud Castro, 2010: 233).

As vésperas da Guerra do Paraguai ainda se tinham noticias sobre a Aldeia de Bom

Conselho. Herculano Ferreira Penna, em 1864, forneceu informações sobre esse aldeamento

por meio de um relatorio, assim expresso:

“(...) apresento-vos um pequeno quadro estatistico da mesma aldea,

que me foi comunicada pela Diretoria Geral em 24 de abril ultimo

[1864]:

- indios da tribu Kinikinau, do sexo masculino, de 1 a 60 anos de idade:

202

- indios da mesma tribu, do sexo feminino, de 1 a 50 anos: 203

- matriculados na escola de primeiras letras: 42

- meninas que aprendem a cozer e fiao algodao: 27

- cinco casas construidas pelo actual diretor, sendo uma para a

directoria, outras para as escolas de primeiras letras e costura, outra

para a de musica, outra para a oficina de alfaiate e outra para o quartel

de destacamento, todas cobertas de telhas, rebocadas e caiadas, exceto a

ultima e uma olaria” (Relatorio de Herculano Ferreira Penna, em

03/05/1864. Arquivo Publico de Mato Grosso).

“(...) cheguei a Albuquerque e de acordo com os diretores das aldeias fiz

organizar uma Companhia de sessenta índios (trinta e oito kinikinaos e

vinte e dois guanas) cujos nomes contarão inclusos relações, que por

copia passo as mãos de V. Exa. por esta mesma gente mandei tirar e

fazer lenha em quanto outro serviço se não oferece. Delles sao os dez

homens que seguem nesta ocasião para essa cidade tripulando as duas

canoas com as quais quinze praças e um alferes que vierão de Villa

Maria. Os índios organizados receberão duzentos reis por dia além do

sustento”. (Oficio do Comandante Antonio Peixoto para Capm. de Mar e

Guerra Augusto Leverger Presidente e Comandante da Província -.

Arquivo Publico de Mato Grosso. Assuntos Militares, n. 48. Lata 1854).

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“Pelo que respeita aos Aycurus, Terenos, Guanas, Laianas, Guato e

Quiniquinaus com satisfação vos asseguro, que aldeados, ou dispersos

por todo o Baixo pantanal, eles continuam a prestar uteis serviços nesta

parte da fronteira”. Oficio Joaquim Alves Ferreira ― Diretor dos Indios

ao Ilmo. Snr. Dr. Joao Crispianno Soares Presidente desta Provincia,

1847 (Arquivo Publico de Mato Grosso).

Comentando estes documentos, Iara Castro deduz que “(f)rente a ambiguidade dos

serviços prestados pelos funcionários do Estado imperial, que se colocavam como defensores

dos índios, mas que ao mesmo tempo não hesitavam em usar a forca repressora para se

fazerem obedecidos, os Kinikinau não ficaram passivos, recusando ou abandonando o serviço

considerado abusivo. Essa percepção dos indígenas encontra-se documentada em vários

registros. Em 1860, por exemplo, se notificou ‘ter havido na Aldea [dos Kinikinau] uma

sublevação de índios’. Frente ao evento foi solicitado um destacamento militar para as aldeias

da região de Albuquerque, ‘tanto para o policiamento (...) como para fazer os índios

respeitarem os contratos de locação de seus serviços, pois que, depois da retirada do Corpo

da Cavalaria, abandonaram com facilidade e caprichosamente os seus patrões’. (Oficio de

Joze Rufo de Pinho ao presidente da província de Mato Grosso Antonio Pedro de Alencastro.

Lata 1835 C. Arquivo Publico de Mato Grosso, in Castro, 2010: XXX).

Em 1848, em discurso a Assembleia Legislativa Provincial, o presidente da Província

de Mato Grosso, Estevão Ribeiro de Rezende, mencionava a visita de diversos caciques

Guana, Layana, Guato e Kinikinau que foram a cidade de Cuiabá para cumprimenta-lo e

oferecer serviços:

Durante o ano próximo passado aqui estiverão na Capital diversas hordas

de todas aquelas Nações, tendo vindo algumas delas guiadas por seus

caciques, dirigidamente a cumprimentar-me e oferecer seus serviços.

Mandei-os vir a minha presença, e recebi-os com agasalho, e a todos

mandei brindar, quanto possível, com ferramentas próprias para a

lavoura, ou conserto das que traziam, e com algum vestuário de tecidos

grosso (Discurso do Presidente da Província de Mato Grosso, Estevão

Ribeiro de Rezende, em 1848, a Assembleia Legislativa Provincial -

Arquivo Publico de Mato Grosso).

Outra aguda observação de Iara Castro diz respeito às estratégias dos Kinikinau nas

suas relações com os portugueses e neobrasileiros recém-chegados à fronteira:

A condição de índios aldeados, pacíficos, trabalhadores e situados em uma

região de fronteira que devia ser consolidada, livrou os Kinikinau daquele

tipo de extinção, sendo decisiva para a preservação da sua existência

coletiva. Ao assimilar as instancias de poder do Império brasileiro, através

de sua articulação com a Diretoria Geral de Índios (DGI), da província de

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Mato Grosso, como se viu no capitulo anterior, os Kinikinau solicitaram o

seu aldeamento, obtendo ferramentas, ferro, medicamentos e outros bens;

aumentaram a possibilidade de venda dos seus produtos e se

transformaram em índios da mais elogiada das aldeias daquela região.

Nesses termos marcaram sua presença como um dos grupos indígenas mais

“civilizados”, habilidosos e receptivos. Com essa qualificação, passaram a

ser identificados nos registros administrativos, nos relatórios dos

missionários e nos relatos dos viajantes que descreveram a sua aldeia de

Bom Conselho, mantida ate a deflagração da Guerra contra o Paraguai, no

momento em que, mais uma vez, demonstraram sua aliança, lealdade e

solidariedade ao Império brasileiro, participando diretamente do conflito e,

dessa forma, forjando outro espaço na sociedade envolvente para o seu

reconhecimento. Nesse sentido, no tempo em que se produzia a ideia de

desaparecimento de muitos povos indígenas, no contexto geral das politicas

de integração do século XIX e no cenário da Guerra da Tríplice Aliança

(1864-1870), também conhecida como Guerra do Paraguai, os Kinikinau

foram um dos grupos que conseguiu manter sua visibilidade como súditos

do Império brasileiro, trabalhadores e por sua ativa participação naquele

conflito. (Castro, 2010: 251).

Em 1847 era nomeado - em observância ao recente (1845) Regulamento das Missões

e Catequese dos Índios do Império - o primeiro Diretor Geral de Índios da Província (Joaquim

Alves Ferreira). Em seu relatório inaugural, este funcionário descrevia assim os Guaná17

:

"7 - Guanás: As quatro tribos de se compõem esta nação (Terena,

Kiniquinao, Echoaladi e Laiana) pouco ou nada diferem entre si

quanto ao modo de existência; seus costumes são mansos e pacíficos e

hospitaleiros; vivem reunidos em aldeias mais ou menos populosas e

muitos deles se ajustam para serviços de toda espécie em diversos

pontos da Província e mormente para a navegação fluvial. Sustentam-

se da caça e da pesca, mas principalmente da carne de vaca e dos

produtos de sua lavoura. Cultivam milho, mandioca...arroz, feijão,

cana, batatas, hortaliças e igualmente todos os gêneros de agricultura

do país. As suas colheitas não só chegam para seu consumo como

lhes resta um excedente que vendem a dinheiro ou permutam por

diversas fazendas, ferramentas, aguardente, espingardas, pólvora,

chumbo e quinquilharias e bem assim gado vacum e cavalar de cuja

criação se ocupam. Fiam, tecem e tingem o algodão e a lã do que

fazem ótimas redes, panos, cintos e suspensórios e quase todos

entendem o nosso idioma e estão em estado de se curar de sua

educação intelectual e religiosa.

Da tribo que conserva o nome de Guaná, há uma aldeia junto a

Freguesia de Albuquerque e outra na margem do rio Cuiabá.

8 - Guaná Kinikináo: em número de perto de oitocentos, vivem em

uma aldeia no Mato Grande distante três léguas do poente de

Albuquerque; existe outra aldeia de duzentos indivíduos nas

imediações de Miranda.

17

Carvalho & Carvalho, op. cit.: 45

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9 - Guaná Terenas: vivem aldeados nas imediações do Presídio de

Miranda

10 - Guaná Laianas: habitam também na vizinhança do mesmo

presídio

11 - "Guaxi": nação quase extinta cujo atual modo de vida muito se

assemelha ao dos Guanás e Guaicurús de Miranda onde residem"

O substituto deste Diretor Geral, em 1852, já noticiava a presença entre os

Quiniquinao de Albuquerque do missionário capuchinho Frei Mariano de Bagnaia,

confirmando ser a única "aldea regular" (nos termos do Regulamento de 1845) existente na

região. Na ocasião, esse aldeamento (denominado pelo missionário de Nossa Senhora do Bom

Conselho) já dispunha de um "mestre de primeiras letras". Neste mesmo relatório, o Diretor

Geral indicava que:

"em Miranda, onde há uma muito grande porção de Guanás e

Guaicurús semicivilizados, muito conviria, como tem se tentado,

formar uma aldeia regular; mas o missionário Frei Antonio de

Molinetto não se dá com os índios e moradores de Miranda, nem os

índios e moradores de Miranda com ele".

Os relatórios seguintes continuam tratando como "regular" apenas a aldeia de N.Srª do

Bom Conselho - e solicitando apoio para "aldeiar os Guanás e Guaicurús de Miranda". Em

1858, informava-se18

:

"(Os)Terenas, Lainos e Quiniquinaos habitantes das imediações

de Miranda pertencem à tribo da Nação Guaná e o número de seus

indivíduos sobe a 2.300", acrescentando ainda que em

"janeiro do corrente ano foi nomeado o capitão Caetano da Silva

Albuquerque Diretor das Aldeias destes índios, para fim de

prepará-los de ante mão para em tempo oportuno se reunirem sem

dificuldade numa só aldeia e receberem de bom grado a

catequese(..)."(in Castor, 2010: 337, grifo nosso)

Em 1859 frei Mariano de Bagnaia seria nomeado diretor das aldeias de Miranda e no

ano seguinte o Presidente da Província (Antônio Pedro de Alencastro) recomendava a criação

de uma "Aldeia Normal na vila de Miranda" solicitando a construção de um templo e uma

escola de primeiras letras. Com esse aldeamento o governo provincial pretendia aplicar as

determinações do Regulamento de 184519

.

18

RELATORIO do estado da catequese e civilizacao dos Indios. Do Diretor Geral dos Indios Joao Baptista

d’Oliveira ao Presidente da Provincia de Mato Grosso Joaquim Raimundo de Lamare, 31 de dezembro de 1858.

In: Diretoria Geral dos Índios (1848-1860). APMT, Secretaria de Administracao, Cuiaba. 19

RCID da TI Taunay-Ipegue, p. 22.

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Em 1861, em ofício dirigido ao Presidente da Província, o Diretor Geral dos Índios

comunicava que:

"(...) a única sesmaria que me consta ter sido concedida nesta

Província para missão de índios é a da Chapada, que continua a ser

cultivada pelos descendentes dos concessionários... Existem mais na

província quatro aldeias de índios ocupando terrenos ainda não

concedidos, sendo a do Bom Conselho em Albuquerque, a Normal

mandada crear por V.Exª na vila de Miranda, a de Bororós Cabaçaes

(...) a de Bororós da Campanha (...). Entendo que para essas aldeias

deve-se conceder os terrenos por elas ocupados, abrangendo os seus

cultivados, sendo que para a 1ª, 3ª e 4ª meia légua em quadro de

matas que as circundam, e para a 2ª uma légua de testada e três de

fundo, por ser aquele lugar menos favorecido de matas e ter de

reunir-se ali tribos que habitam as vizinhanças da mesma vila de

Miranda" (grifo nosso)20

.

Esta é uma das poucas menções que encontramos nos documentos oficiais do Império

sobre a situação legal das terras das aldeias Chané-Guaná situadas na vila de Miranda (que

abrangia então os atuais distritos de Miranda, Jardim e Aquidauana). No ano anterior o

mesmo Diretor de Índios comunicava o Presidente da Província que o diretor das aldeias

de Miranda (já o frei Mariano de Bagnaia):

"(...) não podia (...) pela absoluta falta de animais, percorrer as

mesmas aldeias que se acham muito distantes para administrar o

batismo e para conseguir a função dos índios na Aldea Normal criada

por V.Exª (...)".

Os dois últimos fragmentos de ofícios citados, leva à interpretação de que a criação do

aldeamento de Miranda nos termos do Regulamento das Missões de 1845 – e para o qual o

Diretor Geral solicita, como visto, cerca de 10.800 hectares de terras de matas, fora o “seu

cultivado” – deveria agregar as demais aldeias da vila de Miranda. Porém, isto não

ocorreria. De fato, em 1862, o Diretor de Índios oficiava o Presidente da Província que:

"(...) grande é o número de índios que para ali (Aldeia Normal)

foram atraídos pelo referido Missionário (frei Mariano de Bagnaia), e

uma não pequena porção ainda resta disseminada nas vizinhanças

daquela vila que o Diretor empenha-se em incorporá-la na referida

aldeia; o que será de grande conveniência e utilidade, por ser um

recurso aos agricultores da vila de Miranda, não só porque os Índios

terenas e laianas, que nela habitam, prestam-se aos mesmos trabalhos

dos (kinikinau, diga-se) da aldeia do Bom Conselho, como por

abastecerem aquela vila de gêneros alimentícios de suas plantações"

(grifo nosso).

20

RCID Taunay-Ipegue, p. 23.

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Segundo se infere dos relatórios citados, existiam no início dos anos 1860 (ou seja,

pouco antes da invasão da região pelas tropas paraguaia), as seguintes aldeias Chané-Guaná

na circunscrição da vila de Miranda21

:

Albuquerque (exclusivamente Kinikinau)

Ipegue (maioria Terena e algumas famílias Echoaladi)

Boôcoti (ou "Normal", "Grande" ou "Cachoeirinha" - maioria Terena e algumas

famílias Laiana)

Tuminiku (nas proximidades da atual aldeia do Bananal - exclusivamente Terena)

Coxi (junto ao Taquari, no atual município de Coxim, provavelmente Echoaladi)

Naxe-Daxe (entre Ipegue e Cachoeirinha, no córrego do mesmo nome - Terena)

Háokôé (situada a uma légua ao nordeste da aldeia Tuminiku - provavelmente Terena

e Laiana)

Agachi (junto ao rio do mesmo nome, ao sul do Ipegue - Kinikinau)

Eponadigo ou Ponadigo (afluente do Agachi - Kinikinau-Guaicuru)

Kamakué ( ? - provavelmente Laiana)

Akulé (nas cercanias de Miranda e origem provável das atuais aldeias

Moreira/Passarinho - Laiana e Echoaladi)

Inikaé (junto ao rio Miranda, nas imediações da atual Lalima - Guaicuru e Laiana)

Maguo (onde hoje se situa o povoado de Duque Estrada, em Miranda - Laiana)

Contudo, as terras destas aldeias continuavam sem providências legais oficiais. O

Diretor Geral dos Índios do Mato Grosso (João Baptista d'Oliveira), em seu relatório anual ao

Presidente da Província datado de 1º de Maio de 1863, expunha a situação, no tocante às

aldeias "regulares" de Albuquerque e Miranda, nos seguintes termos:

"Nenhum patrimônio foi concedido às referidas aldeias, as quais

foram assentadas sobre as (terras) que de há muito habitavam os

respectivos índios, existindo por isso somente o direito de posse (...).

Também não há arrendamentos ou aforamento de terras (como

determinava o Regulamento de 1845, lembramos), porquanto há nas

aldeias matas escassamente suficiente para plantação dos respectivos

habitantes".

Resumindo os dados até aqui apresentados, podemos afirmar com segurança que os

Kinikinau, e demais subgrupos Chané-Guaná, desde pelo menos a primeira década do século

21

RCID TI Taunay-Ipegue, p.24.

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XIX, habitaram sem descontinuidade a região compreendida pelas bacias dos rios Paraguai (a

oeste), Miranda-Aquidauana (a leste e ao norte) e as serras da Bodoquena e Maracajú (ao sul).

1.5 A guerra com o Paraguai e pós-guerra: a dispersão das aldeias e a perda dos

territórios tradicionais

A eclosão do conflito entre o Paraguai e a Tríplice Aliança, no final de 1864, viria a afetar, de

forma dramática, a vida em todas as aldeias Chané-Guaná. Um dos palcos do conflito foi

justamente em território destes povos e, como aliados que eram dos brasileiros, sofreriam

ataques por parte das tropas invasoras. É certo que todas as aldeias então existentes na região

dos rios Miranda e Aquidauana se dispersaram, com seus habitantes buscando refúgio em

matos inacessíveis na região (como o lugar chamado Pulôwô'uti, para aonde foram os

moradores de Cachoeirinha) ou nas serras de Maracajú, onde Taunay esteve em 1866.

No relatório sobre o "estado da catequese" em 1866, o Diretor de Índios informava que

"(...) nada posso informar a V.Exª sobre o estado das aldeias...em

conseqüência de achar-se aquela parte da província ocupada pelos

paraguaios desde janeiro do ano passado(...)"

Em 1870, o mesmo Diretor noticiava ao Presidente da Província que o diretor das

aldeias de Miranda, Frei Mariano, havia sido capturado e feito prisioneiro pelas forças

invasoras. Antes, em 1866, a aldeia do Ipegue seria saqueada e queimada por tropas

paraguaias. E os Kinikinau foram aqueles que mais sofreram com a guerra:

“Nesse sentido, no tempo em que se produzia a ideia de desaparecimento

de muitos povos indígenas, no contexto geral das politicas de integração

do século XIX e no cenário da Guerra da Tríplice Aliança (1864-1870),

também conhecida como Guerra do Paraguai, os Kinikinau foram um

dos grupos que conseguiu manter sua visibilidade como súditos do

Império brasileiro, trabalhadores e por sua ativa participação naquele

conflito. A Guerra da Tríplice Aliança provocou uma serie de desastres,

que atingiram duramente os povos indígenas da região platina. Foram

vitimados os Kinikinau, os Terena, Layana, os Mbaya-Guaicuru e os

Guarani, com efeitos catastróficos em termos demográficos, em

consequência do envolvimento direto, e em relação as suas terras, uma

vez que parte da província de Mato Grosso tornou-se palco de guerra.

Dentre os Guaná, os Kinikinau e os Chavarana-Echoaladi (“Guana”)

estiveram envolvidos em duas frentes, em Miranda e em Albuquerque.

Nessa ultima, os Kinikinau tiveram seu aldeamento desmantelado, sendo

considerados extintos nessa região. O Diretor Geral de Índios, Antonio

Luiz Brandao, em correspondência oficial, datada de 13 de marco de

1872, considerou que os Kinikinau e os Guana de Albuquerque “foram

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conduzidos pelos paraguayos para Assumpção e lá morrerão todos” (p.

83)”. [Castro, 2010: 251-2].

As antigas aldeas de índios existentes em Albuquerque, com a invasão

paraguaya desaparecerão, e seos restos existem hoje espalhados pelo

Município [de Corumba] confundidos com a demais população,

empregando-se os indivíduos adultos do sexo masculino principalmente

como tripulantes das canoas e nos trabalhos de lavoura (Relatorio dos

Vereadores Joao Lopes Carneiro da Fonseca e Jacinto Pompeu de

Camargo sobre o estado da lavoura no município de Corumbá, ao

Presidente da Província de Mato Grosso, em 1 de novembro de 1872.

Manuscrito. Lata 1872B. Documentos avulsos – Arquivo Público do

Mato Grosso).

Relatorio do Presidente da Província de Mato Grosso, Tenente Coronel Francisco Jose

Cardoso Junior, de 1873, apontava que a maioria dos Kinikinau da região de Albuquerque foi

considerada dizimada pela guerra e que os sobreviventes, embora dispersos, permaneceram na

região do aldeamento destruído (apud Castro, 2010: 252):

Os Kinikinau ― é da tribu dos Guana. O resto dessa família, que muito decresceu

com a invasão paraguaya, anda dispersa por Albuquerque e Miranda. E difficil

precisar quantos existião antes da indicada invasão, porem calcula-se em mais de

1.000 os membros dessa mesma família. Servia lhes de Director de Albuquerque

Frei Angelo de Caramonico, que sendo prisioneiro dos paraguayos, foi por elles

mortos. Plantavão canna, arroz, feijao e milho. Vivião e vivem ainda os que

sobreviverão, apos a invasão paraguaya, da caca, da pesca, do que lhes rendia o

ajuste do seu serviço, quer aos agricultores, ou criadores, quer aos navegantes.

Foi uma das raças que mais soffreu com a invasão: a maior parte dos índios,

como os prisioneiros, seguirão para Assumpção, donde bem poucos retornarão

(p. 137).

Alfredo de E.Taunay (nas obras "Entre os Nossos Índios"; "A Retirada da Laguna" e

"Cenas de Viagem") descreveu com alguns detalhes o envolvimento dos Chané-Guaná na

guerra. Sobre os fatos envolvendo os Kinikinau neste episódio e aos comentários de Taunay,

Iara Castro (op. cit.: 243-245) observa que:

A Guerra da Tríplice Aliança, dessa forma, tornou-se outra referencia a

partir da qual os Kinikinau se fizeram percebidos, constituindo outro

espaço de sua visibilidade. Iniciado o conflito foram um dos primeiros

grupos indígenas a se envolver diretamente, sendo atingidos tanto no

aldeamento de Albuquerque quanto no de Miranda. Em Miranda, a ação

dos Kinikinau foi realizada sob a liderança de Pacalalá a quem Taunay

dedicou rasgados elogios: (...) era o procurador infatigável das queixas e

reclamações que sua gente tinha dos moradores de Miranda (...)

denunciava as irregularidades dos contractos ou dos desmandos occorridos

em sua aldea (...). Pedia providencias; indicava medidas acertadas, de

reparação (...). Assim, estava Pacalalá naturalmente indicado para assumir

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a chefia de sua gente numa emergência grave como a que decorrera da

invasão paraguaya. E os acontecimentos justificariam plenamente a

confiança depositada em sua intelligencia, coragem e espirito de energia e

decisão (Taunay, 1932: 29-30).

Taunay (1931) narra que Pacalalá, ao sentir que os Kinikinau estavam sendo

explorados pelos moradores, ameaçou as autoridades de Miranda, onde estava

localizada a sua aldeia, “de ir ate a Corte para falar com o Imperador que e o Grande

capitão” (p. 30). Castro observa que a “apropriação dos dispositivos legais do Estado

imperial brasileiro e a noção de ‘direitos’ teve como essência e ponto de partida a

posição de ‘súdito’ assumida pelos Kinikinau, que passou a ser evocada em defesa de

seus interesses, e na expectativa da devida proteção requerida por aquele estatuto”.

Os Kinikinau, dessa maneira, organizaram um refugio na região de Aquidauana

e, sob o comando de Pacalalá, realizaram os serviços de patrulhamento, de sequestro de

reses nos campos circundantes ao abrigo, e de plantio, para atender a população

brasileira que lá também se refugiou: “(...) mandou Pacalalá que todos os Kinikinau

prontamente rocassem e plantassem. Ele próprio deu o exemplo (...) também foram os

seus os primeiros a recolher abundantes cargas de milho e feijão” (Taunay, 1932: 31,

apud Castro, 2010: 235).

