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RELATÓRIO ANTROPOLÓGICO DE FUNDAMENTAÇÃO PARA A
IDENTIFICAÇÃO E DELIMITAÇÃO DA TERRA INDÍGENA KINIKINAU DO
AGACHI
Gilberto Azanha
Antropólogo
NOVEMBRO DE 2018
2
Sumário
Apresentação 3
PARTE 1 DADOS GERAIS E HISTÓRIA
1.1 Identificação étnica e filiação cultural 8
1.2 As fontes histórias e a aliança Chané-Guaná/Mbayá-Guaicurú para a colonização
do interflúvio Paraguai Oriental/Miranda-Aquidauana 8
1.3 O padrão histórico geral da ocupação Chané-Guaná 18
1.4 Os documentos do Império: a história oficial da ocupação territorial dos Chané-
Guaná (Kinikinau) na bacia do rio Miranda 21
1.5 A guerra com o Paraguai: a dispersão das aldeias e o abandono provisório dos
territórios tradicionais 28
1.6 O pós-guerra para os Kinikinau: fim do aldeamento em Albuquerque e a
sobrevivência no Agachi 32
PARTE 2 HABITAÇÃO PERMANENTE
Introdução: “marco temporal”, “esbulho renitente” e indigenato 35
2.1 A ocupação Kinikinau no Agachi: sua continuidade histórica segundo
documentos do SPI e a memória indígena 40
2.2 Os grupos locais Kinikinau hoje: seus troncos familiais e sua distribuição 53
PARTE 3 ATIVIDADES PRODUTIVAS
3.1 Atividades produtivas na situação de Reserva
3.1.1 A Agricultura 68
3.1.2 A criação de gado 72
3.1.3 A cerâmica 73
PARTE 4 MEIO AMBIENTE 76
PARTE 5 REPRODUÇÃO FÍSICA E CULTURAL
Introdução: Como é reproduzir-se física e culturalmente em terra alheia? 86
5.1 Estimativa populacional: a evolução demográfica da população Kinikinau 96
5.2 Origem e consequências dos conflitos Kinikinau-Kadiwéu na São João 103
5.3 As áreas necessárias para a reprodução física e cultural do povo Kinikinau 104
PARTE 6 LEVANTAMENTO FUNDIÁRIO
6.1 O processo de expropriação das terras Kinikinau no Agachi 105
6.2 A situação fundiária atual 114
PARTE 7 CONCLUSÃO E DELIMITAÇÃO 123
MEMORIAL DESCRITIVO 128
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA 133
RELAÇÃO DOS ANEXOS 137
3
Apresentação
Em uma série de ofícios e documentos1 datados do início deste século XXI (Anexos),
lideranças do povo KINIKINAU buscaram junto à Fundação Nacional do Índio (FUNAI)
reivindicar a constituição de um Grupo Técnico para a identificação e delimitação de seu
território original na região do córrego AGACHI (ou como citam alguns daqueles
documentos, Vakxú). A Informação nº 01/CGID de 29/05/2008 (cópia anexa), por exemplo,
informa que “(...) foi decidido fazer consultas com o antropólogo Gilberto Azanha, com o
historiador Giovane José da Silva e (sic) entre outros indicados, visando a composição do
grupo técnico para proceder os (sic) estudos necessários à identificação e delimitação das
terras de ocupação tradicional Kinikinaw (sic), por eles reivindicada, na área designada
AGACHI, localizada junto ao córrego Agachi, nos municípios de Miranda e Aquidauana no
Mato Grosso do Sul, grupo técnico este que deverá ser instituído ainda no ano de 2008”. A
mencionada consulta nunca foi realizada e o grupo técnico jamais constituído.
Em vista da omissão do órgão responsável pelos procedimentos de reconhecimento
das terras de ocupação tradicional dos povos indígenas no Brasil, em novembro de 2017
lideranças do povo Kinikinau presentes na 12ª Assembleia do Povo Terena, realizada na
aldeia Água Branca (TI Taunay-Ipegue) solicitaram ao antropólogo Gilberto Azanha, ali
presente, a realização dos mencionados estudos. A partir daquela data, o referido antropólogo
iniciou estudos de pesquisa documental no material por ele utilizado durante a elaboração dos
RCIDs das TIs Terena no Buriti, Cachoeirinha e Taunay-Ipegue, complementados por buscas
no Acervo do SPI digitalizados e disponibilizados pelo Museu do Índio/FUNAI, além de duas
incursões a campo (fevereiro e agosto de 2018) junto aos Kinikinau hoje assentados nas TIs
Cachoeirinha, Lalima, Nioaque e Taunay-Ipegue para a tomada de depoimentos de idosos
daquele povo para, por fim, compor os estudos antropológicos de fundamentação ora
apresentados. Em 15 de novembro de 2018, durante a realização da 5ª Assembleia do Povo
Kinikinau na aldeia Mãe Terra (TI Cachoeirinha), estes estudos foram lidos para os presentes
e aprovados.
O Decreto 1.775 de 08/01/1996 que dispõe sobre o procedimento administrativo de
demarcação das terras indígenas, estabelece no seu Artigo 2º que “A demarcação das terras
tradicionalmente ocupadas pelos índios será fundamentada em trabalhos desenvolvidos por
antropólogo de qualificação reconhecida, que elaborará, em prazo fixado na Portaria de
1 Estes documentos forma entregues ao antropólogo responsável pelo presente Relatório pela senhora Júlia de
Góis, viúva do líder kinikinau Ambrósio de Góis.
4
nomeação baixada pelo titular do órgão federal de assistência ao índio, estudo antropológico
de identificação”. Por razões inerentes ao órgão federal de assistência, a Portaria para
nomeação e fixação do prazo para a realização dos Estudos de Fundamentação jamais foi
baixada e os Kinikinau não podem ser punidos por mais esta, entre tantas outras e como aqui
se demonstrará, omissão do órgão federal, a FUNAI. Desta forma, na citada 5ª Assembleia do
Povo Kinikinau os integrantes do povo Kinikinau ali presentes determinaram que este
Relatório Antropológico de Fundamentação da Identificação e Delimitação fosse, como o foi,
protocolado junto à FUNAI para os devidos e necessários encaminhamentos administrativos.
De início é preciso deixar claro que os Kinikinau jamais foram considerados
“extintos”, seja por eles mesmos ou pelos Terena (junto aos quais foram realocados pelo SPI
na década de 1920) ou mesmo pelos Kadiwéu (que, diz a história, convidaram algumas
famílias daquele povo a se estabelecerem na TI Kadiwéu nos anos de 1930). O fato de se
exporem novamente em sua plena identidade étnica e, sobretudo, como um povo
diferenciado dos Terena, na primeira década desde século XXI2, tem uma possível
explicação no processo de revisão das Terras Indígenas Terena (Buriti, Cachoeirinha e
Taunay-Ipegue) ocorrido nos primeiros anos daquela década. Como que despertados por
aquele processo algumas pessoas que se identificam como kinikinau procuraram o
antropólogo coordenador do Grupo Técnico (GT) responsável pelos RCIDs3 das terras Terena
para indagarem sobre os documentos encontrados que mencionavam seu povo e a “aldeia do
Agachi”. E entende-se a razão deste fato: não existe afirmação plena de um povo sem sua
base territorial. Desde então (estávamos no ano 2000) uma destas lideranças Kinikinau
(infelizmente falecida recentemente), Ambrósio de Góis, iniciou a saga de buscar junto à
FUNAI o reconhecimento das terras tradicionais do seu povo no Agachi.
É preciso ainda ressaltar que essa busca intensificou-se nos meados dos anos 1990
devido ao clima de tensão e de conflitos com algumas famílias Kadiwéu na aldeia São João
(TI Kadiwéu) para onde os Kinikinau foram levados por agentes do Serviço de Proteção aos
Índios (SPI) no final dos anos 1930 – iniciando então nova etapa da diáspora daquele povo
indígena (infra, título 5.2).
Em anos recentes trabalhos acadêmicos importantes reconstituíram a história e a
territorialidade dos Kinikinau (Iara Castro, 2010; Veron e Silva, 2001), a especificidade da
sua língua (Valéria Couto, 2005; Ilda de Souza, 2008) e da sua arte e persistência (Aila
2 Castro, op. cit.: 258 e ss.
3 Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação - TI Buriti (ver na Bibliografia: Funai_2011_Buriti);
TI Cachoeirinha (Funai_2003_Cachoeirinha) e Taunay-Ipegue (Funai_2004_Taunay-Ipegue).
5
Bolzan, 2003; Giovani da Silva, Aila Bolzan & Rosaldo Souza, 2017). A síntese destes
trabalhos somada às pesquisas realizadas pelo antropólogo que assina o presente documento
compõem os capítulos da Parte 1 deste Relatório Antropólogico.
A Parte 2, relativa ao tópico sobre a Habitação Permanente, versa sobre os fatos em
razão dos quais os Kinikinau foram impedidos, por fazendeiros com o apoio das elites
políticas locais e regionais, de permanecerem em seu território tradicional no Agachi. Para
tanto se recorreu a fontes históricas (relatórios de presidentes de província; de diretores de
índios e de aldeamentos, de inspetores e agentes do extinto Serviço de Proteção aos Índios –
SPI, entre outros) e a depoimentos atuais de anciãos Kinikinau, a fim de possibilitar o
contraponto entre a história documentada e a oral, metodologia básica exigida em razão das
características deste relatório antropológico.
Neste tópico buscou-se determinar, com o maior grau de precisão possível, a
localização da antiga aldeia Kinikinau no córrego Agachi (ou “Agaxi” ou “Agachy” como
grafado nas fontes históricas). Para tanto se recorreu a especialistas (em geoprocessamento)
para, com o auxílio dos Kinikinau mais velhos, confeccionar um mapa (Figura 1) a partir das
informações constantes nos processos de “legitimação” das posses “São João da Barra do
Agachy”, “Paraíso do Agachy” e “Bahia Maria do Carmo” depositados no Acervo Fundiário
da AGRAER-MS.
A Portaria nº 14 de 09 de janeiro de 1996, baixada para orientar os coordenadores do
GT quanto aos tópicos exigidos pelo Decreto 1.775, assim reza quanto ao capítulo da
Habitação Permanente:
a) descrição da distribuição da(s) aldeia(s), com respectiva população e
localização;
b) explicitação dos critérios do grupo para localização, construção e
permanência da(s) aldeia(s), a área por ela(s) ocupada(s) e o tempo em que se
encontra(m) na(s) atual(ais) localização(ções).
Resta claro que, no caso dos Kinikinau, os critérios para a localização e permanência
das suas aldeias não foram estabelecidos por eles, mas por terceiros, como aqui se
demonstrará. Ocuparam sem interrupção o médio curso do córrego Agachi até 1915-20 e é
esta a reivindicação deste povo indígena. A “continuidade histórica da ocupação”, que o
Decreto 1.775 pressupõe no capítulo da Habitação Permanente, é assumida pelo juiz federal
Tourinho Neto (então integrante do TRF da 1ª Região) nestes termos – e aqui agasalhados:
"Os indígenas detêm a posse das terras que ocupam em caráter
permanente. Certo. Todavia, se provado ficar que delas foram
expulsos, à força ou não, não se pode admitir que tenham perdido
6
a posse, quando sequer, como tutelados, podiam agir
judicialmente; quando sequer desistiam de tê-la como própria ...
Para identificar-se uma posse indígena é preciso observar se há
ainda, na área, palpitante influência indígena, demonstrativa de
que, há não muitos anos, os índios ali tinham seu habitat -
tradicionalmente a ocupavam - e que dali foram expulsos, a força
ou não" (in, Duprat, Parecer MS nº 6279/DF, grifos nossos).
Aqui se provará que os Kinikinau foram expulsos da região do ribeirão Agachi, “à
força ou não”, como também se demonstrará que a “palpitante influência” kinikinau na área
foi (premeditadamente ou não) apagada por agentes do Estado brasileiro. Muitos destes
agentes, do extinto SPI à atual FUNAI, premeditadamente ou não, contribuíram para este
apagamento da história dos Kinikinau na região, tanto por fazer desaparecer o seu etnônimo
em relatórios e ofícios, quanto por reduzi-los metonimicamente aos “Terenas”.
O Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação da TI Taunay-Ipegue
e seus anexos, então nos demonstram com clareza a existência da aldeia do
Agachy - pelo menos até 1900 -; demonstram também que a “regularização” das
posses São João da Barra do Agachy e Bahia da Maria do Carmo, em nome do
Tenente Francisco Pereira Mendes e Anna Gertrudes de Castro (posteriormente
em nome de José Alves Ribeiro); ocorreram sobre áreas de uso e ocupação
tradicional dos Terena daquela aldeia e utilizando-se de interpretação
equivocada da legislação existente quando dessa ocorrência. Demonstra também
que a “regularização” da posse Paraíso/Agachy, em nome do Tenente Francisco
Pereira Mendes, ocorreu após 1900 (em 1912), sobre um território onde estava
erigida a própria aldeia Agachy, que então foi extinta, utilizando-se
equivocadamente a legislação então vigente e todo um aparato jurídico e estatal
para legitimar o esbulho sobre as terras tradicionais Terena daquela aldeia e de
sua área de uso tradicional.(Pereira Neto, Parecer nº 120/CDA/CGID/
FUNAI/2004:17).
Em 2004, o antropólogo da FUNAI responsável pelo Parecer acima continuará a ler
com lentes “Terena” (e apesar destes) as fontes consultadas pelo Grupo Técnico responsável
pelo RELATÓRIO DE FUNDAMENTAÇÃO da TI Taunay-Ipegue. O documento
comentado pelo parecerista da FUNAI está abaixo reproduzido:
Quanto ao terceiro quesito, os senhores peritos assim se manifestaram: ‘que o
limite mais verdadeiro e conhecido hoje entre o Agachi e Cutape, Aldêa Ipegue,
Nachedache e posse Maria do Carmo é a vazante do Nachedache a partir do
marco do Cutape que está no caminho que de Miranda leva ás aldêas Ipegue e
Nachedache e que está a quarenta metros mais ou menos da passagem do
corrego Nachedache e por esta acima, deixando a esquerda a tapera d’Aldêa
Nachedache, seguindo em linha recta atravessa o corrego Nachedache já em
demanda do espigão denominado Taquarussú que é o prosseguimento do
morrinho que faz o limite entre as terras ocupadas pelos Indios Quiniquinaos.
7
Com este limite, nem o Cutape e o Pequi e nem as Aldêas Ipegue e Nachedache e
a posse Maria do Carmo soffrem prejuizo’ (fs. 34-35)”. ( p. 77 do RCID da TI
Taunay-Ipegue).
Ver-se-á ainda neste tópico que todo o esforço de apagamento da identidade Kinikinau
não foi suficiente para fazer com que os próprios kinikinau se esquecessem de seu território
tradicional. Os depoimentos de anciãos tomados por pesquisadores, indígenas e não indígenas
e pelo antropólogo responsável por este Relatório de Fundamentação demonstrará que a
“palpitante influência indígena” no Agachi perdura, se não na memória dos expropriadores,
naquela dos Kinikinau, como também dos Terena habitantes da TI Taunay-Ipegue,
Cachoeirinha, dos de Lalima, de Nioaque e dos Kadiwéu – memória esta como que reativada
na esperança concreta de reocupação daquele território levantada com os trabalhos do GT de
revisão das TIs Terena na década de passada (2000-2010).
A Parte 3 diz respeito às Atividades Produtivas. Como falar das atividades produtivas
em um território expropriado? É possível reconstituir tais atividades no tempo que ocupavam
aquele território (até a década de 1910), como se verá. Seria uma descrição muito parecida
com qualquer descrição da diáspora judaica: antes da retomada do território judaico na
Palestina, como os judeus (em seus vários subgrupos) realizavam suas “atividades produtivas”
em território alheio? Dada estas premissas, optou-se por imaginar, com os kinikinau, as
atividades produtivas às quais irão se dedicar no território reocupado – dando continuidade
àquelas atividades que sempre fizeram no Posto São João do Aquidabã, em Lalima e por onde
mais estiveram na sua diáspora4: roças, criação de gado, confecção de artesanato – e para
tanto, além dos depoimentos dos Kinikinau, os registros ainda preservados do SPI no Museu
do Índio e na FUNAI fundamentarão essa descrição. As áreas necessárias para as atividades
produtivas do povo Kinikinau são aqui delimitadas prevendo a sua expansão populacional
quando da reocupação do Agachi.
A Parte 4 diz respeito à descrição das áreas ambientalmente imprescindíveis e
necessárias ao bem estar do povo Kinikinau. Aqui se utilizou de um conjunto de imagens
satélites da região do Agachi que foram apresentadas, debatidas e analisadas por especialistas
com os Kinikinau. O conjunto das áreas ambientalmente necessárias ao bem estar dos
Kinikinau e aquelas necessárias para as suas atividades produtivas e as necessárias à sua
reprodução física e cultural (objeto da Parte 5 deste documento) comporão a delimitação da
Terra Indígena Kinikinau do Agachi.
4 “O termo diáspora (em grego clássico: διασπορά, "dispersão") define o deslocamento, normalmente forçado
ou incentivado, de grandes massas populacionais originárias de uma zona determinada para várias áreas de
acolhimento distintas” – Wikipédia.
8
O tópico relativo ao levantamento fundiário (Parte 6) tratará dos fatos relativos ao
processo de expropriação das terras Kinikinau no Agachi, no qual os documentos das
legitimações das posses “São João da Barra do Agachy”, “Paraíso do Agachy” e “Bahia Maria
do Carmo” (cujos originais estão depositados no Acervo Fundiário da AGRAER-MS) foram
objeto de uma análise cuidadosa e minuciosa – tendo em vista sua importância para a
discussão jurídico-política a respeito da questão do “marco temporal”, levantada pelo pleno
do STF quando da discussão da Pet. 3.388 (TI Raposa-Serra do Sol). Neste ponto utilizou-se
dos pareceres lavrados por Gilmar Ferreira Mendes (então Procurador da República e datado
em 10 de abril de 1987 – anexo) e pelo constitucionalista José Afonso da Silva (2015, anexo)
para fundamentar a não aplicabilidade daquele conceito (“marco temporal”) no presente caso.
PARTE 1 DADOS GERAIS E HISTÓRIA
1.1 Identificação étnica e filiação cultural
Quiniquinau, Quiniquinao, Kinikinau são grafias que designam um povo indígena de
língua Aruak cujos membros hoje grafam a sua autodenominação como Koenükunoe.
Documentos do SPI, disponibilizados digitalmente no “Acervo SPI” do Museu do Índio,
mencionam explicitamente os "kinikinau" desde os anos 1915 até 1967, um ano antes de
aquele órgão ser extinto e substituído pela FUNAI. A partir da década de 1920 estes
documentos retratam a diáspora Kinikinau, mencionando-os em Lalima, no Posto São João do
Aquidabã, no Brejão (Nioaque), Taunay-Ipegue e em Cachoeirinha após a saída forçada do
grupo da “aldeia do Agachy”, provavelmente ocorrida entre os anos de 1903-19155 (tópico a
ser tratado na PARTE 2, infra).
1.2 As fontes históricas e a aliança Chané-Guaná/Mbayá-Guaicuru para a colonização
do interflúvio Paraguai Oriental/Miranda-Aquidauana.
A menção aos Kinikinau enquanto subgrupo Chané-Guaná6 remonta ao século XVII,
conforme aponta Castro (2010: 23):
5 RONDON, 1949: 81 – vide p. XX, infra.
6 “a designação Guaná é usada –a autora esclarece – quando se tratar especificamente dos grupos Aruak localizados no
Chaco Boreal e que historicamente se deslocaram junto com os Mbaya-Guaicuru.” (Castro, 2010: 21 – Nota de Rodapé)
9
(...) uma das referencias especificas mais antigas sobre os Kinikinau,
registrada pelo governador do Paraguai, Don Felipe Rexe Gorbalan,
através da Cédula Real de 1678, refere-se aos Quiniquina (Pastells, III,
1912); Aguirre (1898 [1793]) menciona os Kinikinaos-Quainoconas-
Caynocoe, que seriam chamados pelos Mbaya-Guaicuru como Equini
Quinao ou Eguriquinas. Não obstante o entrevero etnonímico, pode-se
afirmar que os grupos hoje conhecidos como Terena, Layana, Kinikinau e
Guaná compartilham um passado comum como unidades socioculturais
Guaná, que viveram no Chaco entre o século XVI e o XVII.
Contudo e diferentemente dos seus vizinhos Terena, a memória dos atuais kinikinau não
registra a vinda do Chaco (êxiva em língua terena)7.
Todos os cronistas que tiveram contato, nos séculos XVI e XVII, com os povos
Chané-Guaná constataram a existência entre eles de "cativos" - presos de guerra de outras
etnias chaquenhas, como os Chamacoco, Chiquito e Guató, principalmente. Notaram ainda
que tais "cativos" recebiam um tratamento suave, não humilhante, revelando ao mesmo tempo
em que estavam empregados em tarefas domésticas e agrícolas e que forneciam prestígio
social aos seus senhores, mais do que um valor propriamente econômico (Cardoso de
Oliveira, 1968: 20-21). Reforça esta constatação, o fato dos cativos serem tratados como
"estrangeiros" e o termo "kauti" - utilizado ainda hoje pelos Terena - ser uma corruptela da
expressão hispânica (e portuguesa) "cativo". Quer dizer: eram "cativos" apenas porque assim
os ocidentais os viam. Estavam "inseridos" na estrutura social Chané-Guaná e
desempenharam um papel importante no expansionismo posterior destes povos na região.
Estas observações são de suma importância, pois fornecem elementos para a
compreensão do ethos dos atuais Kinikinau (seu caráter aliancista e integracionista, nas
palavras de Castro, 2010: 204) e, sobretudo, para entendermos o significado social e político
da aliança dos Guaná-Chané com os Mbayá-Guaycuru, aliança esta diretamente responsável,
como se verá, pela grande migração destes povos para as margens orientais do rio Paraguai,
nas últimas duas décadas do século XVIII.
Schmidel (1534-1554), nos seus relatos, foi o primeiro europeu a constatar a
excelência da agricultura destes índios e ao mesmo tempo avaliar o caráter das relações deste
povo com os Mbayá. Diz ele:
7 "Eu tenho a história comigo, história do meu pai. Aqui na Cachoeirinha não havia ninguém. Meu pai é daqui mesmo. O
bisavô dele veio do Êxiva (Chaco), meu pai contava. Eles tinham sido atacados por outros índios diferentes lá do Êxiwa. Ai
eles vieram de lá, atravessaram o rio Paraguai até Porto Esperança, atraz da morraria. Ficaram um pouco perto de
Corumbá e depois fizeram aldeia aqui, em Miranda...Naquele tempo não tinha purutuyé, só mesmo índio Terena, Laiana,
Kiniquinao, Echoaladi, Caduveo..." (Felix, ancião de 87 anos, morador da aldeia Cachoeirinha, apud "Relatório do
Programa de Educação do CTI", 1996). Outro ancião ainda descreve o modo como foi feita a travessia do rio Paraguai:
"Minha avó, meu avô vieram do Êxiva (...). Eles usaram uma taquara bem grande para atravessar o rio(...).Eles trançaram
cipó (hymomó) para fazer canoa para atravessar o huveonókaxionó ("rio dos paraguaios")..." (João Martins, ancião de 83
anos morador da aldeia Cachoeirinha, idem, id.). in: RCID da TI Cachoeirinha, p. 13.
10
"Depois seguimos adiante e chegamos a uma nação chamada
Chané, que está sujeita aos ditos maipais (Mbayá), do mesmo
modo que os rústicos da Alemanha a seus senhores. Pelo caminho
achamos muitos campos de cultivo de milho, raízes e outros frutos
mais, que ali se encontram frutas e comida todo o ano. Quando
eles colhem um roçado, o outro já está amadurecendo e quando
este está maduro, já se plantou num terceiro, para que em todo o
ano se tivesse alimento novo nas roças e nas casas" (1945:23).
Felix Azara afirmava, no século XVII, que:
"(...) à época da chegada dos espanhóis, os Guaná iam, como
atualmente vão, se reunir em bandos aos Mbayá para lhes
obedecer, servi-los e cultivar suas terras...é verdade que (essa)
escravidão é bem doce, porque o Guaná se submete
voluntariamente" (apud Cardoso de Oliveira, 1976: 32).
O processo político e social que envolveu uma sociedade demograficamente superior e
estratificada (os Chané-Guaná) e outra inferior em população e predominantemente caçadora
e coletora é ainda pouco estudado. Porém, eram relações claramente de aliança e baseadas na
troca de serviços (roças x proteção guerreira) e de produtos de ferro conseguidos pelos Mbayá
nas suas excursões guerreiras contra os estabelecimentos espanhóis.