Apesar da intensa participação dos Kinikinau e Terena em favor das forças brasileiras,

o governo do Império não reconheceria estes esforços, não consignando um palmo sequer de

terras para aqueles índios - como o faria, em 1880, para os Kadiwéo na concessão de cerca de

quinhentos mil hectares de terras na região do Nabileque/Aquidabã.

Se a guerra com o Paraguai teve como consequência, para os Chané-Guaná, a

dispersão dos grupos domésticos e de suas aldeias tradicionais, o pós-guerra imediato

estabeleceria os parâmetros sociais de uma nova relação com os porutuyé, fundamentada na

subordinação política dos seus homens (facultada pelo enfraquecimento dos laços da

solidariedade tribal durante a dispersão) e na exploração da mão-de-obra indígena (propiciada

pela expropriação dos antigos territórios tribais).

O significado social e cultural da dispersão das aldeias dos povos Chané-Guaná

(Kinikinau, Terena e Laina) durante a guerra pode ser assim resumido: antes do conflito, estas

sociedades estavam estruturadas em estratos sociais hierarquizados e organizadas

espacialmente em aldeias redondas, habitadas por uma população numerosa; essa população

produzia excedentes que por sua vez fundamentava uma relação de troca recíproca, como

visto e fartamente documentada, com uma rarefeita população brasileira. Este padrão

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socialmente sofisticado, se comparado ao conjunto das sociedades indígenas sul-americanas,

só poderia vingar se assentado em uma base territorial ampla - como vimos. A dispersão das

aldeias poderia ter sido um evento passageiro e sem poder suficiente para abalar e transfigurar

inapelavelmente a estrutura social dos povos Chané-Guaná, não fosse a perda das suas bases

territoriais tradicionais - e que teve como consequência a perda da autosuficiência econômica

das aldeias - que acarretou, por sua vez, uma alteração drástica no modus vivendi com a

população regional, agora já não mais rarefeita: a situação de "servidão" ou "cativeiro" no

pós-guerra fez com que a sociedade Terena passasse de fornecedora de bens e produtos para

fornecedora de mão-de-obra semi-escravizada para uma sociedade regional em processo de

constituição22

.

Os Kinikinau (e os Terena) não abandonaram em definitivo suas antigas aldeias,

voltando a ocupá-las tão logo as forças paraguaias se retiraram - segundo demonstram os

documentos oficiais do Império acima apresentados; porém, em pouco tempo, já não

dispunham das bases que o seu antigo território lhes proporcionara, na medida em que grande

parte dele ia lhes sendo tomada por terceiros, à força ou por ardis aparentemente legais. Foi

nestes pequenos espaços que os Kinikinau e Terena conseguiram estabelecer uma nova

sociedade, construída com os fragmentos da antiga estrutura social, em um processo gradual -

e raro - de sedimentação social por agregação paulatina de alguns dos grupos domésticos

antes dispersos e, depois de 1910 - com a criação do SPI - de outros que se libertariam do

"cativeiro".

Esse tempo pós-guerra é conhecido pela maioria dos Terena e Kinikinau

contemporâneos como o tempo da servidão ou do cativeiro (Bittencourt & Ladeira, 2000).

Dispersos em razão do conflito, os vários subgrupos Chané-Guaná, tentariam recompor suas

antigas aldeias, agora pedindo "licença" aos novos ocupantes. É a época em que, com apoio

das autoridades do Império, tem início a reorganização do espaço territorial na zona do

22 “A fixação dos desmobilizados inicia um ciclo de colonização que iria até a primeira década do século

seguinte (...). Esse ciclo corresponde ao surgimento de verdadeiras fazendas, já com características ‘modernas’,

pois constituídas de pastos delimitados por cercas de arame (...). No ciclo anterior – desde as primeiras descidas

de gado do ‘triângulo mineiro’ até o início do conflito com o Paraguai – o gado não se circunscrevia a áreas

cercadas, pois os extensos campos e o pequeno número de criadores disso não tinham necessidade. No ciclo

seguinte, face ao aumento da população regional e, consequentemente, com o aparecimento de novos

fazendeiros, a disciplinação dos territórios foi inevitável. Nesse ciclo (dos ‘desmobilizados’ do pós-guerra) a

mão-de-obra indígena viu-se incorporada definitivamente na economia regional. Se antes havia servido de

produtora de bens agrícolas para um comércio irregular, organizado em termos de troca de produtos primários

com mercadorias (...), agora sua vinculação à ordem social e econômica regional passava a institucionalizar-se

de duas maneiras: como cativos, em posição simétrica aos escravos remanescentes; ou como peões ‘livres’, ainda

presos às fazendas por meio de ‘contas intermináveis’, assumidas compulsoriamente com a ‘Casa’, em suas

relações de trabalho (...). Os primórdios do século XX iria encontrar os Terena nessa situação(...).” (Cardoso de

Oliveira, 1968:40-42).

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conflito, com a regularização fundiária em prol dos novos ocupantes, intensificando-se

paralelamente a abertura dos estabelecimentos pecuários - atividade econômica predominante

já antes do conflito com o Paraguai, nos chamados "campos de Vacaria" - e através da qual se

pretendia consolidar a ocupação brasileira na região recém-conflagrada.

Este grande empreendimento de reordenação territorial – e consolidação da fronteira –

só foi possível graças à "liberação" das terras indígenas e o uso intensivo da sua mão-de-obra.

Os relatos dos velhos Terena e Kinikinau sobre este período são eloquentes:

"O pessoal daquela época tinha medo porque ainda se lembrava do

patrão que os chicoteava na fazenda. Quem se atrasava para tomar

chá de manhã era surrado (...) foi o finado meu avô quem me contou.

Como castigo o pessoal tinha que arrancar mato com a mão. Quando

a comida estava pronta, eles mediam toda a sua tarefa. Eram quinze

braças de tarefa e, mesmo não terminando a tarefa do dia, de manhã

mediam outra tarefa, que acumulava" (João Martins Menootó, ancião

de Cachoeirinha apud Bittencourt & Ladeira, 2000: 78).

“Os meus avós vieram da fazenda Imbauval, do Casemiro Câmara,

quando tiraram essa terra aqui (Lalima). Nessa fazenda eram cativos.

Aquele tempo era do cativeiro, todo fazendeiro tinha quatro, seis

famílias trabalhando de cativo. Só depois de 1904 que tiraram estas

posses para os índios os meus avós se libertaram”. (Gonçalo

Cabroxa, kinikinau de 92 anos morador do Lalima e entrevistado em

01/03/2018).

O advento da República – e as concessões político-administrativas descentralizadoras

feitas aos Estados federados e, consequentemente, aos chefes políticos regionais – só fez

agravar a situação dos Chané-Guaná. Neste sentido, o seguinte depoimento do então major

Cândido Mariano da Silva Rondon é revelador:

"São comumente explorados pelos fazendeiros. É difícil encontrar um

camarada Terena que não deva ao seu patrão os cabelos da cabeça

(...). Nenhum 'camarada de conta' poderá deixar o seu patrão sem que

o novo senhor se responsabilize. E, se tem ousadia de fugir, corre

quase sempre o perigo de sofrer vexames, pancadas e não raras vezes

a morte, em tudo figurando a polícia como co-participante de tais

atentados" (1949: 83-84).

1.6 O pós-guerra para os Kinikinau: fim do aldeamento em Albuquerque e a

sobrevivência no Agachi

“(o)s Kinikinau, a partir da aceitação do seu assentamento em aldeias, por

um lado foram transformados em um ‘objeto étnico’ e, por outro,

apropriaram-se dessa condição de índios aldeados, a partir da qual se

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reorganizaram, reelaboraram sua relação com o passado e construíram

uma nova territorialidade, demarcando o seu espaço. Nesse sentido pode-se

dizer que constituíram experiências significativas tendo como centro o

aldeamento oficial. A experiência de aldeamento se desdobrou em uma

multiplicidade de outras relacionadas à atuação do Império brasileiro no

seu projeto de governar os povos indígenas. No caso dos Kinikinau, este foi

realizado, sobretudo, pelos missionários capuchinhos italianos, na

província de Mato Grosso, região de Albuquerque, na Missão Nossa

Senhora da Misericórdia, criada pelo Frei Jose Maria de Macerata, na

Aldeia; Missão Nossa Senhora do Bom Conselho, dirigida pelo Frei

Mariano Bagnaia, e também em Miranda, geralmente mencionada

simplesmente como aldeia de Kinikinau de Miranda, correspondendo a

Aldeia de Agachi. Taunay (1931) faz referencia a esta aldeia no capitulo

sobre os índios de Miranda, quando registrou que ‘os Kinikinaus aldeavam-

se no ‘Eugachigo’, a sete leguas N.E. de Miranda’ (p. 20), observando que

o nome e de origem Guaicuru, significando bando de capivaras”. (Castro,

2010: 212).

O destino dos Kinikinau do aldeamento de Albuquerque, como já observado, foi a

prisão (e talvez a morte) em mãos do exército paraguaio. Na memória dos anciãos de hoje a

referência aos aldeamentos de Albuquerque igualmente desapareceu. A referência constante é

o aldeamento do Agachi e sobre o qual o antropólogo responsável por este Relatório de

Fundamentação tomou, em 2018, vários depoimentos de anciãos kinikinau a respeito da

história desta aldeia e sua localização (cf. Parte 2).

As fontes e os depoimentos dos anciãos colhidos pelo antropólogo responsável por

este Relatório de Fundamentação permitem avaliar que os primeiros vinte anos do século XX

foram cruciais para a sobrevivência dos Kinikinau. Mas as informações são contraditórias: por

exemplo, Cardoso de Oliveira (1976b: 64) informa que “até 1908 tinham uma aldeia junto ao

rio Agachi e em 1925 não havia lá mais do que 15 indivíduos, destribalizados, e de mudança

para Lalima”; contudo, o Relatorio da Inspetoria do Serviço de Proteção aos Índios de Mato

Grosso, de 1910, relata a existência de 400 Kinikinau no Agachi (apud Castro, 2010: 259).

Esse número pode ser exagerado e talvez tenha sido tomado dos registros mais antigos de

Diretores de Índios no final do Império.

O então major de engenheiros Cândido Mariano da Silva Rondon foi testemunha deste

processo – mas ao contrário da sua iniciativa em provocar o estado federado do Mato Grosso

para a delimitação de partes (mesmo ínfimas) das terras tradicionais Terena no Ipegue e em

Cachoeirinha, nada fez pelos Kinikinau – assim como também não o faria o Serviço de

Proteção ao Índio (SPI) que ajudaria a criar em 1910 e do qual foi seu primeiro diretor.

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É ambígua a posição de Rondon a respeito dos Kinikinau23

. Sabia da existência da

aldeia do Agachi – justamente porque quando da delimitação e demarcação das “posses”

vizinhas ao Ipegue teve necessariamente que ler os documentos das “posses” porque

justamente lindeiras ao Ipegue (denominadas Cutape, Pequi, Maria do Carmo e Agachy).

Nestes documentos (ver infra, PARTE 6), duas destas “posses” apontam como limites a

“terrenos habitados pelo quiniquinaos” e “aldeia Agachy”. Os Kinikinau, como adiante se

demonstrará, foram esbulhados e escorraçados de suas terras pelos Pereira Mendes (Antônio

Leopoldo e Francisco, vulgo Chiquinho de Deus), gaúchos chegados à Miranda depois da

guerra, por volta do ano de 1880. Rondon com certeza os conheceu, senão pessoalmente, ao

menos de referências, pois os trata por “Chiquinho de Deus” e “Antônio Leopoldo” em 1904

(Rondon, 1949: 82 e 81):

Paira a dúvida do por que Rondon não deu os nomes dos fazendeiros “que se

apossaram das suas terras” quando na sua caderneta de campo de 1904 os nomeia antes da

frase-comentário sobre a “antiga aldeia dos Quiniquinau”: o fez para preservar sua pretensa

amizade com estes fazendeiros? Tinha ciência que as terras da aldeia foram tomadas pelos

Pereira Mendes violentamente e não quis se envolver ou envolver os responsáveis? Rondon

nada diz neste Relatório24

sobre as razões pelas quais a aldeia Kinikinau no Agachi foi

23

Como o foi também em relação aos Terena do Ipegue e Cachoeirinha, ao tratar com (e ceder aos) fazendeiros

vizinhos (a quem conheceu pessoalmente) partes dos territórios tradicionais daquele povo indígena, já que

estabeleceu como norma para os dois casos buscar as “sobras” das medições ilegais (grilos cartoriais, como

demonstrado nos RELATÓRIO DE FUNDAMENTAÇÃO do GT estabelecido pela Portaria

1.155/PRES/FUNAI para Taunay-Ipegue e Cachoeirinha) feita pelos “vizinhos”. Rondon consegue que o

governo do estado do Mato Grosso o contrate para estas medições em 1905, um ano depois (1904) de constatar o

esbulho de que foram alvo os Kinikinau.

24

Na verdade, pelo estilo do texto é bem razoável supor de se tratar da sua caderneta de campo. Publicada muito

tempo depois, em 1949, sob a o nome de “Relatório”, também é possível supor que o texto é um composto de

trechos das cadernetas de campo da Comissão das Linhas Telegráficas do Mato Grosso com, quiçá, textos

complementares de Rondon.

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“abandonada”. Contudo, é digno de nota que na página seguinte (83) Rondon traça o célebre

retrato da servidão a que estavam submetidos os terena (e os kinikinau, os laiana e os guaicuru

–vide supra) e a aguda análise de como era, no início do século XX, a política administrativa

na região de Miranda-Aquidauana:

"Nos povoados e vilas a polícia está sempre nas mãos dos próprios

fazendeiros, que são as autoridades, já como juízes de Paz, já como

Delegados e subdelegados. Os soldados são por eles mesmos engajados e

desde então considerados seus próprios camaradas (...). Não pode haver

fiscalização contra esses abusos, porque há verdadeira solidariedade entre

os ricos que se revezam nesse usufruto" (Rondon, 1949: 83-84).

O desapreço e omissão do Estado brasileiro para com os Kinikinau tem início, pois

com Rondon e segue com o SPI, que os trata desde pelo menos 1920 como “desaldeados” e

“sem terra”. À demanda da comitiva daqueles índios em 1920 (Documento 9, infra) ao

encarregado do SPI no Bananal pela verificação de “sobras” ou “reserva” entre as fazendas

mencionadas, nenhuma providência foi tomada pelo SPI. Ou por outra: providenciou-se o

abrigo a três famílias nas terras Terena do Taunay-Ipegue. E assim o Estado brasileiro desde

1904 viria a contribuir para instaurar a diáspora Kinikinau.

PARTE 2 Habitação Permanente

Introdução: “marco temporal”, “esbulho renitente” e indigenato

11.1. O marco temporal de ocupação. A Constituição Federal trabalhou com

data certa - a data da promulgação dela própria (05 de outubro de 1988) -

como insubstituível referencial para o dado da ocupação de um determinado

espaço geográfico por essa ou aquela etnia aborígene; ou seja, para o

reconhecimento, aos índios, dos direitos originários sobre as terras que

tradicionalmente ocupam. 11.2 O marco da tradicionalidade da ocupação. É

preciso que esse estar coletivamente situado em certo espaço fundiário

também ostente o caráter da perdurabilidade, no sentido anímico e psíquico

de continuidade etnográfica. A tradicionalidade da posse nativa, no entanto,

não se perde onde, ao tempo da promulgação da Lei Maior de 1988, a

reocupação apenas não ocorreu por efeito de renitente esbulho por parte de

não-índios. Ementa da PET 3.388/RR - Raposa Serra do Sol, item 11, trechos

– grifo nosso).

Dizem que o judiciário (em qualquer parte do mundo) age (seu agir é uma fala) em um “jogo

de linguagem”. Essa assertiva se revela de modo claro e distinto no exercício de exegese dos

Ministros do STF quando do julgamento da Pet. 3.388. José Afonso da Silva (2015)

desmontou o jogo de linguagem implícito nas fala acima de forma brilhante:

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Se são "reconhecidos25

(...) os direitos originários

sobre as terras que tradicionalmente ocupam" (como

reza o caput do artigo 231 da CF de 1988, nota-se), é

porque já existiam antes da promulgação da

Constituição. Se ela dissesse: "são conferidos, etc.",

então, sim, estaria fixando o momento de sua

promulgação como marco temporal desses direitos26

.

Da mesma forma – e substituindo o exemplo dado por José Afonso da Silva (“são

conferidos”) por aquele de “assegurada” que aparece no artigo 186 da Constituição Federal

de 1967: “É assegurada aos silvícolas a posse permanente das terras que habitam e

reconhecido o seu direito ao usufruto exclusivo dos recursos naturais e de todas as utilidades

nelas existentes”. Daí sim se pode falar, como o fez Ministro Victor Nunes Leal “na data da

Constituição”27

. A exegese forçada no julgamento da Pet. 3.388 do “marco temporal” se

aplicaria se, e somente se, tratasse da CF de 196728

– mas nunca na CF de 1988. Aqui o

texto diz que a sociedade brasileira reconhece que os direitos territoriais indígenas valem

antes da Constituição e, além do mais, estes direitos são “imprescritíveis”, isto é, valem em

qualquer tempo. Não se pode pressupor que direitos “imprescritíveis” vigorem a partir de

determinada data! O “jogo de linguagem” utilizado por muitos dos Ministros do STF no

julgamento da Pet. 3.388, como apontou José Afonso da Silva, tinha por objetivo deturpar os

direitos indígenas originários:

Mesmo assim, para bem realçar esse corte prejudicial aos direitos dos

índios, vou transcrever uma passagem do voto do Min. Gilmar Mendes, in

verbis: "Importante foi a reafirmação de marco do processo demarcatório,

25

“Reconhecer: Conhecer novamente (quem se tinha conhecido noutro tempo)” – Pequeno Dicionário

Brasileiro da Língua Portuguesa, organizado por Hildebrando de Lima e Gustavo Barroso, revisto por Manuel

Bandeira e José Baptista da Luz e consideravelmente aumentada por Aurélio Buarque de Hollanda Ferreira, 9ª

Edição, Editora Civilização Brasileira, 1951. 26

José Afonso da Silva, 2015 Parecer solicitado por MANUELA CARNEIRO DA CUNHA, Professora

Titular Aposentada da FFLCH da USP, SAMUEL RODRIGUES BARBOSA, Professor da Faculdade

de Direito da USP, a ASSOCIAÇÃO DOS JUÍZES PELA DEMOCRACIA, o CENTRO DE

TRABALHO INDIGENISTA, o INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL, a ORGANIZAÇÃO INDIO É

NÓS e o CENTRO DE ESTUDOS AMERÍNDIOS da USP 27

Se os índios, na data da Constituição Federal, ocupavam determinado território, porque desse território

tiravam seus recursos alimentícios, embora sem terem construções ou obras permanentes que testemunhassem

posse de acordo com nosso conceito, essa área, na qual e da qual viviam, era necessária a sua subsistência... Se

ela foi reduzida por lei posterior; se o Estado a diminuiu de dez mil hectares, amanhã a reduziria em outras dez,

depois, mais dez, e poderia acabar confinando os índios a um pequeno trato, até o terreiro da aldeia, porque ali

é que a 'posse' estaria materializada nas malocas (...). Entendo, portanto, que, embora a demarcação desse

território resultasse de uma lei do Estado, a Constituição Federal dispõe sobre o assunto e retirou do Estado

qualquer possibilidade de reduzir a área que, na época da Constituição, já era ocupada pelos índios, ocupada

no sentido de utilizada por eles como seu ambiente ecológico. Voto do Ministro Victor Nunes Leal - STF,

Ementário nº 480/1969 – (grifos nossos)27

.

28

Ou ainda a Constituição de 1934 quando em seu artigo nº 129 afirmava que “Será respeitada a posse das

terras dos índios que nelas habitam permanentemente”.

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a começar pelo marco temporal de ocupação. O objetivo principal dessa

delimitação foi procurar dar fim a disputas infindáveis sobre as terras,

entre índios e fazendeiros, muitas das quais, como sabemos, bastante

violentas".

Fica claro, por esse texto, que o objetivo do marco estabelecido não é a proteção

dos direitos dos índios, ainda que essa proteção seja uma exigência da Constituição, que

até determina competir à União demarcar as terras, proteger e fazer respeitar todos os seus

bens. A Constituição o diz no caput do art. 231, mas o Supremo Tribunal Federal diz o

contrário em última instância. Fica claro também que o objetivo enunciado é o de dar fim

a disputas infindáveis sobre as terras não pelo cumprimento da regra constitucional que

manda proteger e fazer respeitar todos os bens dos índios, ou seja, não pela coibição e

repressão aos usurpadores, mas pela cassação dos direitos dos índios sobre elas. Fica

claro ainda, segundo esse voto, que os conflitos entre índios e fazendeiros devem ser

resolvidos em detrimento dos direitos dos índios, sem se levar em conta as normas

constitucionais que os protegem! (Afonso da Silva, Parecer. p. 10).

O mesmo Ministro Gilmar Mendes já se expressou em outros momentos que a não

imposição do “marco temporal” equivaleria a por em disputa até as terras do vale do

Anhangabaú ou da Guanabara. Eis aí a típica distorção semântica de julgadores envolvidos

em “jogos de linguagem”: os povos indígenas que poderiam ter a memória da ocupação dos

lugares mencionados foram extintos, como deveria saber o ilustre Ministro.

Outra ficção dos “jogos de linguagem” dos julgadores da Pet. 3.388 diz respeito ao

que definiram como “renitente esbulho”, ficção necessária para dar fundamentação à tese do

“marco temporal”:

"11.2. O marco da tradicionalidade da ocupação. É preciso que esse estar

coletivamente situado em certo espaço fundiário também ostente o caráter da

perdurabilidade, no sentido anímico e psíquico de continuidade etnográfica. A

tradicionalidade da posse nativa, no entanto, não se perde onde, no tempo da

promulgação da Lei Maior de 1988, a reocupação apenas não ocorreu por efeito

de renitente esbulho por parte de não-índio".

Aqui a distorção semântica para favorecer o usurpador/expropriador é mais do que

clara: o ônus da prova recai sobre os índios que devem provar, em última instância

judicialmente , que se opuseram ao esbulho até a data de 08 de outubro de 1988. Como bem

assinalou José Afonso da Silva:

Aí se vê a conjugação dos dois conceitos, pelos quais se subtraem os

direitos dos índios em favor de usurpadores de suas terras. Há vários

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absurdos anti-índios nessa configuração do renitente esbulho. O

primeiro, bastante sutil, é esse modo de exprimir os termos do

conceito: renitente esbulho em vez de esbulho renitente, pondo o

destaque na qualificadora, para irrogar os ônus sobre a renitência,

com o que impõe aos índios esbulhados a obrigação de provar os

fatos. O segundo, e grave, é a utilização do conceito de esbulho num

contexto que não lhe cabe, como veremos, como se se tratasse de um

conflito de posse do direito civil. O terceiro é essa ideia de que o

conflito, mesmo iniciado no passado, tem que persistir até o marco

temporal; quer dizer, forja-se um marco temporal deslocado para o

último elo da cadeia jurídico­constitucional que reconheceu os

direitos indígenas, deixando ao desamparo os direitos que as

Constituições anteriores reconheceram, e daí se exige que os índios

sustentem um conflito ao longo do tempo, inclusive na via judicial,

para que os seus direitos usurpados sejam restabelecidos. O quarto é

essa exigência de que o conflito se materialize, pelo menos, por uma

controvérsia possessória judicializada, como se se tratasse de uma

disputa dentre dois possuidores tutelados pelo direito civil, mas os

indígenas não são possuidores nesse sentido. É uma torção semântica

calamitosa essa de tratar o indigenato, ou seja, os direitos originários

dos índios sobre as terras que ocupam, como se se tratasse de posse

do direito civil. (Afonso da Silva, p. 11-12 – grifo nosso).