Os dados históricos nos levam a suspeitar que foi a agricultura Guaná que permitiu
aos Mbayá ampliarem sua potência guerreira que, somado aos cavalos tomados aos espanhóis,
transformaria este povo no mais aguerrido adversário da colonização das margens do rio
Paraguai, entre o Apa e o Taquari. A dependência observada pelos cronistas era na verdade
mútua e gerou um sistema social único na América do Sul, responsável pelo domínio, durante
quase dois séculos, de um território superior ao da França.8
Os estudiosos dos povos chaquenhos constataram que os Guaná-Chané dispunham de
uma base social muito mais sofisticada dos que seus vizinhos Mbayá. Estavam estratificados
em camadas hierárquicas, os "nobres" ou "capitães" (os Naati ou "os que mandam"; "gente
8 "A designação de 'terra mbaiânica' dada ao território delimitado aproximadamente pelo polígono que tem por
lados: a Serra de Maracaju, os rios Paraguai, Jejuí e Mboteteu (ou Miranda) aparece em vários documentos do
século XVIII...Uma das referências mais antigas do predomínio dos chaquenhos na região data dos anos vinte
do século XVIII. Antonio Pires de Campo recua o limite da terra mbaiânica para um pouco mais ao norte, até o
Taquari. O território possuia condições para que nele se instalasse a cultura dos Mbayás, nômades, senhores da
região, vivendo em verdadeira simbiose com o guanás, por aqueles protegidos em suas roças contra qualquer
outra nação...Mais tarde no final do século XVIII, Ricardo Franco, deixando parecer certa indignação,
qualificava os guanás de escravos dos guaicurus" (Assis Bastos, op. cit.: 126/127).
11
boa") e a "plebe" ou "soldados" (Wahêrê-xané, ou "os que obedecem"; "gente ruim"). E no dizer
de Sanches Labrador "(...) procuram continuar a mística nobreza de seu sangue casando-se
entre si aqueles de igual hierarquia" (apud Cardoso de Oliveira, op. cit.: 42).
As relações de aliança Guaná-Mbayá estavam alicerçadas no casamento9: os chefes
Guaná cediam mulheres da sua casta para casar-se com os "maiorais" Mbayá. A relação entre
os dois grupos, por essa via, consolidaria, ao longo do tempo, uma estrutura social complexa:
de um lado, um segmento social autônomo (e Sanches Labrador não se cansa de enfatizar a
"independência das comunidades Guaná") na posição de fornecedor de mulheres e alimentos;
de outro, uma casta guerreira recebedora de mulheres e responsável pela segurança dos
grupos locais e doadores de instrumentos de ferro e cavalos. Talvez decorresse desta estrutura
social mesma o infanticídio feminino praticado pelos Mbayá e observado pelos cronistas: pois
casar com suas próprias mulheres equivaleria a desfazer a base mesma da aliança com os
Chané-Guaná10
.
Na década de 1760, a pressão crescente dos espanhóis sobre os territórios Mbayá
localizados nas margens ocidentais do Paraguai, somada a disputas internas por prestígio
guerreiro, forçariam a migração de inúmeros subgrupos Mbayá e seus aliados Guaná-Chané
para o lado oriental do rio. Essa migração provavelmente se estendeu até as primeiras décadas
do século XIX. Os subgrupos Guaná-Chané que se estabeleceram ao leste do Chaco
9 "Relações por meio do casamento podem ser iniciadas com os membros de outras tribos de duas maneiras,
normalmente, quer um homem aruaque tome uma esposa estranha, ou uma mulher aruaque seja entregue a um
homem estranho. Em ambos os casos forma-se pelo matrimônio uma ligação muito forte entre os parentes de
ambos os lados...... sempre me deu na vista a relação extremamente íntima entre os cunhados, isto é entre o
marido e os irmãos de sua esposa" (Schmidt, idem, ib: 26).
10 "As tribos aruaques não se expandiram em massas compactas, partidas de um ou mais centros, por sobre a
atual região influenciada por sua cultura; foi a classe dominante, como a portadora propriamente dita dessas
culturas que difundiu sua influência sobre unidades étnicas cada vez maiores na região selvagem da América do
Sul. Mas exatamente se designaria essa espécie de expansão com o termo “colonização”, pois ela eqüivale, em
seus traços essenciais, àquilo que do ponto de vista europeu se quer designar por essa expressão. A espécie de
expansão que ocorre com as culturas aruaques seria mais acertadamente comparada com a colonização pela
cultura européia, tal como ela se verifica atualmente no continente africano. Por conseguinte as diferenças nas
diversas tribos aruaques não devem ser atribuídas a modificações sofridas por uma população originalmente
uniforme, devidas as condições de meio ou de tempo ou ainda a contatos externos com outras culturas, mas
baseiam-se simplesmente no fato de terem os aruaques, durante a sua grande obra colonizadora, entrado em
contato com tribos diversas nos diferentes lugares. As diversas tribos, após terem sucumbido ante os portadores
da cultura aruaque que nelas penetram tornando-se classe dominante, formaram a partir de então várias
pequenas subtribos da grande massa étnica que, pela superioridade dos Aruaques, se transformaram em
unidade cultural. A multiplicidade dos dialetos aruaques explica-se assim pela ligação do idioma aruaque com
diversos outros idiomas. Pelo mesmo motivo explica-se a grande variedade de bens culturais dentro da unidade
étnica pertencente à cultura aruaque, e a grande diferença no nível cultural da população... Digno de nota na
expansão das culturas aruaques por colonização é o fato de nada ter a ver com o poderio político, baseando-se
num fundamento puramente econômico-administrativo ... Explica-se assim por si mesmo, essa espécie de
colonização, o extraordinário fenômeno de não se achar o poder político nas mãos dos Aruaques em várias
regiões sul americanas, apesar da evidente predominância de sua cultura e seu sistema econômico-
administrativo (Schmidt, idem, id: 42-43).
12
mantiveram contudo, no novo território, a forma tradicional de organização em metades e
estratos sociais endógamos, suas roças e também a aliança com os Mbayá-Guaykuru (Cardoso
de Oliveira, 1976: 26).
A resistência dos Mbayá-Guaykuru - aos quais “pouco faltou para que exterminassem
todos os espanhóis do Paraguai” (Azara, apud Baldus in Boggiani, 1945) - diante do avanço
dos paulistas que se dirigiam à região de Cuiabá, manteve os Guaná-Chané distantes de
maiores relações com europeus. Essa situação se manteve até a última década do século
XVIII, quando, em 1791, é assinado o tratado de paz entre a Coroa portuguesa e os Mbayá-
Guaykuru.
Esse tratado permitiu a fixação de forças portuguesas na margem direita do Paraguai,
ao mesmo tempo em que propiciaria o desgaste da aliança entre os Chanée os Mbayá. Pois
como visto, um dos sustentáculos desta aliança era o fornecimento de instrumentos de ferro
aos Chané-Guaná pelos Mbayá – e que os primeiros começariam a obter agora,
independentemente, através do comércio com os portugueses. Certamente, os Chané-Guaná
viram na aliança com os portugueses mais vantagens do que aquelas que lhes propiciavam os
Mbayá. O fato marcante é que as fortificações portuguesas estabelecidas nos primeiros anos
do século XIX na banda oriental do rio Paraguai se localizariam precisamente nas
proximidades das aldeias Chané-Guaná. Enquanto isso, os Mbayá se isolariam no interflúvio
Aquidabã-Nabileque.
A relação com os Mbayá (e que durou pelo menos três séculos) forneceu aos Chané-
Guaná, além de uma segurança que lhes facultou um crescimento demográfico significativo,
o conhecimento dos trabalhos em metal e, sobretudo, do pastoreio. Estes novos meios de
subsistência propiciaria àqueles grupos um domínio sobre o meio e a geração de excedentes
enormes no contexto das sociedades tribais sul-americanas. Daí os comentários admirados dos
viajantes e cronistas europeus que os conheceram nas primeiras décadas do século XIX.
A história do povo Kinikinau foi objeto da tese de doutorado de Iara Quelho de Castro
(Castro, 2010) e é a mais completa fonte sobre esse tema hoje encontrada. Os pontos
principais da trajetória histórica desse povo, minuciosamente descritos na tese citada, seguem
no quadro abaixo:
13
Localização Período Fonte População
Chaco Boreal ... até meados
do séc. XVIII
Cabeza de Vaca;
Schmidl.
?
Margem ocidental do Paraguai
Séc. XVIII Azara 2.000
Margem oriental do Paraguai -
Presidio de Albuquerque
Final do séc.
XVIII até
1845.
Castelnau 700/800
Miranda - AGACHY 1850 até 1902 Castelnau,
Rondon
300-400
Somente a partir de meados do século XVIII as referencias etnonímicas (aos
Kinikinau), diferenciando-os dos Chané-Guaná conforme os subgrupos existentes, iriam se
tornar mais comuns (Castro, 2010: 195). Assim, Azara (1969 [1809]), que esteve na região
dos Chané-Guaná na segunda metade do século XVIII, relacionou os grupos localizados na
margem ocidental do rio Paraguai, considerando os Guaná o grupo mais numeroso do Chaco e
que compreendiam cinco “hordas”, que foram assim denominadas: Layana ou Eguaachigo,
cerca de três mil indivíduos; Chabarana ou Echoaladi, seis mil pessoas; Equiniquinau,
aproximadamente duas mil pessoas divididas em dois grupos, um no Chaco e outro
incorporado aos Mbaya; Ethelena, sete mil pessoas localizadas parte no Chaco, perto dos
Equiniquinau e outra parte a leste do rio Paraguai e os Nequecactemic, com trezentas pessoas,
que não se deslocaram para a margem oriental do rio Paraguai.
Francis Castelnau (1949 [1845]) testemunha que os “Quiniquinaus”, tinha sua
principal aldeia nas proximidades de Albuquerque, aldeia esta visitada por ele, anotando que
“possuem eles ainda um aldeamento perto de Miranda”11
. Este viajante estimou que a aldeia
dos Quiniquinau nas vizinhanças daquela vila (existia à época uma outra de "Guanás" -
provavelmente Echoaladi - e que também visitou) "compunha-se de setecentas ou oitocentas
11
“Os Guana ou Uanas dividem-se em quatro tribos principais: 1) os Guanás propriamente ditos, ou
Chualas, os quais, em sua maioria residem perto de Albuquerque, mas possuem uma pequena
ramificação nas proximidades de Miranda; 2) os Terenos, que possuem quatro aldeias perto de
Miranda, uma das quais (...) muito grande. São índios cavaleiros, agricultores e hábeis canoeiros; 3) os
Laianos, instalados em três ou quatro aldeamentos nas vizinhanças de Miranda e com hábitos muito
parecidos com os dois precedentes. 4) finalmente, os Quiniquinaus, cuja principal taba, nas
proximidades de Albuquerque foi visitada por nós. Possuem eles ainda um aldeamento perto de
Miranda (p. 308, grifo nosso).
14
pessoas". Informa ainda que "estes índios são muito laboriosos e entretêm com os brasileiros
um grande comércio de farinha de mandioca e de arroz.; suas lavouras são extensas e muito
bem plantadas" (1949, tomo II: 280-281).
Segundo a interpretação de Castro, “(a) afirmação da nomeação dos Kinikinau,
portanto, se deu através da conjugação de diversos fatores e da presença de diferentes
agentes sociais, além dos militares, missionários e outros funcionários reais que atuaram e
circularam na região do Alto Paraguai, entre o final do século XVIII e o seguinte: viajantes;
botânicos e desenhistas de expedições geográficas; cartógrafos e engenheiros, o que colocou
as populações indígenas da região em contato com um contingente plural de novos sujeitos
sociais. Ainda que os encontros tivessem sido temporários eles proporcionaram o registro
das impressões europeias sobre a região, sua flora, fauna e os seus povos, gerando dados e
informações que concorreram para consolidar as nomeações e divulgar os costumes dos
diversos povos presentes nos territórios visitados pelos europeus a partir do final do século
XVIII” (op. cit: 204).
Continuando, a autora avalia que “(a) segunda situação que considero produtora de
possibilidades de se visualizar a manifestação das estruturas e princípios gerais
organizadores da atuação dos Kinikinau, em suas tendências aliancistas, apropriadoras e
integradoras, e aquela ocorrida no período que se estendeu do final do século XVIII a
meados do seguinte, correspondente ao tempo em que os Kinikinau, como os demais Guaná
migrantes, converteram-se em súditos portugueses e, em seguida, em um dos grupos
indígenas da emergente nação brasileira. Em um primeiro momento, eles buscaram os
agentes da Coroa portuguesa e por eles foram acolhidos, nas proximidades dos fortes
militares da província de Mato Grosso, hoje Mato Grosso do Sul, nas atuais regiões de
Corumbá e Miranda. Do ponto de vista dos luso-brasileiros tratava-se de uma estratégia que
visava assegurar a ocupação de fronteiras recentemente estabelecidas, e que coincidia com a
movimentação dos Guaná na transposição do rio Paraguai, para as suas margens orientais,
movimento que foi muito bem recebido pelos luso-brasileiros, como se vê nos documentos da
época.” (op. cit: 204).
Portanto, as fontes e mapas históricos do período (final do século XVIII e primeiras
décadas do seguinte) confirmam que foram os povos Chané-Guaná os verdadeiros
colonizadores da região compreendida entre a margem oriental do rio Paraguai até o
interflúvio dos rios Mboitetey (Mondengo ou Miranda) e Aquidauana.
Almeida Serra, em seu Parecer sobre a Defesa da Capitania de Mato Grosso, de 31 de
janeiro de 1800, salientava a importância estratégica da região de Albuquerque, a necessidade
15
de se manter os povos indígenas como aliados, e os esforços dos luso-brasileiros para atrai-los
e mantê-los afastados dos espanhóis:
Este morro [Albuquerque] e um lugar importante do Paraguay, e que pede,
no caso de guerra, uma reforçada patrulha: porque elle dista uma milha do
angulo, que formam neste lugar as Serras de Albuquerque em que esta a
povoação deste nome, angulo que forma o lado oriental dellas (...) e o outro
lado que deste ponto volta para o poente; e como nas escarpas deste angulo
e correspondentes campos vivem fronteiros ao dito morro os mil e
quatrocentos índios Guaicurus e Guanas, nossos aliados, esta patrulha e
indispensável para segurar estas tribus na nossa amizade, e dissipar lhes o
terror e o pânico que conceberam pelos estragos, e mortandades que lhes
fizeram os hespanhoes; e evitar as persuasões desta vizinha nação, que
eficaz e simuladamente solicita chama-los a sua antiga amizade, e terras
(Serra, 1840: 37 [1800]).
Afastada a ameaça dos constantes ataques dos “índios cavaleiros”, pequenos núcleos
populacionais portugueses começariam a se estabelecer em torno das fortificações avançadas
que vinham sendo construídas na região nos anos que antecederam a assinatura do tratado de
paz com os Mbayá - e em função da disputa de limites com a Espanha: Forte Coimbra (1775),
Forte de Príncipe da Beira (1776) e Presídio de Miranda (1778).
As relações de amizade12
entre portugueses e Guaná-Chané seriam reforçadas pelos
agentes da Coroa: em 1797, um dos principais chefes destes povos, recebeu uma carta patente
do Governador Geral das Capitanias do Mato Grosso, em troca da sua fidelidade e vassalagem
à Coroa portuguesa. O documento recomenda aos agentes oficiais portugueses que:
(ao "capitão" Guaná e "a todos os seus") tratem e auxiliem com
todas as demonstrações de amigos e de vassalos da Coroa
Portuguesa, deixando-os gozar de todas as liberdades, privilégios
e isenções de que gozam os demais vassalos da mesma Coroa (...)".
(documento original depositado no Arquivo Público do Estado do
Mato Grosso, apud Carvalho & Carvalho, 1998).
Em 1803, o sargento engenheiro Ricardo Franco de Almeida Serra apresentou seu
"Parecer - Sobre os aldeamentos dos índios uaicurús e guanás". Neste texto, já se
12
"Em todos os lugares em que a literatura menciona a relação das tribos aruaques com os invasores europeus
é frisada sua disposição amistosa para com eles (...) e o motivo dessa harmonia com os invasores europeus está
intimamente ligado aos motivos da expansão das culturas aruaques. A fundação e manutenção da posição
dominante perante outras tribos de modo algum pode ser tão bem alcançada como meio das vantagens
oriundas de relações amigáveis com culturas mais elevadas. Característica é a maneira pela qual os Aruaques
procuram se prevalecer de sua boa relação com os europeus em detrimento de outras tribos que visam
subjugar" (Schmidt, idem, ib: 46)
16
mencionava os Guaná (na verdade, os Kinikinau) vivendo há alguns anos em um aldeamento
com 600 "almas" nas cercanias de Albuquerque. Noticiava ainda que:
"(os Guaná) vendem todos os anos em Coimbra algumas redes e
panos, bastante galinhas, grande soma de batatas e alguns porcos,
tendo assim essas permutações enriquecido mais esta nação que os
uiacurús...".
Este autor estimou a população indígena (que incluía os Guaicuru) entre o forte
Coimbra e Miranda em dois mil e seiscentos indivíduos (Almeida Serra, 1845: 199).
As relações com os portugueses e brasileiros após 1791, tiveram variações entre os
diversos subgrupos Guaná. Hercule Florence descreveu, em 1828, um grupo ao qual
denominou “guanás” - provavelmente os mesmos Echoaladi de Albuquerque visitados mais
tarde por Castelnau - da seguinte maneira:
"De quantas tribo tem o Paraguai (o rio, esclarecemos), é esta que
mais em contato está com os brasileiros. Lavradores, cultivam o
milho, o aipim e mandioca, a cana-de-açúcar, o algodão, o tabaco
e outras plantas do país. Fabricantes, possuem alguns engenhos de
moer cana e fazem grandes peças de pano de algodão com que se
vestem, além de redes e cintas. Industriais, vão, em canoas suas ou
nas dos brasileiros, até Cuiabá para venderem suas peças de
roupa, cintas, suspensórios, cilhas de selim e tabaco.(1977: 103-
104).
Outros cronistas enfatizaram as diferenças entre os sub-grupos Chané-Guaná em suas
relações com os brasileiros, sempre mencionando que os Terena eram mais avessos à
intensificação das relações com os brasileiros. Por exemplo, Castelnau, em XXXXX:
"A 5 de abril fomos visitar o aldeamento dos Terenos (a aldeia
Bôocôti, atual Cachoeirinha), índios que pertencem à mesma nação
dos precedentes (Guaná), mas que até aqui têm muito poucas
relações com os brancos. É uma nação guerreira que conserva em
toda integridade os costumes de seus antepassados" (op. cit: 301).
Estes testemunhos nos levam a inferir que, até pelo menos a invasão das forças
paraguaias em 1865, os vários subgrupos Chané-Guaná aqui mencionados mantinham sua
autonomia e se relacionavam diferentemente com uma rarefeita população brasileira. Os
relatos enfatizam que, apesar de pequenas diferenças linguísticas, estes subgrupos
compunham uma mesma "nação", pacífica, industriosa e que supria as necessidades dos
poucos núcleos populacionais brasileiros na base do comércio.
17
Os relatos dos cronistas da época mostram, com clareza, que as relações entre os
Guaná e os brasileiros estavam centradas na troca recíproca; era uma relação entre iguais,
mesmo que alguns testemunhos (o de Florence, sobretudo) indiquem a prestação de serviços
por parte dos índios aos brasileiros em algumas tarefas domésticas e a venda de mulheres.
Mesmo este fato não implicava qualquer tipo de servidão (e nenhum cronista chega a
mencionar algo próximo a isso nas suas descrições das relações entre aqueles índios e os
brasileiros), pois eram livres e espontâneas - ao contrário do que em geral sucedia em outras
regiões do país. É cabível supor que, do ponto de vista dos Guaná, eram eles os verdadeiros
colonizadores da região, tirando vantagem da relação com os brasileiros para, ao mesmo
tempo, livrarem-se (como o fizeram) dos Mbayá e imporem seu domínio sobre os demais
grupos indígenas da região.
“O engenheiro português Ricardo Franco de Almeida Serra, o comandante do
Real Presidio de Coimbra, Francisco Rodrigues do Prado, e o frei capuchinho
Jose de Macerata foram algumas das primeiras autoridades do Império luso-
brasileiro a registrarem a entrada dos Kinikinau no território da fronteira do
extremo oeste e a se relacionarem com aqueles grupos, e que entenderam que os
Guana, tangidos pelas tropelias dos Guaicuru, estariam em rota de fuga,
aportando na regiao guarnecida pelos lusos atraves do Comando Militar do Alto
Paraguai. Prado (1839 [1795]) registrou que em 1792, mais de trezentos Guana
‘vieram ao Presidio de Nova Coimbra pedir proteção dos Portugueses’ (p. 38).
Para Macerata, cerca de mil Kinikinau estariam fugindo da América espanhola,
a fim de ‘não sofrerem mais aos serviços e roubos da vagabunda e malfazeja
nação Guaicuru que os tinham ameaçado de tirar-lhes a vida’ (Macerata apud
Silva 2002: 37, apud Castro: 205-206).
Portanto, o caráter das relações entre os subgrupos Chané-Guaná e brasileiros era
pacífico e baseada na reciprocidade e respeito mútuos - e não há uma nota sequer, nos vários
cronistas ou nos documentos oficiais consultados, que faça alguma menção a choques ou
mortes entre aqueles dois grupos humanos. E o reconhecimento da importância da
manutenção desta relação para o Império brasileiro estava assentado na concessão de patentes
de "capitão" por parte do governo provincial do Mato Grosso a vários chefes Chané-Guaná.
Os documentos analisados indicam que, para os interesses estratégicos do Império na
região, era fundamental a aliança com os pacíficos e laboriosos Guaná-Chané- sobretudo em
uma fronteira cujo domínio português e posteriormente brasileiro, sempre foi problemático e
contestado pelos espanhóis e seus herdeiros. Contudo, o governo imperial tinha uma política
genérica para com os povos indígenas, política esta consolidada no "Regulamento das
Missões e Catequese dos Índios", baixada por Pedro II em 1845 e que jamais seria aplicada na
região.
18
Os aspectos positivos da relação dos Chané-Guaná com os brasileiros seriam
reforçados pelo caráter da ocupação e a intenção da política do Império para a região:
“O avanço da ocupação espanhola na região efetuou-se através de
concessões do 'mercedes' de terras, com a obrigatoriedade dos
beneficiados arcarem com a responsabilidade da defesa do
território. Este último aspecto constitui a diferença essencial entre
os dois sistemas de colonização: o espanhol e o português. A
penetração deste último no vale do médio Paraguai processou-se
através de presídios guarnecidos por tropas regulares,
remuneradas e abastecidas com gêneros provenientes de outras
áreas e pelos índios. Por suas características, os fortes brasileiros
não entravam em conflito com os interesses indígenas (...). Na
capitania do Mato Grosso a mineração permitia poder aquisitivo
suficiente para utilização de escravo negro. Razão pela qual a
política do colonizador em relação ao índio foi mais branda. No
caso específico do guaicuru-guaná, os governadores perceberam
que a solução era de respeito mútuo. Esta atitude fez com se
estabelecesse um modus vivendi entre os dois grupos humanos”
(Assis Bastos, 1978: 135).
Este mesmo historiador afirma que até a década de 1860 não havia nenhum
estabelecimento de criação de gado digno de nota no interflúvio Miranda-Aquidauana-
Paraguai13
. Ou seja, as disputas territoriais com os Chané-Guaná (e outros grupos) somente
ocorrerão após a guerra com o Paraguai, quando se alterará radicalmente o caráter da
ocupação - e a intenção dos novos ocupantes - assim como a política oficial para a região
recém-conflagrada, como se verá adiante.
1.3 O padrão histórico geral de ocupação Chané-Guaná
O padrão de localização das aldeias (oneo) Chané-Guaná alterou-se ao longo dos anos
em função da limitação territorial imposta a estes grupos após a guerra com o Paraguai. Antes
da guerra - que aqui consideramos como os "tempos históricos" - quando a área ocupada pelos
sub-grupos Chané-Guaná era ainda grande, a distribuição das suas aldeias não diferia muito
do padrão "clássico" descrito por Sanches Labrador14
. Esse padrão combinava - como já
indicavam os primeiros cronistas, ainda no século XVII, para os Chané-Guaná do Chaco
meridional - uma agricultura bem desenvolvida com a caça, a pesca e, já no Brasil, a criação
de gado vacum e cavalar – com os quais aprenderam a lidar no longo período de convivência
13 “O território compreendido entre o Apa e o Miranda permaneceu domínio guaicuru (e Chané-Guaná,
acrescentamos) até a guerra do Paraguai. Somente após o término do conflito iniciou-se a implantação de
fazendas de pecuária na região.” (idem, ibidem: 131).