Agora bem: quando se trata de povo indígena que, segundo “seus costumes, usos e

tradições”, não tinha ou tem por vocação a disputa conflituosa – caso dos Kinikinau, como

aqui será fartamente documentado – como caracterizar o “renitente esbulho” de que foram

alvo? Aqui se demonstrará, ao contrário do que “o jogo de linguagem” dos julgadores da Pet.

3.388 buscou fixar, que o esbulho do lado dos expropriadores ocorreu com renitência desde

1900. E, sobretudo – e posto que os Kinikinau não estão “extintos” – se demonstrará que a

memória indígena do território esbulhado é ainda viva e plena de sentido – não cabendo aqui,

pois, a diatribe do Ministro Gilmar Mendes acima mencionada.

Outro ponto fundamental nesta argumentação é colocado por Gilmar Ferreira Mendes,

então Procurador da República, em parecer lavrado por solicitação do Procurador Geral

Sepúlveda Pertence (Mendes, 1987, cópia anexa):

19. Não obstante, colocam-se algumas questões que podem causar embaraço, sob

o prisma da dogmática jurídica. A primeira indagação diz respeito à validade, ou

não, dos títulos incidentes sobre terras indígenas concedidos antes da promulgação

da Constituição de 1934. Outro ponto controvertido concerne à situação jurídica

das terras que, na vigência da Constituição de 1934, eram ocupadas pelos

silvícolas e vieram a ser alienadas a terceiros.

20. Parece isento de dúvida que os títulos dominiais concedidos antes do advento

da Constituição de 1934 estão abrangidos pela declaração de nulidade que do

texto constitucional dimana. Assim, com a disposição do art. 129, da Constituição,

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39

opera-se uma peculiar e rara espécie de nulidade, a chamada nulidade

superveniente ("Nachtrãgliche Nlchtigkeit) (Werner Flume, Das RechtsgeschMft,

vol. II, Berlim, 1979, p. 550). Trata-se de inequívoco exemplo de uma "lei de

proibição" ("Verbotsgesetz"), que alcança situação já estabelecida (Cfr. Flume,

Ob. cit., p. 550).

21. Nesse sentido, é, igualmente, o magistério de Pontes de Miranda, verbis:

"São nenhuns quaisquer títulos, mesmo registrados, contra a posse dos

silvícolas, ainda que anteriores à C o n s t i t u i ç ã o d e 1 9 3 4 ,

s e à d a t a d a p r o m u l g a ç ã o havia tal posse. O registro

anterior de propriedade é título de propriedade sem uso e sem

fruição". (Comentários à Constituição de 1967/69, t. VI, 1972, p. 457 –

negrito nosso).

22. Vê-se, pois, que as terras ocupadas pelos silvícolas, que, sob o regime da

Constituição de 1891 haviam sido concedidas pelos Estados a particulares ou

que ainda que davam como se devolutas fossem, no patrimônio da unidade

federada, passaram com a Constituição de 1934, irreversivelmente, para o

domínio da União.

No caso de desafetação ou desdestinação de terras ocupadas por indígenas aponta

ainda o Procurador Gilmar Ferreira Mendes:

30. A norma referida29

contém, todavia, uma ressalva de fundamental

importância. Verifica-se a desdestinação ou a desafetação apenas das

terras espontaneamente abandonadas pelos silvícolas. Subsiste íntegro,

portanto, o caráter indígena das áreas onde se tenha verificado a

desocupação forçada, violenta e criminosa. Em qualquer hipótese, não se

pode colocar em dúvida o domínio inquestionável da União.

E em um resumo que, pode-se dizer, definitivo, disserta o Procurador Gilmar Ferreira

Mendes (1987):

32. Do que ficou assente, pode-se concluir, de forma precisa e escorreita, que:

a ) as terras indígenas não integravam o patrimônio estadual, mesmo na vigência

da Constituição de 1 891 ;

b) a teor do disposto no art. 129, da Constituição de 1934 (e, posteriormente, do

art. 154; da Carta de 1937 e no art. 216, da Constituição de 1946 ), a propriedade

da união sobre as terras ocupadas pelos silvíco1as constitui expressão do ato-fato

relativo à posse;

c) embora a demarcação das terras indígenas tenha resultado, eventualmente, de

uma lei estadual, não se reconhece à unidade federada o poder de reduzir a área,

que na época da promulgação da Constituição, era ocupada pelos índios como seu

ambiente ecológico;

29

Trata-se do artigo nº 21 do Estatuto do Índio de 1967 que diz: “As terras espontânea e definitivamente

abandonadas por comunidade indígena ou grupo tribal reverterão, por proposta do órgão federal de assistência ao

índio e mediante ato declaratório do Poder Executivo, à posse e ao domínio pleno da União”

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40

d) os atos legislativos estaduais que estabeleceram os limites das áreas ocupadas

pelos indígenas, bem como as transcrições no Registro Imobiliário, têm, portanto,

caráter meramente declaratório, uma vez que o domínio aqui é mera expressão da

posse permanente;

e) o reconhecimento da situação dominial, de forma reduzida, não obsta a que se

postule ou a que se proceda à sua ampliação, pelas vias legais;

f) os títulos dominiais concedidos antes do advento da Constituição de 1934

foram atingidos pela chamada nulidade superveniente, que decorre da regra

expressa no seu art. 129;

g) as terras ocupadas pelos silvícolas que, sob o regime da Constituição de I89I,

integravam o patrimônio coletivo indígena, passaram, com a promulgação da Carta

de 1934, em caráter irreversível, para o domínio da União (Cfr. Decreto nº 736/36,

art. 3º, alínea 'a');

h) a concessão de títulos dominiais em terras ocupadas pelos indígenas após o

advento da Constituição de 1934 é írrita, de nenhum efeito'

i) a expulsão, o homicídio ou o genocídio de silvícolas não tem o condão de

convalidar os títulos originariamente nulos concedidos a partir de 16 de julho de

1934;

j) assim, em caso de desafetação ou desdestinação das terras de domínio federal

anteriormente ocupadas pelos silvícolas, inevitável se afigura a reversão ao

domínio pleno da União;

k) toda e qualquer discussão sobre a existência ou não de posse indígena e, por

conseguinte sobre a caracterização ou não de domínio federal, há de remontar,

inevitavelmente, aos idos de 1934, quando o constituinte houve por bem

consagrar o domínio da União sobre as terras de ocupação indígena.

A demonstração de que os argumentos jurídicos acima expostos se aplicam

integralmente ao povo Kinikinau e a sua ocupação na região do Agachi será objeto do tópico

a seguir.

2.1 A ocupação Kinikinau no Agachi: sua continuidade histórica segundo documentos

do SPI e a memória indígena

As 7:1/2 horas da manhã decampou-se, caminhando por 2 leguas em terrenos

planos ás vezes, em outras ondulados até o pouso do Uagaxi, onde chegou-se ás 11

horas da manhã, formando-se o acampamento na margem esquerda do córrego do

mesmo nome, que n'este tempo mal deu agua para a força. Vai este, engrossado

por pequenos contingentes, passar no caminho entre Lauiâd e Ponadigo e banhar

a pequena aldêa de Quiniquináos em Uagaxi, a qual fôra destruida pelos

paraguayos, indo os indios refugiar-se nas brenhas da serra de Maracajú..

(TAUNAY, 1875: 275).

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41

A estrada até Lauiad dirige-se directamente para léste; atravessa a torrente do

Betemigo, do Enagaxigo e do Ponadigo, nas margens dos quaes existiram aldeias

indígenas. (PEDRO AMÉRICO DE FIGUEIREDO E MELLO, 1871: 23).

Da mesma forma que ocorreu com os Terena no Ipegue30

, os Kinikinau, finda a

guerra, retornaram à sua destruída aldeia no Agachi. As provas cabais deste retorno

encontram-se nos documentos analisados na Parte 6 deste RELATÓRIO DE

FUNDAMENTAÇÃO (infra).

Em 1920 documento enviado à Inspetoria do SPI em Campo Grande, de lavratura do

servidor do SPI, Roberto Vieira dos Santos Wernek, solicitava providências para a

regularização das terras dos Kinikinau no Agachi, ao mesmo tempo em que estimulava 03

famílias a se estabelecerem na aldeia Bananal reproduzido no Documento 0931

abaixo:

30

“Acerca do índio da Tribo Terena, de nome José Caetano, de quem trata o ofício de V.Exª de 7 do corrente

(do ano de 1871), cujo recebimento tenho a honra de acusar, o que sei e posso afirmar é que o dito índio com

mais alguns da sua tribo, em número de 17 (e) Pedro Tavares, capitão da aldeia do Ipegue, no distrito de

Miranda (contaram) que na ocasião da invasão paraguaia não só sua tribo como todas as outras, e mais

habitantes do distrito, abandonaram os seus lares e retiraram-se para os montes e bosques, onde permaneceram

por 6 anos; que ultimamente voltando seus moradores a reocuparam seus domicílios, esses Terenas

encontraram sua aldeia do Ipegue ocupada por Simplicio Tavares, por sua autonomásia Piché, o qual lhes

obsta a repovoarem e lavrarem suas antigas terras e de seus antepassados; pelo que vinham pedir providências

para não serem esbulhados de suas propriedades das quais não podiam desprender-se. Um outro índio da

mesma tribo, de nome Victorino, que farda-se como alferes, e pertence à aldeia do Nachedache, distante do

Ipegue uma légua, fez-me igual reclamação.” (Ofício do Diretor dos Índios do Distrito de Miranda ao

Presidente da Província do Mato Grosso, datado de 09 de novembro de 1871 – Livro copiador das cartas

expedidas pela Diretoria Geral dos Índios – 1848-1880 - Arquivo Público do Estado do Mato Grosso)

31

Museu do Índio, Acervo Digital – IR 6, 080-Bananal – Caixa 198, Planilha 026. Acessível em:

http://www.docvirt.com/docreader.net/DocReader.aspx?bib=MI_Bibliografico.

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43

Portanto, em 1920 os Kinikinau já delimitavam para o Estado brasileiro suas terras no

Agachi, as quais habitavam desde antes da guerra com o Paraguai: eram suas as terras

delimitadas pelas fazendas Ponadigo, Imbauval e Paraíso – como se verá em detalhes na

Parte 6 deste RELATÓRIO DE FUNDAMENTAÇÃO.

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44

Relatório datado de 1919 da lavra do Inspetor do SPI José Gomes Silva Jardim

confirmava que os Kinikinau estavam estabelecidos “(...) no município de

Aquidauana, (e que) são eles os maiores e melhores agricultores” – reforçando a

justificativa para transformar a reserva do Bananal (Taunay-Ipegue) em uma

''colônia''. Cinco anos depois, essa intenção não havia sido concretizada pelo SPI;

entretanto a ideia permanecia em pé, uma vez que existiam grupos que tinham

perdido suas terras e aldeias:

Encontramos os alicerces de uma futura grande povoação indígena.

Sua principal vida é a pecuária que está por sistematizar para torná-la

indústria de eficazes lucros. A lavoura não foi abandonada: a cana-de-

açúcar, (...) em consideração do que peço-vos seja o posto de Bananal

transformado em Povoação Indígena que circundada pelas aldeias do

Ipegue, Cachoeirinha, Brejão poderá ser abrigo de outras tribos, hoje

esparsas sem terras como os Quiniquinaos, os Guaicurús e outros.

[Relatório do ano de 1919 dirigido ao Inspetor Horta Barbosa, p. 40

citado em Memória do SPI: textos, imagens e documentos sobre o Serviço

de Proteção aos Índios (1910-1967), p. 386 – grifo nosso].

O servidor Roberto Werneck, como ficou explícito no Documento 9 acima, convidara

três famílias kinikinau a virem se estabelecer na aldeia Bananal, como de fato o fizeram

(dentre as quais, os Rodrigues – vide genealogia no Anexo).

Cardoso de Oliveira indica que essa sugestão foi seguida por muitos Kinikinau que

vão se ajuntar aos Terena, Laiana e Guaicuru nas terras reservadas pelo estado do Mato

Grosso, sobretudo em Lalima32

e Cachoeirinha, ambas em Miranda. Estas terras foram as que

abrigaram um maior numero de Kinikinau depois de sua expulsão do Agachi (Cardoso de

Oliveira, 1976b: 12). O autor citado afirmava que “os remanescentes (sic) Kinikinau de

Cachoeirinha (...) encontram-se agrupados em três grupos domésticos (dados de 1960 – como

observação o autor) e em uma única parentela, originária de um único grupo local chamado

Paraíso33

. Seus componentes mantêm viva o que se poderia chamar de ‘identidade histórica’,

pois comumente, e inclusive durante na ocasião do censo, fazem questão de se identificar

como Kinikinau de modo a contrastarem sua identidade com a dos seus vizinhos Terena”

(Cardoso de Oliveira, 1976b: 11-12 – grifo nosso). E dizia este autor em outro livro, que

32

Que o servidor Roberto Werneck do SPI diz, em 1922, terem sido reservadas pelo governador Theodoro

Rondon em 1892 para os Guaicuru – cf: telegrama arquivado no Acervo do SPI: IR 6 – 083 Cachoeirinha, Caixa

199 - Planilha 001 - http://www.docvirt.com/docreader.net/DocReader.aspx?bib=MI_Arquivistico.

33

O autor esqueceu-se de mencionar (pois o sabia com certeza) que “Paraíso” é o nome da fazenda que

pertencia a Francisco Pereira Mendes (o “Chiquinho de Deus” de Rondon – cf. supra) no córrego Agachi e

corresponsável pela expulsão dos Kinikinau da região que ocupavam tradicionalmente.

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45

“(dos) grupos Guaná, além dos Terena – que sobreviveram, como grupo, até a primeira

década deste século (XX, nota nossa) – sobreviveram os Kinikinau, que até 1908 tinham uma

aldeia junto ao rio Agachi. Em 1925 não havia lá mais de 15 indivíduos, destribalizados, e de

mudança para Lalima” (Cardoso de Oliveira, 1976a, p. 64 – nota 12, grifo nosso).

No Relatório sobre os trabalhos da “Comissão Rondon” publicado pelo SPI (Rondon,

1949) encontra-se o seguinte comentário: “A linha (telegráfica) cruzou justamente a antiga

aldeia dos Quiniquinau hoje abandonada e já invadida por fazendeiros que se apossaram

dessas terras” (p. 81). Porém, no mapa que acompanha o mesmo Relatório vê-se, no córrego

“Agachy” e no limite com a “Fazenda Agachi” a anotação “Ald. de Terenas” (Figura 1).

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Figura 1

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47

Figura 2

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48

A Figura 234

é o detalhe do mapa elaborado com base nos croquis da “Comissão

Rondon” de Linhas Telegráficas. Na área circundada lê-se: “Ant. Ald. Ponadigo” nas

proximidades do rio “Agachi”. Segundo Castro (2010: 234) “(o) Relatorio da Inspetoria de

Mato Grosso, do SPI (...), de 01 de janeiro de 1920, confirma a localização de uma antiga

aldeia, próxima da fazenda Ponadigo e a perda de terras antes ocupadas pelos Kinikinau,

sugerindo o realdeamento em aldeias de outras etnias”. Ao que tudo indica, Rondon teria

deixado nas mãos de seus auxiliares a confecção do croqui do Mapa (Figura 1) que

acompanha o relatório – pois dificilmente ele trocaria a aldeia Kinikinau do “Agachi”, a qual

menciona em vários textos seus35

, por “Ald. de Terenas”.

O córrego denominado “Eponadigo” ou “Ponadigo” não foi encontrado com essa

denominação nem nos mapas da Biblioteca Nacional e nem naqueles do IBGE consultados

pela equipe responsável por este RELATÓRIO DE FUNDAMENTAÇÃO. Mas é encontrado

nos registros de títulos de posse provisórios das posses “Bahia Maria do Carmo” (requerido

por D. Anna Gertrudes de Castro – em anexo) e “São João da Barra do Agachi” (requerido

pro Francisco Pereira Mendes - anexo). O fato é que Rondon teve conversações com a

maioria destes requerentes quando dos trabalhos de instalação das linhas telegráficas, a ponto

de anotar “(a) picada atravessou o caminho para o Antonio Leopoldo 1.790 m adiante do

Laranjal” (grafado como “Laranja” no detalhe da Figura 1 acima). E ainda anota no mesmo

Relatório de 1904 (1949: 82) que “(a) Fazenda de Chiquinho de Deus foi alcança a 1.262 m

para frente desta volta do ribeirão” (se trata do Agachi). Esse “Chiquinho de Deus” seria,

como toda evidência aponta e os Kinikinau mais velhos atestam, nada mais que o gaúcho

Francisco Pereira Mendes, um dos fazendeiros que “se apossou” (nas palavras de Rondon),

das terras dos Kinikinau no Agachi e os expulsou de lá, como se verá em detalhes na Parte 6

deste RELATÓRIO DE FUNDAMENTAÇÃO.

Teófila Freitas Marques, não indígena e viúva do kinikinau Ângelo Marques (vide

na genealogia em anexo), com 83 anos (2018) e atualmente residente na aldeia Cabeceira (TI

Nioaque), conta em entrevista realizada em 27/02/2018 que seus sogrosPedro Marques e

Helena Anastácio, ambos kinikinau, contavam dessa aldeia no Agachi – seu sogro nascera alí,

segundo contavam, e que foram expulsos por um fazendeiro apelidado “gaucho”.

34

BRASIL. Ministério da Guerra. Serviço de Conclusão da Carta de Mato Grosso. Carta do Estado de Mato

Grosso e regiões circunvizinhas. Rio de Janeiro, RJ: Ministério da Guerra, 1952. 1 mapa em 8 f, 88 x 78.

Disponível em: <http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_cartografia/cart341767/cart341767.pdf>. Acesso em:

26 mar. 2018. 35

Rondon e Faria, 1948: p. 21, onde lê-se no quadro sobre as “tribos silvícolas”, no item 55, “Quiniquinau -

Habitat: Rio Agachi, Afl. do rio Aquidauana”

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49

Florêncio e Salú Rodrigues (vide genealogia), moradores da aldeia Morrinho (TI

Taunay-Ipegue) com 74 e 68 anos respectivamente em 2018 (02/03, data da entrevista) são

filhos de Ricardo Rodrigues, kinikinau falecido há muito e que havia morado no Acurizal (cf.

Parte 6) nos anos 1915-20 até por volta de 1950 quando foi para a TI Cachoeirinha – como

consta no Documento 11 abaixo. Eles contam que a avó deles, Virgília Rodrigues (vide

genealogia) falecida com 101 anos de idade em 1998, contava-lhes que havia nascido e

morado no “Agachi velho”, em região próxima onde hoje está instalado o Posto Pioneiro (de

fornecimento de combustíveis), no km 531 da BR 262 nas imediações do córrego Agachi.

Contava-lhes que o lugar era muito bom, com terras boas e que os fazendeiros as haviam

tomado.

Documento 1036

O documento acima, de 1955, anota que a idade de Ricardo Rodrigues e da sua mulher

Virgília Rodrigues é “ig”, ou seja, ignorada – demonstração cabal de que se tratava de pessoas

sem registros oficiais no Posto do Ipegue. Contudo, em outro documento, este tratando de

censo nominal da população de Cachoeirinha em 1953 aponta as idades de Ricardo e Virgília

Rodrigues:

36

Museu do Índio- FUNAI, Acervo do SPI - IR5 -090 IPEGUE, Caixa 12, Planilha 110(1), pags. 99-101

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50

Documento 1137

Ricardo e Virgília (ou Vergília) Rodrigues, pelo que consta no Documento 11, teriam

nascido, pois, em 1888 e 1897, respectivamente. À época do processo de expropriação das

terras dos Kinikinau no Agachi, entre 1900-1915, teriam de 12/27 anos e 3/18

respectivamente – o que torna factível o relato que D. Virgília fazia a seus netos a respeito da

“aldeia velha” no Agachi.

Outro ponto importante diz respeito a uma morada no Acurizal, num lugar conhecido

como “Chiquero”, próximo da estrada que levava do Ipegue à Cachoeirinha. A informação

sobre o morador desta localidade foi passada à equipe pelo senhor Paulo Farias, terena de 83

37

Museu do Índio, Acervo SPI, IR 5, 083 CACHOEIRINHA, Caixa 05, Planilha 044, Documento 58.

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anos de idade e morador da aldeia Água Branca (TI Taunay-Ipegue). Interessante em vista do

Documento 1238

abaixo datado de 1942:

38

Museu do índio, Acervo SPI, IR 5, 099 VANUIRE, Planilha 226(1), Documentos 116-117.

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O lugar denominado Acurizal (no documento acima denominado Tapera do Acurisal)

é tido como limite das “terras ocupadas pelos Quiniquinaos” com as posses “São João da

Barra do Agachy” e “Agachy” requeridas por Francisco Pereira Mendes (o famigerado

“Chiquinho de Deus” já citado acima) – como se verá em detalhes na Parte 6 deste Relatório

de Fundamentação. A hipótese da “tapera do Acurisal” mencionada no Documento 12 ter

sido na realidade um assentamento Kinikinau é reforçada com o depoimento do senhor Paulo

Farias, ao nominar o kinikinau “Totó” (Antonio Pereira, possivelmente o avô materno de dona

Zeferina Moreira – vide genealogia) como o morador do lugar e que o Inspetor Horta Barbosa

não lembrava o nome39

. Na ocasião (1942) o morador tinha mulher e sete filhos.

Leôncio Anastácio (vide genealogia), já falecido, em depoimento ao professor Rosalvo

de Souza:

Um tal de Gaúcho (possivelmente o apelido de Antonio Leopoldo Pereira Mendes) e

seus capangas começaram a visitar nossa aldeia dizendo que aquelas terras foram

todas compradas por ele e que nos deveríamos desocupa-las, pois se não o fizéssemos

o nosso gado começaria a morrer aos poucos e nós também. O SPI nada fez para

impedir essa situação, quando meus pais o procuraram. Aos poucos a boiada do

Gaúcho foi tomando conta do nosso campo e não era aceita conversa com ele, mas os

capangas nos recebiam com tiros de espingarda e fuzis (Leôncio Anastácio apud

Souza, 2008).

Gonçalo Cabroxa, ancião kinikinau nascido em 1926 e morador no Lalima, conta em

entrevista concedida à equipe em 01/03/2018 que seu avô, José Cabroxa, era nascido na

região do “Imbauval” em terras depois compradas por Casemiro Câmara (cf, Documento 9,

supra). Gonçalo relata que seus avós eram cativos, era tempo do cativeiro, onde cada

fazendeiro tinha três, quatro famílias indígenas presa ( cativa) nas contas. Pode-se supor, com

algum grau de segurança, que os Cabroxa depois da expulsão e dispersão da aldeia do Agachi

foram “doados” pelos Ferreira Mendes ao fazendeiro vizinho, como era a prática no período

(final do século XIX – primeira década de 1900) – prática aliás descrita por Rondon, como

vimos (supra, p. 33).

Pode-se inferir pelo que foi até aqui apresentado, em documentos e depoimentos, que

no período que vai de 1900 (Rondon diz “há muito abandonada” em 1904) a 1925 (Cardoso

de Oliveira, 1976a: 64) os Kinikinau da aldeia do Agachi foram pressionados a deixarem o

39

Em resposta ao coronel Horta Barbosa ao ofício antes citado (Documento 12), o encarregado Ibiapina

confirma que o morador era Antonio Pereira , por apelido “Totó” - Museu do índio, Acervo SPI, IR 5, 099

VANUIRE, Planilha 226(1), Documentos 121-122.

http://www.docvirt.com/docreader.net/DocReader.aspx?bib=MI_Arquivistico&PagFis=124756&Pesq=Antonio

%20Pereira.