14 El Paraguai Catolico: 275-276
19
que mantiveram com os Mbayá-Guaicurú.
No Chaco Meridional, a vida sazonal dos Guaná, dependente do regime de águas, foi
assim descrita:
"A maior parte do território consiste em terras baixas, que são
barrentas durante as estações chuvosas. Contudo, quando o calor
é intenso, a água extremamente escassa e mesmo água para beber
não pode ser encontrada, exceto próximo ao rio Paraguai ou a
outro rio que venha do interior e corra entre árvores. Quando a
água é escassa, a população se muda para lugares onde ela é
abundante, e subsiste caçando e pescando. Antes de deixarem seus
povoados, plantam milho, cabaças, algodão, tabaco e feijões que
abandonam, a fim de cuidarem de sí próprios. Quando pensam que
os grãos estão maduros, enviam um mensageiro para verificar. Se
este inspetor traz boas novas, eles retornam aos seus povoados e
cuidam de seus campos" (Sanches Labrador: 258, apud Cardoso de
Oliveira: 1976, grifo nosso).
Este modo de ocupação – com a fixação da aldeia em um ponto privilegiado do
território - exigia uma área de extensão considerável, posto que as roças (cawané),
pertencentes a um mesmo grupo de parentesco (liderado por um "capitão" ou chefe da família
extensa), iam se distribuindo em matas de "galeria" contíguas, ao longo dos anos.
De fato, os cronistas da época relataram que as aldeias Chané-Guaná possuíam, em
média, de 30 a 40 casas (ovocuti) e, segundo Sanches Labrador, cada casa "(media) de 16 a
20 jardas de comprimento por 8 de largura" e na qual viviam "(um) capitão (...) junto com
seus irmãos e seus parentes...(e) cada casa tem 5 portas". Se considerarmos que casas nestas
dimensões (15 x 7 metros no mínimo!) abrigariam entre 20-30 pessoas (cinco grupos
domésticos, delimitados pelas suas "portas"), então podemos estimar a população das aldeias
no Êxiva em cerca de 600 a 1.200 pessoas - cifra que, como vimos no tópico anterior, se
manteria no Brasil até a primeira metade do século XIX.
Os grupos domésticos (compostos por marido, mulher, filhos, genros e, eventualmente
abrigados de outros grupos indígenas, os chamados cauti/cativos) abriam áreas contíguas de
roças. Nenhum dos cronistas, do Chaco ou do Brasil, menciona as dimensões das roças nos
tempos históricos. Porém, os Terena atuais afirmam que as roças "de toco" de seus avós
possuíam, em média, 06 "tarefas" (uma "tarefa" é igual a 30 "braças" quadradas ou cerca de
3.600 m²) por grupo doméstico (ou seja, cerca de 2,16 hectares). Esta cifra é perfeitamente
compatível com os instrumentos então utilizados pelos Chané-Guaná em suas lides agrícolas
- equipamentos bem mais desenvolvidos que, por exemplo, aqueles utilizados pelos Guarani,
20
seus vizinhos meridionais e também dependentes da agricultura15
.
Considerando que a regeneração natural das "capoeiras" no planalto pré- pantaneiro
(habitat tradicional Chané-Guaná no Brasil e cujas características ecológicas se assemelham
ao Chaco meridional, de onde migraram - cf. Oberg: 1949) dura cerca de 20 anos, então a área
de roça necessária a uma aldeia padrão (30 casas, com 150 grupos domésticos no total) seria
de, no mínimo, 6.480 hectares. Se acrescentarmos a esta área aquelas necessárias à criação de
bois e cavalos em regime extensivo (criação evidenciada por muitos dos textos históricos aqui
já mencionados), e ainda os campos de caça e as áreas de pesca e de coleta (que era a base
complementar necessária ao regime de chuvas e à paisagem ecológica do habitat), então
poderíamos estimar a área de ocupação efetiva para habitação permanente de cada aldeia, nos
tempos históricos, em pelo menos 30 mil hectares.
Portanto, a escolha do local para o estabelecimento das aldeias Chané-Guaná deveria
levar em conta a disponibilidade de matas que denunciavam solos propícios para a formação
das roças e áreas de caça, coleta e pesca (lagoas, sobretudo), necessário para o período de
seca. Ademais, barreiras e limites sociais impuseram a fixação da maioria dos subgrupos
Chané-Guaná naquela região. Ao sul (nas cabeceiras do Miranda e serra de Maracaju) e a
leste (os chamados “campos de Vacaria”, além Aquidauana), os limites para expansão seriam
dados, de um lado, pelos índios Guaxi e “Coroados” (Ofayé-Xavante) e, de outro lado, pelos
Kaiowá-Guarani (interflúvio Brilhante-Dourados-Apa). Ao norte, a barreira era dada pelo
Pantanal e os índios Guató, seus inimigos históricos– como mencionam vários cronistas (por
exemplo, Castelnau: 1949) e estudiosos (como Metraux, 1946).
Outro fator de fixação seria a relação com os novos aliados, os purutuyé, como já
mencionado. Os documentos citados até agora (cronistas e fontes oficiais), indicam o papel
fundamental dos Chané-Guaná no fornecimento de gêneros alimentícios e alguns bens
manufaturados (em algodão, palha e couro) para os raros núcleos populacionais brasileiros na
região acima delimitada (os presídios e guarnições militares de Coimbra, Albuquerque e
Miranda). Este comércio acentuou-se depois de finda a aliança com os Mbayá-Guaicuru. Para
os Chané-Guaná, os purutuyé representavam uma aliança muito mais vantajosa, como já
15
"Os Chanás (Guaná) são um povo modesto , bem humorado. Êles têm uma forma peculiar de cultivar a terra.
Com as espátulas acima mencionadas (paus de cavar, ilome'i , feitos de 'pau santo' - nota nossa) êles cavam e
revolvem, não como os espanhóis o fazem, mas sentados no chão. Suas espátulas têm cabos de uma vara de
comprimento ou de vara e meia. Os Chanás sentam e trabalham com suas espátulas até onde podem alcançar e
depois se deslocam até que toda a terra tenha sido preparada para o plantio..." (Sanches Labrador, op. cit.:
291-292)
21
visto, que aquela com seus antigos aliados, pois conseguiam o que queriam (ferramentas e
gado) sem ter de ceder suas mulheres.
1.4 Os documentos do Império: a história oficial da ocupação territorial dos Chané-
Guaná (Kinikinau) na bacia do rio Miranda
A farta documentação oficial depositada no Arquivo Público do Estado do Mato
Grosso, torna possível traçarmos, com segurança, o processo histórico de ocupação do
interflúvio Paraguai-Miranda/Aquidauana pelos vários subgrupos Chané-Guaná e também
suas relações com os colonos e agentes do governo, no período que vai de 1820 até as
primeiras décadas da República16
. Reforçando o exposto no tópico anterior, a partir de 1837
todos os Presidentes da Província, nos seus relatórios anuais apresentados à Assembléia
Provincial, mencionam os Chané-Guaná como nações pacificas e das quais "temos tirado não
pequena vantagem para o serviço e defesa do Baixo Paraguai (...)" (José Antônio Bueno,
em 1837).
A já citada Iara Castro (2010: 20) aponta que a aldeia dos Kinikinau de Albuquerque
era “(c)onsiderada a mais exemplar aldeia da província de Mato Grosso, Bom Conselho
recebeu de Taunay o seguinte registro: ‘o aldeamento modelo no Baixo Paraguai era
incontestavelmente o de Matto Grande ou do Bom Conselho perto de Albuquerque, onde os
Kinikinau, (...) apresentaram os frutos valiosos da catequese bem inspirada’. O memorialista
Taunay também ofereceu indícios sobre as tendências dos Kinikinau de se relacionarem com
os regionais e de incorporarem os discursos e recursos disponibilizados pela sociedade
envolvente. Ao narrar seu encontro com um cacique, durante a invasão de Mato Grosso pelos
paraguaios, observando que aquele havia sido educado na Missão Nossa Senhora do Bom
Conselho, Taunay registrou que o indígena, ‘(...) Narrou-nos, com cores vivas e expressivas,
a invasão em suas diversas phases. Elogiou o comportamento de vários indivíduos de sua
tribu, e nunca falou de si. Em fim, mostrando sempre os princípios da boa educação (...).
Sabia ler e escrever, este capitão mantinha em sua aldea severa disciplina (...). Organizara
uma escola de meninos, em que figuravam os seus dous filhos e sempre se mostrara
affeicoado aos brasileiros, a elles chegando nas horas de infortúnio” (Taunay, 1931: 13 apud
Castro, 2010: 230-31.
16
Essa documentação consiste nos "Relatórios dos Presidentes da Província de Mato Grosso" (abrangendo o
período de 1835 a 1912); nos "Livros de Correspondência da Diretoria Geral de Índios da Província do Mato
Grosso" (período de 1848-1873) e nos "Livros de Registros das Correspondências Oficial entre a Presidência da
Província do Mato Grosso e as Comarcas Municipais, Paróquias, Bispos, Juizes de Paz, Diretor Geral de Índios,
Administrador do Correio e Pessoas Particulares da Província" (período de 1834-1887). Esse material foi
compilado e analisado criticamente, no que diz respeito aos Aruaque e Guaná, por Silvia M.S. Carvalho e
Fernanda Carvalho ((inédito, 1997), trabalho que aqui se utiliza.
22
Joaquim Ferreira Moutinho, na ocasião em que visitava a fazenda do Barão de Vila
Maria, cerca de trinta quilômetros de Corumbá, em 1862: “S. Excia., reunindo ali a gente
mais grata de Corumbá e Albuquerque, convidou também os Quiniquinaus, dos quais
apreciamos o adiantamento, que deviam os incansáveis esforços do frei Angelo de
Caramanico. Os rapazes formavam uma excelente banda de musica e as raparigas todas
muito bem vestidas e calcadas, dançavam perfeitamente. Formamos com elas uma quadrilha
de 16 pares, escolhendo dentre muitas outras as mais mocas e bonitas, e que trajavam
melhor. Seus vestidos eram de cambraia branca orlada de fitas azuis ou cor-de-rosa, com
cintos da mesma cor do enfeite, e tinham na cabeça grinaldas de flores naturais muito bem
dispostas. Ficamos pasmos das circunspeção e moralidade dessas raparigas, algumas das
quais de tipo belíssimo. Acabando de dançar, sentavam-se todas, não se negando a uma
conversa seria que entretinham muito bem” (Moutinho, 1869: 222 apud Castro, 2010: 233).
As vésperas da Guerra do Paraguai ainda se tinham noticias sobre a Aldeia de Bom
Conselho. Herculano Ferreira Penna, em 1864, forneceu informações sobre esse aldeamento
por meio de um relatorio, assim expresso:
“(...) apresento-vos um pequeno quadro estatistico da mesma aldea,
que me foi comunicada pela Diretoria Geral em 24 de abril ultimo
[1864]:
- indios da tribu Kinikinau, do sexo masculino, de 1 a 60 anos de idade:
202
- indios da mesma tribu, do sexo feminino, de 1 a 50 anos: 203
- matriculados na escola de primeiras letras: 42
- meninas que aprendem a cozer e fiao algodao: 27
- cinco casas construidas pelo actual diretor, sendo uma para a
directoria, outras para as escolas de primeiras letras e costura, outra
para a de musica, outra para a oficina de alfaiate e outra para o quartel
de destacamento, todas cobertas de telhas, rebocadas e caiadas, exceto a
ultima e uma olaria” (Relatorio de Herculano Ferreira Penna, em
03/05/1864. Arquivo Publico de Mato Grosso).
“(...) cheguei a Albuquerque e de acordo com os diretores das aldeias fiz
organizar uma Companhia de sessenta índios (trinta e oito kinikinaos e
vinte e dois guanas) cujos nomes contarão inclusos relações, que por
copia passo as mãos de V. Exa. por esta mesma gente mandei tirar e
fazer lenha em quanto outro serviço se não oferece. Delles sao os dez
homens que seguem nesta ocasião para essa cidade tripulando as duas
canoas com as quais quinze praças e um alferes que vierão de Villa
Maria. Os índios organizados receberão duzentos reis por dia além do
sustento”. (Oficio do Comandante Antonio Peixoto para Capm. de Mar e
Guerra Augusto Leverger Presidente e Comandante da Província -.
Arquivo Publico de Mato Grosso. Assuntos Militares, n. 48. Lata 1854).
23
“Pelo que respeita aos Aycurus, Terenos, Guanas, Laianas, Guato e
Quiniquinaus com satisfação vos asseguro, que aldeados, ou dispersos
por todo o Baixo pantanal, eles continuam a prestar uteis serviços nesta
parte da fronteira”. Oficio Joaquim Alves Ferreira ― Diretor dos Indios
ao Ilmo. Snr. Dr. Joao Crispianno Soares Presidente desta Provincia,
1847 (Arquivo Publico de Mato Grosso).
Comentando estes documentos, Iara Castro deduz que “(f)rente a ambiguidade dos
serviços prestados pelos funcionários do Estado imperial, que se colocavam como defensores
dos índios, mas que ao mesmo tempo não hesitavam em usar a forca repressora para se
fazerem obedecidos, os Kinikinau não ficaram passivos, recusando ou abandonando o serviço
considerado abusivo. Essa percepção dos indígenas encontra-se documentada em vários
registros. Em 1860, por exemplo, se notificou ‘ter havido na Aldea [dos Kinikinau] uma
sublevação de índios’. Frente ao evento foi solicitado um destacamento militar para as aldeias
da região de Albuquerque, ‘tanto para o policiamento (...) como para fazer os índios
respeitarem os contratos de locação de seus serviços, pois que, depois da retirada do Corpo
da Cavalaria, abandonaram com facilidade e caprichosamente os seus patrões’. (Oficio de
Joze Rufo de Pinho ao presidente da província de Mato Grosso Antonio Pedro de Alencastro.
Lata 1835 C. Arquivo Publico de Mato Grosso, in Castro, 2010: XXX).
Em 1848, em discurso a Assembleia Legislativa Provincial, o presidente da Província
de Mato Grosso, Estevão Ribeiro de Rezende, mencionava a visita de diversos caciques
Guana, Layana, Guato e Kinikinau que foram a cidade de Cuiabá para cumprimenta-lo e
oferecer serviços:
Durante o ano próximo passado aqui estiverão na Capital diversas hordas
de todas aquelas Nações, tendo vindo algumas delas guiadas por seus
caciques, dirigidamente a cumprimentar-me e oferecer seus serviços.
Mandei-os vir a minha presença, e recebi-os com agasalho, e a todos
mandei brindar, quanto possível, com ferramentas próprias para a
lavoura, ou conserto das que traziam, e com algum vestuário de tecidos
grosso (Discurso do Presidente da Província de Mato Grosso, Estevão
Ribeiro de Rezende, em 1848, a Assembleia Legislativa Provincial -
Arquivo Publico de Mato Grosso).
Outra aguda observação de Iara Castro diz respeito às estratégias dos Kinikinau nas
suas relações com os portugueses e neobrasileiros recém-chegados à fronteira:
A condição de índios aldeados, pacíficos, trabalhadores e situados em uma
região de fronteira que devia ser consolidada, livrou os Kinikinau daquele
tipo de extinção, sendo decisiva para a preservação da sua existência
coletiva. Ao assimilar as instancias de poder do Império brasileiro, através
de sua articulação com a Diretoria Geral de Índios (DGI), da província de
24
Mato Grosso, como se viu no capitulo anterior, os Kinikinau solicitaram o
seu aldeamento, obtendo ferramentas, ferro, medicamentos e outros bens;
aumentaram a possibilidade de venda dos seus produtos e se
transformaram em índios da mais elogiada das aldeias daquela região.
Nesses termos marcaram sua presença como um dos grupos indígenas mais
“civilizados”, habilidosos e receptivos. Com essa qualificação, passaram a
ser identificados nos registros administrativos, nos relatórios dos
missionários e nos relatos dos viajantes que descreveram a sua aldeia de
Bom Conselho, mantida ate a deflagração da Guerra contra o Paraguai, no
momento em que, mais uma vez, demonstraram sua aliança, lealdade e
solidariedade ao Império brasileiro, participando diretamente do conflito e,
dessa forma, forjando outro espaço na sociedade envolvente para o seu
reconhecimento. Nesse sentido, no tempo em que se produzia a ideia de
desaparecimento de muitos povos indígenas, no contexto geral das politicas
de integração do século XIX e no cenário da Guerra da Tríplice Aliança
(1864-1870), também conhecida como Guerra do Paraguai, os Kinikinau
foram um dos grupos que conseguiu manter sua visibilidade como súditos
do Império brasileiro, trabalhadores e por sua ativa participação naquele
conflito. (Castro, 2010: 251).
Em 1847 era nomeado - em observância ao recente (1845) Regulamento das Missões
e Catequese dos Índios do Império - o primeiro Diretor Geral de Índios da Província (Joaquim
Alves Ferreira). Em seu relatório inaugural, este funcionário descrevia assim os Guaná17
:
"7 - Guanás: As quatro tribos de se compõem esta nação (Terena,
Kiniquinao, Echoaladi e Laiana) pouco ou nada diferem entre si
quanto ao modo de existência; seus costumes são mansos e pacíficos e
hospitaleiros; vivem reunidos em aldeias mais ou menos populosas e
muitos deles se ajustam para serviços de toda espécie em diversos
pontos da Província e mormente para a navegação fluvial. Sustentam-
se da caça e da pesca, mas principalmente da carne de vaca e dos
produtos de sua lavoura. Cultivam milho, mandioca...arroz, feijão,
cana, batatas, hortaliças e igualmente todos os gêneros de agricultura
do país. As suas colheitas não só chegam para seu consumo como
lhes resta um excedente que vendem a dinheiro ou permutam por
diversas fazendas, ferramentas, aguardente, espingardas, pólvora,
chumbo e quinquilharias e bem assim gado vacum e cavalar de cuja
criação se ocupam. Fiam, tecem e tingem o algodão e a lã do que
fazem ótimas redes, panos, cintos e suspensórios e quase todos
entendem o nosso idioma e estão em estado de se curar de sua
educação intelectual e religiosa.
Da tribo que conserva o nome de Guaná, há uma aldeia junto a
Freguesia de Albuquerque e outra na margem do rio Cuiabá.
8 - Guaná Kinikináo: em número de perto de oitocentos, vivem em
uma aldeia no Mato Grande distante três léguas do poente de
Albuquerque; existe outra aldeia de duzentos indivíduos nas
imediações de Miranda.
17
Carvalho & Carvalho, op. cit.: 45
25
9 - Guaná Terenas: vivem aldeados nas imediações do Presídio de
Miranda
10 - Guaná Laianas: habitam também na vizinhança do mesmo
presídio
11 - "Guaxi": nação quase extinta cujo atual modo de vida muito se
assemelha ao dos Guanás e Guaicurús de Miranda onde residem"
O substituto deste Diretor Geral, em 1852, já noticiava a presença entre os
Quiniquinao de Albuquerque do missionário capuchinho Frei Mariano de Bagnaia,
confirmando ser a única "aldea regular" (nos termos do Regulamento de 1845) existente na
região. Na ocasião, esse aldeamento (denominado pelo missionário de Nossa Senhora do Bom
Conselho) já dispunha de um "mestre de primeiras letras". Neste mesmo relatório, o Diretor
Geral indicava que:
"em Miranda, onde há uma muito grande porção de Guanás e
Guaicurús semicivilizados, muito conviria, como tem se tentado,
formar uma aldeia regular; mas o missionário Frei Antonio de
Molinetto não se dá com os índios e moradores de Miranda, nem os
índios e moradores de Miranda com ele".
Os relatórios seguintes continuam tratando como "regular" apenas a aldeia de N.Srª do
Bom Conselho - e solicitando apoio para "aldeiar os Guanás e Guaicurús de Miranda". Em
1858, informava-se18
:
"(Os)Terenas, Lainos e Quiniquinaos habitantes das imediações
de Miranda pertencem à tribo da Nação Guaná e o número de seus
indivíduos sobe a 2.300", acrescentando ainda que em
"janeiro do corrente ano foi nomeado o capitão Caetano da Silva
Albuquerque Diretor das Aldeias destes índios, para fim de
prepará-los de ante mão para em tempo oportuno se reunirem sem
dificuldade numa só aldeia e receberem de bom grado a
catequese(..)."(in Castor, 2010: 337, grifo nosso)
Em 1859 frei Mariano de Bagnaia seria nomeado diretor das aldeias de Miranda e no
ano seguinte o Presidente da Província (Antônio Pedro de Alencastro) recomendava a criação
de uma "Aldeia Normal na vila de Miranda" solicitando a construção de um templo e uma
escola de primeiras letras. Com esse aldeamento o governo provincial pretendia aplicar as
determinações do Regulamento de 184519
.
18
RELATORIO do estado da catequese e civilizacao dos Indios. Do Diretor Geral dos Indios Joao Baptista
d’Oliveira ao Presidente da Provincia de Mato Grosso Joaquim Raimundo de Lamare, 31 de dezembro de 1858.
In: Diretoria Geral dos Índios (1848-1860). APMT, Secretaria de Administracao, Cuiaba. 19
RCID da TI Taunay-Ipegue, p. 22.
26
Em 1861, em ofício dirigido ao Presidente da Província, o Diretor Geral dos Índios
comunicava que:
"(...) a única sesmaria que me consta ter sido concedida nesta
Província para missão de índios é a da Chapada, que continua a ser
cultivada pelos descendentes dos concessionários... Existem mais na
província quatro aldeias de índios ocupando terrenos ainda não
concedidos, sendo a do Bom Conselho em Albuquerque, a Normal
mandada crear por V.Exª na vila de Miranda, a de Bororós Cabaçaes
(...) a de Bororós da Campanha (...). Entendo que para essas aldeias
deve-se conceder os terrenos por elas ocupados, abrangendo os seus
cultivados, sendo que para a 1ª, 3ª e 4ª meia légua em quadro de
matas que as circundam, e para a 2ª uma légua de testada e três de
fundo, por ser aquele lugar menos favorecido de matas e ter de
reunir-se ali tribos que habitam as vizinhanças da mesma vila de
Miranda" (grifo nosso)20
.
Esta é uma das poucas menções que encontramos nos documentos oficiais do Império
sobre a situação legal das terras das aldeias Chané-Guaná situadas na vila de Miranda (que
abrangia então os atuais distritos de Miranda, Jardim e Aquidauana). No ano anterior o
mesmo Diretor de Índios comunicava o Presidente da Província que o diretor das aldeias
de Miranda (já o frei Mariano de Bagnaia):
"(...) não podia (...) pela absoluta falta de animais, percorrer as
mesmas aldeias que se acham muito distantes para administrar o
batismo e para conseguir a função dos índios na Aldea Normal criada
por V.Exª (...)".
Os dois últimos fragmentos de ofícios citados, leva à interpretação de que a criação do
aldeamento de Miranda nos termos do Regulamento das Missões de 1845 – e para o qual o
Diretor Geral solicita, como visto, cerca de 10.800 hectares de terras de matas, fora o “seu
cultivado” – deveria agregar as demais aldeias da vila de Miranda. Porém, isto não
ocorreria. De fato, em 1862, o Diretor de Índios oficiava o Presidente da Província que:
"(...) grande é o número de índios que para ali (Aldeia Normal)
foram atraídos pelo referido Missionário (frei Mariano de Bagnaia), e
uma não pequena porção ainda resta disseminada nas vizinhanças
daquela vila que o Diretor empenha-se em incorporá-la na referida
aldeia; o que será de grande conveniência e utilidade, por ser um
recurso aos agricultores da vila de Miranda, não só porque os Índios
terenas e laianas, que nela habitam, prestam-se aos mesmos trabalhos
dos (kinikinau, diga-se) da aldeia do Bom Conselho, como por
abastecerem aquela vila de gêneros alimentícios de suas plantações"
(grifo nosso).
20
RCID Taunay-Ipegue, p. 23.
27
Segundo se infere dos relatórios citados, existiam no início dos anos 1860 (ou seja,
pouco antes da invasão da região pelas tropas paraguaia), as seguintes aldeias Chané-Guaná
na circunscrição da vila de Miranda21
:
Albuquerque (exclusivamente Kinikinau)
Ipegue (maioria Terena e algumas famílias Echoaladi)
Boôcoti (ou "Normal", "Grande" ou "Cachoeirinha" - maioria Terena e algumas
famílias Laiana)
Tuminiku (nas proximidades da atual aldeia do Bananal - exclusivamente Terena)
Coxi (junto ao Taquari, no atual município de Coxim, provavelmente Echoaladi)
Naxe-Daxe (entre Ipegue e Cachoeirinha, no córrego do mesmo nome - Terena)
Háokôé (situada a uma légua ao nordeste da aldeia Tuminiku - provavelmente Terena
e Laiana)
Agachi (junto ao rio do mesmo nome, ao sul do Ipegue - Kinikinau)
Eponadigo ou Ponadigo (afluente do Agachi - Kinikinau-Guaicuru)
Kamakué ( ? - provavelmente Laiana)
Akulé (nas cercanias de Miranda e origem provável das atuais aldeias
Moreira/Passarinho - Laiana e Echoaladi)
Inikaé (junto ao rio Miranda, nas imediações da atual Lalima - Guaicuru e Laiana)
Maguo (onde hoje se situa o povoado de Duque Estrada, em Miranda - Laiana)
Contudo, as terras destas aldeias continuavam sem providências legais oficiais. O
Diretor Geral dos Índios do Mato Grosso (João Baptista d'Oliveira), em seu relatório anual ao
Presidente da Província datado de 1º de Maio de 1863, expunha a situação, no tocante às
aldeias "regulares" de Albuquerque e Miranda, nos seguintes termos:
"Nenhum patrimônio foi concedido às referidas aldeias, as quais
foram assentadas sobre as (terras) que de há muito habitavam os
respectivos índios, existindo por isso somente o direito de posse (...).
Também não há arrendamentos ou aforamento de terras (como
determinava o Regulamento de 1845, lembramos), porquanto há nas
aldeias matas escassamente suficiente para plantação dos respectivos
habitantes".
Resumindo os dados até aqui apresentados, podemos afirmar com segurança que os
Kinikinau, e demais subgrupos Chané-Guaná, desde pelo menos a primeira década do século
21
RCID TI Taunay-Ipegue, p.24.
28
XIX, habitaram sem descontinuidade a região compreendida pelas bacias dos rios Paraguai (a
oeste), Miranda-Aquidauana (a leste e ao norte) e as serras da Bodoquena e Maracajú (ao sul).
1.5 A guerra com o Paraguai e pós-guerra: a dispersão das aldeias e a perda dos
territórios tradicionais
A eclosão do conflito entre o Paraguai e a Tríplice Aliança, no final de 1864, viria a afetar, de
forma dramática, a vida em todas as aldeias Chané-Guaná. Um dos palcos do conflito foi
justamente em território destes povos e, como aliados que eram dos brasileiros, sofreriam
ataques por parte das tropas invasoras. É certo que todas as aldeias então existentes na região
dos rios Miranda e Aquidauana se dispersaram, com seus habitantes buscando refúgio em
matos inacessíveis na região (como o lugar chamado Pulôwô'uti, para aonde foram os
moradores de Cachoeirinha) ou nas serras de Maracajú, onde Taunay esteve em 1866.
No relatório sobre o "estado da catequese" em 1866, o Diretor de Índios informava que
"(...) nada posso informar a V.Exª sobre o estado das aldeias...em
conseqüência de achar-se aquela parte da província ocupada pelos
paraguaios desde janeiro do ano passado(...)"
Em 1870, o mesmo Diretor noticiava ao Presidente da Província que o diretor das
aldeias de Miranda, Frei Mariano, havia sido capturado e feito prisioneiro pelas forças
invasoras. Antes, em 1866, a aldeia do Ipegue seria saqueada e queimada por tropas
paraguaias. E os Kinikinau foram aqueles que mais sofreram com a guerra:
“Nesse sentido, no tempo em que se produzia a ideia de desaparecimento
de muitos povos indígenas, no contexto geral das politicas de integração
do século XIX e no cenário da Guerra da Tríplice Aliança (1864-1870),
também conhecida como Guerra do Paraguai, os Kinikinau foram um
dos grupos que conseguiu manter sua visibilidade como súditos do
Império brasileiro, trabalhadores e por sua ativa participação naquele
conflito. A Guerra da Tríplice Aliança provocou uma serie de desastres,
que atingiram duramente os povos indígenas da região platina. Foram
vitimados os Kinikinau, os Terena, Layana, os Mbaya-Guaicuru e os
Guarani, com efeitos catastróficos em termos demográficos, em
consequência do envolvimento direto, e em relação as suas terras, uma
vez que parte da província de Mato Grosso tornou-se palco de guerra.
Dentre os Guaná, os Kinikinau e os Chavarana-Echoaladi (“Guana”)
estiveram envolvidos em duas frentes, em Miranda e em Albuquerque.
Nessa ultima, os Kinikinau tiveram seu aldeamento desmantelado, sendo
considerados extintos nessa região. O Diretor Geral de Índios, Antonio
Luiz Brandao, em correspondência oficial, datada de 13 de marco de
1872, considerou que os Kinikinau e os Guana de Albuquerque “foram
29
conduzidos pelos paraguayos para Assumpção e lá morrerão todos” (p.
83)”. [Castro, 2010: 251-2].
As antigas aldeas de índios existentes em Albuquerque, com a invasão
paraguaya desaparecerão, e seos restos existem hoje espalhados pelo
Município [de Corumba] confundidos com a demais população,
empregando-se os indivíduos adultos do sexo masculino principalmente
como tripulantes das canoas e nos trabalhos de lavoura (Relatorio dos
Vereadores Joao Lopes Carneiro da Fonseca e Jacinto Pompeu de
Camargo sobre o estado da lavoura no município de Corumbá, ao
Presidente da Província de Mato Grosso, em 1 de novembro de 1872.
Manuscrito. Lata 1872B. Documentos avulsos – Arquivo Público do
Mato Grosso).
Relatorio do Presidente da Província de Mato Grosso, Tenente Coronel Francisco Jose
Cardoso Junior, de 1873, apontava que a maioria dos Kinikinau da região de Albuquerque foi
considerada dizimada pela guerra e que os sobreviventes, embora dispersos, permaneceram na
região do aldeamento destruído (apud Castro, 2010: 252):
Os Kinikinau ― é da tribu dos Guana. O resto dessa família, que muito decresceu
com a invasão paraguaya, anda dispersa por Albuquerque e Miranda. E difficil
precisar quantos existião antes da indicada invasão, porem calcula-se em mais de
1.000 os membros dessa mesma família. Servia lhes de Director de Albuquerque
Frei Angelo de Caramonico, que sendo prisioneiro dos paraguayos, foi por elles
mortos. Plantavão canna, arroz, feijao e milho. Vivião e vivem ainda os que
sobreviverão, apos a invasão paraguaya, da caca, da pesca, do que lhes rendia o
ajuste do seu serviço, quer aos agricultores, ou criadores, quer aos navegantes.
Foi uma das raças que mais soffreu com a invasão: a maior parte dos índios,
como os prisioneiros, seguirão para Assumpção, donde bem poucos retornarão
(p. 137).
Alfredo de E.Taunay (nas obras "Entre os Nossos Índios"; "A Retirada da Laguna" e
"Cenas de Viagem") descreveu com alguns detalhes o envolvimento dos Chané-Guaná na
guerra. Sobre os fatos envolvendo os Kinikinau neste episódio e aos comentários de Taunay,
Iara Castro (op. cit.: 243-245) observa que:
A Guerra da Tríplice Aliança, dessa forma, tornou-se outra referencia a
partir da qual os Kinikinau se fizeram percebidos, constituindo outro
espaço de sua visibilidade. Iniciado o conflito foram um dos primeiros
grupos indígenas a se envolver diretamente, sendo atingidos tanto no
aldeamento de Albuquerque quanto no de Miranda. Em Miranda, a ação
dos Kinikinau foi realizada sob a liderança de Pacalalá a quem Taunay
dedicou rasgados elogios: (...) era o procurador infatigável das queixas e
reclamações que sua gente tinha dos moradores de Miranda (...)
denunciava as irregularidades dos contractos ou dos desmandos occorridos
em sua aldea (...). Pedia providencias; indicava medidas acertadas, de
reparação (...). Assim, estava Pacalalá naturalmente indicado para assumir
30
a chefia de sua gente numa emergência grave como a que decorrera da
invasão paraguaya. E os acontecimentos justificariam plenamente a
confiança depositada em sua intelligencia, coragem e espirito de energia e
decisão (Taunay, 1932: 29-30).
Taunay (1931) narra que Pacalalá, ao sentir que os Kinikinau estavam sendo
explorados pelos moradores, ameaçou as autoridades de Miranda, onde estava
localizada a sua aldeia, “de ir ate a Corte para falar com o Imperador que e o Grande
capitão” (p. 30). Castro observa que a “apropriação dos dispositivos legais do Estado
imperial brasileiro e a noção de ‘direitos’ teve como essência e ponto de partida a
posição de ‘súdito’ assumida pelos Kinikinau, que passou a ser evocada em defesa de
seus interesses, e na expectativa da devida proteção requerida por aquele estatuto”.
Os Kinikinau, dessa maneira, organizaram um refugio na região de Aquidauana
e, sob o comando de Pacalalá, realizaram os serviços de patrulhamento, de sequestro de
reses nos campos circundantes ao abrigo, e de plantio, para atender a população
brasileira que lá também se refugiou: “(...) mandou Pacalalá que todos os Kinikinau
prontamente rocassem e plantassem. Ele próprio deu o exemplo (...) também foram os
seus os primeiros a recolher abundantes cargas de milho e feijão” (Taunay, 1932: 31,
apud Castro, 2010: 235).
Apesar da intensa participação dos Kinikinau e Terena em favor das forças brasileiras,
o governo do Império não reconheceria estes esforços, não consignando um palmo sequer de
terras para aqueles índios - como o faria, em 1880, para os Kadiwéo na concessão de cerca de
quinhentos mil hectares de terras na região do Nabileque/Aquidabã.
Se a guerra com o Paraguai teve como consequência, para os Chané-Guaná, a
dispersão dos grupos domésticos e de suas aldeias tradicionais, o pós-guerra imediato
estabeleceria os parâmetros sociais de uma nova relação com os porutuyé, fundamentada na
subordinação política dos seus homens (facultada pelo enfraquecimento dos laços da
solidariedade tribal durante a dispersão) e na exploração da mão-de-obra indígena (propiciada
pela expropriação dos antigos territórios tribais).
O significado social e cultural da dispersão das aldeias dos povos Chané-Guaná
(Kinikinau, Terena e Laina) durante a guerra pode ser assim resumido: antes do conflito, estas
sociedades estavam estruturadas em estratos sociais hierarquizados e organizadas
espacialmente em aldeias redondas, habitadas por uma população numerosa; essa população
produzia excedentes que por sua vez fundamentava uma relação de troca recíproca, como
visto e fartamente documentada, com uma rarefeita população brasileira. Este padrão
31
socialmente sofisticado, se comparado ao conjunto das sociedades indígenas sul-americanas,
só poderia vingar se assentado em uma base territorial ampla - como vimos. A dispersão das
aldeias poderia ter sido um evento passageiro e sem poder suficiente para abalar e transfigurar
inapelavelmente a estrutura social dos povos Chané-Guaná, não fosse a perda das suas bases
territoriais tradicionais - e que teve como consequência a perda da autosuficiência econômica
das aldeias - que acarretou, por sua vez, uma alteração drástica no modus vivendi com a
população regional, agora já não mais rarefeita: a situação de "servidão" ou "cativeiro" no
pós-guerra fez com que a sociedade Terena passasse de fornecedora de bens e produtos para
fornecedora de mão-de-obra semi-escravizada para uma sociedade regional em processo de
constituição22
.
Os Kinikinau (e os Terena) não abandonaram em definitivo suas antigas aldeias,
voltando a ocupá-las tão logo as forças paraguaias se retiraram - segundo demonstram os
documentos oficiais do Império acima apresentados; porém, em pouco tempo, já não
dispunham das bases que o seu antigo território lhes proporcionara, na medida em que grande
parte dele ia lhes sendo tomada por terceiros, à força ou por ardis aparentemente legais. Foi
nestes pequenos espaços que os Kinikinau e Terena conseguiram estabelecer uma nova
sociedade, construída com os fragmentos da antiga estrutura social, em um processo gradual -
e raro - de sedimentação social por agregação paulatina de alguns dos grupos domésticos
antes dispersos e, depois de 1910 - com a criação do SPI - de outros que se libertariam do
"cativeiro".
Esse tempo pós-guerra é conhecido pela maioria dos Terena e Kinikinau
contemporâneos como o tempo da servidão ou do cativeiro (Bittencourt & Ladeira, 2000).
Dispersos em razão do conflito, os vários subgrupos Chané-Guaná, tentariam recompor suas
antigas aldeias, agora pedindo "licença" aos novos ocupantes. É a época em que, com apoio
das autoridades do Império, tem início a reorganização do espaço territorial na zona do
22 “A fixação dos desmobilizados inicia um ciclo de colonização que iria até a primeira década do século
seguinte (...). Esse ciclo corresponde ao surgimento de verdadeiras fazendas, já com características ‘modernas’,
pois constituídas de pastos delimitados por cercas de arame (...). No ciclo anterior – desde as primeiras descidas
de gado do ‘triângulo mineiro’ até o início do conflito com o Paraguai – o gado não se circunscrevia a áreas
cercadas, pois os extensos campos e o pequeno número de criadores disso não tinham necessidade. No ciclo
seguinte, face ao aumento da população regional e, consequentemente, com o aparecimento de novos
fazendeiros, a disciplinação dos territórios foi inevitável. Nesse ciclo (dos ‘desmobilizados’ do pós-guerra) a
mão-de-obra indígena viu-se incorporada definitivamente na economia regional. Se antes havia servido de
produtora de bens agrícolas para um comércio irregular, organizado em termos de troca de produtos primários
com mercadorias (...), agora sua vinculação à ordem social e econômica regional passava a institucionalizar-se
de duas maneiras: como cativos, em posição simétrica aos escravos remanescentes; ou como peões ‘livres’, ainda
presos às fazendas por meio de ‘contas intermináveis’, assumidas compulsoriamente com a ‘Casa’, em suas
relações de trabalho (...). Os primórdios do século XX iria encontrar os Terena nessa situação(...).” (Cardoso de
Oliveira, 1968:40-42).
32
conflito, com a regularização fundiária em prol dos novos ocupantes, intensificando-se
paralelamente a abertura dos estabelecimentos pecuários - atividade econômica predominante
já antes do conflito com o Paraguai, nos chamados "campos de Vacaria" - e através da qual se
pretendia consolidar a ocupação brasileira na região recém-conflagrada.
Este grande empreendimento de reordenação territorial – e consolidação da fronteira –
só foi possível graças à "liberação" das terras indígenas e o uso intensivo da sua mão-de-obra.
Os relatos dos velhos Terena e Kinikinau sobre este período são eloquentes:
"O pessoal daquela época tinha medo porque ainda se lembrava do
patrão que os chicoteava na fazenda. Quem se atrasava para tomar
chá de manhã era surrado (...) foi o finado meu avô quem me contou.
Como castigo o pessoal tinha que arrancar mato com a mão. Quando
a comida estava pronta, eles mediam toda a sua tarefa. Eram quinze
braças de tarefa e, mesmo não terminando a tarefa do dia, de manhã
mediam outra tarefa, que acumulava" (João Martins Menootó, ancião
de Cachoeirinha apud Bittencourt & Ladeira, 2000: 78).
“Os meus avós vieram da fazenda Imbauval, do Casemiro Câmara,
quando tiraram essa terra aqui (Lalima). Nessa fazenda eram cativos.
Aquele tempo era do cativeiro, todo fazendeiro tinha quatro, seis
famílias trabalhando de cativo. Só depois de 1904 que tiraram estas
posses para os índios os meus avós se libertaram”. (Gonçalo
Cabroxa, kinikinau de 92 anos morador do Lalima e entrevistado em
01/03/2018).
O advento da República – e as concessões político-administrativas descentralizadoras
feitas aos Estados federados e, consequentemente, aos chefes políticos regionais – só fez
agravar a situação dos Chané-Guaná. Neste sentido, o seguinte depoimento do então major
Cândido Mariano da Silva Rondon é revelador:
"São comumente explorados pelos fazendeiros. É difícil encontrar um
camarada Terena que não deva ao seu patrão os cabelos da cabeça
(...). Nenhum 'camarada de conta' poderá deixar o seu patrão sem que
o novo senhor se responsabilize. E, se tem ousadia de fugir, corre
quase sempre o perigo de sofrer vexames, pancadas e não raras vezes
a morte, em tudo figurando a polícia como co-participante de tais
atentados" (1949: 83-84).
1.6 O pós-guerra para os Kinikinau: fim do aldeamento em Albuquerque e a
sobrevivência no Agachi
“(o)s Kinikinau, a partir da aceitação do seu assentamento em aldeias, por
um lado foram transformados em um ‘objeto étnico’ e, por outro,
apropriaram-se dessa condição de índios aldeados, a partir da qual se
33
reorganizaram, reelaboraram sua relação com o passado e construíram
uma nova territorialidade, demarcando o seu espaço. Nesse sentido pode-se
dizer que constituíram experiências significativas tendo como centro o
aldeamento oficial. A experiência de aldeamento se desdobrou em uma
multiplicidade de outras relacionadas à atuação do Império brasileiro no
seu projeto de governar os povos indígenas. No caso dos Kinikinau, este foi
realizado, sobretudo, pelos missionários capuchinhos italianos, na
província de Mato Grosso, região de Albuquerque, na Missão Nossa
Senhora da Misericórdia, criada pelo Frei Jose Maria de Macerata, na
Aldeia; Missão Nossa Senhora do Bom Conselho, dirigida pelo Frei
Mariano Bagnaia, e também em Miranda, geralmente mencionada
simplesmente como aldeia de Kinikinau de Miranda, correspondendo a
Aldeia de Agachi. Taunay (1931) faz referencia a esta aldeia no capitulo
sobre os índios de Miranda, quando registrou que ‘os Kinikinaus aldeavam-
se no ‘Eugachigo’, a sete leguas N.E. de Miranda’ (p. 20), observando que
o nome e de origem Guaicuru, significando bando de capivaras”. (Castro,
2010: 212).
O destino dos Kinikinau do aldeamento de Albuquerque, como já observado, foi a
prisão (e talvez a morte) em mãos do exército paraguaio. Na memória dos anciãos de hoje a
referência aos aldeamentos de Albuquerque igualmente desapareceu. A referência constante é
o aldeamento do Agachi e sobre o qual o antropólogo responsável por este Relatório de
Fundamentação tomou, em 2018, vários depoimentos de anciãos kinikinau a respeito da
história desta aldeia e sua localização (cf. Parte 2).
As fontes e os depoimentos dos anciãos colhidos pelo antropólogo responsável por
este Relatório de Fundamentação permitem avaliar que os primeiros vinte anos do século XX
foram cruciais para a sobrevivência dos Kinikinau. Mas as informações são contraditórias: por
exemplo, Cardoso de Oliveira (1976b: 64) informa que “até 1908 tinham uma aldeia junto ao
rio Agachi e em 1925 não havia lá mais do que 15 indivíduos, destribalizados, e de mudança
para Lalima”; contudo, o Relatorio da Inspetoria do Serviço de Proteção aos Índios de Mato
Grosso, de 1910, relata a existência de 400 Kinikinau no Agachi (apud Castro, 2010: 259).
Esse número pode ser exagerado e talvez tenha sido tomado dos registros mais antigos de
Diretores de Índios no final do Império.
O então major de engenheiros Cândido Mariano da Silva Rondon foi testemunha deste
processo – mas ao contrário da sua iniciativa em provocar o estado federado do Mato Grosso
para a delimitação de partes (mesmo ínfimas) das terras tradicionais Terena no Ipegue e em
Cachoeirinha, nada fez pelos Kinikinau – assim como também não o faria o Serviço de
Proteção ao Índio (SPI) que ajudaria a criar em 1910 e do qual foi seu primeiro diretor.
34
É ambígua a posição de Rondon a respeito dos Kinikinau23
. Sabia da existência da
aldeia do Agachi – justamente porque quando da delimitação e demarcação das “posses”
vizinhas ao Ipegue teve necessariamente que ler os documentos das “posses” porque
justamente lindeiras ao Ipegue (denominadas Cutape, Pequi, Maria do Carmo e Agachy).
Nestes documentos (ver infra, PARTE 6), duas destas “posses” apontam como limites a
“terrenos habitados pelo quiniquinaos” e “aldeia Agachy”. Os Kinikinau, como adiante se
demonstrará, foram esbulhados e escorraçados de suas terras pelos Pereira Mendes (Antônio
Leopoldo e Francisco, vulgo Chiquinho de Deus), gaúchos chegados à Miranda depois da
guerra, por volta do ano de 1880. Rondon com certeza os conheceu, senão pessoalmente, ao
menos de referências, pois os trata por “Chiquinho de Deus” e “Antônio Leopoldo” em 1904
(Rondon, 1949: 82 e 81):
Paira a dúvida do por que Rondon não deu os nomes dos fazendeiros “que se
apossaram das suas terras” quando na sua caderneta de campo de 1904 os nomeia antes da
frase-comentário sobre a “antiga aldeia dos Quiniquinau”: o fez para preservar sua pretensa
amizade com estes fazendeiros? Tinha ciência que as terras da aldeia foram tomadas pelos
Pereira Mendes violentamente e não quis se envolver ou envolver os responsáveis? Rondon
nada diz neste Relatório24
sobre as razões pelas quais a aldeia Kinikinau no Agachi foi
23
Como o foi também em relação aos Terena do Ipegue e Cachoeirinha, ao tratar com (e ceder aos) fazendeiros
vizinhos (a quem conheceu pessoalmente) partes dos territórios tradicionais daquele povo indígena, já que
estabeleceu como norma para os dois casos buscar as “sobras” das medições ilegais (grilos cartoriais, como
demonstrado nos RELATÓRIO DE FUNDAMENTAÇÃO do GT estabelecido pela Portaria
1.155/PRES/FUNAI para Taunay-Ipegue e Cachoeirinha) feita pelos “vizinhos”. Rondon consegue que o
governo do estado do Mato Grosso o contrate para estas medições em 1905, um ano depois (1904) de constatar o
esbulho de que foram alvo os Kinikinau.
24
Na verdade, pelo estilo do texto é bem razoável supor de se tratar da sua caderneta de campo. Publicada muito
tempo depois, em 1949, sob a o nome de “Relatório”, também é possível supor que o texto é um composto de
trechos das cadernetas de campo da Comissão das Linhas Telegráficas do Mato Grosso com, quiçá, textos
complementares de Rondon.
35
“abandonada”. Contudo, é digno de nota que na página seguinte (83) Rondon traça o célebre
retrato da servidão a que estavam submetidos os terena (e os kinikinau, os laiana e os guaicuru
–vide supra) e a aguda análise de como era, no início do século XX, a política administrativa
na região de Miranda-Aquidauana:
"Nos povoados e vilas a polícia está sempre nas mãos dos próprios
fazendeiros, que são as autoridades, já como juízes de Paz, já como
Delegados e subdelegados. Os soldados são por eles mesmos engajados e
desde então considerados seus próprios camaradas (...). Não pode haver
fiscalização contra esses abusos, porque há verdadeira solidariedade entre
os ricos que se revezam nesse usufruto" (Rondon, 1949: 83-84).
O desapreço e omissão do Estado brasileiro para com os Kinikinau tem início, pois
com Rondon e segue com o SPI, que os trata desde pelo menos 1920 como “desaldeados” e
“sem terra”. À demanda da comitiva daqueles índios em 1920 (Documento 9, infra) ao
encarregado do SPI no Bananal pela verificação de “sobras” ou “reserva” entre as fazendas
mencionadas, nenhuma providência foi tomada pelo SPI. Ou por outra: providenciou-se o
abrigo a três famílias nas terras Terena do Taunay-Ipegue. E assim o Estado brasileiro desde
1904 viria a contribuir para instaurar a diáspora Kinikinau.
PARTE 2 Habitação Permanente
Introdução: “marco temporal”, “esbulho renitente” e indigenato
11.1. O marco temporal de ocupação. A Constituição Federal trabalhou com
data certa - a data da promulgação dela própria (05 de outubro de 1988) -
como insubstituível referencial para o dado da ocupação de um determinado
espaço geográfico por essa ou aquela etnia aborígene; ou seja, para o
reconhecimento, aos índios, dos direitos originários sobre as terras que
tradicionalmente ocupam. 11.2 O marco da tradicionalidade da ocupação. É
preciso que esse estar coletivamente situado em certo espaço fundiário
também ostente o caráter da perdurabilidade, no sentido anímico e psíquico
de continuidade etnográfica. A tradicionalidade da posse nativa, no entanto,
não se perde onde, ao tempo da promulgação da Lei Maior de 1988, a
reocupação apenas não ocorreu por efeito de renitente esbulho por parte de
não-índios. Ementa da PET 3.388/RR - Raposa Serra do Sol, item 11, trechos
– grifo nosso).