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53

local pelos pecuaristas Francisco e Antônio Leopoldo Pereira Mendes e posseiros vizinhos –

com a conivência das autoridades judiciais e administrativas do município de Miranda.

Para os Kinikinau de São João pode-se afirmar que, de um lado, a aldeia de

Agachi constitui o lugar de referencia da existência do grupo no passado. As

lembranças estabelecidas mostram essa localidade como um lugar primordial

na produção de uma memoria sobre a história dos Kinikinau, e a partir da

expulsão da região de Miranda que o grupo recorda o seu passado. Os

entrevistados foram unanimes em afirmar a Aldeia de Agachi como a terra dos

seus ancestrais (Castro, 2010: 199).

Desde “antes da guerra” (com o Paraguai) os Kinikinau tinham lá um dos seus

territórios tradicionais como já demonstrado nas Partes 1 e 2 (supra); ao final do conflito, os

Kinikinau retornaram ao Agachi onde tem sua aldeia mencionada nos documentos de “títulos

provisórios de posse” de três imóveis: “São João da barra do Agachi”, “Baia Maria do

Carmo” e “Ponadigo” (todos solicitados ao juízo de Miranda depois de 1890 – portanto, logo,

depois da promulgação da Constituição de 1889 – ou por causa disso mesmo). Fica, pois,

evidente ao se analisar os documentos e mapas apresentados neste tópico que tanto os

proprietários, quanto as autoridades estaduais e municipais, e ainda o próprio major de

engenheiros Cândido Mariano da Silva Rondon, foram autores diretos (ou coniventes) com o

processo de expropriação das terras dos Kinikinau no Agachi e que, posteriormente, o Estado

brasileiro (SPI, depois a FUNAI) foi omisso em restituir-lhes suas posses naquela região –

pois desde pelo menos 1920 vem protelando seu dever de requerer as terras tradicionais

daquele povo indígena no Agachi.

2.2 Os grupos locais Kinikinau hoje: seus troncos familiais e distribuição

Falando sobre o passado, os Kinikinau mostram uma memoria

referida a eventos relacionados a presença de “outros” em sua

historia, indicando que preservam suas lembranças em termos de

antes e depois de eventos específicos, com especial ênfase naqueles

vinculados ao aparecimento de novos atores sociais. Isso é

claramente perceptível nos relatos sobre a Aldeia de Agachi.

Nesses pode-se notar que uma das características mais visíveis das

suas percepções sobre o passado consiste na demonstração da

ação do grupo em contextos interétnicos, destacando aquilo que

eles fizeram e isso, de certa forma, os coloca no controle de sua

historia, e sugere a existência de uma consciência de que a

realidade social de alguma forma depende da intervenção (Castro,

2010:303, grifo nosso).

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A pesquisa realizada pelo antropólogo responsável por este Relatório de

Fundamentação a partir dos documentos levantados no Acervo do SPI no Museu do Índio-

FUNAI permitem traçar o histórico dos destinos das famílias Kinikinau habitantes da aldeia

do Agachi depois de expulsas pelos Pereira Mendes (Francisco ou “Chiquinho de Deus” e

Antônio Leopoldo, o “Gaúcho”). Para tanto se pesquisou as certidões de nascimento e de

casamento de pessoas kinikinau, além de depoimentos de anciãos com mais de 80 anos de

idade e moradores em terras indígenas com predominância Terena e em cidades.

Iara Castro, na obra citada (2010) assim resume a diáspora Kinikinau:

De acordo com os documentos do SPI e os depoimentos colhidos, é

possível afirmar que, entre 1908 e 1925, parte do grupo Kinikinau deve

ter se deslocado de Agachi para a aldeia de Lalima; parte para

Cachoeirinha e parte ainda para o Bananal, como aponta o Relatorio da

Inspetoria do SPI de Mato Grosso, de 01 de janeiro de 1920. Outras

famílias se dirigiram para a região de Bonito (terras devolutas da fazenda

Curvelo ou ‘Corvelo’), como indica o Relatório da Inspetoria do SPI de

Mato Grosso, de 1925: o índio Pridencio que alli morava [aldeamento

em Agachi] mudou-se para os lados de Bonito (...) onde segundo ele

disse encontrou um lote de terras devolutas. Este último documento

informa também a expulsão da região do Agachi, uma vez que as terras

antes ocupadas pelos Kinikinau haviam sido compradas pelo senhor

Antônio Leopoldo Pereira Mendes que determinou que os índios alli

ficassem até terminarem suas colheitas e fizessem as suas mudanças

para outro qualquer ponto (Castro, 2010: 259-260).

“De acordo com depoimento do ancião Leôncio Anastácio ― concedido ao professor

Rosaldo de Albuquerque Souza no final de 2003 ― após a Guerra do Paraguai, os índios

Terena e Kinikinau, entre outros, sofreram sérias perseguições por parte dos fazendeiros,

posseiros e invasores. (...). Ficaram sabendo que no local chamado Corvelo havia terras

devolutas e para lá partiram (...). ‘Chegando ao Corvelo, fizeram suas casas, a terra era boa,

então começaram a plantar, mas não demorou em aparecer um suposto ‘dono das terras’

(José da Silva, 2003: 151 in Castro 2010: 262)40

.

O lugar (ou fazenda) denominado Curvelo ou Corvelo aparece citado como local de

nascimento de pelo menos um Kinikinau em documentos do SPI (Documento 13 abaixo).

Marcelo Marques filho de Pedro Marques, kinikinau nascido no Agachi (vide genealogia no

anexo), em que pese o registro apontar seu pai como “tereno”, como era de praxe em algumas

circunstâncias:

40

Leôncio Anastácio é considerado pelos Kinikinau como “pioneiro”, um dos fundadores da Aldeia de São Joao;

falecido recentemente, (teve) suas memorias reproduzidas por professores Kinikinau como Rosaldo de

Albuquerque Souza e Inácio Roberto, quando contam a historia da aldeia (Castro, 2010: 262, Nota 194).

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55

Documento 1341

A história da ida de famílias Kinikinau para o Posto São João do Aquidabã (rio que faz

o limite sul da Terra Indígena Kadiwéu) é controversa; porém os registros pesquisados no

Acervo do SPI podem auxiliar a esclarecê-la. Em documento datado de 1943 (abaixo), o

encarregado do PI São João, Crecêncio de Lima Barros, informa que “(o) índio Benedito

Roza (sic) este (sic) é o primeiro povoador de S. João, veio em 1930”.

41

Acervo SPI/MI-FUNAI, IR5-São João do Aquidavão, Caixa 21, Planilha 195

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Documento 1442

42

Acervo SPI/MI-FUNAI, IR5-São João do Aquidavão, Caixa 22, Planilha 201.

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Reputado terena em alguns documentos, é legítimo supor que fosse kinikinau, posto

que seus filhos assim se auto identificavam, como se observa no detalhe do Documento1

(datado de 1946) e já apresentado (supra):

É possível afirmar, com alguma segurança, que a ida de famílias Kinikinau e Terena

para as margens do Aquidabã foi anterior à criação pelo SPI do Posto Indígena de

Alfabetização e Tratamento (PIT)43

“São João” (justamente na foz deste rio São João no

Aquidabã). A intenção dos Inspetores responsáveis pelo SPI na região (Engenheiro

Estigarribia e depois o coronel Horta Barbosa) era “povoar” o limite sul da “Reserva

Kadiwéu” (regionalmente conhecido como “campo dos índios”) para fins de controle daquela

“Reserva”, dada a invasão sistemática daquele trecho por fazendeiros vizinhos. O Documento

12 abaixo (cópia impressa nos anexos), de cunho do coronel Horta Barbosa e escrito em 1944

(06/01) descreve os eventos que levaram o SPI a criar o PIT “São João”.

43

“Embora com nomes diferentes, os postos indígenas (no tempo do SPI) possuíam as mesmas atribuições, ou

seja, eram as unidades de base da política indigenista praticada à época e passaram a ter uma classificação

baseada no chamado ‘grau de contato’ dos indígenas com a sociedade envolvente, prestando assistência aos

índios que estavam sendo ‘incorporados à civilização’. (...) Os PIT eram considerados os mais econômicos dos

postos indígenas e foram criados para prestar assistência aos indígenas com ‘maior grau de contato’ com a

sociedade envolvente”. (G.J. da SILVA, in Memória do SPI, 2011: 365).

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58

Documento 1544

44

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59

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Resumindo o histórico acima feito pelo Inspetor e chefe da IR 5 do SPI, coronel Horta

Barbosa):

- desde 1929/30 o SPI pretendia defender “as fronteiras extrema dos Cadiuéos em São

João”;

- em 1930 (agosto) foi concluída a estrada de rodagem que, via “o passo do São João”,

atingiu o Pitoco;

- “por esse tempo” estava livre o Aquidabã de estranhos e lá “assentou-se um aldeia de

índios terenos em mistura com cadiuéos”;

- “entrando em colapso o SPI, sobretudo a partir de 1932” (reflexo da revolução de

1930 que isolou o SPI e sua cúpula, isto é, Rondon e seus afiliados, dentre os quais o

cel. Horta Barbosa – nota nossa), ficaram as duas aldeias (São João e “Raiz da Serra”,

ou seja, o Nalique, mais tarde Alves de Barros) “ao abandono dos poderes públicos”

até 1939, quando o coronel Horta Barbosa reassume a IR 5;

- nesse período de tempo, isto é, entre 1932 e 1939, ocorreu o assassinato do índio

Kadiwéu de nome Baguari e o ferimento de outro, na Baia das Garças, supostamente

pelo fazendeiro Vicente Jacques, conforme lhe havia relatado o índio João Moreira

(kinikinau, pai da D. Zeferina, cf, abaixo) em Cachoeirinha em 1941;

- Horta Barbosa ainda foi informado que, no mesmo período, a aldeia no São João

dispersara-se, “amedrontada”, supõe-se devido a ação do fazendeiro Jacques;

- que voltando a Inspetoria Regional 5 fortalecida (1939-40), a aldeia do São João

repovoou-se sob a chefia do terena/kinikinau Benedito Rosa;

- e que, por fim o primeiro “encarregado” (Crecêncio de Lima Barros) do PIT São

João ali chegou em 12 de maio de 1943.

Em outro documento, agora datado de 1941, o coronel Horta Barbosa comunica via

telegrama sua proposta de criação de 05 “subpostos” do SPI, entre os quais aquele “no passo

do Aquidavão no extremo sul e entrada terra Cadiuéos”:

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Documento 1645

Dona Zeferina Moreira, anciã kinikinau de 87 anos e que reside atualmente na TI

Cachoeirinha (aldeia Mãe Terra) conta, em entrevista concedida ao antropólogo responsável

por este Relatório de Fundamentação, que teria sido mediante convite de um chefe Kadiwéu

que Benedito Rosa e família se estabeleceram no São João – e posteriormente, com Horta

Barbosa, essa iniciativa contaria com o apoio do SPI.

Por outro lado, a versão dos Kadiwéu sobre a aldeia São João pode ser conferida neste

depoimento:

“Esse São João, Aldeia de São João, já vem ha muito tempo essa historia ai.

Esses Terena vem sendo aliado com os Kadiwéu, sempre vivendo

subordinado, os Kinikinau subordinados aos Kadiwéu. Não podia fugir

porque eles tinham uma tarefa a fazer com ele, então trouxeram eles. Eles

escolheram um lugar como de agricultura e coisa e tal. O único, o recurso

mais próximo que eles mesmos acharam de tocar um recurso de agricultura,

no caso, uma lavourinha que eles fazem, e aqui para o lado do Posto

Indígena de São João [...] Então eles, os patrícios disseram: ― Então vocês

ficam aqui [...] aqui é o canto da nossa área, aqui qualquer coisa, qualquer

45

Arquivo SPI-MI/FUNAI, IR 5, 999 Vários Postos, Caixa 34, Planilha 329.

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irregularidade que vocês veem, procurem nos localizar, nos avisar o que esta

acontecendo. Agora vocês tem obrigação, planta milho, arroz, feijão, tudo o

que se da aqui vocês planta, e nos vamos comercializar entre nós mesmos, lá

pelo rio Paraguai, por ai, tudo o que conseguirmos entregamos aqui [...] Nos

vamos negociando, isso ai, vocês ficam como vigilante nosso, como ponto

de segurança nosso. Ai toparam, onde existe o PI São João” (Martinho da

Silva Kadiweu apud Siqueira Jr., 1993: 130-1).

Em 1946, e graças à acuidade do servidor Crecêncio de Lima Barros (cf. Documento

21 infra, p: 88), se tem um retrato fidedigno dos troncos familiais kinikinau estabelecidos no

São João: os Rosa, os Anastácio, os Marques, os Pereira e os Góis (ou Góes). Por outros

documentos e depoimentos tomados aos anciões kinikinau, pode-se identificar os demais

troncos familiais que se estabeleceriam, também nos anos de 1920-30 e depois da

dispersão/expulsão do Agachi, no Lalima (os Cabroxa, Rodrigues e os Gomes); na

Cachoeirinha (os Moreira, os Ferreira, os Polidório); no Nioaque, os Marques e no Bananal

(Taunay-Ipegue) os Rodrigues e os Souza.

Documento 1746

46

Museu do Índio, Acervo SPI, IR5, 083 CACHOEIRINHA, Caixa 05, Planilha 045.

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O Documento 1847

abaixo fornece o quadro populacional em Lalima em Dezembro de

1947, apontando a população Kinikinau ali residente em 47 pessoas.

47

Museu do Índio, Acervo SPI, IR5, 093 LALIMA, Caixa 17, Planilha 149.

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“No conjunto dos grupos locais Terêna, Lalima aparece como uma comunidade sui generis.

A rigor nem poderia ser classificada aqui como uma aldeia do universo Terêna. Tomemos

sua composição étnica e veremos que Lalima é formada por remanescentes (sic) de origem

bastante diversa, como Guacurú, Kinikináu, Terêna, Layâna e (um casal) Kadiwéu. (...). O

nascimento dessa aldeia não é muito claro (...). pelo exame dos arquivos do Serviço de

Proteção aos Índios que obtivemos (...) dizem eles que os índios que formam a aldeia Lalima

‘são índios Guycurus, muito semelhantes aos Cadiueus não só pela língua que falam como

também pelos costumes, embora nunca tivessem relações amistosas com os mesmos; habitam

a aldeia Lalima, distante 9 léguas de Miranda, vivem em terrenos que lhes forma reservados

pela monarquia e que ainda não foram demarcados’.(...) Os dados extraídos do Relatório

Anual (1919) da Inspetoria de Mato Grosso, dão à aldeia povoada por 130 pessoas, 25

famílias e 20 ranchos (...). Todavia, o censo de 1925 dava Lalima com uma população de 261

indivíduos, o demostra um acréscimo surpreendente, só explicável pela vinda de contingentes

indígenas de outras tribos, notadamente Kinikináu e Terêna” (Cardoso de Oliveira

1976a:75-6 – grifo nosso).

De 1919 a 1925, portanto, teria dobrado a população indígena em Lalima.

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Documento 1948

Todavia, ao longo do ano de 1926, ano seguinte ao censo consultado por Cardoso de

Oliveira, vê-se no Documento 19 acima que “24 índios foram retirados para outros Postos”.

É possível deduzir-se, coligindo os dados informados em outros documentos do SPI para a

década de 1920, que pelo menos três famílias kinikinau saíram do Lalima em 1926,

provavelmente para a região de Bonito – para o Curvelo, como alguns dos documentos aqui

mostrados indicam ou então para a “Reserva dos Cadiuéos”.

O depoimento do já citado Gonçalo Cabroxa (nascido em 1926) fornecido ao

antropólogo em 01/03/2018 é esclarecedor a este respeito. Diz Gonçalo que, segundo seu avô

José Cabroxa49

lhe contou, naquele tempo (década de 1910), “Lalima não tinha liderança, não

tinha cacique, não tinha chefe (do SPI); cada um fazia o que queria; aí botaram meu avô

depois de um tempo que ele chegou. Meus avós vieram para Lalima da Imbauval, fazenda do

Casemiro Câmara50

; era tempo do cativeiro. Naquele tempo da doação das áreas indígenas é

que vieram para cá; não vieram direto, passando antes pelo Bonfim. Só tinha guaicuru quando

chegaram, só depois é que vieram para cá terena, kinikinau, laiano”.

Tendo por base as informações contidas nos documentos e depoimentos apresentados

neste tópico, é possível reconstituir, com alguma segurança, a trajetória dos troncos familiais

Kinikinau após a sua expulsão da aldeia do Agachi (Figura 3 abaixo).

48

Museu do Índio, Acervo do SPI, IR 6, 080 BANANAL, Caixa 198, Planilha 026. 49

No Documento 17, ao lado, a título de observação, o servidor do SPI anota: “Neste ano (1947) registrou-se o

falecimento do velho índio José Joaquim Cabroxa”. 50

A dita fazenda Imbauval tinha limites com as terras dos Pereira Mendes no Agachi, conforme se verá na Parte

6, infra.

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67

Figura 3

Agachi 1865-

1915

Rosa(?)

Marques

Anastácio

Pereira

Rodrigues

Gois

Moreira

Gomes

Cabroxa

São João 1935-1940

Marques

Anastácio

Pereira

Rodrigues

Gois

Lalima

1920-1940

Cabroxa Rodrigues

Gomes

Corvelo

1925(?)

Marques

Anastácio

Cachoeirinha

e Bananal-

Ipegue

1904-1910

Moreira

Rodrigues

Pereira

Ferreira

Polidório

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68

A aldeia do Agachi é a referência máxima que concentra uma memória coletiva que dá

sentido à etnicidade e o sentimento de pertencimento ao povo Kinikinau. É a memória desse

lugar, dessa aldeia, que é permanente, porém não como uma lembrança nostálgica de um

passado perdido, mas como possibilidade futura de afirmação de um povo ou como indicativo

de uma identidade originada por um pertencimento a uma origem comum. Todos os

Kinikinau que o antropólogo responsável por este Relatório entrevistou têm este sentimento

muito claro. Na consciência histórica dos kinikinau mais velhos, a “aldeia do Agachi” é

permanentemente lembrada como a terra habitada por eles, a terra expropriada, mas também a

terra prometida. Novamente evoca-se aqui a comparação da saga Kinikinau com aquela do

povo judeu e sua diáspora, em que pese diferenças óbvias. A expulsão do território original, o

desaldeamento, a sina de viver como “intruso” ou “hóspede” em terra dos outros, a

urbanização como alternativa – e o sentimento sempre presente, atual, de que o retorno ao

território original é possível.

“As referencias mais comuns são aquelas vinculadas às situações socio-historicas mais

recentes, como a traumática perda da sua ultima aldeia, nas primeiras décadas do

século passado e a trajetória até a sua atual localização na Aldeia de São João em

terras Kadiwéu (ou alhures, acrescentamos), que constituem o alicerce da crença de

um passado e de ancestrais comuns, base da sua reafirmação no tempo presente e dos

seus planos para o futuro ‘para garantir nosso futuro, precisamos que toda sociedade

saiba que somos Kinikinau, (e) como povo queremos principalmente voltar para nosso

território de origem, para que tenhamos garantia de sobrevivência digna’, como

afirmou um Kinikinau de São João.” (Castro, 2010: 304).

PARTE 3 ATIVIDADES PRODUTIVAS

3.1 Atividades produtivas na situação de Reserva (ou seja, em “terra alheia”)

As atividades produtivas dos Kinikinau nas terras indígenas (“Reservas”) onde estão

abrigados provisoriamente – seja como “hóspedes” (Lalima, Cachoeirinha, Taunay-Ipegue e

Nioaque) ou “intrusos” (Kadiwéu) – seguem o padrão histórico dos Chané, que combina a

agricultura com a criação de gado, e que já foi explicitado na Parte 1 por meio de ampla

documentação.

3.1.1 A agricultura

A memória dos anciões sobre as qualidades das terras no Agachi confirmam todos os

documentos aqui expostos, do século XVII ao XX, sobre a significativa produção das roças,

do gado e das artes Kinikinau. Como no já citado documento de 1919, do Inspetor do SPI

José Gomes Silva Jardim, onde se afirmava que os Kinikinau “(...) são eles os

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maiores e melhores agricultores”. E em seu exílio provisório no PIT São João não seria

diferente. São dezenas de “avisos” mensais enviados pelos encarregados do SPI naquele Posto

aos seus superiores, a exemplo do documento abaixo:

Documento 2051

51

Museu do Índio-FUNAI: Acervo SPI – IR 5, 096 S. João do Aquidavão, Caixa 21, Planilha 194, fls. 81-82

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A agricultura hoje praticada pelos Kinikinau é diferente daquela que praticavam antes

da Guerra do Paraguai. Anteriormente, em Albuquerque ou Miranda, possuíam um território

suficiente para desenvolver uma agricultura itinerante, de corte e queima e posterior pousio,

por tempo suficiente para a regeneração da fertilidade natural do solo.

Atualmente, confinados nas Reservas - fator fundamental para as transformações

ocorridas em sua agricultura tradicional - os Kinikinau, seja em São João ou nas outras

Reservas, possuem campos de cultivo permanentes, utilizando-se da mecanização (tratores)

para gradagem, preparo da terra para plantio e eventualmente para a abertura de novas áreas

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permanentes de cultivo. As práticas atualmente utilizadas são adaptações posteriores a esta

"modernização" forçada. Das atividades produtivas praticadas pelos Kinikinau onde estejam

habitando provisoriamente, a agricultura continua sendo a sua principal atividade, como o foi

no passado.

O ano agrícola inicia-se em agosto, tendo seu término em março/abril com o plantio de

feijão da "seca". A produção agrícola obtida nas áreas de roça é destinada ao consumo

familiar e, quando possível, para a venda - o que é cada vez mais raro, devido ao aviltamento

dos preços agrícolas. O feijão, a mandioca e o milho são os principais produtos plantados para

o consumo. Cultivam ainda para a subsistência, o feijão "miúdo", a abóbora, a melancia e o

maxixe, entre outras espécies.

As roças, regra geral, pertencem ao grupo doméstico (que engloba eventualmente mais

de uma família elementar). Como será detalhado na Parte 5 infra, devido a dinâmica de

sucessão pela linha paterna, os terrenos já desbravados por uma parentela agnática tendem a

ficar no domínio de irmãos consanguíneos, acentuando a patrilinearidade do sistema de

parentesco Kinikinau-Terena - e a virilocalidade da residência pós matrimonial (a esposa vai

na casa do marido, que é a do pai dele ou muito próxima ao grupo de vizinhança do mesmo);

por força desta composição, as roças de um mesmo grupo de irmãos se distribuem em áreas

contíguas, como também já informado.

Este grupo – com a autoridade do mais velho – decide sobre quando e o qual espécie

plantar e trabalham coletivamente no seu "trecho", apesar do reconhecimento da propriedade

individual de cada integrante para cada "trecho". Esta descrição serve para os grupos mais

velhos das Reservas, descendentes dos formadores das aldeias ou dos primeiros “migrantes”,

como é o caso dos Kinikinau. Estes “migrantes” – sem base ou apoio na parentela – tendem a

abrir (e foi assim no passado) roças novas em áreas concedidas pelas chefias das aldeias – e

pelos encarregados dos Postos do SPI.