Dizem que o judiciário (em qualquer parte do mundo) age (seu agir é uma fala) em um “jogo
de linguagem”. Essa assertiva se revela de modo claro e distinto no exercício de exegese dos
Ministros do STF quando do julgamento da Pet. 3.388. José Afonso da Silva (2015)
desmontou o jogo de linguagem implícito nas fala acima de forma brilhante:
36
Se são "reconhecidos25
(...) os direitos originários
sobre as terras que tradicionalmente ocupam" (como
reza o caput do artigo 231 da CF de 1988, nota-se), é
porque já existiam antes da promulgação da
Constituição. Se ela dissesse: "são conferidos, etc.",
então, sim, estaria fixando o momento de sua
promulgação como marco temporal desses direitos26
.
Da mesma forma – e substituindo o exemplo dado por José Afonso da Silva (“são
conferidos”) por aquele de “assegurada” que aparece no artigo 186 da Constituição Federal
de 1967: “É assegurada aos silvícolas a posse permanente das terras que habitam e
reconhecido o seu direito ao usufruto exclusivo dos recursos naturais e de todas as utilidades
nelas existentes”. Daí sim se pode falar, como o fez Ministro Victor Nunes Leal “na data da
Constituição”27
. A exegese forçada no julgamento da Pet. 3.388 do “marco temporal” se
aplicaria se, e somente se, tratasse da CF de 196728
– mas nunca na CF de 1988. Aqui o
texto diz que a sociedade brasileira reconhece que os direitos territoriais indígenas valem
antes da Constituição e, além do mais, estes direitos são “imprescritíveis”, isto é, valem em
qualquer tempo. Não se pode pressupor que direitos “imprescritíveis” vigorem a partir de
determinada data! O “jogo de linguagem” utilizado por muitos dos Ministros do STF no
julgamento da Pet. 3.388, como apontou José Afonso da Silva, tinha por objetivo deturpar os
direitos indígenas originários:
Mesmo assim, para bem realçar esse corte prejudicial aos direitos dos
índios, vou transcrever uma passagem do voto do Min. Gilmar Mendes, in
verbis: "Importante foi a reafirmação de marco do processo demarcatório,
25
“Reconhecer: Conhecer novamente (quem se tinha conhecido noutro tempo)” – Pequeno Dicionário
Brasileiro da Língua Portuguesa, organizado por Hildebrando de Lima e Gustavo Barroso, revisto por Manuel
Bandeira e José Baptista da Luz e consideravelmente aumentada por Aurélio Buarque de Hollanda Ferreira, 9ª
Edição, Editora Civilização Brasileira, 1951. 26
José Afonso da Silva, 2015 Parecer solicitado por MANUELA CARNEIRO DA CUNHA, Professora
Titular Aposentada da FFLCH da USP, SAMUEL RODRIGUES BARBOSA, Professor da Faculdade
de Direito da USP, a ASSOCIAÇÃO DOS JUÍZES PELA DEMOCRACIA, o CENTRO DE
TRABALHO INDIGENISTA, o INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL, a ORGANIZAÇÃO INDIO É
NÓS e o CENTRO DE ESTUDOS AMERÍNDIOS da USP 27
Se os índios, na data da Constituição Federal, ocupavam determinado território, porque desse território
tiravam seus recursos alimentícios, embora sem terem construções ou obras permanentes que testemunhassem
posse de acordo com nosso conceito, essa área, na qual e da qual viviam, era necessária a sua subsistência... Se
ela foi reduzida por lei posterior; se o Estado a diminuiu de dez mil hectares, amanhã a reduziria em outras dez,
depois, mais dez, e poderia acabar confinando os índios a um pequeno trato, até o terreiro da aldeia, porque ali
é que a 'posse' estaria materializada nas malocas (...). Entendo, portanto, que, embora a demarcação desse
território resultasse de uma lei do Estado, a Constituição Federal dispõe sobre o assunto e retirou do Estado
qualquer possibilidade de reduzir a área que, na época da Constituição, já era ocupada pelos índios, ocupada
no sentido de utilizada por eles como seu ambiente ecológico. Voto do Ministro Victor Nunes Leal - STF,
Ementário nº 480/1969 – (grifos nossos)27
.
28
Ou ainda a Constituição de 1934 quando em seu artigo nº 129 afirmava que “Será respeitada a posse das
terras dos índios que nelas habitam permanentemente”.
37
a começar pelo marco temporal de ocupação. O objetivo principal dessa
delimitação foi procurar dar fim a disputas infindáveis sobre as terras,
entre índios e fazendeiros, muitas das quais, como sabemos, bastante
violentas".
Fica claro, por esse texto, que o objetivo do marco estabelecido não é a proteção
dos direitos dos índios, ainda que essa proteção seja uma exigência da Constituição, que
até determina competir à União demarcar as terras, proteger e fazer respeitar todos os seus
bens. A Constituição o diz no caput do art. 231, mas o Supremo Tribunal Federal diz o
contrário em última instância. Fica claro também que o objetivo enunciado é o de dar fim
a disputas infindáveis sobre as terras não pelo cumprimento da regra constitucional que
manda proteger e fazer respeitar todos os bens dos índios, ou seja, não pela coibição e
repressão aos usurpadores, mas pela cassação dos direitos dos índios sobre elas. Fica
claro ainda, segundo esse voto, que os conflitos entre índios e fazendeiros devem ser
resolvidos em detrimento dos direitos dos índios, sem se levar em conta as normas
constitucionais que os protegem! (Afonso da Silva, Parecer. p. 10).
O mesmo Ministro Gilmar Mendes já se expressou em outros momentos que a não
imposição do “marco temporal” equivaleria a por em disputa até as terras do vale do
Anhangabaú ou da Guanabara. Eis aí a típica distorção semântica de julgadores envolvidos
em “jogos de linguagem”: os povos indígenas que poderiam ter a memória da ocupação dos
lugares mencionados foram extintos, como deveria saber o ilustre Ministro.
Outra ficção dos “jogos de linguagem” dos julgadores da Pet. 3.388 diz respeito ao
que definiram como “renitente esbulho”, ficção necessária para dar fundamentação à tese do
“marco temporal”:
"11.2. O marco da tradicionalidade da ocupação. É preciso que esse estar
coletivamente situado em certo espaço fundiário também ostente o caráter da
perdurabilidade, no sentido anímico e psíquico de continuidade etnográfica. A
tradicionalidade da posse nativa, no entanto, não se perde onde, no tempo da
promulgação da Lei Maior de 1988, a reocupação apenas não ocorreu por efeito
de renitente esbulho por parte de não-índio".
Aqui a distorção semântica para favorecer o usurpador/expropriador é mais do que
clara: o ônus da prova recai sobre os índios que devem provar, em última instância
judicialmente , que se opuseram ao esbulho até a data de 08 de outubro de 1988. Como bem
assinalou José Afonso da Silva:
Aí se vê a conjugação dos dois conceitos, pelos quais se subtraem os
direitos dos índios em favor de usurpadores de suas terras. Há vários
38
absurdos anti-índios nessa configuração do renitente esbulho. O
primeiro, bastante sutil, é esse modo de exprimir os termos do
conceito: renitente esbulho em vez de esbulho renitente, pondo o
destaque na qualificadora, para irrogar os ônus sobre a renitência,
com o que impõe aos índios esbulhados a obrigação de provar os
fatos. O segundo, e grave, é a utilização do conceito de esbulho num
contexto que não lhe cabe, como veremos, como se se tratasse de um
conflito de posse do direito civil. O terceiro é essa ideia de que o
conflito, mesmo iniciado no passado, tem que persistir até o marco
temporal; quer dizer, forja-se um marco temporal deslocado para o
último elo da cadeia jurídicoconstitucional que reconheceu os
direitos indígenas, deixando ao desamparo os direitos que as
Constituições anteriores reconheceram, e daí se exige que os índios
sustentem um conflito ao longo do tempo, inclusive na via judicial,
para que os seus direitos usurpados sejam restabelecidos. O quarto é
essa exigência de que o conflito se materialize, pelo menos, por uma
controvérsia possessória judicializada, como se se tratasse de uma
disputa dentre dois possuidores tutelados pelo direito civil, mas os
indígenas não são possuidores nesse sentido. É uma torção semântica
calamitosa essa de tratar o indigenato, ou seja, os direitos originários
dos índios sobre as terras que ocupam, como se se tratasse de posse
do direito civil. (Afonso da Silva, p. 11-12 – grifo nosso).
Agora bem: quando se trata de povo indígena que, segundo “seus costumes, usos e
tradições”, não tinha ou tem por vocação a disputa conflituosa – caso dos Kinikinau, como
aqui será fartamente documentado – como caracterizar o “renitente esbulho” de que foram
alvo? Aqui se demonstrará, ao contrário do que “o jogo de linguagem” dos julgadores da Pet.
3.388 buscou fixar, que o esbulho do lado dos expropriadores ocorreu com renitência desde
1900. E, sobretudo – e posto que os Kinikinau não estão “extintos” – se demonstrará que a
memória indígena do território esbulhado é ainda viva e plena de sentido – não cabendo aqui,
pois, a diatribe do Ministro Gilmar Mendes acima mencionada.
Outro ponto fundamental nesta argumentação é colocado por Gilmar Ferreira Mendes,
então Procurador da República, em parecer lavrado por solicitação do Procurador Geral
Sepúlveda Pertence (Mendes, 1987, cópia anexa):
19. Não obstante, colocam-se algumas questões que podem causar embaraço, sob
o prisma da dogmática jurídica. A primeira indagação diz respeito à validade, ou
não, dos títulos incidentes sobre terras indígenas concedidos antes da promulgação
da Constituição de 1934. Outro ponto controvertido concerne à situação jurídica
das terras que, na vigência da Constituição de 1934, eram ocupadas pelos
silvícolas e vieram a ser alienadas a terceiros.
20. Parece isento de dúvida que os títulos dominiais concedidos antes do advento
da Constituição de 1934 estão abrangidos pela declaração de nulidade que do
texto constitucional dimana. Assim, com a disposição do art. 129, da Constituição,
39
opera-se uma peculiar e rara espécie de nulidade, a chamada nulidade
superveniente ("Nachtrãgliche Nlchtigkeit) (Werner Flume, Das RechtsgeschMft,
vol. II, Berlim, 1979, p. 550). Trata-se de inequívoco exemplo de uma "lei de
proibição" ("Verbotsgesetz"), que alcança situação já estabelecida (Cfr. Flume,
Ob. cit., p. 550).
21. Nesse sentido, é, igualmente, o magistério de Pontes de Miranda, verbis:
"São nenhuns quaisquer títulos, mesmo registrados, contra a posse dos
silvícolas, ainda que anteriores à C o n s t i t u i ç ã o d e 1 9 3 4 ,
s e à d a t a d a p r o m u l g a ç ã o havia tal posse. O registro
anterior de propriedade é título de propriedade sem uso e sem
fruição". (Comentários à Constituição de 1967/69, t. VI, 1972, p. 457 –
negrito nosso).
22. Vê-se, pois, que as terras ocupadas pelos silvícolas, que, sob o regime da
Constituição de 1891 haviam sido concedidas pelos Estados a particulares ou
que ainda que davam como se devolutas fossem, no patrimônio da unidade
federada, passaram com a Constituição de 1934, irreversivelmente, para o
domínio da União.
No caso de desafetação ou desdestinação de terras ocupadas por indígenas aponta
ainda o Procurador Gilmar Ferreira Mendes:
30. A norma referida29
contém, todavia, uma ressalva de fundamental
importância. Verifica-se a desdestinação ou a desafetação apenas das
terras espontaneamente abandonadas pelos silvícolas. Subsiste íntegro,
portanto, o caráter indígena das áreas onde se tenha verificado a
desocupação forçada, violenta e criminosa. Em qualquer hipótese, não se
pode colocar em dúvida o domínio inquestionável da União.
E em um resumo que, pode-se dizer, definitivo, disserta o Procurador Gilmar Ferreira
Mendes (1987):
32. Do que ficou assente, pode-se concluir, de forma precisa e escorreita, que:
a ) as terras indígenas não integravam o patrimônio estadual, mesmo na vigência
da Constituição de 1 891 ;
b) a teor do disposto no art. 129, da Constituição de 1934 (e, posteriormente, do
art. 154; da Carta de 1937 e no art. 216, da Constituição de 1946 ), a propriedade
da união sobre as terras ocupadas pelos silvíco1as constitui expressão do ato-fato
relativo à posse;
c) embora a demarcação das terras indígenas tenha resultado, eventualmente, de
uma lei estadual, não se reconhece à unidade federada o poder de reduzir a área,
que na época da promulgação da Constituição, era ocupada pelos índios como seu
ambiente ecológico;
29
Trata-se do artigo nº 21 do Estatuto do Índio de 1967 que diz: “As terras espontânea e definitivamente
abandonadas por comunidade indígena ou grupo tribal reverterão, por proposta do órgão federal de assistência ao
índio e mediante ato declaratório do Poder Executivo, à posse e ao domínio pleno da União”
40
d) os atos legislativos estaduais que estabeleceram os limites das áreas ocupadas
pelos indígenas, bem como as transcrições no Registro Imobiliário, têm, portanto,
caráter meramente declaratório, uma vez que o domínio aqui é mera expressão da
posse permanente;
e) o reconhecimento da situação dominial, de forma reduzida, não obsta a que se
postule ou a que se proceda à sua ampliação, pelas vias legais;
f) os títulos dominiais concedidos antes do advento da Constituição de 1934
foram atingidos pela chamada nulidade superveniente, que decorre da regra
expressa no seu art. 129;
g) as terras ocupadas pelos silvícolas que, sob o regime da Constituição de I89I,
integravam o patrimônio coletivo indígena, passaram, com a promulgação da Carta
de 1934, em caráter irreversível, para o domínio da União (Cfr. Decreto nº 736/36,
art. 3º, alínea 'a');
h) a concessão de títulos dominiais em terras ocupadas pelos indígenas após o
advento da Constituição de 1934 é írrita, de nenhum efeito'
i) a expulsão, o homicídio ou o genocídio de silvícolas não tem o condão de
convalidar os títulos originariamente nulos concedidos a partir de 16 de julho de
1934;
j) assim, em caso de desafetação ou desdestinação das terras de domínio federal
anteriormente ocupadas pelos silvícolas, inevitável se afigura a reversão ao
domínio pleno da União;
k) toda e qualquer discussão sobre a existência ou não de posse indígena e, por
conseguinte sobre a caracterização ou não de domínio federal, há de remontar,
inevitavelmente, aos idos de 1934, quando o constituinte houve por bem
consagrar o domínio da União sobre as terras de ocupação indígena.
A demonstração de que os argumentos jurídicos acima expostos se aplicam
integralmente ao povo Kinikinau e a sua ocupação na região do Agachi será objeto do tópico
a seguir.
2.1 A ocupação Kinikinau no Agachi: sua continuidade histórica segundo documentos
do SPI e a memória indígena
As 7:1/2 horas da manhã decampou-se, caminhando por 2 leguas em terrenos
planos ás vezes, em outras ondulados até o pouso do Uagaxi, onde chegou-se ás 11
horas da manhã, formando-se o acampamento na margem esquerda do córrego do
mesmo nome, que n'este tempo mal deu agua para a força. Vai este, engrossado
por pequenos contingentes, passar no caminho entre Lauiâd e Ponadigo e banhar
a pequena aldêa de Quiniquináos em Uagaxi, a qual fôra destruida pelos
paraguayos, indo os indios refugiar-se nas brenhas da serra de Maracajú..
(TAUNAY, 1875: 275).
41
A estrada até Lauiad dirige-se directamente para léste; atravessa a torrente do
Betemigo, do Enagaxigo e do Ponadigo, nas margens dos quaes existiram aldeias
indígenas. (PEDRO AMÉRICO DE FIGUEIREDO E MELLO, 1871: 23).
Da mesma forma que ocorreu com os Terena no Ipegue30
, os Kinikinau, finda a
guerra, retornaram à sua destruída aldeia no Agachi. As provas cabais deste retorno
encontram-se nos documentos analisados na Parte 6 deste RELATÓRIO DE
FUNDAMENTAÇÃO (infra).
Em 1920 documento enviado à Inspetoria do SPI em Campo Grande, de lavratura do
servidor do SPI, Roberto Vieira dos Santos Wernek, solicitava providências para a
regularização das terras dos Kinikinau no Agachi, ao mesmo tempo em que estimulava 03
famílias a se estabelecerem na aldeia Bananal reproduzido no Documento 0931
abaixo:
30
“Acerca do índio da Tribo Terena, de nome José Caetano, de quem trata o ofício de V.Exª de 7 do corrente
(do ano de 1871), cujo recebimento tenho a honra de acusar, o que sei e posso afirmar é que o dito índio com
mais alguns da sua tribo, em número de 17 (e) Pedro Tavares, capitão da aldeia do Ipegue, no distrito de
Miranda (contaram) que na ocasião da invasão paraguaia não só sua tribo como todas as outras, e mais
habitantes do distrito, abandonaram os seus lares e retiraram-se para os montes e bosques, onde permaneceram
por 6 anos; que ultimamente voltando seus moradores a reocuparam seus domicílios, esses Terenas
encontraram sua aldeia do Ipegue ocupada por Simplicio Tavares, por sua autonomásia Piché, o qual lhes
obsta a repovoarem e lavrarem suas antigas terras e de seus antepassados; pelo que vinham pedir providências
para não serem esbulhados de suas propriedades das quais não podiam desprender-se. Um outro índio da
mesma tribo, de nome Victorino, que farda-se como alferes, e pertence à aldeia do Nachedache, distante do
Ipegue uma légua, fez-me igual reclamação.” (Ofício do Diretor dos Índios do Distrito de Miranda ao
Presidente da Província do Mato Grosso, datado de 09 de novembro de 1871 – Livro copiador das cartas
expedidas pela Diretoria Geral dos Índios – 1848-1880 - Arquivo Público do Estado do Mato Grosso)
31
Museu do Índio, Acervo Digital – IR 6, 080-Bananal – Caixa 198, Planilha 026. Acessível em:
http://www.docvirt.com/docreader.net/DocReader.aspx?bib=MI_Bibliografico.
42
43
Portanto, em 1920 os Kinikinau já delimitavam para o Estado brasileiro suas terras no
Agachi, as quais habitavam desde antes da guerra com o Paraguai: eram suas as terras
delimitadas pelas fazendas Ponadigo, Imbauval e Paraíso – como se verá em detalhes na
Parte 6 deste RELATÓRIO DE FUNDAMENTAÇÃO.
44
Relatório datado de 1919 da lavra do Inspetor do SPI José Gomes Silva Jardim
confirmava que os Kinikinau estavam estabelecidos “(...) no município de
Aquidauana, (e que) são eles os maiores e melhores agricultores” – reforçando a
justificativa para transformar a reserva do Bananal (Taunay-Ipegue) em uma
''colônia''. Cinco anos depois, essa intenção não havia sido concretizada pelo SPI;
entretanto a ideia permanecia em pé, uma vez que existiam grupos que tinham
perdido suas terras e aldeias:
Encontramos os alicerces de uma futura grande povoação indígena.
Sua principal vida é a pecuária que está por sistematizar para torná-la
indústria de eficazes lucros. A lavoura não foi abandonada: a cana-de-
açúcar, (...) em consideração do que peço-vos seja o posto de Bananal
transformado em Povoação Indígena que circundada pelas aldeias do
Ipegue, Cachoeirinha, Brejão poderá ser abrigo de outras tribos, hoje
esparsas sem terras como os Quiniquinaos, os Guaicurús e outros.
[Relatório do ano de 1919 dirigido ao Inspetor Horta Barbosa, p. 40
citado em Memória do SPI: textos, imagens e documentos sobre o Serviço
de Proteção aos Índios (1910-1967), p. 386 – grifo nosso].
O servidor Roberto Werneck, como ficou explícito no Documento 9 acima, convidara
três famílias kinikinau a virem se estabelecer na aldeia Bananal, como de fato o fizeram
(dentre as quais, os Rodrigues – vide genealogia no Anexo).
Cardoso de Oliveira indica que essa sugestão foi seguida por muitos Kinikinau que
vão se ajuntar aos Terena, Laiana e Guaicuru nas terras reservadas pelo estado do Mato
Grosso, sobretudo em Lalima32
e Cachoeirinha, ambas em Miranda. Estas terras foram as que
abrigaram um maior numero de Kinikinau depois de sua expulsão do Agachi (Cardoso de
Oliveira, 1976b: 12). O autor citado afirmava que “os remanescentes (sic) Kinikinau de
Cachoeirinha (...) encontram-se agrupados em três grupos domésticos (dados de 1960 – como
observação o autor) e em uma única parentela, originária de um único grupo local chamado
Paraíso33
. Seus componentes mantêm viva o que se poderia chamar de ‘identidade histórica’,
pois comumente, e inclusive durante na ocasião do censo, fazem questão de se identificar
como Kinikinau de modo a contrastarem sua identidade com a dos seus vizinhos Terena”
(Cardoso de Oliveira, 1976b: 11-12 – grifo nosso). E dizia este autor em outro livro, que
32
Que o servidor Roberto Werneck do SPI diz, em 1922, terem sido reservadas pelo governador Theodoro
Rondon em 1892 para os Guaicuru – cf: telegrama arquivado no Acervo do SPI: IR 6 – 083 Cachoeirinha, Caixa
199 - Planilha 001 - http://www.docvirt.com/docreader.net/DocReader.aspx?bib=MI_Arquivistico.
33
O autor esqueceu-se de mencionar (pois o sabia com certeza) que “Paraíso” é o nome da fazenda que
pertencia a Francisco Pereira Mendes (o “Chiquinho de Deus” de Rondon – cf. supra) no córrego Agachi e
corresponsável pela expulsão dos Kinikinau da região que ocupavam tradicionalmente.
45
“(dos) grupos Guaná, além dos Terena – que sobreviveram, como grupo, até a primeira
década deste século (XX, nota nossa) – sobreviveram os Kinikinau, que até 1908 tinham uma
aldeia junto ao rio Agachi. Em 1925 não havia lá mais de 15 indivíduos, destribalizados, e de
mudança para Lalima” (Cardoso de Oliveira, 1976a, p. 64 – nota 12, grifo nosso).
No Relatório sobre os trabalhos da “Comissão Rondon” publicado pelo SPI (Rondon,
1949) encontra-se o seguinte comentário: “A linha (telegráfica) cruzou justamente a antiga
aldeia dos Quiniquinau hoje abandonada e já invadida por fazendeiros que se apossaram
dessas terras” (p. 81). Porém, no mapa que acompanha o mesmo Relatório vê-se, no córrego
“Agachy” e no limite com a “Fazenda Agachi” a anotação “Ald. de Terenas” (Figura 1).
46
Figura 1
47
Figura 2
48
A Figura 234
é o detalhe do mapa elaborado com base nos croquis da “Comissão
Rondon” de Linhas Telegráficas. Na área circundada lê-se: “Ant. Ald. Ponadigo” nas
proximidades do rio “Agachi”. Segundo Castro (2010: 234) “(o) Relatorio da Inspetoria de
Mato Grosso, do SPI (...), de 01 de janeiro de 1920, confirma a localização de uma antiga
aldeia, próxima da fazenda Ponadigo e a perda de terras antes ocupadas pelos Kinikinau,
sugerindo o realdeamento em aldeias de outras etnias”. Ao que tudo indica, Rondon teria
deixado nas mãos de seus auxiliares a confecção do croqui do Mapa (Figura 1) que
acompanha o relatório – pois dificilmente ele trocaria a aldeia Kinikinau do “Agachi”, a qual
menciona em vários textos seus35
, por “Ald. de Terenas”.
O córrego denominado “Eponadigo” ou “Ponadigo” não foi encontrado com essa
denominação nem nos mapas da Biblioteca Nacional e nem naqueles do IBGE consultados
pela equipe responsável por este RELATÓRIO DE FUNDAMENTAÇÃO. Mas é encontrado
nos registros de títulos de posse provisórios das posses “Bahia Maria do Carmo” (requerido
por D. Anna Gertrudes de Castro – em anexo) e “São João da Barra do Agachi” (requerido
pro Francisco Pereira Mendes - anexo). O fato é que Rondon teve conversações com a
maioria destes requerentes quando dos trabalhos de instalação das linhas telegráficas, a ponto
de anotar “(a) picada atravessou o caminho para o Antonio Leopoldo 1.790 m adiante do
Laranjal” (grafado como “Laranja” no detalhe da Figura 1 acima). E ainda anota no mesmo
Relatório de 1904 (1949: 82) que “(a) Fazenda de Chiquinho de Deus foi alcança a 1.262 m
para frente desta volta do ribeirão” (se trata do Agachi). Esse “Chiquinho de Deus” seria,
como toda evidência aponta e os Kinikinau mais velhos atestam, nada mais que o gaúcho
Francisco Pereira Mendes, um dos fazendeiros que “se apossou” (nas palavras de Rondon),
das terras dos Kinikinau no Agachi e os expulsou de lá, como se verá em detalhes na Parte 6
deste RELATÓRIO DE FUNDAMENTAÇÃO.
Teófila Freitas Marques, não indígena e viúva do kinikinau Ângelo Marques (vide
na genealogia em anexo), com 83 anos (2018) e atualmente residente na aldeia Cabeceira (TI
Nioaque), conta em entrevista realizada em 27/02/2018 que seus sogrosPedro Marques e
Helena Anastácio, ambos kinikinau, contavam dessa aldeia no Agachi – seu sogro nascera alí,
segundo contavam, e que foram expulsos por um fazendeiro apelidado “gaucho”.
34
BRASIL. Ministério da Guerra. Serviço de Conclusão da Carta de Mato Grosso. Carta do Estado de Mato
Grosso e regiões circunvizinhas. Rio de Janeiro, RJ: Ministério da Guerra, 1952. 1 mapa em 8 f, 88 x 78.
Disponível em: <http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_cartografia/cart341767/cart341767.pdf>. Acesso em:
26 mar. 2018. 35
Rondon e Faria, 1948: p. 21, onde lê-se no quadro sobre as “tribos silvícolas”, no item 55, “Quiniquinau -
Habitat: Rio Agachi, Afl. do rio Aquidauana”
49
Florêncio e Salú Rodrigues (vide genealogia), moradores da aldeia Morrinho (TI
Taunay-Ipegue) com 74 e 68 anos respectivamente em 2018 (02/03, data da entrevista) são
filhos de Ricardo Rodrigues, kinikinau falecido há muito e que havia morado no Acurizal (cf.
Parte 6) nos anos 1915-20 até por volta de 1950 quando foi para a TI Cachoeirinha – como
consta no Documento 11 abaixo. Eles contam que a avó deles, Virgília Rodrigues (vide
genealogia) falecida com 101 anos de idade em 1998, contava-lhes que havia nascido e
morado no “Agachi velho”, em região próxima onde hoje está instalado o Posto Pioneiro (de
fornecimento de combustíveis), no km 531 da BR 262 nas imediações do córrego Agachi.
Contava-lhes que o lugar era muito bom, com terras boas e que os fazendeiros as haviam
tomado.
Documento 1036
O documento acima, de 1955, anota que a idade de Ricardo Rodrigues e da sua mulher
Virgília Rodrigues é “ig”, ou seja, ignorada – demonstração cabal de que se tratava de pessoas
sem registros oficiais no Posto do Ipegue. Contudo, em outro documento, este tratando de
censo nominal da população de Cachoeirinha em 1953 aponta as idades de Ricardo e Virgília
Rodrigues:
36
Museu do Índio- FUNAI, Acervo do SPI - IR5 -090 IPEGUE, Caixa 12, Planilha 110(1), pags. 99-101
50
Documento 1137
Ricardo e Virgília (ou Vergília) Rodrigues, pelo que consta no Documento 11, teriam
nascido, pois, em 1888 e 1897, respectivamente. À época do processo de expropriação das
terras dos Kinikinau no Agachi, entre 1900-1915, teriam de 12/27 anos e 3/18
respectivamente – o que torna factível o relato que D. Virgília fazia a seus netos a respeito da
“aldeia velha” no Agachi.
Outro ponto importante diz respeito a uma morada no Acurizal, num lugar conhecido
como “Chiquero”, próximo da estrada que levava do Ipegue à Cachoeirinha. A informação
sobre o morador desta localidade foi passada à equipe pelo senhor Paulo Farias, terena de 83
37
Museu do Índio, Acervo SPI, IR 5, 083 CACHOEIRINHA, Caixa 05, Planilha 044, Documento 58.
51
anos de idade e morador da aldeia Água Branca (TI Taunay-Ipegue). Interessante em vista do
Documento 1238
abaixo datado de 1942:
38
Museu do índio, Acervo SPI, IR 5, 099 VANUIRE, Planilha 226(1), Documentos 116-117.
52
O lugar denominado Acurizal (no documento acima denominado Tapera do Acurisal)
é tido como limite das “terras ocupadas pelos Quiniquinaos” com as posses “São João da
Barra do Agachy” e “Agachy” requeridas por Francisco Pereira Mendes (o famigerado
“Chiquinho de Deus” já citado acima) – como se verá em detalhes na Parte 6 deste Relatório
de Fundamentação. A hipótese da “tapera do Acurisal” mencionada no Documento 12 ter
sido na realidade um assentamento Kinikinau é reforçada com o depoimento do senhor Paulo
Farias, ao nominar o kinikinau “Totó” (Antonio Pereira, possivelmente o avô materno de dona
Zeferina Moreira – vide genealogia) como o morador do lugar e que o Inspetor Horta Barbosa
não lembrava o nome39
. Na ocasião (1942) o morador tinha mulher e sete filhos.
Leôncio Anastácio (vide genealogia), já falecido, em depoimento ao professor Rosalvo
de Souza:
Um tal de Gaúcho (possivelmente o apelido de Antonio Leopoldo Pereira Mendes) e
seus capangas começaram a visitar nossa aldeia dizendo que aquelas terras foram
todas compradas por ele e que nos deveríamos desocupa-las, pois se não o fizéssemos
o nosso gado começaria a morrer aos poucos e nós também. O SPI nada fez para
impedir essa situação, quando meus pais o procuraram. Aos poucos a boiada do
Gaúcho foi tomando conta do nosso campo e não era aceita conversa com ele, mas os
capangas nos recebiam com tiros de espingarda e fuzis (Leôncio Anastácio apud
Souza, 2008).
Gonçalo Cabroxa, ancião kinikinau nascido em 1926 e morador no Lalima, conta em
entrevista concedida à equipe em 01/03/2018 que seu avô, José Cabroxa, era nascido na
região do “Imbauval” em terras depois compradas por Casemiro Câmara (cf, Documento 9,
supra). Gonçalo relata que seus avós eram cativos, era tempo do cativeiro, onde cada
fazendeiro tinha três, quatro famílias indígenas presa ( cativa) nas contas. Pode-se supor, com
algum grau de segurança, que os Cabroxa depois da expulsão e dispersão da aldeia do Agachi
foram “doados” pelos Ferreira Mendes ao fazendeiro vizinho, como era a prática no período
(final do século XIX – primeira década de 1900) – prática aliás descrita por Rondon, como
vimos (supra, p. 33).
Pode-se inferir pelo que foi até aqui apresentado, em documentos e depoimentos, que
no período que vai de 1900 (Rondon diz “há muito abandonada” em 1904) a 1925 (Cardoso
de Oliveira, 1976a: 64) os Kinikinau da aldeia do Agachi foram pressionados a deixarem o
39
Em resposta ao coronel Horta Barbosa ao ofício antes citado (Documento 12), o encarregado Ibiapina
confirma que o morador era Antonio Pereira , por apelido “Totó” - Museu do índio, Acervo SPI, IR 5, 099
VANUIRE, Planilha 226(1), Documentos 121-122.
http://www.docvirt.com/docreader.net/DocReader.aspx?bib=MI_Arquivistico&PagFis=124756&Pesq=Antonio
%20Pereira.
53
local pelos pecuaristas Francisco e Antônio Leopoldo Pereira Mendes e posseiros vizinhos –
com a conivência das autoridades judiciais e administrativas do município de Miranda.
Para os Kinikinau de São João pode-se afirmar que, de um lado, a aldeia de
Agachi constitui o lugar de referencia da existência do grupo no passado. As
lembranças estabelecidas mostram essa localidade como um lugar primordial
na produção de uma memoria sobre a história dos Kinikinau, e a partir da
expulsão da região de Miranda que o grupo recorda o seu passado. Os
entrevistados foram unanimes em afirmar a Aldeia de Agachi como a terra dos
seus ancestrais (Castro, 2010: 199).
Desde “antes da guerra” (com o Paraguai) os Kinikinau tinham lá um dos seus
territórios tradicionais como já demonstrado nas Partes 1 e 2 (supra); ao final do conflito, os
Kinikinau retornaram ao Agachi onde tem sua aldeia mencionada nos documentos de “títulos
provisórios de posse” de três imóveis: “São João da barra do Agachi”, “Baia Maria do
Carmo” e “Ponadigo” (todos solicitados ao juízo de Miranda depois de 1890 – portanto, logo,
depois da promulgação da Constituição de 1889 – ou por causa disso mesmo). Fica, pois,
evidente ao se analisar os documentos e mapas apresentados neste tópico que tanto os
proprietários, quanto as autoridades estaduais e municipais, e ainda o próprio major de
engenheiros Cândido Mariano da Silva Rondon, foram autores diretos (ou coniventes) com o
processo de expropriação das terras dos Kinikinau no Agachi e que, posteriormente, o Estado
brasileiro (SPI, depois a FUNAI) foi omisso em restituir-lhes suas posses naquela região –
pois desde pelo menos 1920 vem protelando seu dever de requerer as terras tradicionais
daquele povo indígena no Agachi.
2.2 Os grupos locais Kinikinau hoje: seus troncos familiais e distribuição
Falando sobre o passado, os Kinikinau mostram uma memoria
referida a eventos relacionados a presença de “outros” em sua
historia, indicando que preservam suas lembranças em termos de
antes e depois de eventos específicos, com especial ênfase naqueles
vinculados ao aparecimento de novos atores sociais. Isso é
claramente perceptível nos relatos sobre a Aldeia de Agachi.
Nesses pode-se notar que uma das características mais visíveis das
suas percepções sobre o passado consiste na demonstração da
ação do grupo em contextos interétnicos, destacando aquilo que
eles fizeram e isso, de certa forma, os coloca no controle de sua
historia, e sugere a existência de uma consciência de que a
realidade social de alguma forma depende da intervenção (Castro,
2010:303, grifo nosso).
54
A pesquisa realizada pelo antropólogo responsável por este Relatório de
Fundamentação a partir dos documentos levantados no Acervo do SPI no Museu do Índio-
FUNAI permitem traçar o histórico dos destinos das famílias Kinikinau habitantes da aldeia
do Agachi depois de expulsas pelos Pereira Mendes (Francisco ou “Chiquinho de Deus” e
Antônio Leopoldo, o “Gaúcho”). Para tanto se pesquisou as certidões de nascimento e de
casamento de pessoas kinikinau, além de depoimentos de anciãos com mais de 80 anos de
idade e moradores em terras indígenas com predominância Terena e em cidades.
Iara Castro, na obra citada (2010) assim resume a diáspora Kinikinau:
De acordo com os documentos do SPI e os depoimentos colhidos, é
possível afirmar que, entre 1908 e 1925, parte do grupo Kinikinau deve
ter se deslocado de Agachi para a aldeia de Lalima; parte para
Cachoeirinha e parte ainda para o Bananal, como aponta o Relatorio da
Inspetoria do SPI de Mato Grosso, de 01 de janeiro de 1920. Outras
famílias se dirigiram para a região de Bonito (terras devolutas da fazenda
Curvelo ou ‘Corvelo’), como indica o Relatório da Inspetoria do SPI de
Mato Grosso, de 1925: o índio Pridencio que alli morava [aldeamento
em Agachi] mudou-se para os lados de Bonito (...) onde segundo ele
disse encontrou um lote de terras devolutas. Este último documento
informa também a expulsão da região do Agachi, uma vez que as terras
antes ocupadas pelos Kinikinau haviam sido compradas pelo senhor
Antônio Leopoldo Pereira Mendes que determinou que os índios alli
ficassem até terminarem suas colheitas e fizessem as suas mudanças
para outro qualquer ponto (Castro, 2010: 259-260).
“De acordo com depoimento do ancião Leôncio Anastácio ― concedido ao professor
Rosaldo de Albuquerque Souza no final de 2003 ― após a Guerra do Paraguai, os índios
Terena e Kinikinau, entre outros, sofreram sérias perseguições por parte dos fazendeiros,
posseiros e invasores. (...). Ficaram sabendo que no local chamado Corvelo havia terras
devolutas e para lá partiram (...). ‘Chegando ao Corvelo, fizeram suas casas, a terra era boa,
então começaram a plantar, mas não demorou em aparecer um suposto ‘dono das terras’
(José da Silva, 2003: 151 in Castro 2010: 262)40
.
O lugar (ou fazenda) denominado Curvelo ou Corvelo aparece citado como local de
nascimento de pelo menos um Kinikinau em documentos do SPI (Documento 13 abaixo).
Marcelo Marques filho de Pedro Marques, kinikinau nascido no Agachi (vide genealogia no
anexo), em que pese o registro apontar seu pai como “tereno”, como era de praxe em algumas
circunstâncias:
40
Leôncio Anastácio é considerado pelos Kinikinau como “pioneiro”, um dos fundadores da Aldeia de São Joao;
falecido recentemente, (teve) suas memorias reproduzidas por professores Kinikinau como Rosaldo de
Albuquerque Souza e Inácio Roberto, quando contam a historia da aldeia (Castro, 2010: 262, Nota 194).
55
Documento 1341
A história da ida de famílias Kinikinau para o Posto São João do Aquidabã (rio que faz
o limite sul da Terra Indígena Kadiwéu) é controversa; porém os registros pesquisados no
Acervo do SPI podem auxiliar a esclarecê-la. Em documento datado de 1943 (abaixo), o
encarregado do PI São João, Crecêncio de Lima Barros, informa que “(o) índio Benedito
Roza (sic) este (sic) é o primeiro povoador de S. João, veio em 1930”.
41
Acervo SPI/MI-FUNAI, IR5-São João do Aquidavão, Caixa 21, Planilha 195
56
Documento 1442
42
Acervo SPI/MI-FUNAI, IR5-São João do Aquidavão, Caixa 22, Planilha 201.
57
Reputado terena em alguns documentos, é legítimo supor que fosse kinikinau, posto
que seus filhos assim se auto identificavam, como se observa no detalhe do Documento1
(datado de 1946) e já apresentado (supra):
É possível afirmar, com alguma segurança, que a ida de famílias Kinikinau e Terena
para as margens do Aquidabã foi anterior à criação pelo SPI do Posto Indígena de
Alfabetização e Tratamento (PIT)43
“São João” (justamente na foz deste rio São João no
Aquidabã). A intenção dos Inspetores responsáveis pelo SPI na região (Engenheiro
Estigarribia e depois o coronel Horta Barbosa) era “povoar” o limite sul da “Reserva
Kadiwéu” (regionalmente conhecido como “campo dos índios”) para fins de controle daquela
“Reserva”, dada a invasão sistemática daquele trecho por fazendeiros vizinhos. O Documento
12 abaixo (cópia impressa nos anexos), de cunho do coronel Horta Barbosa e escrito em 1944
(06/01) descreve os eventos que levaram o SPI a criar o PIT “São João”.
43
“Embora com nomes diferentes, os postos indígenas (no tempo do SPI) possuíam as mesmas atribuições, ou
seja, eram as unidades de base da política indigenista praticada à época e passaram a ter uma classificação
baseada no chamado ‘grau de contato’ dos indígenas com a sociedade envolvente, prestando assistência aos
índios que estavam sendo ‘incorporados à civilização’. (...) Os PIT eram considerados os mais econômicos dos
postos indígenas e foram criados para prestar assistência aos indígenas com ‘maior grau de contato’ com a
sociedade envolvente”. (G.J. da SILVA, in Memória do SPI, 2011: 365).
58
Documento 1544
44
59
60
61
Resumindo o histórico acima feito pelo Inspetor e chefe da IR 5 do SPI, coronel Horta
Barbosa):
- desde 1929/30 o SPI pretendia defender “as fronteiras extrema dos Cadiuéos em São
João”;
- em 1930 (agosto) foi concluída a estrada de rodagem que, via “o passo do São João”,
atingiu o Pitoco;
- “por esse tempo” estava livre o Aquidabã de estranhos e lá “assentou-se um aldeia de
índios terenos em mistura com cadiuéos”;
- “entrando em colapso o SPI, sobretudo a partir de 1932” (reflexo da revolução de
1930 que isolou o SPI e sua cúpula, isto é, Rondon e seus afiliados, dentre os quais o
cel. Horta Barbosa – nota nossa), ficaram as duas aldeias (São João e “Raiz da Serra”,
ou seja, o Nalique, mais tarde Alves de Barros) “ao abandono dos poderes públicos”
até 1939, quando o coronel Horta Barbosa reassume a IR 5;
- nesse período de tempo, isto é, entre 1932 e 1939, ocorreu o assassinato do índio
Kadiwéu de nome Baguari e o ferimento de outro, na Baia das Garças, supostamente
pelo fazendeiro Vicente Jacques, conforme lhe havia relatado o índio João Moreira
(kinikinau, pai da D. Zeferina, cf, abaixo) em Cachoeirinha em 1941;
- Horta Barbosa ainda foi informado que, no mesmo período, a aldeia no São João
dispersara-se, “amedrontada”, supõe-se devido a ação do fazendeiro Jacques;
- que voltando a Inspetoria Regional 5 fortalecida (1939-40), a aldeia do São João
repovoou-se sob a chefia do terena/kinikinau Benedito Rosa;
- e que, por fim o primeiro “encarregado” (Crecêncio de Lima Barros) do PIT São
João ali chegou em 12 de maio de 1943.
Em outro documento, agora datado de 1941, o coronel Horta Barbosa comunica via
telegrama sua proposta de criação de 05 “subpostos” do SPI, entre os quais aquele “no passo
do Aquidavão no extremo sul e entrada terra Cadiuéos”:
62
Documento 1645
Dona Zeferina Moreira, anciã kinikinau de 87 anos e que reside atualmente na TI
Cachoeirinha (aldeia Mãe Terra) conta, em entrevista concedida ao antropólogo responsável
por este Relatório de Fundamentação, que teria sido mediante convite de um chefe Kadiwéu
que Benedito Rosa e família se estabeleceram no São João – e posteriormente, com Horta
Barbosa, essa iniciativa contaria com o apoio do SPI.
Por outro lado, a versão dos Kadiwéu sobre a aldeia São João pode ser conferida neste
depoimento:
“Esse São João, Aldeia de São João, já vem ha muito tempo essa historia ai.
Esses Terena vem sendo aliado com os Kadiwéu, sempre vivendo
subordinado, os Kinikinau subordinados aos Kadiwéu. Não podia fugir
porque eles tinham uma tarefa a fazer com ele, então trouxeram eles. Eles
escolheram um lugar como de agricultura e coisa e tal. O único, o recurso
mais próximo que eles mesmos acharam de tocar um recurso de agricultura,
no caso, uma lavourinha que eles fazem, e aqui para o lado do Posto
Indígena de São João [...] Então eles, os patrícios disseram: ― Então vocês
ficam aqui [...] aqui é o canto da nossa área, aqui qualquer coisa, qualquer
45
Arquivo SPI-MI/FUNAI, IR 5, 999 Vários Postos, Caixa 34, Planilha 329.
63
irregularidade que vocês veem, procurem nos localizar, nos avisar o que esta
acontecendo. Agora vocês tem obrigação, planta milho, arroz, feijão, tudo o
que se da aqui vocês planta, e nos vamos comercializar entre nós mesmos, lá
pelo rio Paraguai, por ai, tudo o que conseguirmos entregamos aqui [...] Nos
vamos negociando, isso ai, vocês ficam como vigilante nosso, como ponto
de segurança nosso. Ai toparam, onde existe o PI São João” (Martinho da
Silva Kadiweu apud Siqueira Jr., 1993: 130-1).
Em 1946, e graças à acuidade do servidor Crecêncio de Lima Barros (cf. Documento
21 infra, p: 88), se tem um retrato fidedigno dos troncos familiais kinikinau estabelecidos no
São João: os Rosa, os Anastácio, os Marques, os Pereira e os Góis (ou Góes). Por outros
documentos e depoimentos tomados aos anciões kinikinau, pode-se identificar os demais
troncos familiais que se estabeleceriam, também nos anos de 1920-30 e depois da
dispersão/expulsão do Agachi, no Lalima (os Cabroxa, Rodrigues e os Gomes); na
Cachoeirinha (os Moreira, os Ferreira, os Polidório); no Nioaque, os Marques e no Bananal
(Taunay-Ipegue) os Rodrigues e os Souza.
Documento 1746
46
Museu do Índio, Acervo SPI, IR5, 083 CACHOEIRINHA, Caixa 05, Planilha 045.
64
O Documento 1847
abaixo fornece o quadro populacional em Lalima em Dezembro de
1947, apontando a população Kinikinau ali residente em 47 pessoas.
47
Museu do Índio, Acervo SPI, IR5, 093 LALIMA, Caixa 17, Planilha 149.
65
“No conjunto dos grupos locais Terêna, Lalima aparece como uma comunidade sui generis.
A rigor nem poderia ser classificada aqui como uma aldeia do universo Terêna. Tomemos
sua composição étnica e veremos que Lalima é formada por remanescentes (sic) de origem
bastante diversa, como Guacurú, Kinikináu, Terêna, Layâna e (um casal) Kadiwéu. (...). O
nascimento dessa aldeia não é muito claro (...). pelo exame dos arquivos do Serviço de
Proteção aos Índios que obtivemos (...) dizem eles que os índios que formam a aldeia Lalima
‘são índios Guycurus, muito semelhantes aos Cadiueus não só pela língua que falam como
também pelos costumes, embora nunca tivessem relações amistosas com os mesmos; habitam
a aldeia Lalima, distante 9 léguas de Miranda, vivem em terrenos que lhes forma reservados
pela monarquia e que ainda não foram demarcados’.(...) Os dados extraídos do Relatório
Anual (1919) da Inspetoria de Mato Grosso, dão à aldeia povoada por 130 pessoas, 25
famílias e 20 ranchos (...). Todavia, o censo de 1925 dava Lalima com uma população de 261
indivíduos, o demostra um acréscimo surpreendente, só explicável pela vinda de contingentes
indígenas de outras tribos, notadamente Kinikináu e Terêna” (Cardoso de Oliveira
1976a:75-6 – grifo nosso).
De 1919 a 1925, portanto, teria dobrado a população indígena em Lalima.
66
Documento 1948
Todavia, ao longo do ano de 1926, ano seguinte ao censo consultado por Cardoso de
Oliveira, vê-se no Documento 19 acima que “24 índios foram retirados para outros Postos”.
É possível deduzir-se, coligindo os dados informados em outros documentos do SPI para a
década de 1920, que pelo menos três famílias kinikinau saíram do Lalima em 1926,
provavelmente para a região de Bonito – para o Curvelo, como alguns dos documentos aqui
mostrados indicam ou então para a “Reserva dos Cadiuéos”.
O depoimento do já citado Gonçalo Cabroxa (nascido em 1926) fornecido ao
antropólogo em 01/03/2018 é esclarecedor a este respeito. Diz Gonçalo que, segundo seu avô
José Cabroxa49
lhe contou, naquele tempo (década de 1910), “Lalima não tinha liderança, não
tinha cacique, não tinha chefe (do SPI); cada um fazia o que queria; aí botaram meu avô
depois de um tempo que ele chegou. Meus avós vieram para Lalima da Imbauval, fazenda do
Casemiro Câmara50
; era tempo do cativeiro. Naquele tempo da doação das áreas indígenas é
que vieram para cá; não vieram direto, passando antes pelo Bonfim. Só tinha guaicuru quando
chegaram, só depois é que vieram para cá terena, kinikinau, laiano”.
Tendo por base as informações contidas nos documentos e depoimentos apresentados
neste tópico, é possível reconstituir, com alguma segurança, a trajetória dos troncos familiais
Kinikinau após a sua expulsão da aldeia do Agachi (Figura 3 abaixo).
48
Museu do Índio, Acervo do SPI, IR 6, 080 BANANAL, Caixa 198, Planilha 026. 49
No Documento 17, ao lado, a título de observação, o servidor do SPI anota: “Neste ano (1947) registrou-se o
falecimento do velho índio José Joaquim Cabroxa”. 50
A dita fazenda Imbauval tinha limites com as terras dos Pereira Mendes no Agachi, conforme se verá na Parte
6, infra.
67
Figura 3
Agachi 1865-
1915
Rosa(?)
Marques
Anastácio
Pereira
Rodrigues
Gois
Moreira
Gomes
Cabroxa
São João 1935-1940
Marques
Anastácio
Pereira
Rodrigues
Gois
Lalima
1920-1940
Cabroxa Rodrigues
Gomes
Corvelo
1925(?)