A prática da agricultura hoje se dá em terrenos já abertos – e com trator. Até

recentemente (até a década de 1990) ocorria, ainda, um pequeno avanço para as áreas de

"capoeirão" (vegetação em estágio de regeneração de 15 a 20 anos) presentes no entorno das

roças abertas, através de uma técnica denominada destoca: a partir de uma área já aberta, eles

adentram a capoeira retirando os troncos mais grossos, de forma que restem os troncos finos e

os tocos das árvores. Após o corte das árvores com machado é efetuado a desgalha, retirando

os galhos mais grossos para serem aproveitados como lenha. Efetuada a limpeza dos troncos,

estes são removidos do interior das áreas de roça e destinados aos mais variados tipos de uso:

confecção de caibros, mourões e mesmo venda (madeira nobre com valor comercial). O

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material restante nas áreas de roça (lenhoso e não lenhoso) é agregado junto aos cepos

arbóreos e queimado. Essa "destoca" gradual pode ainda ser hoje utilizada, dependendo da

disponibilidade de insumos (óleo, trator e dinheiro para o tratorista).

Não se obteve dados conclusivos a respeito do tempo de pousio das áreas de roça;

observou-se apenas que este difere intra e inter-roças, variando entre dois e três anos, porém

não levantamos dados sobre os critérios de escolha para a reutilização ou abandono destas

áreas, como porte de vegetação e tipo de solo, entre outros. As antigas áreas de roça,

submetidas a um uso mais intensivo do solo, encontram-se cobertas de capim "colonião" e são

bastante utilizadas para agricultura.

As áreas novas para agricultura, recém-preparadas, são destinadas basicamente para as

roças de milho, arroz (este nas poucas áreas naturalmente irrigadas e de terra preta) e feijão.

As áreas destinadas para o plantio destes cereais exigem uma condição de fertilidade de solo

diferenciado de outros cultivos, sendo considerada como critério para a escolha das áreas.

Junto às roças de milho e feijão (nas áreas mais altas) é observada uma grande diversidade de

cultivos consorciados, como abóbora, melancia, batata-doce, maxixe, entre outros. Estes

cultivos secundários têm a função de cobrir as áreas de solo entre os pés da cultura principal,

reduzindo assim o "praguejamento" da roça. Quando a produtividade dos gêneros principais

começa a diminuir nas áreas de roça, estas mesmas áreas, no ano seguinte, são destinadas ao

plantio dos tubérculos (mandioca, batata-doce, maxixe) e demais cultivos menos exigentes em

fertilidade do solo - por certo período, até a recuperação de parte da fertilidade do solo.

Tal como os Terena, os Kinikinau, nos lotes destinados às roças, dá liberdade para

cada grupo doméstico possa cultivar o que quiser e o quanto quiser nestas áreas. Observa-se,

no entanto, que estes lotes não são normalmente utilizados na sua totalidade. Cada lote forma

um mosaico de pequenas áreas em estágios de sucessão distintos, indicando que há um

planejamento quanto ao uso agrícola do lote em função da fertilidade do solo, mantendo áreas

em pousio para uso futuro.

A área delimitada no Agachi permitirá aos Kinikinau manterem seu sistema agrícola

operante, inclusive com a abertura de novas áreas, o que lhes permitirá ganhos de

produtividade inéditos em comparação com as roças que detêm nas Terras Indígenas

“emprestadas” onde hoje parte da sua população habita.

3.1.2 A criação de gado

Como já observado, apesar do ethos Chané se traduzir, digamos assim, na agricultura, estes

povos jamais deixaram de exercer a criação de animais, vacum e cavalar, atividade que

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herdaram, para depois assumirem como própria, na sua prolongada convivência com os

Mbayá-Guaicuru. Este conhecimento foi fundamental, nos anos subsequentes à guerra com o

Paraguai, para a inserção de muitos Chané (Terena, Kinikinau, Laiana) como trabalhadores

semiescravos nas fazendas da região.

No tempo da aliança com os Mbyá-Guaicuru o acesso às reses parece que estava

restrito aos naati - chefes de grupos locais que tinham a prerrogativa de receber, através da

troca de suas mulheres com os "maiorais" Mbayá, bois e cavalos. Hoje este acesso restringe-

se aos Chané "bem sucedidos", isto é, que conseguiram dinheiro suficiente para comprar

algumas reses, seja através dos longos anos despendidos na changa ou por meio de outro

emprego qualquer no mundo dos purutuyé. Mas a criação é ainda sinal de status elevado

dentro das reservas Terena.

Por outro lado, a criação de gado – dada as limitações das reservas – tornou-se uma

das principais fontes de conflitos internos. E já o era também em tempos passados, visto a

divisão proposta pelo então major Rondon quando da delimitação das Reservas de

Cachoeirinha e Taunay-Ipegue, entre as áreas de roça e aquelas destinadas à criação. O

"fechamento" das áreas de pastagem no interior das Reservas foi sempre causa de conflitos

internos, pois subtrai da área comum uma parcela maior que aquelas requeridas pelas roças –

e para fins estritamente particulares, já que os rebanhos da "comunidade" introduzidos pelo

SPI foram extintos há muito. E praticamente todas mantêm uma pequena criação de galinhas,

que, junto com a carne de caça, são as principais fontes próprias (isto é, não adquiridas

externamente) de proteína de origem animal.

No São João, algumas famílias sempre possuíram seus pequenos rebanhos de gado

vacum e alguns cavalos. Até o início dos conflitos recentes com os Kadiwéu, o número deste

gado em posse dos Kinikinau ali residentes ultrapassava duas centenas.

3.1.3 A cerâmica

Além de atividade lúdica, a fabricação das peças de cerâmica é uma atividade socializadora

para as mulheres (e que não segrega os homens), porque agrega, durante seu feitio, as três

gerações de um grupo familiar. E também possui uma interface com a ecologia posto que o

barro e a lenha (para a queima) exigem terrenos e solos especiais e que são preservados pelas

ceramistas – onde essa atividade ainda é importante, como entre os Kinikinau do São João e

Terena (sobretudo em Cachoeirinha e Taunay-Ipegue). Não é com qualquer barro que faz uma

peça cerâmica de qualidade e também não é com qualquer espécie lenhosa que se faz uma boa

queima.

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Essa atividade é ainda um complemento fundamental na renda dos grupos familiares

que exercem a atividade, sobretudo entre os kinikinau. Apesar do preço aviltado no mercado

regional, o turismo no Pantanal sul mato-grossense é importante e algumas lojas das

principais cidades da região (Miranda e Aquidauana) ofertam a cerâmica kinikinau – e

também terena e kadiwéu.

Os Kinikinau atualmente estabelecidos a aldeia São João52

têm a sua alimentação

constituída basicamente de mandioca mansa (Manihot utilissima), milho (Zea mayz), batata-

doce (Ipomoea batatas), feijão fava (Phaseolus vulgaris L), palmito (Attalea Phalerata),

peixes (diversas espécies), carne bovina e de caça, açúcar e óleo de soja. Estes dois últimos

produtos são adquiridos na cidade de Bonito ou nas cestas alimentares oferecidas pelo

Governo Estadual em conjunto com o Governo Federal.

Os anciãos Kinikinau afirmaram conhecer várias espécies de arroz, entre eles o arroz

vermelho, Oriza sativa ssp. Japônica var. fátua, que é muito resistente às intempéries da

natureza, eles o denominam de “arroz bravo”, atualmente a espécie “brava” é arrancada

quando percebida entre as outras plantas, pois o seu cruzamento com as demais pragueja6 a

lavoura. Outra espécie é a Oriza sativa ssp. Japônica var. sativa, que produz muito bem em

regiões alagadas.

De acordo com os relatos dos anciãos Kinikinau ouvidos por Albuquerque Souza

(2012: 40 e ss), eles não têm lembranças de que seus pais ou avós tivessem relatado uso de

máquinas de plantio de sementes ou de preparo da terra. Tudo era feito manualmente com o

auxílio de ferramentas como machado, foice e enxadão. A semeadura era feita com o auxílio

de um saraquá (pau-de-plantar), para perfurar o solo. Como a terra era farta e abundante,

praticavam muito o sistema de rotação de culturas e a coivara, com o local onde se cultiva

sendo usado por dois ou três anos consecutivos para depois mudar-se o local das roças para o

pousio da terra.

De acordo com os dados da entrevista realizada por Albuquerque Souza, plantavam

algumas variedades de milho conhecidas por eles, como o milho comum (Zea mayz), o milho

pintado (Zea mays ssp. mays L.) que apresentava várias colorações em uma mesma espiga e o

milho saboró ou milho doce (Zea mayz var. rugosa) que era muito apreciado pela sua maciez

e facilidade em transformá-lo em farinha. Essa espécie de milho era usada para fazer bolos e

principalmente o pixé, farinha torrada para comer com açúcar, mel, melaço de cana ou

rapadura.

52

Dados extraídos de Albuquerque Souza, 2012: 38 e ss.

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A carne é um item indispensável na alimentação Kinikinau. Os homens são

habilidosos caçadores. Os animais mais apreciados na alimentação são Anta (Hydrochoeris

hydrochoeris), Cateto (Tayassu tajacu), Queixada (Tayassu pecari), Tatu Galinha (Dasypus

novemcinctus), Paca (Agouti paca) e Veado Campeiro (Ozotocerus bezoarticus). Outros

animais são caçados, mas a sua carne não é tão apreciada. Entre eles pode-se citar: as aves

como a Seriema (Cariama cristata), as pombas (Columba palumbus L.), os Nambus

(Crypturellus tataupa), as perdizes (Alectoris rufa), as Jaós ou Macucos (Tinamus solitarius),

Mutuns (Crax fasciolata) e Jacutingas (Pipile jacutinga). As principais restrições alimentares

relacionados à carne de animais estão nas carnes de ofídios e o Tatu Peba ou Tatu peludo

(Euphractus sexcintus) por acreditarem que esse animal ataca os cemitérios e come os restos

mortais ali enterrados.

As lavouras dos Kinikinau, para aqueles que ainda as fazem, se localizam em locais

afastados das casas, nas áreas de mata fechada, nas beiras dos córregos ou nas capoeiras.

Raramente praticam monoculturas, sempre há mais de uma espécie de plantas juntas com a

predominante. Por exemplo: numa grande lavoura de arroz é possível encontrar abóboras,

morangas, melancias, milho e ao redor, algumas bananeiras.

Atualmente não há grandes plantações de arroz (Oriza sativa ssp. Japônica var.

sativa) na aldeia São João. Mas algumas famílias fazem o cultivo em pequenas quantidades.

Segundo os plantadores de arroz, geralmente a semente é guardada de uma safra para outra.

Quem não depende das lavouras para aquisição de alimento, adquire o produto na cidade ou

nas cestas básicas oferecidas pelo governo, através do Programa de Segurança Alimentar. Os

indígenas se acomodaram e muitos não querem mais plantar, pois segundo eles, não vale a

pena sacrificar-se sob o sol e chuva se o governo já manda o alimento pronto para ser

preparado. Dessa forma, os outros itens da lavoura também deixaram de ser plantados na

quantidade de que se plantava na década de 1980.

A cana de açúcar (Saccharum officinarum L.) é muito apreciada pelos Kinikinau e por

alguns anos ela era presente nos quintais de muitas famílias que tinha um engenho. Essas

famílias a plantavam com a finalidade de produzir rapadura para vender aos visitantes e para a

própria comunidade. O engenho era feito com o tronco do barú (Dipteryx Alata), uma madeira do

cerrado e era movido por um ou dois cavalos.

Mesmo com a acomodação dos indígenas da Aldeia São João, o abandono da

tradicional lavoura, não é uma atitude de toda a população, pois na casa de um ancião, Sr.

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Ezidio53

, que vive sozinho, podem-se encontrar diversas plantas. Este indígena vende os

produtos de sua roça para os demais membros da aldeia. Segundo ele, mesmo recebendo a

cesta do governo, continuará plantando sua roça, pois é uma forma de arrecadar dinheiro e

também garantir a boa qualidade na alimentação. Não faltam alimentos para seus animais e

nem para os vizinhos.

O mel é outro item presente na alimentação Kinikinau. De acordo com os indígenas,

sempre fizeram uso desse produto com diversas finalidades, entre elas a alimentação e

produção de remédio. Esse povo é conhecedor das diversas espécies de abelhas existentes na

região do pantanal, parte Oeste de Mato Grosso do Sul.

Os indígenas mais antigos usavam tomar o mel, geralmente da Ápis melífera, com a

gordura da anta, (Tapirus terrestres), como forma de garantir saúde e longevidade. Também

usam o mel da jataí (Tetragonisca angustula angustula) como anti-inflamatório nos ouvidos e

olhos. Durante as pesquisas realizadas por Albuquerque Souza no São João, foram

encontradas as seguintes espécies de abelhas: Jataí (Tetragonisca angustula angustula), Bota-

fogo (Oxytrigona tataira tataira), Sanharão (Trigona truculenta), Borá-amarelo (Tetragona

quadrangula), Manduri (Melipona marginata Lepeletier), Oropa (Ápis melífera), Tiquira

(Melipona Lateralis), Lambe-olhos (Leurotrigona muelleri) e outras que não são identificadas

pela população.

PARTE 4 MEIO AMBIENTE54

A Zona de inserção: o Pantanal

Considerando os grandes compartimentos do relevo brasileiro, a TI Taunay-Ipegue está

situada na Planície Pré-Pantaneira, que se separa do Planalto Brasileiro pelas escarpas da

Serra de Maracaju. No entanto, e ao contrário da planície pantaneira propriamente dita, estes

terrenos não sofrem alagamento constante, por isso foram caracterizados como de “Planície

Pré-Pantaneira”.

O chamado Pantanal mato-grossense é subdividido pelas bacias dos rios que o

compõe, formando o Rio Paraguai, desde o norte do Mato Grosso. Todos estes rios em

território brasileiro nascem nos cerrados do Planalto Brasileiro e ingressam na planície

pantaneira, abaixo de uma sequência de encostas de chapadas. Assim podemos subdividir o

53

Ezídio Marques – hoje residente na aldeia Cabeceira, TI Nioaque. 54

Este Título contou com a colaboração do geógrafo e mestre em Ecologia MAURICE TOMIOKA.

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Pantanal em Pantanal do Alto Paraguai, do Cuiabá-Taquari, do Rio Negro, do Miranda-

Aquidauana, do Nabileque , entre outros.

A dinâmica das águas da região pantaneira define boa parte dos ecossistemas locais

quanto à cobertura vegetal, seja de floresta, de cerrados ou campos, ainda com destaque para

áreas onde predominam populações homogêneas, mais adaptadas a este regime de secas e

cheias periódicas, com maior ou menor saturação de água na camada de solo logo abaixo da

superfície. O comportamento do solo também participa da composição e definição dos

ecossistemas pantaneiros, na medida em que há solos mais ou menos permeáveis e outros

impermeáveis.

O relevo da Planície Pré-Pantaneira, com altitudes de até 200 metros, apresenta

pequenas variações de altitude. Estas pequenas variações são significativas, já que centímetros

de altura de diferença podem definir a suscetibilidade com relação às cheias. Pequenas

depressões ali servem de canal de drenagem, que é sempre intermitente. Aquelas faixas de

drenagem interrompidas são chamadas regionalmente de “vazantes”.

Dada as características de relevo e solos, os lugares livres completamente das cheias

(nunca alagados) apresentam uma vegetação mais diversificada e mais estável do ponto de

vista temporal; as regiões sujeitas a alagamentos temporários, e dependendo do volume das

cheias (o que varia de ano para ano), podem apresentar uma vegetação de mata ombrófila, e

esta tende a avançar ou reduzir-se em extensão conforme período de maior ou menor

umidade. De qualquer modo é nas áreas alagáveis onde a vegetação se modifica com maior

frequência no decorrer do tempo. Podemos, para estes casos, afirmar que uma cobertura de

vegetação pioneira é muitas vezes a vegetação principal de certas áreas.

Portanto, um dos fatores condicionantes da fisionomia da vegetação natural nesta

região é a própria dinâmica de acumulação das águas. O excesso de água no solo propicia a

formação de uma vegetação de fisionomia campestre (campos de vazante), enquanto as áreas

que acumulam menos água propiciam a formação de uma mata ombrófila. As áreas onde não

ocorre o acúmulo de água são ocupadas pelos cerrados. Dentro desta dinâmica, pode-se dizer

que uma área hoje com mata pode ter sido uma vazante, provavelmente em decorrência da

deposição/acumulação dos solos oriundos dos cerrados.

De uma forma geral, podemos compreender a vegetação dos campos de vazantes na

região do Agachi e o entorno englobado nesta proposta, como um estágio no processo de

formação de um ecossistema mais complexo: capins suportando o excesso de umidade

(primeiro estágio), junto ao capim surgem moitas de araticum (Annona coriacea) e crescem as

lixeiras (Curatella americana), árvores adaptadas a este solo encharcado. As lixeiras

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sombreiam e formam um raizame, acumulando sedimentos. Este processo favorece a

colonização pelas primeiras árvores típicas de floresta tropical. Por outro lado, a mata

formada a partir de áreas de vazante, com as árvores de raízes tubulares, adaptadas ao lençol

superficial, originam uma estrutura onde o dossel superior é formado por ximbuas (timbiuba-

Enterolobium sp.), angicos (anadenantera sp ) e ipês (tabebuia sp.) dentre outras, e segundo

estrato por guatambus (aspidosperma sp), cedros (Cedrella sp.) e cajazeiras (Spondias sp).

Outros estratos ocorrem, abaixo destes, onde desponta principalmente uma palmeira, o bacuri

(Scheelea ou Attalea phalerata), que praticamente recobre as áreas não ocupadas pelas

árvores.

Esse ecossistema (chamado de Hoí pelos kinikinau) possui solos férteis e é o escolhido

para a colocação das roças, pois permite seu uso para tanto por mais tempo que os solos de

cerrado. Da sucessão desta floresta, com característica ciliar, conhecemos muito pouco da sua

formação: após o desgaste do solo não há nenhuma evidência de quais seriam as pioneiras a

dar origem a uma futura floresta. Nos campos abandonados, ou aparecem crindiuvas (Trema

michranta), dentre outras pioneiras, ou invasoras exóticas como o colonião; nas bordas

atingidas pelo fogo, o bambuzinho parece formar uma barreira.

O que se está chamando aqui de “cerrados” (ou Meeu em Terena) não é exatamente o

que encontramos no planalto central brasileiro: há certo número de espécies diferentes entre

ambos os ecossistemas, dentre elas algumas muito significativas, como o pequi (Cariocar

brasiliensis) e o buriti (mauritia sp), que não ocorrem na região e nem na Reserva; outras

diferenças identificadas são de fisionomia, tendo uma característica mais florestal e, naquelas

mais desenvolvidas e menos alteradas tornam-se um cerradão típico, com árvores como o

jatobá (Himenea sp) e aroeira (Astronium ou Miracrodruon urundeuva) ou espécies de menor

porte como o timbó, (Magonia sp) formando um continuo ora emaranhado com cipós -

destaque para o cipó mil-homens (aristolochia sp.), freqüente nesta região e também plantas

menores, como o araçá (psidium sp), a guavira (Campomanesia sp.) e outros arbustos

frutíferos de conhecimento indígena.

O que distingue claramente os dois ecossistemas florestais em campo é o solo, com

origens e geótopos diferentes: enquanto as matas ombrófilas se formam em terrenos

sedimentares quaternários, o cerrado tem solo avermelhado nas partes planas dos interflúvios.

A regeneração nestas áreas é semelhante à vegetação resultante, com gradientes de maior ou

menor diversidade de espécies e o adensamento de sua estrutura acompanha o tempo.

Quadro 1

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Fisionomia Solo Geologia e Relevo

Vazante

hanaicué

campo de capim com

faixas de lixeiras

Areia Sedimentos recentes em

depressão, plano.

Mata

meeu

árvores altas,

palmeiras bacuri

embaixo.

Areia/

humus

Sedimentos recentes,

inconsolidados, solo plano e

úmido.

Cerrado

hoí

árvores até 8m. em

meio a árvores

menores e arbustos

Vermelho Sedimentação antiga, parte

mais alta do relevo

Conforme a Figura 4 abaixo, o mosaico de ambientes naturais acima expostos

compõe boa parte da área proposta para a TI Kinikinau do Agachi – em convivência com as

áreas abertas para pastagens ou plantio de eucaliptos. Isto quer dizer que os ecossistemas, em

sua fisionomia mais próxima da original, representam algo em torno de 30% da área, sendo

que 70% é composta por áreas alteradas por pastagens e terrenos alagadiços. Ressalta-se que a

bacia do Agachi é classificada como Área Prioritária Extremamente Alta para efeitos de

conservação, abrangendo uma área com 7.947 km². (MMA, 2007, versão 2.0).

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Figura 4 – Cobertura vegetal na área delimitada

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Os cerrados pré-pantaneiros

Como já observado, os cerrados encontrados nas áreas não alagáveis da planície pantaneira

são sistemas diferentes quanto à composição dos cerrados do planalto. Têm características

próprias, espécies da fauna e flora também particulares, além das que permitem classificá-los

dentro do conjunto dos cerrados brasileiros. Sendo uma vegetação específica, seu

conhecimento quanto ao manejo, conservação e aproveitamento econômico de sua

biodiversidade está dependendo do que se pode descobrir junto às populações nativas que

conviveram com ela de maneira secular.

Sabendo-se do baixo (por enquanto) impacto ambiental das ações antrópicas sobre o

Pantanal - dada a dificuldade de ocupação imposta pela própria adversidade física da região, a

saber, o regime de águas - a integridade dos ecossistemas e sua biodiversidade recai sobre as

coberturas vegetais das áreas não alagáveis, o que, por si só, já recomendaria um cuidado

especial na conservação destes ecossistemas. De fato, este tem sido substituído por pastos

cultivados, que é a base de uma pecuária bovina extensiva, de baixo rendimento, que é padrão

na região. Uma atividade econômica que não justifica a perda de biodiversidade regional e

possivelmente na dinâmica das águas, já que, nem pequenas baixadas produzidas pelo maior

fluxo de água (nascentes e vazantes com fluxos superficiais intermitentes) têm sido poupadas

dos desmatamentos recentes55

.

Para uma compreensão mais clara sobre a relação dos cerrados pré-pantaneiros e os

povos de língua Aruaque da região (Terena e Kinikinau) e a importância destes ecossistemas

para estes povos para a sua sobrevivência, seria importante indicar nos próximos parágrafos

alguns dos usos observados de espécies vegetais e animais, do solo e de algumas práticas de

conservação, implícitas na forma como é feito o manejo na cultura material Kinikinau.

Procura-se demonstrar, através de descrições, que as práticas agrícolas dos Kinikinau, quando

em um território condizente com sua população e respeitada sua cultura, com alternativas às

atuais relações de produção e comércio com a sociedade diretamente envolvente, apresentam

55 Já há estudos suficientes neste campo da ciência para afirmar a importância da vegetação de caráter florestal e

permanente ( e os cerrados de solos não alagáveis nesta região possuem caráter eminentemente florestal) na

conservação da umidade do solo durante o período das secas, já que se trata de uma região de clima estacional,

marcadamente seco no inverno (auge em julho) e de chuvas fortes no verão. Esta fundamentação teórica quanto

a dinâmica das águas resultou em legislação específica para proteção de cobertura vegetal como foi o caso do

Código Florestal (1966) entre outras.

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características regenerativas da vegetação da região, lembrando, desde já, a característica dos

solos, pobres em nutrientes, ácidos e suscetíveis à compactação.

Dentre as plantas existentes nos ecossistemas identificados e que apresentam uso

constante pelos Kinikinau, cabe destacar as seguintes:

Bacaiúva – o fruto é empregado na alimentação e extração de óleo para aplicação a cozinha, o

palmito das plantas jovens também é processado, já tendo sido objeto de estudo quanto a

algumas propriedades nutritivas de baixo poder calórico.

Bacuri - o palmito desta palmae é apreciado na alimentação, mas têm sido extraído muito

mais para comercialização em Campo Grande, o que permite um acréscimo na renda familiar;

seus frutos atraem animais e as folhas são utilizadas na cobertura de ranchos; trata-se de

planta da mata de vazante.

Guavira - pequena planta arbustiva (mirtacea), que na estação chuvosa produz um fruto

muito apreciado na alimentação e que é muito comercializado, dada a falta de alternativas

econômicas; segundo informantes, tem importante função na atração de fauna; durante sua

frutificação há uma mobilização de parte da comunidade na colheita de seus frutos.

Cajá (Spondias sp.) - uma das frutas encontradas nas matas pantaneiras mais apreciadas

pelos índios, esta anacardiácea já se encontra também domesticada, nos quintais das casas,

originadas de matrizes escolhidas por qualidades de sabor e produtividade.

Aratxé - pequeno fruto vermelho, de sabor adocicado, encontrada na mata ciliar de

conhecimento dos índios e não comercializada; ainda não foi plenamente identificado pela

equipe .

Cipó mil homens (Aristolochia sp) - trata-se de um cipó com utilização medicinal para

diversos fins, destacando-se entre eles dores de cabeça e de origem digestiva, com ou sem

febre.

Bosta de cabrito (Rhaminidium elaeocarpum) - o fruto é alimento para pessoas e animais.

Marmeleiro do cerrado( Alibertia Sessilis) - seus frutos são utilizados na confecção de doces,

de conhecimento dos Terena.

Araticum - é a mais apreciada das anonáceas; encontradas nas áreas de vazantes;, seus frutos

são grandes e saborosos; há outras anonáceas encontradas no cerrado, de menor importância

econômica, mas reconhecidas pelos índios.

Jatobá - esta leguminosa produz, além da madeira, frutos (vagens) cujo revestimento das

sementes é utilizado na produção da goma do jataí.

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Hiribipiqüê (Saponaria) - trata-se de uma planta cujas sementes são utilizadas na conservação

de grãos e sementes, armazenados para o plantio no ano seguinte; sua eficácia foi

comprovada, pois contém saponinas repelentes aos carunchos.

Diversas espécies, para cordas e fibras: é reconhecida a criatividade dos índios quanto à

utilização de fibras e plantas, em diversos momentos e necessidades de sua vida material.

Geralmente, a confecção destes objetos obedece às necessidades de cada momento.

Diversas para lenha – na abertura de roças, segundo o modelo tradicional, as madeiras com

melhor desempenho calorífico são separadas e carregadas para casa, onde serão empregadas

na preparação de alimentos e na queima da cerâmica, partes importantes da produção material

deste povo; durante a abertura de novas áreas para a roça, pois como sabemos há todo um

detalhado processo de desmonte da vegetação, planejado para ser realizado num período bem

anterior ao do plantio; neste processo, galhos são separados de troncos úteis, para mourões e

outras funções.

Diversas espécies pelas suas propriedades medicinais - foram relatados usos para espécies

hoje já reconhecidas inclusive no meio científico (por exemplo, a Casearea Silvestris ou “chá

de frade”); dentre as plantas recordadas pelos mais velhos está o algodoeiro nativo,

identificada como Gossypium barbadense (malvácea), existente, portanto, em outras áreas do

pantanal; nas áreas de vegetação natural menos exploradas, tal planta ocorre naturalmente,

pois era originária da região antes de ter se transformado em planta cultivada pelos índios

Terena.

poronga (cucurbitácea) - uma cabaça fechada utilizada em rituais de cura e manipulação de

energias sobrenaturais, por pessoas iniciadas nestas práticas (os xamãs, chamados de

“porangueiros”).

Em levantamento efetuado por equipe de pesquisadores da Embrapa Solos para solos

de baixa intensidade no município de Aquidauana56

os solos na região do Agachi englobada

na delimitação aqui proposta são da classe dos Argissolos Vermelho-Amarelo (PVAd2)57

.

São solos com aplicação agrícola variada, de excelente (latossolo vermelho) a médio

(latossolo vermelho-amarelo).

56

ainfo.cnptia.embrapa.br/digital/bitstream/item/.../MAPA-SOLOS-AQUIDAUANA.pdf

57

PVAd2: ARGISSOLO VERMELHO-AMARELO Distrófico abrúptico, textura média, fase cerradão tropical

subcaducifólio, relevo ondulado e suave ondulado + NEOSSOLO LITÓLICO Distrófico típico, textura média

muito cascalhenta e média, fase cerrado tropical subcaducifólio, relevo forte ondulado e ondulado +

LATOSSOLO VERMELHO Distrófico típico, textura média, fase cerradão tropical subcaducifólio, relevo suave

ondulado, todos A moderado.

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Figura 5 – Classe de solos no Agachi

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Identificação das áreas imprescindíveis à preservação dos recursos naturais necessários ao

bem estar do povo Kinikinau no Agachi

Embora a área aqui proposta e reivindicada pelos Kinikinau esteja, em parte, com seus

ecossistemas originais alterados, isto não constitui um fator relevante a ponto de inviabilizá-la

– pois, do que se pode aferir das práticas de manejo daqueles indígenas com relação a áreas

abertas, certamente trarão uma modificação considerável da paisagem, por meio do uso de

uma agricultura de caráter regenerativo. Com base nisto, pode-se arriscar um prognóstico de

alteração da paisagem das áreas destinadas à TI Kinikinau do Agachi pelo uso tradicional de

sua agricultura – o que inclui o descanso e a regeneração como forma de manutenção e

recuperação da fertilidade dos solos, favorecendo um mosaico mais rico em quantidade de

espécies. Como os Kinikinau fazem uso intensivo da mão- de-obra familiar, as pastagens

cultivadas devem, gradativamente, ceder lugar à diversidade imposta pelas mãos de uma

população de agricultores e sua já conhecida criatividade neste campo. E isto combinando

com a atividade pecuária.

O córrego Agachi e seu entorno

A área aqui proposta situa-se em parte dentro da microbacia do córrego Agachi, afluente do

rio Aquidauana e as áreas de vegetação ciliar ainda estão relativamente preservadas, como é

observado na Figura 4, para fins de proteção dos cursos de água. Apresenta ainda cerrados

em bom estado de conservação que servem de habitat (permanente ou passageiro) a espécies

de mamíferos e aves que ocupam papel importante na alimentação dos Kinikinau. N amargem

esquerda do Agachi os cerradinhos apresentam grande quantidade de pés de guavira, que

podem dar aos Kinikinau uma renda extra (no início da colheita, chegava-se a R$ 30,00 o

quilograma em Aquidauana nos dias de hoje).

As áreas de vazantes e baias

Dentre os outros ecossistemas aos quais os Kinikinau reivindicam no Agachi, estão as áreas

de vazantes imprescindíveis dentro da produção histórica daqueles indígenas. Acrescenta-se

àquelas as planícies alagáveis: um conjunto de baías e matas ciliares locais de referência para

diversas atividades, dentre as quais a coleta do barro e da oferta de peixes e que, além disso,

possibilita uma intrincada rede de relações de caça e de aproveitamento da vegetação que

sempre fez parte da cultura Kinikinau. Estas áreas típicas, com os cerrados que lhes são

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contíguos, possibilitam a diversidade de recursos naturais imprescindíveis e necessários para

que os Kinikinau vivam segundo seus usos, costumes e tradições.

PARTE 5 REPRODUÇÃO FÍSICA E CULTURAL

Introdução: como é reproduzir-se física e culturalmente em terras alheias?

Nos documentos analisados do SPI e nas entrevistas realizadas pelo antropólogo responsável

por este Relatório de Fundamentação, restou claro que se reconhece enquanto kinikinau quem

tem (ou teve) um dos pais que se reconheciam como tal. O reconhecimento, portanto segue a

linha bilateral de filiação. Mas nem sempre esse auto reconhecimento é manifesto, posto que

a identificação étnica é sempre relacional e contextual: “(a) cultura original de um grupo

étnico, na diáspora ou em situações de intenso contato, não se perde ou se funde

simplesmente, mas adquire uma nova função, essencial e que se acresce às outras, enquanto

se torna cultura de contraste” (M. Carneiro da Cunha, 2009: 237). Ou seja, a etnicidade é um

fenômeno que ocorre quando e onde é necessário usar dos sinais diacríticos, marcantes, da

cultura original, para fazer-se reconhecer ou dar-se a conhecer. Ainda segundo Manuela

Carneiro da Cunha “(a etnicidade pode) em muitos casos, ser um poderoso veículo

organizatório” (2009: 243) – e este é o caso hoje dos Kinikinau na sua afirmação da sua

identidade étnica ou etnicidade.

Por outro lado, em um contexto de ambivalência sociocultural (como é o caso do povo

aqui considerado indígena) a afirmação da identidade étnica depende de quem faz a pergunta,

em qual contexto e no cálculo que a pessoa pode fazer ou faz em afirmar ou negar a filiação

étnica. Neste sentido, as observações de Castro (2010) são pertinentes e esclarecedoras:

“Para examinar o status de minoria étnica e a relação entre o conceito de identidade e

de grupo étnico, Cardoso de Oliveira (1976b) tomou como referencia o caso dos

‘remanescentes’ Kinikinau de Cachoeirinha, considerando que a condição de minoria

étnica deveria levar a uma situação de ‘escamoteamento’ da identidade de Kinikinau,

porem em seu trabalho de campo surpreendeu-se com a atitude do grupo: Com o

relativo desprezo que goza qualquer outra identidade que não seja a dos ‘donos do

lugar’ ― como assim se afirmam os Terena, nas alusões frequentes que fazem as

identidades dos ‘outros’ sempre que desejavam marcar seus direitos sobre a terra da

reserva, portanto, sempre que querem fixar o seu status superior ― seria de se

esperar que esses Kinikinau cuidassem de evitar qualquer estigma (Castro, 2010: 23).

Cardoso de Oliveira surpreendeu-se ao perceber que os ‘remanescentes’ Kinikinau da

Aldeia Cachoeirinha insistiam na afirmação de uma identidade própria, entendendo que, na

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condição de minoria étnica, desprestigiada em relação aos ‘donos do lugar’ – isto é, os Terena

– deveria ocorrer uma manifestação inversa, ou seja, de escamoteamento. Avaliou o

antropólogo Cardoso de Oliveira que a reafirmação só ocorria perante uma pessoa de fora,

‘capaz de vê-los diferentes dos Terena’ e que, em situação de interação com esses últimos, os

Kinikinau evitavam qualquer referencia a sua identidade observando que:

Esse caso [dos Kinikinau] sugere que bem se trata do que Erickson [1968]

denomina (...) ‘surrendered identity’, a saber, uma identidade latente que e apenas

renunciada como método e em atenção a uma práxis ditada pelas circunstancias,

mas que a qualquer momento pode ser atualizada, invocada. Mas essa invocação

nos indica que, no grupo fechado de sua parentela, os Kinikinau buscam se apoiar

numa ideologia étnica que os municie de valores capazes de fortalecê-los no

confronto cotidiano com os Terena que insistem em considera-los há pelo menos 50

anos, hóspedes! (Cardoso de Oliveira, 2003:124).

“As considerações de Cardoso de Oliveira, voltadas à sua preocupação em entender a

insistência dos Kinikinau em afirmar uma identidade própria em uma situação de minoria

étnica, mostram na realidade que existia (e existe) um reconhecimento dos Terena de que os

Kinikinau existem como ‘outros’, isto é, como hóspedes. Dessa maneira, pode-se afirmar que

os Kinikinau eram (e são) reconhecidos pelos Terena como um grupo distinto e assim se

reconhecem, o que comprova que a etnicidade se refere a aspectos de relações sociais entre

grupos que consideram a si próprios e são considerados por outros como distintos e que

mantem um mínimo de interação regular (Eriksen, 2002). Assim, a etnicidade só existe em

situação de relação.” (Castro 2010: 270-71 – grifo nosso).

Ao longo da pesquisa para este Relatório de Fundamentação ficou patente que, no

contexto atual de reafirmação étnica dos Kinikinau58

, o “escamoteamento” da identidade

étnica não faz mais sentido nem para os Kinikinau e nem mesmo para os Terena com os quais

ainda convivem. A continuidade histórica da identidade étnica do povo Kinikinau, seja no

contexto oficial (documentos do SPI e FUNAI, tais como, registros de casamento, censos,

boletins de frequência escolar, documentos de identidade pessoal “indígena”, entre outros), ou

nas entrevistas realizadas nas várias terras indígenas pesquisadas (Cachoeirinha, Nioaque,

Taunay-Ipegue e Lalima) é evidente e aqui será demonstrada.

A partir do acesso aos documentos do SPI digitalizados pelo Museu do Índio-FUNAI

(http://www.docvirt.com/docreader.net/DocReader.aspx?bib=MI_Arquivistico) foi possível

identificar os troncos familiares kinikinau e entrevistar os seus descendentes atuais e por

58

Logo após os acontecimentos havidos no PI São João (e que adiante descrever-se), passaram a acontecer

reuniões/assembleias do Povo Kinikinau, sob coordenação de jovens professores e apoiadas por ONGs.

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meio deste procedimento compor as genealogias anexadas a este documento. Estes troncos

familiares são identificados pelo sobrenome adotado (dado que a adoção do nome na língua

indígena foi abandonada já nos meados do século XX). O documento abaixo, de 1946, (Posto

São João do Aquidavão) foi tomado como um tipo de base de dados para a identificação dos

troncos familiares e, consequentemente, para o traçado das genealogias.

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89

Documento 21: Censo nominal Aldeia São João em 194659

(anexo)

59

In: http://www.docvirt.com/docreader.net/DocReader.aspx?bib=MI_Arquivistico – 096, São João do Aquidavão, caixa 50, planilha 335

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90

Detalhe Documento 21

Documento 22 – Boletim de frequência escolar – São João, 194960

60

Museu do Índio-FUNAI, Acervo SPI, 096, São João do Aquidavão, caixa 22, planilha 122

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91

Documento 23 – Atestado - 195561

61

Museu do Índio-FUNAI, Acervo SPI, 083, Cachoeirinha, Caixa 12, planilha 115.

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92

Documento 24: Certidão de Casamento expedida pelo SPI - 195362

62

Museu do Índio-FUNAI, Acervo SPI, 093 LALIMA, Caixa 17, Planilha 148.

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93

Documento 25 – Censo 1963 – PI São João63

Documento 26 – Termo de Declaração, PI Lalima - 196264

63

Museu do Índio-FUNAI, Acervo SPI, 096, São João do Aquidavão, caixa 21, planilha 194. 64

Museu do Índio-FUNAI, Acervo SPI, 093Lalima, Caixa 16, planilha 145.

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94

Documento 27 – Frequência escolar PI Lalima – 196365

65

Museu do Índio-FUNAI, Acervo SPI, 093, Lalima, Caixa 16, Planilha 028.

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Os exemplos acima demonstram que a identidade kinikinau é afirmada ao longo do

tempo e em várias situações territoriais. Neste último documento, por exemplo, o SPI

apresenta a população Kinikinau distribuída em Lalima e no São João – porém outros

documentos demonstram a presença dos kinikinau em outras terras indígenas. Esta estimativa

populacional de 1948 foi a única encontrada no Acervo do SPI. Como se viu (PARTE 2),

mesmo na condição de “intrusos” (caso da TI Kadiwéu) ou “hóspedes”66

(caso das TIs

Terena), quando positivamente indagados, nunca um kinikinau deixou de autoafirmar-se

enquanto tal.

A seguinte observação de Iara Castro é certeira quanto ao ponto aqui discorrido: “O

que também parece relevante ressaltar na analise de Cardoso de Oliveira e a sua sugestão

sobre a existência de outro tipo de identificação ao assinalar que a organização dos

Kinikinau de Cachoeirinha estava assentada em outras bases, avaliando que ‘seus

componentes mantem viva o que se poderia chamar de ‘identidade histórica’, pois

comumente, e inclusive na ocasião do senso fazem questão de se identificarem como

Kinikinau’ (Cardoso de Oliveira, 1976a: 123 [1960]). Para Cardoso de Oliveira, os Kinikinau

de Cachoeirinha correspondem a um ‘caso limite’, caracterizado pela ausência de um grupo

étnico de referencia e que tem que recorrer a sua historia para se representarem como

categoria étnica: (...) a situação dos Kinikinau (assim) corresponde a um caso limite, em que

um conjunto de indivíduos, na falta de um grupo étnico de referencia, efetivamente existente

(portanto como organizacional tape), apela a sua historia e se representa como categoria

étnica num sistema ideológico determinado. A possibilidade da emergência dessa modalidade

de identidade étnica talvez seja proporcional a sua ‘historicidade’, que remanescentes tribais

ou étnicos possam possuir (Cardoso de Oliveira, 2003:124 [1976], in Castro, op. cit.: 272-

73). Pode-se estimar, portanto – e tal hipótese está demonstrada ao longo deste Relatório de

Fundamentação – que essa historicidade profunda, no tocante aos Kinikinau, apontava (e

aponta) para um futuro onde, reocupado o seu território tradicional, a sociedade Kinikinau

virá a ser uma “organizacional tape” como queria Cardoso de Oliveira.

66

“O fato de (os kinikinau) serem considerados “hospedes” (dos terena) sugere que a diferença estava implícita

na relação entre aqueles grupos, não havendo necessidade de os Kinikinau invocarem sua própria identidade;

tanto para os Terena, quanto para os Kinikinau as “fronteiras” entre eles estavam visivelmente vivenciadas,

fazendo parte das suas relações”. (Castro, 2010: 271).

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5.1 Estimativa populacional: a evolução demográfica da população Kinikinau

Documento 28 – População indígena sob jurisdição da IR 5 do SPI - 194867

O documento acima é o único encontrado nos arquivos do Acervo do SPI (Museu do Índio-

FUNAI) com uma estimativa da população kinikinau – ainda que parcial, dado que só reporta

os kinikinau em Lalima e no São João, passando ao largo dos troncos familiares residentes em

Cachoeirinha (à época, 1948, com três documentados: os Moreira, Ferreira e Pereira), e

Taunay-Ipegue (os Rodrigues, ao menos).

Em 1965 residia no PI São João 235 pessoas das quais pelos 70% eram kinikinau (ou

160 indivíduos), conforme o Documento 29 abaixo. A levar a sério os dados dos dois últimos

documentos, a população Kinikinau no São João teria crescido de 1948 a 1965 de 50

indivíduos para 160, com um crescimento vegetativo naqueles 15 anos de 06 indivíduos ao

ano – e isso somente no São João.

67

Museu do Índio, Acervo SPI, IR 5, 999 Vários Postos , Caixa 34, Planilha 328.

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97

Documento 2968

68

Museu do Índio, Acervo SPI, IR 5, 097 TAUNAY, Caixa 22, Planilha 197.

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100

Esse crescimento não é compatível com os dados da Secretaria Especial da Saúde

Indígena (SESAI) de 2013 – que indica que a população Kinikinau com apenas 139 pessoas

(Documento 30, abaixo) e dos quais 138 residiam na TI Kadiwéu (127 no São João) e apenas

um na TI Cachoeirinha (aldeia Mãe Terra). Se aplicarmos o percentual de crescimento

vegetativo anual de 06 indivíduos/ano antes encontrada, a população no São João nos 50 anos

(1965 a 2013) ali seria de pelo menos 350 pessoas. Portanto, ou a população em 2013 foi

subestimada pela SESAI ou mais de um terço dela retiraram-se do São João nos últimos 48

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anos entre 1965 e 2013 – o que é provável, porém não de acordo com os fatos. Mas se deve

ainda considerar que a 1ª Assembleia do Povo Kinikinau aconteceu em novembro de 2014, a

partir da qual os descendentes dos anciões daquele povo passariam a afirmar sua identidade

étnica com todas as letras – isto é, passaram a exigir junto aos órgãos públicos (SESAI

inclusa) a notação kinikinau em seus nomes e fichas.

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A população que se autoreconhece hoje como kinikinau na aldeia São João e cuja

maioria vai reocupar a área aqui delimitada no Agachi é de cerca de 70 pessoas em 12 grupos

domésticos. Os Kinikinau abrigados atualmente na aldeia Mãe Terra (na TI Cachoeirinha)

somam cerca de 80 pessoas e 20 grupos domésticos, acrescidos das últimas famílias que

deixaram o São João em razão de recentes conflitos (ver ponto 5.3, infra); em Bonito, e que

também reocuparão o Agachi, perfazem um número de 32 pessoas e 08 grupos domésticos.

Portanto, a população que ocupará a TI Kinikinau do Agachi será de pelo menos 182

pessoas com 40 grupos domésticos.

5.2 Origem e consequências dos conflitos Kinikinau-Kadiwéu na aldeia São João

No Memorando nº 043/PIN São João/2003, datado de 24 de abril de 2003 (anexo), o

funcionário da FUNAI na chefia do Posto Indígena, Olivar de Oliveira, relata ao seu superior

hierárquico os “incidentes registrados entre índios Kadiwéu e Kinikinauas (sic)”. Conta ainda

que estes conflitos tiveram início em 1997, com a chegada na aldeia São João do índio

kadiwéu Cipriano Mendes. Desde então um idoso Kinikinau (Leôncio Anastácio, agora

falecido) teve suas posses incendiadas por índios kadiwéu e outras famílias expulsas, com a

do líder kinikinau Ambrósio Góis. Relata ainda que Cipriano ameaçava os kinikinau que

tinham gado na aldeia São João de cobrar arrendamento do pasto. Outros depoentes contam

que Cipriano Mendes (filho do finado Antônio Mendes, liderança importante dos Kadiwéu)

chegou à aldeia São João como “punição” por ele haver se envolvido em vários conflitos com

parentes na aldeia Alves de Barros.

Entretanto, ao que parece a intolerância dos Kadiwéu para com os kinikinau que

habitam a TI Kadiwéu começou bem antes, em 1984, depois de uma apresentação da dança do

“bate-pau” na cidade de Bonito. Tudo leva a crer, nos depoimentos tomados junto aos

kinikinau, que o processo de afirmação da identidade étnica deste povo teria levado os

kadiwéu a se indisporem com seus “parentes” – e tal indisposição veio crescendo. A criação

da Escola Kinikinau em 2006, oficializada pelo Conselho de Educação do Estado do Mato

Grosso do Sul com a denominação Escola Koinukunoen (vocábulo que quer dizer “kinikinau”

na língua deste povo), daria mais munição aos kadiwéu. As lideranças kadiwéu de então,

segundo consta, não se opuseram; mas tão logo (2008) foram substituídas, começaram os

problemas... e a Escola teve sua placa oficial destruída pelos kadiwéu liderados por Cipriano.

Depois destes eventos envolve a Escola, várias fam[ilias Kinikinau mudaram-se, em 2004-

2005, para a aldeia Mãe Terra (TI Cachoeirinha), obtendo ali refúgio.