Marques
Anastácio
Cachoeirinha
e Bananal-
Ipegue
1904-1910
Moreira
Rodrigues
Pereira
Ferreira
Polidório
68
A aldeia do Agachi é a referência máxima que concentra uma memória coletiva que dá
sentido à etnicidade e o sentimento de pertencimento ao povo Kinikinau. É a memória desse
lugar, dessa aldeia, que é permanente, porém não como uma lembrança nostálgica de um
passado perdido, mas como possibilidade futura de afirmação de um povo ou como indicativo
de uma identidade originada por um pertencimento a uma origem comum. Todos os
Kinikinau que o antropólogo responsável por este Relatório entrevistou têm este sentimento
muito claro. Na consciência histórica dos kinikinau mais velhos, a “aldeia do Agachi” é
permanentemente lembrada como a terra habitada por eles, a terra expropriada, mas também a
terra prometida. Novamente evoca-se aqui a comparação da saga Kinikinau com aquela do
povo judeu e sua diáspora, em que pese diferenças óbvias. A expulsão do território original, o
desaldeamento, a sina de viver como “intruso” ou “hóspede” em terra dos outros, a
urbanização como alternativa – e o sentimento sempre presente, atual, de que o retorno ao
território original é possível.
“As referencias mais comuns são aquelas vinculadas às situações socio-historicas mais
recentes, como a traumática perda da sua ultima aldeia, nas primeiras décadas do
século passado e a trajetória até a sua atual localização na Aldeia de São João em
terras Kadiwéu (ou alhures, acrescentamos), que constituem o alicerce da crença de
um passado e de ancestrais comuns, base da sua reafirmação no tempo presente e dos
seus planos para o futuro ‘para garantir nosso futuro, precisamos que toda sociedade
saiba que somos Kinikinau, (e) como povo queremos principalmente voltar para nosso
território de origem, para que tenhamos garantia de sobrevivência digna’, como
afirmou um Kinikinau de São João.” (Castro, 2010: 304).
PARTE 3 ATIVIDADES PRODUTIVAS
3.1 Atividades produtivas na situação de Reserva (ou seja, em “terra alheia”)
As atividades produtivas dos Kinikinau nas terras indígenas (“Reservas”) onde estão
abrigados provisoriamente – seja como “hóspedes” (Lalima, Cachoeirinha, Taunay-Ipegue e
Nioaque) ou “intrusos” (Kadiwéu) – seguem o padrão histórico dos Chané, que combina a
agricultura com a criação de gado, e que já foi explicitado na Parte 1 por meio de ampla
documentação.
3.1.1 A agricultura
A memória dos anciões sobre as qualidades das terras no Agachi confirmam todos os
documentos aqui expostos, do século XVII ao XX, sobre a significativa produção das roças,
do gado e das artes Kinikinau. Como no já citado documento de 1919, do Inspetor do SPI
José Gomes Silva Jardim, onde se afirmava que os Kinikinau “(...) são eles os
69
maiores e melhores agricultores”. E em seu exílio provisório no PIT São João não seria
diferente. São dezenas de “avisos” mensais enviados pelos encarregados do SPI naquele Posto
aos seus superiores, a exemplo do documento abaixo:
Documento 2051
51
Museu do Índio-FUNAI: Acervo SPI – IR 5, 096 S. João do Aquidavão, Caixa 21, Planilha 194, fls. 81-82
70
A agricultura hoje praticada pelos Kinikinau é diferente daquela que praticavam antes
da Guerra do Paraguai. Anteriormente, em Albuquerque ou Miranda, possuíam um território
suficiente para desenvolver uma agricultura itinerante, de corte e queima e posterior pousio,
por tempo suficiente para a regeneração da fertilidade natural do solo.
Atualmente, confinados nas Reservas - fator fundamental para as transformações
ocorridas em sua agricultura tradicional - os Kinikinau, seja em São João ou nas outras
Reservas, possuem campos de cultivo permanentes, utilizando-se da mecanização (tratores)
para gradagem, preparo da terra para plantio e eventualmente para a abertura de novas áreas
71
permanentes de cultivo. As práticas atualmente utilizadas são adaptações posteriores a esta
"modernização" forçada. Das atividades produtivas praticadas pelos Kinikinau onde estejam
habitando provisoriamente, a agricultura continua sendo a sua principal atividade, como o foi
no passado.
O ano agrícola inicia-se em agosto, tendo seu término em março/abril com o plantio de
feijão da "seca". A produção agrícola obtida nas áreas de roça é destinada ao consumo
familiar e, quando possível, para a venda - o que é cada vez mais raro, devido ao aviltamento
dos preços agrícolas. O feijão, a mandioca e o milho são os principais produtos plantados para
o consumo. Cultivam ainda para a subsistência, o feijão "miúdo", a abóbora, a melancia e o
maxixe, entre outras espécies.
As roças, regra geral, pertencem ao grupo doméstico (que engloba eventualmente mais
de uma família elementar). Como será detalhado na Parte 5 infra, devido a dinâmica de
sucessão pela linha paterna, os terrenos já desbravados por uma parentela agnática tendem a
ficar no domínio de irmãos consanguíneos, acentuando a patrilinearidade do sistema de
parentesco Kinikinau-Terena - e a virilocalidade da residência pós matrimonial (a esposa vai
na casa do marido, que é a do pai dele ou muito próxima ao grupo de vizinhança do mesmo);
por força desta composição, as roças de um mesmo grupo de irmãos se distribuem em áreas
contíguas, como também já informado.
Este grupo – com a autoridade do mais velho – decide sobre quando e o qual espécie
plantar e trabalham coletivamente no seu "trecho", apesar do reconhecimento da propriedade
individual de cada integrante para cada "trecho". Esta descrição serve para os grupos mais
velhos das Reservas, descendentes dos formadores das aldeias ou dos primeiros “migrantes”,
como é o caso dos Kinikinau. Estes “migrantes” – sem base ou apoio na parentela – tendem a
abrir (e foi assim no passado) roças novas em áreas concedidas pelas chefias das aldeias – e
pelos encarregados dos Postos do SPI.
A prática da agricultura hoje se dá em terrenos já abertos – e com trator. Até
recentemente (até a década de 1990) ocorria, ainda, um pequeno avanço para as áreas de
"capoeirão" (vegetação em estágio de regeneração de 15 a 20 anos) presentes no entorno das
roças abertas, através de uma técnica denominada destoca: a partir de uma área já aberta, eles
adentram a capoeira retirando os troncos mais grossos, de forma que restem os troncos finos e
os tocos das árvores. Após o corte das árvores com machado é efetuado a desgalha, retirando
os galhos mais grossos para serem aproveitados como lenha. Efetuada a limpeza dos troncos,
estes são removidos do interior das áreas de roça e destinados aos mais variados tipos de uso:
confecção de caibros, mourões e mesmo venda (madeira nobre com valor comercial). O
72
material restante nas áreas de roça (lenhoso e não lenhoso) é agregado junto aos cepos
arbóreos e queimado. Essa "destoca" gradual pode ainda ser hoje utilizada, dependendo da
disponibilidade de insumos (óleo, trator e dinheiro para o tratorista).
Não se obteve dados conclusivos a respeito do tempo de pousio das áreas de roça;
observou-se apenas que este difere intra e inter-roças, variando entre dois e três anos, porém
não levantamos dados sobre os critérios de escolha para a reutilização ou abandono destas
áreas, como porte de vegetação e tipo de solo, entre outros. As antigas áreas de roça,
submetidas a um uso mais intensivo do solo, encontram-se cobertas de capim "colonião" e são
bastante utilizadas para agricultura.
As áreas novas para agricultura, recém-preparadas, são destinadas basicamente para as
roças de milho, arroz (este nas poucas áreas naturalmente irrigadas e de terra preta) e feijão.
As áreas destinadas para o plantio destes cereais exigem uma condição de fertilidade de solo
diferenciado de outros cultivos, sendo considerada como critério para a escolha das áreas.
Junto às roças de milho e feijão (nas áreas mais altas) é observada uma grande diversidade de
cultivos consorciados, como abóbora, melancia, batata-doce, maxixe, entre outros. Estes
cultivos secundários têm a função de cobrir as áreas de solo entre os pés da cultura principal,
reduzindo assim o "praguejamento" da roça. Quando a produtividade dos gêneros principais
começa a diminuir nas áreas de roça, estas mesmas áreas, no ano seguinte, são destinadas ao
plantio dos tubérculos (mandioca, batata-doce, maxixe) e demais cultivos menos exigentes em
fertilidade do solo - por certo período, até a recuperação de parte da fertilidade do solo.
Tal como os Terena, os Kinikinau, nos lotes destinados às roças, dá liberdade para
cada grupo doméstico possa cultivar o que quiser e o quanto quiser nestas áreas. Observa-se,
no entanto, que estes lotes não são normalmente utilizados na sua totalidade. Cada lote forma
um mosaico de pequenas áreas em estágios de sucessão distintos, indicando que há um
planejamento quanto ao uso agrícola do lote em função da fertilidade do solo, mantendo áreas
em pousio para uso futuro.
A área delimitada no Agachi permitirá aos Kinikinau manterem seu sistema agrícola
operante, inclusive com a abertura de novas áreas, o que lhes permitirá ganhos de
produtividade inéditos em comparação com as roças que detêm nas Terras Indígenas
“emprestadas” onde hoje parte da sua população habita.
3.1.2 A criação de gado
Como já observado, apesar do ethos Chané se traduzir, digamos assim, na agricultura, estes
povos jamais deixaram de exercer a criação de animais, vacum e cavalar, atividade que
73
herdaram, para depois assumirem como própria, na sua prolongada convivência com os
Mbayá-Guaicuru. Este conhecimento foi fundamental, nos anos subsequentes à guerra com o
Paraguai, para a inserção de muitos Chané (Terena, Kinikinau, Laiana) como trabalhadores
semiescravos nas fazendas da região.
No tempo da aliança com os Mbyá-Guaicuru o acesso às reses parece que estava
restrito aos naati - chefes de grupos locais que tinham a prerrogativa de receber, através da
troca de suas mulheres com os "maiorais" Mbayá, bois e cavalos. Hoje este acesso restringe-
se aos Chané "bem sucedidos", isto é, que conseguiram dinheiro suficiente para comprar
algumas reses, seja através dos longos anos despendidos na changa ou por meio de outro
emprego qualquer no mundo dos purutuyé. Mas a criação é ainda sinal de status elevado
dentro das reservas Terena.
Por outro lado, a criação de gado – dada as limitações das reservas – tornou-se uma
das principais fontes de conflitos internos. E já o era também em tempos passados, visto a
divisão proposta pelo então major Rondon quando da delimitação das Reservas de
Cachoeirinha e Taunay-Ipegue, entre as áreas de roça e aquelas destinadas à criação. O
"fechamento" das áreas de pastagem no interior das Reservas foi sempre causa de conflitos
internos, pois subtrai da área comum uma parcela maior que aquelas requeridas pelas roças –
e para fins estritamente particulares, já que os rebanhos da "comunidade" introduzidos pelo
SPI foram extintos há muito. E praticamente todas mantêm uma pequena criação de galinhas,
que, junto com a carne de caça, são as principais fontes próprias (isto é, não adquiridas
externamente) de proteína de origem animal.
No São João, algumas famílias sempre possuíram seus pequenos rebanhos de gado
vacum e alguns cavalos. Até o início dos conflitos recentes com os Kadiwéu, o número deste
gado em posse dos Kinikinau ali residentes ultrapassava duas centenas.
3.1.3 A cerâmica
Além de atividade lúdica, a fabricação das peças de cerâmica é uma atividade socializadora
para as mulheres (e que não segrega os homens), porque agrega, durante seu feitio, as três
gerações de um grupo familiar. E também possui uma interface com a ecologia posto que o
barro e a lenha (para a queima) exigem terrenos e solos especiais e que são preservados pelas
ceramistas – onde essa atividade ainda é importante, como entre os Kinikinau do São João e
Terena (sobretudo em Cachoeirinha e Taunay-Ipegue). Não é com qualquer barro que faz uma
peça cerâmica de qualidade e também não é com qualquer espécie lenhosa que se faz uma boa
queima.
74
Essa atividade é ainda um complemento fundamental na renda dos grupos familiares
que exercem a atividade, sobretudo entre os kinikinau. Apesar do preço aviltado no mercado
regional, o turismo no Pantanal sul mato-grossense é importante e algumas lojas das
principais cidades da região (Miranda e Aquidauana) ofertam a cerâmica kinikinau – e
também terena e kadiwéu.
Os Kinikinau atualmente estabelecidos a aldeia São João52
têm a sua alimentação
constituída basicamente de mandioca mansa (Manihot utilissima), milho (Zea mayz), batata-
doce (Ipomoea batatas), feijão fava (Phaseolus vulgaris L), palmito (Attalea Phalerata),
peixes (diversas espécies), carne bovina e de caça, açúcar e óleo de soja. Estes dois últimos
produtos são adquiridos na cidade de Bonito ou nas cestas alimentares oferecidas pelo
Governo Estadual em conjunto com o Governo Federal.
Os anciãos Kinikinau afirmaram conhecer várias espécies de arroz, entre eles o arroz
vermelho, Oriza sativa ssp. Japônica var. fátua, que é muito resistente às intempéries da
natureza, eles o denominam de “arroz bravo”, atualmente a espécie “brava” é arrancada
quando percebida entre as outras plantas, pois o seu cruzamento com as demais pragueja6 a
lavoura. Outra espécie é a Oriza sativa ssp. Japônica var. sativa, que produz muito bem em
regiões alagadas.
De acordo com os relatos dos anciãos Kinikinau ouvidos por Albuquerque Souza
(2012: 40 e ss), eles não têm lembranças de que seus pais ou avós tivessem relatado uso de
máquinas de plantio de sementes ou de preparo da terra. Tudo era feito manualmente com o
auxílio de ferramentas como machado, foice e enxadão. A semeadura era feita com o auxílio
de um saraquá (pau-de-plantar), para perfurar o solo. Como a terra era farta e abundante,
praticavam muito o sistema de rotação de culturas e a coivara, com o local onde se cultiva
sendo usado por dois ou três anos consecutivos para depois mudar-se o local das roças para o
pousio da terra.
De acordo com os dados da entrevista realizada por Albuquerque Souza, plantavam
algumas variedades de milho conhecidas por eles, como o milho comum (Zea mayz), o milho
pintado (Zea mays ssp. mays L.) que apresentava várias colorações em uma mesma espiga e o
milho saboró ou milho doce (Zea mayz var. rugosa) que era muito apreciado pela sua maciez
e facilidade em transformá-lo em farinha. Essa espécie de milho era usada para fazer bolos e
principalmente o pixé, farinha torrada para comer com açúcar, mel, melaço de cana ou
rapadura.
52
Dados extraídos de Albuquerque Souza, 2012: 38 e ss.
75
A carne é um item indispensável na alimentação Kinikinau. Os homens são
habilidosos caçadores. Os animais mais apreciados na alimentação são Anta (Hydrochoeris
hydrochoeris), Cateto (Tayassu tajacu), Queixada (Tayassu pecari), Tatu Galinha (Dasypus
novemcinctus), Paca (Agouti paca) e Veado Campeiro (Ozotocerus bezoarticus). Outros
animais são caçados, mas a sua carne não é tão apreciada. Entre eles pode-se citar: as aves
como a Seriema (Cariama cristata), as pombas (Columba palumbus L.), os Nambus
(Crypturellus tataupa), as perdizes (Alectoris rufa), as Jaós ou Macucos (Tinamus solitarius),
Mutuns (Crax fasciolata) e Jacutingas (Pipile jacutinga). As principais restrições alimentares
relacionados à carne de animais estão nas carnes de ofídios e o Tatu Peba ou Tatu peludo
(Euphractus sexcintus) por acreditarem que esse animal ataca os cemitérios e come os restos
mortais ali enterrados.
As lavouras dos Kinikinau, para aqueles que ainda as fazem, se localizam em locais
afastados das casas, nas áreas de mata fechada, nas beiras dos córregos ou nas capoeiras.
Raramente praticam monoculturas, sempre há mais de uma espécie de plantas juntas com a
predominante. Por exemplo: numa grande lavoura de arroz é possível encontrar abóboras,
morangas, melancias, milho e ao redor, algumas bananeiras.
Atualmente não há grandes plantações de arroz (Oriza sativa ssp. Japônica var.
sativa) na aldeia São João. Mas algumas famílias fazem o cultivo em pequenas quantidades.
Segundo os plantadores de arroz, geralmente a semente é guardada de uma safra para outra.
Quem não depende das lavouras para aquisição de alimento, adquire o produto na cidade ou
nas cestas básicas oferecidas pelo governo, através do Programa de Segurança Alimentar. Os
indígenas se acomodaram e muitos não querem mais plantar, pois segundo eles, não vale a
pena sacrificar-se sob o sol e chuva se o governo já manda o alimento pronto para ser
preparado. Dessa forma, os outros itens da lavoura também deixaram de ser plantados na
quantidade de que se plantava na década de 1980.
A cana de açúcar (Saccharum officinarum L.) é muito apreciada pelos Kinikinau e por
alguns anos ela era presente nos quintais de muitas famílias que tinha um engenho. Essas
famílias a plantavam com a finalidade de produzir rapadura para vender aos visitantes e para a
própria comunidade. O engenho era feito com o tronco do barú (Dipteryx Alata), uma madeira do
cerrado e era movido por um ou dois cavalos.
Mesmo com a acomodação dos indígenas da Aldeia São João, o abandono da
tradicional lavoura, não é uma atitude de toda a população, pois na casa de um ancião, Sr.
76
Ezidio53
, que vive sozinho, podem-se encontrar diversas plantas. Este indígena vende os
produtos de sua roça para os demais membros da aldeia. Segundo ele, mesmo recebendo a
cesta do governo, continuará plantando sua roça, pois é uma forma de arrecadar dinheiro e
também garantir a boa qualidade na alimentação. Não faltam alimentos para seus animais e
nem para os vizinhos.
O mel é outro item presente na alimentação Kinikinau. De acordo com os indígenas,
sempre fizeram uso desse produto com diversas finalidades, entre elas a alimentação e
produção de remédio. Esse povo é conhecedor das diversas espécies de abelhas existentes na
região do pantanal, parte Oeste de Mato Grosso do Sul.
Os indígenas mais antigos usavam tomar o mel, geralmente da Ápis melífera, com a
gordura da anta, (Tapirus terrestres), como forma de garantir saúde e longevidade. Também
usam o mel da jataí (Tetragonisca angustula angustula) como anti-inflamatório nos ouvidos e
olhos. Durante as pesquisas realizadas por Albuquerque Souza no São João, foram
encontradas as seguintes espécies de abelhas: Jataí (Tetragonisca angustula angustula), Bota-
fogo (Oxytrigona tataira tataira), Sanharão (Trigona truculenta), Borá-amarelo (Tetragona
quadrangula), Manduri (Melipona marginata Lepeletier), Oropa (Ápis melífera), Tiquira
(Melipona Lateralis), Lambe-olhos (Leurotrigona muelleri) e outras que não são identificadas
pela população.
PARTE 4 MEIO AMBIENTE54
A Zona de inserção: o Pantanal
Considerando os grandes compartimentos do relevo brasileiro, a TI Taunay-Ipegue está
situada na Planície Pré-Pantaneira, que se separa do Planalto Brasileiro pelas escarpas da
Serra de Maracaju. No entanto, e ao contrário da planície pantaneira propriamente dita, estes
terrenos não sofrem alagamento constante, por isso foram caracterizados como de “Planície
Pré-Pantaneira”.
O chamado Pantanal mato-grossense é subdividido pelas bacias dos rios que o
compõe, formando o Rio Paraguai, desde o norte do Mato Grosso. Todos estes rios em
território brasileiro nascem nos cerrados do Planalto Brasileiro e ingressam na planície
pantaneira, abaixo de uma sequência de encostas de chapadas. Assim podemos subdividir o
53
Ezídio Marques – hoje residente na aldeia Cabeceira, TI Nioaque. 54
Este Título contou com a colaboração do geógrafo e mestre em Ecologia MAURICE TOMIOKA.
77
Pantanal em Pantanal do Alto Paraguai, do Cuiabá-Taquari, do Rio Negro, do Miranda-
Aquidauana, do Nabileque , entre outros.
A dinâmica das águas da região pantaneira define boa parte dos ecossistemas locais
quanto à cobertura vegetal, seja de floresta, de cerrados ou campos, ainda com destaque para
áreas onde predominam populações homogêneas, mais adaptadas a este regime de secas e
cheias periódicas, com maior ou menor saturação de água na camada de solo logo abaixo da
superfície. O comportamento do solo também participa da composição e definição dos
ecossistemas pantaneiros, na medida em que há solos mais ou menos permeáveis e outros
impermeáveis.
O relevo da Planície Pré-Pantaneira, com altitudes de até 200 metros, apresenta
pequenas variações de altitude. Estas pequenas variações são significativas, já que centímetros
de altura de diferença podem definir a suscetibilidade com relação às cheias. Pequenas
depressões ali servem de canal de drenagem, que é sempre intermitente. Aquelas faixas de
drenagem interrompidas são chamadas regionalmente de “vazantes”.
Dada as características de relevo e solos, os lugares livres completamente das cheias
(nunca alagados) apresentam uma vegetação mais diversificada e mais estável do ponto de
vista temporal; as regiões sujeitas a alagamentos temporários, e dependendo do volume das
cheias (o que varia de ano para ano), podem apresentar uma vegetação de mata ombrófila, e
esta tende a avançar ou reduzir-se em extensão conforme período de maior ou menor
umidade. De qualquer modo é nas áreas alagáveis onde a vegetação se modifica com maior
frequência no decorrer do tempo. Podemos, para estes casos, afirmar que uma cobertura de
vegetação pioneira é muitas vezes a vegetação principal de certas áreas.
Portanto, um dos fatores condicionantes da fisionomia da vegetação natural nesta
região é a própria dinâmica de acumulação das águas. O excesso de água no solo propicia a
formação de uma vegetação de fisionomia campestre (campos de vazante), enquanto as áreas
que acumulam menos água propiciam a formação de uma mata ombrófila. As áreas onde não
ocorre o acúmulo de água são ocupadas pelos cerrados. Dentro desta dinâmica, pode-se dizer
que uma área hoje com mata pode ter sido uma vazante, provavelmente em decorrência da
deposição/acumulação dos solos oriundos dos cerrados.
De uma forma geral, podemos compreender a vegetação dos campos de vazantes na
região do Agachi e o entorno englobado nesta proposta, como um estágio no processo de
formação de um ecossistema mais complexo: capins suportando o excesso de umidade
(primeiro estágio), junto ao capim surgem moitas de araticum (Annona coriacea) e crescem as
lixeiras (Curatella americana), árvores adaptadas a este solo encharcado. As lixeiras
78
sombreiam e formam um raizame, acumulando sedimentos. Este processo favorece a
colonização pelas primeiras árvores típicas de floresta tropical. Por outro lado, a mata
formada a partir de áreas de vazante, com as árvores de raízes tubulares, adaptadas ao lençol
superficial, originam uma estrutura onde o dossel superior é formado por ximbuas (timbiuba-
Enterolobium sp.), angicos (anadenantera sp ) e ipês (tabebuia sp.) dentre outras, e segundo
estrato por guatambus (aspidosperma sp), cedros (Cedrella sp.) e cajazeiras (Spondias sp).
Outros estratos ocorrem, abaixo destes, onde desponta principalmente uma palmeira, o bacuri
(Scheelea ou Attalea phalerata), que praticamente recobre as áreas não ocupadas pelas
árvores.
Esse ecossistema (chamado de Hoí pelos kinikinau) possui solos férteis e é o escolhido
para a colocação das roças, pois permite seu uso para tanto por mais tempo que os solos de
cerrado. Da sucessão desta floresta, com característica ciliar, conhecemos muito pouco da sua
formação: após o desgaste do solo não há nenhuma evidência de quais seriam as pioneiras a
dar origem a uma futura floresta. Nos campos abandonados, ou aparecem crindiuvas (Trema
michranta), dentre outras pioneiras, ou invasoras exóticas como o colonião; nas bordas
atingidas pelo fogo, o bambuzinho parece formar uma barreira.
O que se está chamando aqui de “cerrados” (ou Meeu em Terena) não é exatamente o
que encontramos no planalto central brasileiro: há certo número de espécies diferentes entre
ambos os ecossistemas, dentre elas algumas muito significativas, como o pequi (Cariocar
brasiliensis) e o buriti (mauritia sp), que não ocorrem na região e nem na Reserva; outras
diferenças identificadas são de fisionomia, tendo uma característica mais florestal e, naquelas
mais desenvolvidas e menos alteradas tornam-se um cerradão típico, com árvores como o
jatobá (Himenea sp) e aroeira (Astronium ou Miracrodruon urundeuva) ou espécies de menor
porte como o timbó, (Magonia sp) formando um continuo ora emaranhado com cipós -
destaque para o cipó mil-homens (aristolochia sp.), freqüente nesta região e também plantas
menores, como o araçá (psidium sp), a guavira (Campomanesia sp.) e outros arbustos
frutíferos de conhecimento indígena.