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Outro fato que acirrou os conflitos kadiwéu/kinikinau na aldeia São João foram as

Assembleias do Povo Kinikinau a primeira delas realizada em 2014 – a ultima, a 5ª, foi

realizada em novembro de 2018 na aldeia Mãe Terra. Em uma destas assembleias, o

documento final fala em requerer da FUNAI um documento que expressasse o direito

territorial dos Kinikinau na TI Kadiwéu, “como é o Parque do Xingu, com diversas etnias

num mesmo território”. Indagados por qual razão tal reivindicação apareceu no documento,

lideranças kinikinau entrevistados alegaram que “fazia desde 1990 que pediam GT para a

FUNAI e ela não atendia” (nota-se que nas primeiras assembleias do povo Kinikinau os

documentos requeriam da FUNAI a instalação de Grupo Técnico para demarcação de seu

território no Agachi – ver anexos).

A situação de permanente tensão na aldeia São João culminaria em um conflito mais

grave, em setembro de 2018, quando, depois de uma festa em casa de um kinikinau, um índio

desta etnia matou a tiro um jovem kadiwéu. Depois deste evento, as poucas famílias kinikinau

que ficaram no São João são de indivíduos casados com mulheres kadiwéu (seis famílias,

segundo o depoimento do professor kinikinau Inácio Roberto). Mas, como dizem os

kinikinau, não se sabe até quando por lá ficarão.

Frente a estes fatos, a “questão kinikinau” (ou melhor, sua diáspora) ganhou um

caráter de urgência que exige do órgão federal responsável pelos direitos indígenas (a

FUNAI), providências imediatas. Dentre estas, dar andamento ao processo de reconhecimento

do território tradicional do povo Kinikinau no Agachi é a mais premente.

5.3 As áreas necessárias para a reprodução física e cultural do povo Kinikinau

A área aqui delimitada, com cerca de 4 (quatro) mil hectares, é o território tradicional

Kinikinau, por todas as provas e evidências trazidas e documentadas neste Relatório de

Fundamentação e deve ser reconhecida pelo Estado brasileiro, obrigando-se a FUNAI a

proceder os estudos complementares necessários em conformidade com o Decreto 1.775/96.

A área aqui proposta foi aprovada por todos os indivíduos lideres dos grupos domésticos

Kinikinau presentes na 5ªAssembleia do Povo Kinikinau, acontecida de 14 a 16 de novembro

de 2018, na aldeia Mãe Terra (TI Cachoeirinha).

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PARTE 6 LEVANTAMENTO FUNDIÁRIO

6.1 O processo de expropriação das terras dos Kinikinau no Agachi

Dizia Rondon, ao menos em seus escritos publicados no Rio de Janeiro, que as elites

latifundiárias de Miranda e Aquidauana constituíam uma verdadeira “elite com poder”:

"Nos povoados e vilas a polícia está sempre nas mãos dos próprios fazendeiros,

que são as autoridades, já como juizes de Paz, já como Delegados e

subdelegados. Os soldados são por eles mesmos engajados e desde então

considerados seus próprios camaradas (...). Não pode haver fiscalização contra

esses abusos, porque há verdadeira solidariedade entre os ricos que se revezam

nesse usufruto" (Rondon, 1949 apud Cardoso de Oliveira, 1976: 42).

Rondon, em depoimento dado quando tinha mais de 80 anos de idade, relembra que:

No meio das tremendas dificuldades da construção (das linhas telegráficas,

notamos) de 1900-1906, tive a felicidade de poder acudir sempre aos índios,

refreando, ao mesmo tempo, a insolência dos desalmados chefetes que

infelicitavam aqueles sertões. Assim consegui, neste período, salvar em Ipegue e

Cachoeirinha os últimos pedaços de terra que aos terenas e quiniquinaus

restavam de seus antigos vastíssimos domínios (...). (Viveiros, 1958: 225, grifos

nossos).

Certamente àquela altura da vida Rondon incluiria Francisco e Antônio Leopoldo

Pereira Mendes entre os “chefetes que infelicitavam aqueles sertões”. Mas os deixou em paz

quando, em 1904, realizou para o governo do Mato Grosso a delimitação “dos últimos

pedaços de terra” que sobraram “aos terenas e quiniquinaus” no Ipegue e Cachoeirinha

(supra, p: 31).

Antônio Leopoldo e Francisco Pereira Mendes, gaúchos de origem, se apossaram,

como disse Rondon, de nada menos 58 mil hectares na região do interflúvio Ponadigo-Agachi

com as “posses” (depois “fazendas”), Betemigo (ou Betinigo, com 15.300 hectares),

Ponadigo (12.400 hectares), São João da Barra do Agachi (com 29.575 hectares) e Paraíso

(ou Agachi, com 1.155 hectares). – terras estas ocupadas pelos Kinikinau e Terena. E as

provas deste “apossamento” – para além dos testemunhos dos anciões kinikinau já expostos –

são justamente os processos de “legitimação” (termo apropriado neste contexto) das “posses”

das citadas fazendas69

.

O mais antigo dos processos citados é relativo à posse denominada São João da Barra

do Agachy (processo nº 00/00.87, folha 0146), requerida em 1894 por Francisco Pereira

69

Documentos depositados no Acervo Fundiário, Cadastro de Divisão de Terras, da AGRAER-MS, em Campo

Grande. O número de referência do processo é aquele que se encontra na capa dos respectivos processos.

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Mendes, por alcunha “Chiquinho de Deus”. O título provisório70

desta posse foi expedido

pelo governo do então Mato Grosso em 24/07/1896 e o definitivo em 1900. O total da área

“apossada” totalizou 29.575 hectares, depois de medida.

Logo na inicial do processo (ps. 16-17) lemos que a fazenda “São João da Barra do

Agachy à margem esquerda do ribeirão Agachy (...) e sem que nenhum dos ditos

confrontantes se apresentasse por si ou por procurador para fazer valer seus direitos, por

despacho de hoje julguei a posse da referida fazenda nas condições legais e determinei que se

expedisse o título provisório (...) sendo que as terras da referida fazenda confinam: ao Norte,

com terras do mesmo declarante tendo por limite o Córrego da Pedra; ao Sul, com um terreno

que foi do Tenente José Francisco Fialho e hoje pertencente ao Coronel Antônio Joaquim

Malheiros, tendo por divisa o Morrinho; ao Nascente, com terras occupadas pelos índios

Kinikináos, em linha reta até a cabeceira do Córrego da Pedra – confinando também por

esse lado com terrenos do dito declarante; ao Poente, pelo Espigão da Bela Vista – com a

fazenda ‘Cachoeirinha’ de propriedade de Manoel Guilherme Garcia, bem como com terras

do Betimigo, igualmente pertencentes ao mesmo declarante”. Assina esta inicial datada de 21

de Março de 1894 o Intendente Geral (da comarca de Miranda) João Augusto da Costa Leite.

Na sequência do processo (p. 20 e ss), são nomeados (pelo escrivão – sic) os peritos

que certificariam e verificariam “cultura effetiva e de morada habitual” do reclamante

(Francisco Pereira Mendes) “nos lugares denominados Agachy, São João da Barra do Agachy

e Betimigo”. Ressalta-se que Francisco Pereira Mendes reclama a comprovação de “cultura

efetiva e morada habitual” para as três “posses” – porém a medição inicial seria efetivada

somente na posse “São João da Barra do Agachy”. As outras posses seriam, depois de

contestadas por vizinhos (detalhes abaixo), demarcadas posteriormente.

Da análise dos limites estabelecidos pelo declarante Francisco Pereira Mendes se

inclui ao Nascente “as terras ocupadas pelos Kinikináos” e ainda “terrenos do dito

declarante”. Estes terrenos seriam da posse “Paraíso ou Agachy”, como se verá adiante.

Nas páginas seguintes (28 a 35), consta do mesmo processo o Termo de Audiência

para aferirem-se as contestações apresentadas à demarcação da posse “São João da Barra do

Agachy” e da posse “Agachy”. Foram contestantes os confrontantes Estevão Alves Corrêa,

Manoel Guilherme Garcia, Manoel Teodoro Fonseca Moraes, Anna Aurora de Arruda Pinto,

Anna Gertrudes de Castro, Maria Dias e o Intendente Geral (do município de Miranda) e

Diretor de Índios. O único contestante a comparecer na audiência foi Estevão Alves Corrêa.

70

E que nada mais era do que a intensão de compra de terras com medidas imprecisas (“duas léguas de testada

por três de fundo”)

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107

Nomeados os árbitros pelo juiz comissário, lê-se na página 32: “(...) procederam o exame nas

linhas de Norte a Nascente dos limites da posse Agachy constantes do registro e que forma

contestados pelos confrontantes Tente Coronel Estevão Alves Corrêa, D. Anna Gertrudes de

Castro e Directoria dos Índios Terena” . A seguir são arrolados os quesitos do juiz (p. 33):

“Primeiro – Qual das posses contestadas é mais antiga? Segundo – os limites contestados do

Agachy offende direitos adquiridos? Terceiro – Qual o verdadeiro limite entre o Agachy,

Cutape, Pequi, Ipegue, Nachedache e Bahia Maria do Carmo? Quarto – Que direito assiste aos

Índios Terena nos limites contestados e se estes habitão interruptamente as referidas aldêas?”.

Na sequência (ps. 34-35) lê-se o que aqui importa:

Que limite mais verdadeiro e conhecido hoje entre o Agachy e Cutape, Aldêa Ipegue,

Nachedache e posse Maria do Carmo é a vazante do Nachedache a partir do marco

da Cutape que está no caminho que de Miranda conduz as Aldêas Ipegue e

Nachedache e que está a quarenta metros mais ou menos da passagem do corrego

Nachedache e por esta acima, deixando a esquerda a tapera da aldêa do Nachedache,

seguindo em linha recta que atravessa o córrego Nachedache vai em demanda do

espigão denominado Taquarussú que é o prosseguimento do morrinho que faz o limite

entre(as terras) ocupadas pelos Índios Quiniquináos. Com este limite nem o Cutape e

Pequi e nem as aldêas Ipegue e Nachedache e a posse Maria do Carmo sofrem

prejuízo” (grifos e negrito nossos).

Em outras palavras e interpretando o texto acima: o rumo é sul, a montante do córrego

Nachedache (que corre no sentido sul-norte) em direção ao espigão “Taquarussu” que, sempre

rumo sul, é o prosseguimento do “Morrinho que faz limite entre as terras ocupadas pelos

Índios Quiniquináos”. Recorrendo novamente ao croqui elaborado por Rondon em 1906

(abaixo) entende-se melhor o que diz o texto em comento:

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108

Nachedache

D

I

V

I

S

O

R

Taquarussú

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109

Se examinarmos esse trecho no Google Earth, vê-se a presença de um divisor de águas

na região marcada no croqui elaborado por Rondon e sua equipe, que separa as vertentes do

Nachedache e Agachi (que correm para o norte e nordeste, respectivamente). Esse espigão é

inclusive contornado hoje pela linha férrea da antiga Estrada de Ferro Noroeste do Brasil.

Na cópia da imagem acima, vê-se o divisor de águas e as cabeceiras dos formadores

do Nachedache (nordeste do divisor), de um braço do Agachi (sul do divisor) e a sul

(correndo para leste) os contribuintes que formam a “vazante da Vereda Grande”. A linha em

amarelo é a divisa da TI Taunay-Ipegue delimitada em 2004. A única elevação que pode ser

chamada de “Morrinho” neste trecho é justamente onde esta o marcador. Não parece haver

dúvidas portanto quanto a região habitada pelo “Quiniquináos” conforme diz o documento em

apreço.

Os autos de medição (de Outubro de 1896, anexo) à época eram lavrados – e

assinados – pelo engenheiro topógrafo contratado pelo posseiro e entregue para registro

protocolar na repartição de terras do Estado federado (já se está na República). O engenheiro

topógrafo responsável, Th. A. Darmaros anota no documento as seguintes confrontações dos

imóveis denominados São João da Barra do Agachy, Agachy e Betemigo:

“Do 2º ao 3º marco com terras devolutas;

Do 3º ao 4º com o Aldeamento dos Quiniquinaos” (p. 85, doc. anexo).

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110

Na sua “Caderneta de Campo”, onde são lançadas e numeradas as estações, os

ângulos, o azimute e as distâncias entre as estações, o engenheiro topógrafo anota:

“Estação 18 – Atravessa estrada Aldea

Estação 22 – Roça Índios” (p. 88)

No seu caminhamento com a corrente, o engenheiro anota na estação 16 tratar-se de

um “Pequeno cotovelo: Agachy”, na estação 17 diz que está “beiradiando (sic) o mesmo” e na

estação 23 anota que “Atravessamos Agachy”; na estação 32 relata que “A m. 180 cruza

roça”; na estação 43 “Estrada de Miranda a C.Grande” e na estação 44 “No rumo 89ºN.O. 5

Ranchos” (p. 89, ANEXO, grifo nosso). Em 1896, pois estava assentada e provada a aldeia

dos Kinikinau do Agachi inclusive com uma de suas roças sendo atravessada pela linha

demarcanda.

A posse denominada Bahia Maria do Carmo (processo 00.010, Acervo Fundiário,

Cadastro de Divisão de Terras, da AGRAER-MS – em anexo) teve seu título provisório

recebido em 04/11/1902 e o definitivo expedido em 11/03/1906. Os limites constantes desta

posse são: “ao Norte com a Aldêa do Ipegue, tendo como divisa uma vertente ou perizal que

termina na mesma Bahia; ao Sul com a fazenda do Ponadigo da qual fazia parte e

pertencente a Antônio Leopoldo Pereira Mendes servindo de limite o ribeirão chamado

Ponadigo; ao Nascente com a fazenda medida e demarcada do Pequi de propriedade (...

ilegível) da fazenda do Alinane da qual serve de retiro e pertencente a Felippe Pereira

Mendes, genro da requerente, e ao Poente com a Aldêa do Agachy, tendo por divisa o

espigão da Serrinha” (pgs. 12-13).

No levantamento topográfico realizado para a demarcação da referida posse,

executado por o engenheiro topógrafo Antônio Arellano, está anotado: “8ª estação – D’aqui

continuou-se por levantamento a ‘Serrinha’ que se foi levando pelo costado direito e a curta

distância. Nesta estação terminou os limites das terras do cidadão Francisco Pereira Mendes

e começam as confrontações com as pertencentes aos índios da ‘Aldêa do Agachy’” ( p. 27).

E mais adiante, na página 29, anota que “(...) Nesta estação terminaram as confrontações

com terras da ‘Aldeia do Agachy’ e começam os limites por divisa natural, com terras do

cidadão Antônio Leopoldo Pereira Mendes por ser a mesma divisa o córrego denominado

‘Ponadigo’”. A data anotada pelo engenheiro é a de 5 de Outubro de 1900 – exatos 88 anos da

promulgação da Constituição Federal em vigor.

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111

Figura 6 – Terra de ocupação tradicional dos Kinikinau segundo os títulos originais requeridos por posseiros vizinhos

CUTAPE

PEQUI IPEGUE

AGACHY

BAHIA

Mª do

CARMO

“TERRAS DEVOLUTAS”

TERRA DOS KINIKINAU

PONADIGO

Imbauval

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112

A Figura 6 acima mostra sob o fundo do croqui elaborado por Rondon e

colaboradores71

do trajeto feito pela Comissão das Linhas Telegráficas no trecho Aquidauana-

Miranda, em 1904. A partir deste croqui desenhou-se, a partir dos limites dados pelos

documentos das posses acima expostos, qual era a área ocupada pelos Kinikinau, de pelo

menos 1810 a 1920 – em que pese a ausência dos marcos do “Morrinho” e do “Córrego da

Pedra” (Preta?). Representa esquematicamente a inserção da terra de ocupação tradicional dos

Kinikinau no Agachi, onde se buscou obedecer aos limites dados e transcritos nos

documentos originais de legitimação das posses São João da Barra do Agachy, Agachy e

Bahia Maria do Carmo e anexados a este Relatório Antropológico de Fundamentação. As

reputadas “terras devolutas” (em vermelho na Figura 5 acima) nos documentos citados foram

posteriormente transformadas no lote “(...) Paraiso ou Agachy, compradas ao Estado pelo

cidadão Francisco Pereira Mendes”72

e demarcadas apenas em Janeiro de 1926 – e notando

que Cardoso de Oliveira afirmava, em consulta a documentos do SPI, que os Kinikinau ainda

habitavam o Agachi em 1925 (ver p. 32 supra).

Tais terras “devolutas” com “cultura de mandioca, feijão, arroz e milho em pequena

escala; uma casa de morada, alguns outros ranchos” limitava-se então com as terras da

aldeia Terena do Ipegue-Bananal, segundo mostra o croqui feito por Rondon. Parte das terras

apropriadas ilegalmente por Francisco Pereira Mendes no Agachi já foram restituídas aos seus

legítimos detentores, os Terena da Terra Indígena Taunay-Ipegue, mediante Portaria

Declaratória do Ministro da Justiça (Portaria/MJ nº 497, de 29 de Abril de 2016).

Resta claro, pois que as terras dos Kinikinau no Agachi foram alvo de um processo de

expropriação por meio de expedientes cartoriais, intimidação e violência e que os mais velhos

kinikinau relatam (supra, Parte 2). Dado os fatos e documentos aqui expostos, a indagação

necessária (e sua resposta) é aquela posta por Gilmar Ferreira Mendes no já citado Parecer de

1987:

Não obstante, colocam-se algumas questões que podem causar embaraço, sob

o prisma da dogmática jurídica. A primeira indagação diz respeito a validade, ou não,

dos títulos incidentes sobre terras indígenas concedidos antes da promulgação da

Constituição de 1934. Outro ponto controvertido concerne à situação jurídica das

71

Nesse croqui Rondon ou seus colaboradores (o mais provável) trocaram a “aldeia de Kinikinaus” por “Aldeia

de Terenos”, como já foi observado antes. 72

Processo AGRAER nº 00/00.086 (Anexo). É forçoso notar a descrição que faz o topógrafo em seu Memorial:

“Culturas – Existe neste lote cultura de mandioca, feijão, arroz e milho em pequena escala; uma casa de

morada, alguns outros ranchos e diversas cercas de arame (...)” (p. 31). O escrúpulo em dizer que se tratava de

roças e ranchos dos Kinikinau talvez fosse devido a seu total compromisso do topógrafo com o seu contratante

ou , mais provável, por recomendação expressa deste. Ou ainda porque quisesse passar a impressão que os

kinikinau fossem “agregados” do invasor-requerente.

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113

terras que, na vigência da Constituição de 1934, eram ocupadas pelos silvícolas e

vieram a ser alienadas a terceiros.

Parece isento de dúvida que os títulos dominiais concedidos antes do advento

da Constituição de 1934 estão abrangidos pela declaração de nulidade que do texto

constitucional dimana. Assim, com a disposição do artigo 129, da Constituição,

opera-se uma peculiar e rara espécie de nulidade, a chamada nulidade superveniente

(Nachträgliche Nìchtigkeit – Werner Flume, Das Rechtsgeschäft, vol. II, Berlim, 1979,

p. 550). Trata-se de um inequívoco exemplo de uma ‘lei de proibição (...)’ que alcança

situação já estabelecida”. (Mendes, 1987: 20 – grifos e negrito nossos).

Este é o caso justamente dos Kinikinau no Agachi: se a posse indígena foi violenta

e/ou intimidativamente desafetada por terceiros antes da promulgação da Constituição de

1934, a situação jurídica resultante é a nulidade dos títulos. Tal entendimento é corroborado

por Tourinho Neto, ministro, a época, do TRF da 4ª Região:

"Os indígenas detêm a posse das terras que ocupam em caráter permanente. Certo.

Todavia, se provado ficar que delas foram expulsos, à força ou não, não se pode

admitir que tenham perdido a posse, quando sequer, como tutelados, podiam agir

judicialmente; quando sequer desistiam de tê-la como própria”.

O Ministro Tourinho Neto não discorre, entretanto, se “tê-la como própria” requereria

dos indígenas, a seu juízo, o embate contínuo e físico com aqueles que os expulsaram. Como

poderia ocorrer ou se dar então a “não desistência” daqueles? Pode-se deduzir que na

concepção do ministro Tourinho Neto – que não confundia posse civil com a indígena, como

fica claro ao longo do inteiro teor do seu voto – “tê-la como própria” poderia ser, sobretudo e

exclusivamente, “possuí-la” em sua história, ou seja, em sua memória – e esta persistência

podendo então significar a sua não-desistência, como buscou-se demonstrar e documentar

neste Relatório.

E igualmente o professor constitucionalista José Afonso da Silva segue essa linha

interpretativa:

Quando a Constituição declara que as terras tradicionalmente ocupadas pelos

índios se destinam à sua posse permanente, isso não significa um pressuposto

do passado como ocupação efetiva, mas, especialmente, uma garantia para o

futuro, no sentido de que essas terras inalienáveis e indisponíveis são

destinadas, para sempre, ao seu habitat. (2015: 16)

Não se compadece com a Constituição essa concepção de que o esbulho não

se refere ao passado, pois enquanto a comunidade usurpada existir os

direitos às suas terras perduram, porque a Constituição, art. 231, § 4°,

declara que são terras inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas,

imprescritíveis (...). Vale dizer, pois, que a comunidade despojada de suas

terras pelos não-índios tem direito a elas retomar a qualquer tempo e isso

deve ser garantido pelo Poder Público, inclusive o Poder Judiciário, que tem

o dever de proteger e fazer respeitar todos os bens dos índios, nos termos do

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114

caput do art. 231 da Constituição. (2015: 18)

O termo "marco" tem sentido preciso. Em sentido espacial, marca limite

territorial. Em sentido temporal, como é o caso, marca limites históricos, ou

seja, marca quando se inicia algum fato evolutivo. O documento que marcou

o início do reconhecimento jurídico-formal dos direitos dos índios foi a Carta

Régia de 30 de junho de 1611, promulgada por Fellipe III, que firmou o

princípio de que os índios são senhores de suas terras, "sem lhes poderem ser

tomadas, nem sobre elas se lhes fazer moléstias ou injustiça alguma”. (2015:

23).

Jurídica e faticamente, como aqui se argumentou, as terras do povo Kinikinau aqui

delimitadas são indígenas – e desde antes da guerra com o Paraguai – e aqueles indígenas têm

o direito à sua reocupação a qualquer tempo e tal reocupação deve ser assegurada e garantida

pelo Poder Público.

6.2 Situação fundiária atual

Inicialmente, o antropólogo responsável por este Relatório consultou os arquivos

públicos no SICAR (Sistema do Cadastro Ambiental Rural - CAR) para a região englobada na

proposta de delimitação aqui apresentada, ali encontrando 07 (sete) imóveis parcialmente

incidentes. Entre estes imóveis aparece uma área cujo(s) interessado(s) não havia(m) lançado

nenhuma informação no CAR até o dia 10/11/2018. Algumas pessoas da região dizem que seu

pretenso proprietário é residente no Paraguai ou mesmo paraguaio de origem. Chamam o

referido imóvel de “Fazenda Inhuma”.

Está ainda englobada/incidente na proposta a área dominial indígena denominada

Nossa Senhora de Fátima (linhas brancas na Figura 7 abaixo), com 88,88 hectares (FUNAI,

2018) e adquirida para indígenas Terena com parte da indenização recebida da GASPOL pela

cessão de parte da TI Pilade Rebuá (zona urbana hoje de Miranda) para passagem do

gasoduto Brasil-Bolívia. Ali reside atualmente uma família extensa Terena oriunda de Pilade

Rebuá. Quando da aprovação pela FUNAI da delimitação aqui proposta, o antropólogo

responsável por este Relatório de Fundamentação sugere que conste do documento técnico

(parecer) os Termos do Acordo de Uso (ou documento equivalente) que deverá ser feito entre

os Kinikinau e os moradores da Nossa Senhora de Fátima quanto às restrições de uso sobre a

gleba.

Segue abaixo (págs. 116 a 122) a relação dos imóveis incidentes com as coordenadas

lançadas no SICAR para efeitos de indenização de boa fé das benfeitorias existentes e para a

nulidade dos seus títulos de domínio.

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Figura 7 – Proposta de Delimitação da Terra Indígena Kinikinau do Agachi e os imóveis incidentes (SICAR, em 20/05/2018 – cópia A3 anexa ).

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IMÓVEL Nº 1 – SEM CADASTRAMENTO NO SICAR

IMÓVEL Nº 2

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IMÓVEL Nº 3

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IMÓVEL Nº 4 (Provável origem nas posses “São João da Barra do Agachy” e

“Paraíso”)

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IMÓVEL Nº 5

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IMÓVEL Nº 6:

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IMÓVEL Nº 7 SEM CADASTRAMENTO NO SICAR

NOTA: o imóvel nº 7 está inserido em uma área não declarada no CAR, possivelmente a

mencionada “Fazenda Inhuma”.

A Terra Indígena Kinikinau do Agachi aqui delimitada possui uma área de cerca de

4.000 (quatro mil) hectares e um perímetro aproximado de 28.000 (vinte e oito mil)

metros.

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123

PARTE 7 CONCLUSÃO E DELIMITAÇÃO

Um tal de Gaúcho e seus capangas começaram a visitar nossa aldeia

dizendo que aquelas terras foram todas compradas por ele e que nos

deveríamos desocupa-las, pois se não o fizéssemos o nosso gado começaria

a morrer aos poucos e nos também. O SPI nada fez para impedir essa

situação, quando meus pais o procuraram. Aos poucos a boiada do Gaúcho

foi tomando conta do nosso campo e não era aceita conversa com ele, mas

os capangas nos recebiam com tiros de espingarda e fuzis (Leôncio

Anastácio apud Souza, 2008 in CASTRO, 2010: 304).

Não existe afirmação plena de um povo sem sua base territorial afirma-se na

Apresentação deste Relatório Antropológico de Fundamentação. E aqui se demonstrou que os

Kinikinau são um povo, a despeito de tudo e de todos. Os direitos coletivos de um povo

indígena sobre sua base territorial tradicional são imprescritíveis, diz o Artigo nº 231 da

Constituição vigente – não importando se dela o povo indígena foi desapossada, à força ou

não. O vocábulo povo aqui tem o sentido de uma comunidade que se reconhece com tal e que

preservam o sentimento de solidariedade mútua, além da língua e tradições compartilhadas.

Esse povo indígena, diz a Constituição, é parte do povo brasileiro e conforma com outros

grupos étnicos (afrodescendentes, descendentes de colonizadores e migrantes europeus,

asiáticos e outros) a nação que se chama Brasil.

Mas, dirão, estes outros grupos étnicos não têm ou não precisam de uma base

territorial clara para se afirmarem enquanto tais. Pois é neste ponto que os legisladores e

juristas, portugueses e brasileiros, das mais variadas escolas e posição, inovaram e

constituíram uma nação onde o povo (melhor, povos) originário do lugar a colonizar lhe foi

reconhecido, e depois consagrado, o direito às terras que ocupam. Os momentos históricos da

colonização em que o Estado colonial lhes declarou guerra explícita, o fez tão somente

àqueles povos que se lhes opunha resistência armada, ainda que profundamente desigual.

Mas, vencida a resistência, o Estado colonial (e depois o Império e a ainda a República) os

aceitou como um povo integrado à ordem jurídica do Estado – e que também deveria integrar-

se social e culturalmente, o que é outra história.

Na América do Norte tal não ocorreu, ao contrário: se declarou guerra, por ato do

Congresso, aos povos originários, os tratando assim como outro Estado soberano. Aqui, no

Brasil, a inovação foi de tal grandeza jurídico-política que se permitiu que esses povos

originários possuíssem como usufrutuários perenes, as terras que habitavam, habitaram ou

habitam – e como terras coletivas, parte integrante do território nacional, e mais do que isso,

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124

propriedade da União, fato que impõe ao Estado o dever de cuidá-las (demarca-las, assegurar

sua integridade) em nome do povo brasileiro.

Uma inovação sem precedentes no cenário jurídico-político mundial, certamente, e

capaz de fazer inveja aos teóricos do direito, sejam eles alemães ou italianos. Pois nossos

juristas e praticantes do Direito recuperaram uma categoria-chave do direito lusitano (e

brasileiro), o indigenato, para fazê-la a pedra fundamental para estabelecer as relações

jurídico-políticas entre os colonizadores e os povos indígenas que aqui estavam quando da

colonização. Ao fundamentarem esta categoria e a instituírem nas normas e leis nacionais,

nossos juristas e aplicadores do Direito afirmaram que os direitos às terras que ocupam,

ocuparam ou ocupavam os povos originários (indígenas) são anteriores ao estabelecimento do

Estado nacional, que esse direito é congênito, isto é, é herdado e transmitido de geração a

geração.

A posse indígena, já disseram tantos juízes e Ministros dos Tribunais, não se confunde

com a posse civil, nos termos em que as leis e normas regulam a posse de bens entre

indivíduos. É uma posse coletiva, congruentemente inalienável nestes termos – pois deve ser

preservada para as gerações futuras enquanto bem de uma coletividade, um povo indígena. O

fundamento da posse civil é poder dispor do bem; a legislação indigenista, baseada no

indigenato, afirma justamente o contrário – e as Constituições republicanas a partir de 193473

,

todas elas, culminando com a de 1988 consagram esse princípio.

Essa a intenção dos legisladores desde a Constituição de 1934. Entretanto, se a

Constituição anterior, de 1891, a primeira da República, nada diz sobre o regime jurídico das

terras indígenas, isto não quer dizer que os Estados federados poderiam dispor delas a seu bel

prazer – como o fez o Estado do Mato Grosso com as terras dos Kinikinau. A Lei de Terras de

1850 (Lei nº 601) do Império e seu Regulamento nº 1.318 de 1854 continuaram sendo

aplicadas naquilo que não confrontavam o marco constitucional. Tanto é assim que muitas das

Constituições dos Estados federados as copiaram74

. O Parecer do então Procurador da

73 “Será respeitada a posse de terras de silvícolas que nelas se achem permanentemente localizados, sendo-

lhes, no entanto, vedado aliená-las". Artigo 129 da CF.

74 "Quando foi proclamada a República e o domínio das terras devolutas passou aos Estados, estes já estavam

afeiçoados ao processo das legitimações segundo as normas vigentes para toda a nação (amparadas na lei nº

601), de modo que a legislação de terras de cada unidade da federação passou a ser modelada na lei federal,

transplantando desta os princípios dominantes a respeito do assunto" (Linhares de Lacerda, Tratado das Terras

do Brasil, Editora Alba, vol. IV, São Paulo, 1962: 451). E outro autor diz a este respeito: “A Lei de 1850 foi

aceita e adotada, entretanto, com modificações maiores ou menores, pela quase totalidade dos Estados, atentas

as raízes que já lançara no nosso meio, e (dela) bem se pode dizer que simplesmente se multiplicou por tantos

atos legislativos, quantos os Estados que a reuniram ao seu regime administrativo" (Cirne Lima, Pequena

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República Gilmar Ferreira Mendes (em anexo), comentado na Parte 2 é definitivo sobre esta

questão.

Os documentos dos processos originais de legitimação das posses São João da Barra

do Agachy, Agachy, Bahia Maria do Carmo e Paraíso, antes analisados, testemunham e

provam que os Kinikinau estavam aldeados em lugar certo e conhecido desde pelo menos

1896 (quando da demarcação da posse São João da Barra do Agachy), de sorte que o “Diretor

de Índios” (que, como se lê no documento citado, agia como procurador dos índios naqueles

processos – como determinava o Regulamento das Missões de 1845 e que em 1896 ainda era

observado, tal como a Lei de Terras e seu Regulamento de 1854) deveria indicar e propor ao

“Diretor Geral das Terras Públicas” a reserva daquelas terras “para o aldeamento dos

Kinikinau” – aliás, como se diz ,“aldeamento dos Kinikinau”, em vários trechos dos citados

processos de legitimação das posses citadas. Mas, viu-se, não foi isso o que ocorreu, já que o

Diretor de Índios era ao mesmo tempo o Intendente da vila de Miranda e como tal, como dizia

Cândido Rondon, ligado aos “chefetes que infelicitavam aqueles sertões”. Assim, mesmo que

os Kinikinau, à época, tivessem deixado as terras do seu aldeamento no Agachi por livre e

espontânea vontade (o que, como acima demonstrado, não foi o caso), estas terras deveriam

ter revertido por ato de ofício ao patrimônio da União, como determinava o Regulamento

1.318 de 1854 e que a legislação do Estado do Mato Grosso previa75

.

As omissões do Estado – sejam elas da parte do Mato Grosso ou da União, do Diretor

Geral das Terras Públicas do Império ou do SPI – são, no caso dos Kinikinau, claras e óbvias,

como aqui demonstrado. E em qualquer tempo tais omissões podem e devem ser reparadas e

assim se manifestaram juízes federais em casos semelhantes:

Portanto, não merece prosperar a alegação dos autores, no sentido de que o

Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação da Terra Indígena

Cachoeirinha foi elaborado indevida e excessivamente com base em relatos orais

feitos por índios Terena. Com efeito, a História documentada demonstra que

esses índios habitavam, pacificamente, a região da denominada Terra Indígena

Cachoeirinha, desde o século XVIII, e que somente dela se retiraram, para fugir

do conflito armado estabelecido pela Tríplice Aliança, com o Paraguai; e que, ao

tentarem retornar para essas terras, após tal conflito, foram impedidos de

recuperá-las, pelas pessoas que delas haviam se apossado, aproveitando-se da

ausência dos índios e valendo-se de títulos concedidos irregularmente pelo

Estado. Enfim, essa documentação demonstra que os índios foram retirados à

História Territorial Brasileira, ESAF, 1988: 72).

75 No caso específico do Mato Grosso, a legislação estadual (Lei nº 20, de 09/11/1892; Regulamento nº 38 de

15/02/1893 e Decreto nº 75 de 04/08/1897), seguiu, no tocante as terras ocupadas pelos índios, os termos do

Regulamento de 1854.

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126

força, dos espaços que tradicionalmente ocupavam, e depois confinados em

minúsculas ou pequenas reservas, onde vivem até os dias atuais; mas que em

várias ocasiões manifestaram a intenção de retomá-los. É a tradicionalidade

reconhecida retroativamente, de que falou o Egrégio Pretório Excelso.

Demonstrado o caráter originário da presença dos índios nas terras do imóvel de

que se trata, bem como que a retirada deles do imóvel não foi voluntária, e, bem

assim, que subsiste, nos mesmos, o intento da retomada, prevalecem os direitos

constitucionalmente a eles assegurados, de forma que, em tal situação, o título de

propriedade dos autores não deve prevalecer (...). A atual Constituição Federal

declarou que as terras tradicionalmente ocupadas por índios pertencem à União

(artigo 231) e a eles são afetadas; e o Egrégio Pretório Excelso decidiu que essas

posses, mesmo perdidas involuntariamente antes de 05 de outubro de 1988,

devem ser como tal reconhecidas. O Direito é obra do legislador e, quando for o

caso, deve ser aplicado pelo julgador. É o que estou fazendo em relação às terras

objeto do litígio travado neste processo. Porque colmatada pelos normativos de

regência, e extraída da minha livre apreciação, tenho que esta decisão preenche

os requisitos de juridicidade e de justiça. Deram-me os fatos e estou dando o que

me parece ser o Direito. Diante do exposto, revogo as decisões de fls. 1589-1596

e 1795, e julgo improcedente o pedido material desta ação. Dou por resolvido o

mérito do dissídio posto, nos termos do artigo 269, inciso I, do CPC (...). Campo

Grande, 18 de maio de 2015 - Renato Toniasso, Juiz Federal Titular em Decisão

no Processo nº 0012329-62.2003.403.6000.

Improsperável argumento de que caberia o reconhecimento de um “direito

adquirido” dos autores para não penalizá-los pelos equívocos do Estado ou do

SPI na condução da ocupação da região. Inconcebível legitimar, sob o prisma da

Carta Magna vigente, a transferência viciada desde sua origem que se operou,

em detrimento do direito primário dos índios. Ao Judiciário cabe a reparação das

injustiças que ao longo do tempo se acumularam até desembocar nesta demanda.

– Quanto ao cabimento da conceituação jurídica das terras da região do Buriti

como tradicionalmente ocupadas pelos Terena, o conhecido Alvará Régio de

abril de 1680, estendido posteriormente, em 1758, a todo o Brasil, reconheceu

como originário o direito dos índios às próprias terras, fonte primária e

congênita da posse. Posteriormente, a Lei nº 601, de 18 de setembro de 1850,

conceituou as chamadas terras devolutas e deixou claro que entre elas não se

incluíam aquelas ‘concessões do Governo’. A transferência destas últimas aos

Estados pela Constituição de 1891 (artigo 64) manteve sob domínio da União

aquelas pertencentes aos indígenas. Consequentemente, as alienações feitas a

particulares pelo Estado do Mato Grosso das terras Terena como se fossem

devolutas não têm legitimidade, bem assim os títulos acostados aos autos e a

cadeia dominial derivada, independentemente da boa fé dos adquirentes.

ACÓRDÃO – Votos dos Desembargadores Federais André Nabarrete e

Ramza Tartuce - EMBARGOS IINFRINGENTES nº0003866-

05.2001.4.03.6000/MS 2001.60.00.003866-3 MS.

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127

Portanto, o direito dos Kinikinau de reocuparem suas terras tradicionais é, assim nos

parece, líquido e certo, como aqui se demonstrou. E para que esta reocupação se torne factível

os Kinikinau devem contar com o concurso do Estado, tanto no que respeita o Executivo

(FUNAI) quanto o Ministério Público Federal, dado que a proteção do patrimônio da União e

a defesa dos interesses e direitos indígenas são deveres daqueles entes da República

consignados na Carta Magna de 1988.

DELIMITAÇÃO

A delimitação aqui proposta não restitui a totalidade do território tradicional Kinikinau no

Agachi. E isto porque tal a tarefa está além da capacidade da equipe responsável por este

Relatório já que recompor, com algum grau de certeza, a área de ocupação dos Kinikinau no

Agachi por meio das coordenadas, rumos e azimutes lançadas nos processos originais é tarefa

para especialistas em topografia – porém, não impossível, com tecnologias hoje disponíveis.

De toda forma a proposta apresentada partiu dos limites dados nos processos examinados.

Vale ainda salientar que se respeitou a situação atual da região e da vistoria realizada por

membros do povo Kinikinau no Agachi junto com a equipe técnica que elaborou este

RELATÓRIO, para o reconhecimento do lugar, em termos de disponibilidade dos recursos

naturais necessários para sua habitação permanente, para o desenvolvimento das suas

atividades produtivas, aquelas imprescindíveis à preservação do meio ambiente e, por fim,

àquelas necessárias reprodução física e cultura dos Kinikinau segundo seus usos, costumes e

tradições.

Outro ponto fundamental é relativo às necessárias medidas de proteção àquelas terras

que foram proteladas tanto pelo Estado do Mato Grosso (que as reconhecia desde pelo menos

1896, como visto), o SPI (a partir de 1920, pelo menos – conforme o Documento 9 supra) e

posteriormente pela FUNAI. Segundo entrevista em vídeo76

, Ambrósio de Góis, falecido em

2012, neto de Pedro Marques (vide genealogia nos anexos) conta que a luta dos Kinikinau

para reaverem a posse no Agachi junto a FUNAI teria início em 1984, com justamente seu

avô Pedro Marques, reivindicando-a junto à administração do órgão por meio de documento.

Ambrósio de Góis, na entrevista, citou um documento que enviou para a FUNAI em 2003,

salientando que estava de partida para Brasília para indagar dos dirigentes do órgão a ausência

de resposta à carta que enviara.

76 Este vídeo se encontra em poder do filho de Ambrósio de Góis, Elias, que disponibilizou cópia para a equipe

responsável por este RELATÓRIO.

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A FUNAI não apresenta em sua página na internet (www.funai.gov.br) a categoria das

“terras reivindicadas”, mas se sabe que internamente ao órgão a equipe técnica do

departamento responsável (Coordenação Geral de Identificação e Delimitação – CGID, ligada

à Diretoria de Proteção Territorial - DPT) trabalha com esta categoria. Pelo que se conhece

dos procedimentos daquela divisão da FUNAI (CGID), a norma seria nomear um técnico do

quadro funcional da FUNAI para realizar estudos preliminares, procedimento denominado

“qualificação da reivindicação”, que indicariam a viabilidade antropológica, administrativa e

jurídica da reivindicação indígena. A Terra Indígena Agachi do povo Kinikinau está autuada

como tal, área reivindicada, no processo SEI nº 08620.127534/2015-8177

. Mas este

procedimento interno não está previsto ou normatizado no Decreto 1.775/96 do Ministro da

Justiça; este Decreto estabelece que é necessário, como visto na Apresentação deste

documento, a fundamentação antropológica por antropólogo qualificado – e quanto a isso, a

qualificação do antropólogo, não pode restar dúvidas posto que todos os Relatórios de

Identificação elaborados por o antropólogo que assina o presente Relatório foram aprovados

pela FUNAI e pelo Ministro da Justiça.

MEMORIAL DESCRITIVO

id Name X Y

1 Delimitação Kinikinau do

Agachi

-56,138298 -20,315654

2 Delimitação Kinikinau do

Agachi

-56,136005 -20,315348

3 Delimitação Kinikinau do

Agachi

-56,133858 -20,314526

4 Delimitação Kinikinau do

Agachi

-56,132114 -20,314457

5 Delimitação Kinikinau do

Agachi

-56,129316 -20,312884

6 Delimitação Kinikinau do

Agachi

-56,126545 -20,311925

7 Delimitação Kinikinau do

Agachi

-56,12259 -20,311927

77

Ofício nº 908/2018/DPT-FUNAI

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129

8 Delimitação Kinikinau do

Agachi

-56,119411 -20,311957

9 Delimitação Kinikinau do

Agachi

-56,116816 -20,311194

10 Delimitação Kinikinau do

Agachi

-56,113243 -20,30972

11 Delimitação Kinikinau do

Agachi

-56,108526 -20,310734

12 Delimitação Kinikinau do

Agachi

-56,104318 -20,311065

13 Delimitação Kinikinau do

Agachi

-56,101737 -20,31217

14 Delimitação Kinikinau do

Agachi

-56,100898 -20,312406

15 Delimitação Kinikinau do

Agachi

-56,098201 -20,312619

16 Delimitação Kinikinau do

Agachi

-56,095804 -20,314297

17 Delimitação Kinikinau do

Agachi

-56,095898 -20,314696

18 Delimitação Kinikinau do

Agachi

-56,09594 -20,316095

19 Delimitação Kinikinau do

Agachi

-56,096565 -20,319782

20 Delimitação Kinikinau do

Agachi

-56,100424 -20,329864

21 Delimitação Kinikinau do

Agachi

-56,103213 -20,335075

22 Delimitação Kinikinau do

Agachi

-56,104318 -20,336988

23 Delimitação Kinikinau do

Agachi

-56,10553 -20,344406

24 Delimitação Kinikinau do -56,102641 -20,350961

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130

Agachi

25 Delimitação Kinikinau do

Agachi

-56,10243 -20,351747

26 Delimitação Kinikinau do

Agachi

-56,097924 -20,354304

27 Delimitação Kinikinau do

Agachi

-56,097306 -20,355936

28 Delimitação Kinikinau do

Agachi

-56,094195 -20,359834

29 Delimitação Kinikinau do

Agachi

-56,092823 -20,363182

30 Delimitação Kinikinau do

Agachi

-56,093763 -20,367469

31 Delimitação Kinikinau do

Agachi

-56,095712 -20,372856

32 Delimitação Kinikinau do

Agachi

-56,096316 -20,378086

33 Delimitação Kinikinau do

Agachi

-56,096275 -20,382648

34 Delimitação Kinikinau do

Agachi

-56,098056 -20,384527

35 Delimitação Kinikinau do

Agachi

-56,099667 -20,384751

36 Delimitação Kinikinau do

Agachi

-56,105675 -20,38211

37 Delimitação Kinikinau do

Agachi

-56,111232 -20,384273

38 Delimitação Kinikinau do

Agachi

-56,115441 -20,386026

39 Delimitação Kinikinau do

Agachi

-56,121266 -20,385459

40 Delimitação Kinikinau do

Agachi

-56,125457 -20,384326

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131

41 Delimitação Kinikinau do

Agachi

-56,129423 -20,382396

42 Delimitação Kinikinau do

Agachi

-56,133866 -20,38285

43 Delimitação Kinikinau do

Agachi

-56,138134 -20,384229

44 Delimitação Kinikinau do

Agachi

-56,139085 -20,383264

45 Delimitação Kinikinau do

Agachi

-56,139556 -20,378494

46 Delimitação Kinikinau do

Agachi

-56,140612 -20,373574

47 Delimitação Kinikinau do

Agachi

-56,142715 -20,373149

48 Delimitação Kinikinau do

Agachi

-56,148158 -20,372761

49 Delimitação Kinikinau do

Agachi

-56,152033 -20,371855

50 Delimitação Kinikinau do

Agachi

-56,151337 -20,369359

51 Delimitação Kinikinau do

Agachi

-56,147408 -20,365724

52 Delimitação Kinikinau do

Agachi

-56,146366 -20,360677

53 Delimitação Kinikinau do

Agachi

-56,148958 -20,359948

54 Delimitação Kinikinau do

Agachi

-56,153374 -20,352408

55 Delimitação Kinikinau do

Agachi

-56,153055 -20,350942

56 Delimitação Kinikinau do

Agachi

-56,151912 -20,347117

57 Delimitação Kinikinau do -56,15259 -20,345542

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132

Agachi

58 Delimitação Kinikinau do

Agachi

-56,152516 -20,344069

59 Delimitação Kinikinau do

Agachi

-56,14883 -20,339338

60 Delimitação Kinikinau do

Agachi

-56,14424 -20,334565

61 Delimitação Kinikinau do

Agachi

-56,141411 -20,329552

62 Delimitação Kinikinau do

Agachi

-56,139552 -20,327167

63 Delimitação Kinikinau do

Agachi

-56,138655 -20,324661

64 Delimitação Kinikinau do

Agachi

-56,138538 -20,322285

65 Delimitação Kinikinau do

Agachi

-56,140696 -20,320482

66 Delimitação Kinikinau do

Agachi

-56,139553 -20,316623

67 Delimitação Kinikinau do

Agachi

-56,139255 -20,316028

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- A Retirada da Laguna, Cia. Melhoramentos, São Paulo - 1935

- Memórias do Visconde de Taunay, Inst. Progresso Editorial – 1948

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VIVEIROS, E. - Rondon conta sua vida, Livraria São José, Rio de Janeiro – 1958

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RELAÇÃO DOS ANEXOS

1. Processo de legitimação da Posse “São João da Barra do Agachy, Agachy e Betimigo”

2. Processo de legitimação da Posse “Bahia Maria do Carmo”

3. Processo de legitimação da Posse “Paraíso ou Agachy”

4. Genealogias dos troncos familiais Kinikinau

5. Documentos de lideres Kinikinau enviados à FUNAI

6. Parecer Procurador GILMAR FEREIRA MENDES

7. Parecer Prof. Dr. JOSÉ AFONSO DA SILVA, sobre o “Marco Temporal”.

GILBERTO AZANHA

Antropólogo