O que distingue claramente os dois ecossistemas florestais em campo é o solo, com
origens e geótopos diferentes: enquanto as matas ombrófilas se formam em terrenos
sedimentares quaternários, o cerrado tem solo avermelhado nas partes planas dos interflúvios.
A regeneração nestas áreas é semelhante à vegetação resultante, com gradientes de maior ou
menor diversidade de espécies e o adensamento de sua estrutura acompanha o tempo.
Quadro 1
79
Fisionomia Solo Geologia e Relevo
Vazante
hanaicué
campo de capim com
faixas de lixeiras
Areia Sedimentos recentes em
depressão, plano.
Mata
meeu
árvores altas,
palmeiras bacuri
embaixo.
Areia/
humus
Sedimentos recentes,
inconsolidados, solo plano e
úmido.
Cerrado
hoí
árvores até 8m. em
meio a árvores
menores e arbustos
Vermelho Sedimentação antiga, parte
mais alta do relevo
Conforme a Figura 4 abaixo, o mosaico de ambientes naturais acima expostos
compõe boa parte da área proposta para a TI Kinikinau do Agachi – em convivência com as
áreas abertas para pastagens ou plantio de eucaliptos. Isto quer dizer que os ecossistemas, em
sua fisionomia mais próxima da original, representam algo em torno de 30% da área, sendo
que 70% é composta por áreas alteradas por pastagens e terrenos alagadiços. Ressalta-se que a
bacia do Agachi é classificada como Área Prioritária Extremamente Alta para efeitos de
conservação, abrangendo uma área com 7.947 km². (MMA, 2007, versão 2.0).
80
Figura 4 – Cobertura vegetal na área delimitada
81
Os cerrados pré-pantaneiros
Como já observado, os cerrados encontrados nas áreas não alagáveis da planície pantaneira
são sistemas diferentes quanto à composição dos cerrados do planalto. Têm características
próprias, espécies da fauna e flora também particulares, além das que permitem classificá-los
dentro do conjunto dos cerrados brasileiros. Sendo uma vegetação específica, seu
conhecimento quanto ao manejo, conservação e aproveitamento econômico de sua
biodiversidade está dependendo do que se pode descobrir junto às populações nativas que
conviveram com ela de maneira secular.
Sabendo-se do baixo (por enquanto) impacto ambiental das ações antrópicas sobre o
Pantanal - dada a dificuldade de ocupação imposta pela própria adversidade física da região, a
saber, o regime de águas - a integridade dos ecossistemas e sua biodiversidade recai sobre as
coberturas vegetais das áreas não alagáveis, o que, por si só, já recomendaria um cuidado
especial na conservação destes ecossistemas. De fato, este tem sido substituído por pastos
cultivados, que é a base de uma pecuária bovina extensiva, de baixo rendimento, que é padrão
na região. Uma atividade econômica que não justifica a perda de biodiversidade regional e
possivelmente na dinâmica das águas, já que, nem pequenas baixadas produzidas pelo maior
fluxo de água (nascentes e vazantes com fluxos superficiais intermitentes) têm sido poupadas
dos desmatamentos recentes55
.
Para uma compreensão mais clara sobre a relação dos cerrados pré-pantaneiros e os
povos de língua Aruaque da região (Terena e Kinikinau) e a importância destes ecossistemas
para estes povos para a sua sobrevivência, seria importante indicar nos próximos parágrafos
alguns dos usos observados de espécies vegetais e animais, do solo e de algumas práticas de
conservação, implícitas na forma como é feito o manejo na cultura material Kinikinau.
Procura-se demonstrar, através de descrições, que as práticas agrícolas dos Kinikinau, quando
em um território condizente com sua população e respeitada sua cultura, com alternativas às
atuais relações de produção e comércio com a sociedade diretamente envolvente, apresentam
55 Já há estudos suficientes neste campo da ciência para afirmar a importância da vegetação de caráter florestal e
permanente ( e os cerrados de solos não alagáveis nesta região possuem caráter eminentemente florestal) na
conservação da umidade do solo durante o período das secas, já que se trata de uma região de clima estacional,
marcadamente seco no inverno (auge em julho) e de chuvas fortes no verão. Esta fundamentação teórica quanto
a dinâmica das águas resultou em legislação específica para proteção de cobertura vegetal como foi o caso do
Código Florestal (1966) entre outras.
82
características regenerativas da vegetação da região, lembrando, desde já, a característica dos
solos, pobres em nutrientes, ácidos e suscetíveis à compactação.
Dentre as plantas existentes nos ecossistemas identificados e que apresentam uso
constante pelos Kinikinau, cabe destacar as seguintes:
Bacaiúva – o fruto é empregado na alimentação e extração de óleo para aplicação a cozinha, o
palmito das plantas jovens também é processado, já tendo sido objeto de estudo quanto a
algumas propriedades nutritivas de baixo poder calórico.
Bacuri - o palmito desta palmae é apreciado na alimentação, mas têm sido extraído muito
mais para comercialização em Campo Grande, o que permite um acréscimo na renda familiar;
seus frutos atraem animais e as folhas são utilizadas na cobertura de ranchos; trata-se de
planta da mata de vazante.
Guavira - pequena planta arbustiva (mirtacea), que na estação chuvosa produz um fruto
muito apreciado na alimentação e que é muito comercializado, dada a falta de alternativas
econômicas; segundo informantes, tem importante função na atração de fauna; durante sua
frutificação há uma mobilização de parte da comunidade na colheita de seus frutos.
Cajá (Spondias sp.) - uma das frutas encontradas nas matas pantaneiras mais apreciadas
pelos índios, esta anacardiácea já se encontra também domesticada, nos quintais das casas,
originadas de matrizes escolhidas por qualidades de sabor e produtividade.
Aratxé - pequeno fruto vermelho, de sabor adocicado, encontrada na mata ciliar de
conhecimento dos índios e não comercializada; ainda não foi plenamente identificado pela
equipe .
Cipó mil homens (Aristolochia sp) - trata-se de um cipó com utilização medicinal para
diversos fins, destacando-se entre eles dores de cabeça e de origem digestiva, com ou sem
febre.
Bosta de cabrito (Rhaminidium elaeocarpum) - o fruto é alimento para pessoas e animais.
Marmeleiro do cerrado( Alibertia Sessilis) - seus frutos são utilizados na confecção de doces,
de conhecimento dos Terena.
Araticum - é a mais apreciada das anonáceas; encontradas nas áreas de vazantes;, seus frutos
são grandes e saborosos; há outras anonáceas encontradas no cerrado, de menor importância
econômica, mas reconhecidas pelos índios.
Jatobá - esta leguminosa produz, além da madeira, frutos (vagens) cujo revestimento das
sementes é utilizado na produção da goma do jataí.
83
Hiribipiqüê (Saponaria) - trata-se de uma planta cujas sementes são utilizadas na conservação
de grãos e sementes, armazenados para o plantio no ano seguinte; sua eficácia foi
comprovada, pois contém saponinas repelentes aos carunchos.
Diversas espécies, para cordas e fibras: é reconhecida a criatividade dos índios quanto à
utilização de fibras e plantas, em diversos momentos e necessidades de sua vida material.
Geralmente, a confecção destes objetos obedece às necessidades de cada momento.
Diversas para lenha – na abertura de roças, segundo o modelo tradicional, as madeiras com
melhor desempenho calorífico são separadas e carregadas para casa, onde serão empregadas
na preparação de alimentos e na queima da cerâmica, partes importantes da produção material
deste povo; durante a abertura de novas áreas para a roça, pois como sabemos há todo um
detalhado processo de desmonte da vegetação, planejado para ser realizado num período bem
anterior ao do plantio; neste processo, galhos são separados de troncos úteis, para mourões e
outras funções.
Diversas espécies pelas suas propriedades medicinais - foram relatados usos para espécies
hoje já reconhecidas inclusive no meio científico (por exemplo, a Casearea Silvestris ou “chá
de frade”); dentre as plantas recordadas pelos mais velhos está o algodoeiro nativo,
identificada como Gossypium barbadense (malvácea), existente, portanto, em outras áreas do
pantanal; nas áreas de vegetação natural menos exploradas, tal planta ocorre naturalmente,
pois era originária da região antes de ter se transformado em planta cultivada pelos índios
Terena.
poronga (cucurbitácea) - uma cabaça fechada utilizada em rituais de cura e manipulação de
energias sobrenaturais, por pessoas iniciadas nestas práticas (os xamãs, chamados de
“porangueiros”).
Em levantamento efetuado por equipe de pesquisadores da Embrapa Solos para solos
de baixa intensidade no município de Aquidauana56
os solos na região do Agachi englobada
na delimitação aqui proposta são da classe dos Argissolos Vermelho-Amarelo (PVAd2)57
.
São solos com aplicação agrícola variada, de excelente (latossolo vermelho) a médio
(latossolo vermelho-amarelo).
56
ainfo.cnptia.embrapa.br/digital/bitstream/item/.../MAPA-SOLOS-AQUIDAUANA.pdf
57
PVAd2: ARGISSOLO VERMELHO-AMARELO Distrófico abrúptico, textura média, fase cerradão tropical
subcaducifólio, relevo ondulado e suave ondulado + NEOSSOLO LITÓLICO Distrófico típico, textura média
muito cascalhenta e média, fase cerrado tropical subcaducifólio, relevo forte ondulado e ondulado +
LATOSSOLO VERMELHO Distrófico típico, textura média, fase cerradão tropical subcaducifólio, relevo suave
ondulado, todos A moderado.
84
Figura 5 – Classe de solos no Agachi
85
Identificação das áreas imprescindíveis à preservação dos recursos naturais necessários ao
bem estar do povo Kinikinau no Agachi
Embora a área aqui proposta e reivindicada pelos Kinikinau esteja, em parte, com seus
ecossistemas originais alterados, isto não constitui um fator relevante a ponto de inviabilizá-la
– pois, do que se pode aferir das práticas de manejo daqueles indígenas com relação a áreas
abertas, certamente trarão uma modificação considerável da paisagem, por meio do uso de
uma agricultura de caráter regenerativo. Com base nisto, pode-se arriscar um prognóstico de
alteração da paisagem das áreas destinadas à TI Kinikinau do Agachi pelo uso tradicional de
sua agricultura – o que inclui o descanso e a regeneração como forma de manutenção e
recuperação da fertilidade dos solos, favorecendo um mosaico mais rico em quantidade de
espécies. Como os Kinikinau fazem uso intensivo da mão- de-obra familiar, as pastagens
cultivadas devem, gradativamente, ceder lugar à diversidade imposta pelas mãos de uma
população de agricultores e sua já conhecida criatividade neste campo. E isto combinando
com a atividade pecuária.
O córrego Agachi e seu entorno
A área aqui proposta situa-se em parte dentro da microbacia do córrego Agachi, afluente do
rio Aquidauana e as áreas de vegetação ciliar ainda estão relativamente preservadas, como é
observado na Figura 4, para fins de proteção dos cursos de água. Apresenta ainda cerrados
em bom estado de conservação que servem de habitat (permanente ou passageiro) a espécies
de mamíferos e aves que ocupam papel importante na alimentação dos Kinikinau. N amargem
esquerda do Agachi os cerradinhos apresentam grande quantidade de pés de guavira, que
podem dar aos Kinikinau uma renda extra (no início da colheita, chegava-se a R$ 30,00 o
quilograma em Aquidauana nos dias de hoje).
As áreas de vazantes e baias
Dentre os outros ecossistemas aos quais os Kinikinau reivindicam no Agachi, estão as áreas
de vazantes imprescindíveis dentro da produção histórica daqueles indígenas. Acrescenta-se
àquelas as planícies alagáveis: um conjunto de baías e matas ciliares locais de referência para
diversas atividades, dentre as quais a coleta do barro e da oferta de peixes e que, além disso,
possibilita uma intrincada rede de relações de caça e de aproveitamento da vegetação que
sempre fez parte da cultura Kinikinau. Estas áreas típicas, com os cerrados que lhes são
86
contíguos, possibilitam a diversidade de recursos naturais imprescindíveis e necessários para
que os Kinikinau vivam segundo seus usos, costumes e tradições.
PARTE 5 REPRODUÇÃO FÍSICA E CULTURAL
Introdução: como é reproduzir-se física e culturalmente em terras alheias?
Nos documentos analisados do SPI e nas entrevistas realizadas pelo antropólogo responsável
por este Relatório de Fundamentação, restou claro que se reconhece enquanto kinikinau quem
tem (ou teve) um dos pais que se reconheciam como tal. O reconhecimento, portanto segue a
linha bilateral de filiação. Mas nem sempre esse auto reconhecimento é manifesto, posto que
a identificação étnica é sempre relacional e contextual: “(a) cultura original de um grupo
étnico, na diáspora ou em situações de intenso contato, não se perde ou se funde
simplesmente, mas adquire uma nova função, essencial e que se acresce às outras, enquanto
se torna cultura de contraste” (M. Carneiro da Cunha, 2009: 237). Ou seja, a etnicidade é um
fenômeno que ocorre quando e onde é necessário usar dos sinais diacríticos, marcantes, da
cultura original, para fazer-se reconhecer ou dar-se a conhecer. Ainda segundo Manuela
Carneiro da Cunha “(a etnicidade pode) em muitos casos, ser um poderoso veículo
organizatório” (2009: 243) – e este é o caso hoje dos Kinikinau na sua afirmação da sua
identidade étnica ou etnicidade.
Por outro lado, em um contexto de ambivalência sociocultural (como é o caso do povo
aqui considerado indígena) a afirmação da identidade étnica depende de quem faz a pergunta,
em qual contexto e no cálculo que a pessoa pode fazer ou faz em afirmar ou negar a filiação
étnica. Neste sentido, as observações de Castro (2010) são pertinentes e esclarecedoras:
“Para examinar o status de minoria étnica e a relação entre o conceito de identidade e
de grupo étnico, Cardoso de Oliveira (1976b) tomou como referencia o caso dos
‘remanescentes’ Kinikinau de Cachoeirinha, considerando que a condição de minoria
étnica deveria levar a uma situação de ‘escamoteamento’ da identidade de Kinikinau,
porem em seu trabalho de campo surpreendeu-se com a atitude do grupo: Com o
relativo desprezo que goza qualquer outra identidade que não seja a dos ‘donos do
lugar’ ― como assim se afirmam os Terena, nas alusões frequentes que fazem as
identidades dos ‘outros’ sempre que desejavam marcar seus direitos sobre a terra da
reserva, portanto, sempre que querem fixar o seu status superior ― seria de se
esperar que esses Kinikinau cuidassem de evitar qualquer estigma (Castro, 2010: 23).
Cardoso de Oliveira surpreendeu-se ao perceber que os ‘remanescentes’ Kinikinau da
Aldeia Cachoeirinha insistiam na afirmação de uma identidade própria, entendendo que, na
87
condição de minoria étnica, desprestigiada em relação aos ‘donos do lugar’ – isto é, os Terena
– deveria ocorrer uma manifestação inversa, ou seja, de escamoteamento. Avaliou o
antropólogo Cardoso de Oliveira que a reafirmação só ocorria perante uma pessoa de fora,
‘capaz de vê-los diferentes dos Terena’ e que, em situação de interação com esses últimos, os
Kinikinau evitavam qualquer referencia a sua identidade observando que:
Esse caso [dos Kinikinau] sugere que bem se trata do que Erickson [1968]
denomina (...) ‘surrendered identity’, a saber, uma identidade latente que e apenas
renunciada como método e em atenção a uma práxis ditada pelas circunstancias,
mas que a qualquer momento pode ser atualizada, invocada. Mas essa invocação
nos indica que, no grupo fechado de sua parentela, os Kinikinau buscam se apoiar
numa ideologia étnica que os municie de valores capazes de fortalecê-los no
confronto cotidiano com os Terena que insistem em considera-los há pelo menos 50
anos, hóspedes! (Cardoso de Oliveira, 2003:124).
“As considerações de Cardoso de Oliveira, voltadas à sua preocupação em entender a
insistência dos Kinikinau em afirmar uma identidade própria em uma situação de minoria
étnica, mostram na realidade que existia (e existe) um reconhecimento dos Terena de que os
Kinikinau existem como ‘outros’, isto é, como hóspedes. Dessa maneira, pode-se afirmar que
os Kinikinau eram (e são) reconhecidos pelos Terena como um grupo distinto e assim se
reconhecem, o que comprova que a etnicidade se refere a aspectos de relações sociais entre
grupos que consideram a si próprios e são considerados por outros como distintos e que
mantem um mínimo de interação regular (Eriksen, 2002). Assim, a etnicidade só existe em
situação de relação.” (Castro 2010: 270-71 – grifo nosso).
Ao longo da pesquisa para este Relatório de Fundamentação ficou patente que, no
contexto atual de reafirmação étnica dos Kinikinau58
, o “escamoteamento” da identidade
étnica não faz mais sentido nem para os Kinikinau e nem mesmo para os Terena com os quais
ainda convivem. A continuidade histórica da identidade étnica do povo Kinikinau, seja no
contexto oficial (documentos do SPI e FUNAI, tais como, registros de casamento, censos,
boletins de frequência escolar, documentos de identidade pessoal “indígena”, entre outros), ou
nas entrevistas realizadas nas várias terras indígenas pesquisadas (Cachoeirinha, Nioaque,
Taunay-Ipegue e Lalima) é evidente e aqui será demonstrada.
A partir do acesso aos documentos do SPI digitalizados pelo Museu do Índio-FUNAI
(http://www.docvirt.com/docreader.net/DocReader.aspx?bib=MI_Arquivistico) foi possível
identificar os troncos familiares kinikinau e entrevistar os seus descendentes atuais e por
58
Logo após os acontecimentos havidos no PI São João (e que adiante descrever-se), passaram a acontecer
reuniões/assembleias do Povo Kinikinau, sob coordenação de jovens professores e apoiadas por ONGs.
88
meio deste procedimento compor as genealogias anexadas a este documento. Estes troncos
familiares são identificados pelo sobrenome adotado (dado que a adoção do nome na língua
indígena foi abandonada já nos meados do século XX). O documento abaixo, de 1946, (Posto
São João do Aquidavão) foi tomado como um tipo de base de dados para a identificação dos
troncos familiares e, consequentemente, para o traçado das genealogias.
89
Documento 21: Censo nominal Aldeia São João em 194659
(anexo)
59
In: http://www.docvirt.com/docreader.net/DocReader.aspx?bib=MI_Arquivistico – 096, São João do Aquidavão, caixa 50, planilha 335
90
Detalhe Documento 21
Documento 22 – Boletim de frequência escolar – São João, 194960
60
Museu do Índio-FUNAI, Acervo SPI, 096, São João do Aquidavão, caixa 22, planilha 122
91
Documento 23 – Atestado - 195561
61
Museu do Índio-FUNAI, Acervo SPI, 083, Cachoeirinha, Caixa 12, planilha 115.
92
Documento 24: Certidão de Casamento expedida pelo SPI - 195362
62
Museu do Índio-FUNAI, Acervo SPI, 093 LALIMA, Caixa 17, Planilha 148.
93
Documento 25 – Censo 1963 – PI São João63
Documento 26 – Termo de Declaração, PI Lalima - 196264
63
Museu do Índio-FUNAI, Acervo SPI, 096, São João do Aquidavão, caixa 21, planilha 194. 64
Museu do Índio-FUNAI, Acervo SPI, 093Lalima, Caixa 16, planilha 145.
94
Documento 27 – Frequência escolar PI Lalima – 196365
65
Museu do Índio-FUNAI, Acervo SPI, 093, Lalima, Caixa 16, Planilha 028.
95
Os exemplos acima demonstram que a identidade kinikinau é afirmada ao longo do
tempo e em várias situações territoriais. Neste último documento, por exemplo, o SPI
apresenta a população Kinikinau distribuída em Lalima e no São João – porém outros
documentos demonstram a presença dos kinikinau em outras terras indígenas. Esta estimativa
populacional de 1948 foi a única encontrada no Acervo do SPI. Como se viu (PARTE 2),
mesmo na condição de “intrusos” (caso da TI Kadiwéu) ou “hóspedes”66
(caso das TIs
Terena), quando positivamente indagados, nunca um kinikinau deixou de autoafirmar-se
enquanto tal.
A seguinte observação de Iara Castro é certeira quanto ao ponto aqui discorrido: “O
que também parece relevante ressaltar na analise de Cardoso de Oliveira e a sua sugestão
sobre a existência de outro tipo de identificação ao assinalar que a organização dos
Kinikinau de Cachoeirinha estava assentada em outras bases, avaliando que ‘seus
componentes mantem viva o que se poderia chamar de ‘identidade histórica’, pois
comumente, e inclusive na ocasião do senso fazem questão de se identificarem como
Kinikinau’ (Cardoso de Oliveira, 1976a: 123 [1960]). Para Cardoso de Oliveira, os Kinikinau
de Cachoeirinha correspondem a um ‘caso limite’, caracterizado pela ausência de um grupo
étnico de referencia e que tem que recorrer a sua historia para se representarem como
categoria étnica: (...) a situação dos Kinikinau (assim) corresponde a um caso limite, em que
um conjunto de indivíduos, na falta de um grupo étnico de referencia, efetivamente existente
(portanto como organizacional tape), apela a sua historia e se representa como categoria
étnica num sistema ideológico determinado. A possibilidade da emergência dessa modalidade
de identidade étnica talvez seja proporcional a sua ‘historicidade’, que remanescentes tribais
ou étnicos possam possuir (Cardoso de Oliveira, 2003:124 [1976], in Castro, op. cit.: 272-
73). Pode-se estimar, portanto – e tal hipótese está demonstrada ao longo deste Relatório de
Fundamentação – que essa historicidade profunda, no tocante aos Kinikinau, apontava (e
aponta) para um futuro onde, reocupado o seu território tradicional, a sociedade Kinikinau
virá a ser uma “organizacional tape” como queria Cardoso de Oliveira.
66
“O fato de (os kinikinau) serem considerados “hospedes” (dos terena) sugere que a diferença estava implícita
na relação entre aqueles grupos, não havendo necessidade de os Kinikinau invocarem sua própria identidade;
tanto para os Terena, quanto para os Kinikinau as “fronteiras” entre eles estavam visivelmente vivenciadas,
fazendo parte das suas relações”. (Castro, 2010: 271).
96
5.1 Estimativa populacional: a evolução demográfica da população Kinikinau
Documento 28 – População indígena sob jurisdição da IR 5 do SPI - 194867
O documento acima é o único encontrado nos arquivos do Acervo do SPI (Museu do Índio-
FUNAI) com uma estimativa da população kinikinau – ainda que parcial, dado que só reporta
os kinikinau em Lalima e no São João, passando ao largo dos troncos familiares residentes em
Cachoeirinha (à época, 1948, com três documentados: os Moreira, Ferreira e Pereira), e
Taunay-Ipegue (os Rodrigues, ao menos).
Em 1965 residia no PI São João 235 pessoas das quais pelos 70% eram kinikinau (ou
160 indivíduos), conforme o Documento 29 abaixo. A levar a sério os dados dos dois últimos
documentos, a população Kinikinau no São João teria crescido de 1948 a 1965 de 50
indivíduos para 160, com um crescimento vegetativo naqueles 15 anos de 06 indivíduos ao
ano – e isso somente no São João.
67
Museu do Índio, Acervo SPI, IR 5, 999 Vários Postos , Caixa 34, Planilha 328.
97
Documento 2968
68
Museu do Índio, Acervo SPI, IR 5, 097 TAUNAY, Caixa 22, Planilha 197.
98
99
100
Esse crescimento não é compatível com os dados da Secretaria Especial da Saúde
Indígena (SESAI) de 2013 – que indica que a população Kinikinau com apenas 139 pessoas
(Documento 30, abaixo) e dos quais 138 residiam na TI Kadiwéu (127 no São João) e apenas
um na TI Cachoeirinha (aldeia Mãe Terra). Se aplicarmos o percentual de crescimento
vegetativo anual de 06 indivíduos/ano antes encontrada, a população no São João nos 50 anos
(1965 a 2013) ali seria de pelo menos 350 pessoas. Portanto, ou a população em 2013 foi
subestimada pela SESAI ou mais de um terço dela retiraram-se do São João nos últimos 48
101
anos entre 1965 e 2013 – o que é provável, porém não de acordo com os fatos. Mas se deve
ainda considerar que a 1ª Assembleia do Povo Kinikinau aconteceu em novembro de 2014, a
partir da qual os descendentes dos anciões daquele povo passariam a afirmar sua identidade
étnica com todas as letras – isto é, passaram a exigir junto aos órgãos públicos (SESAI
inclusa) a notação kinikinau em seus nomes e fichas.
102
103
A população que se autoreconhece hoje como kinikinau na aldeia São João e cuja
maioria vai reocupar a área aqui delimitada no Agachi é de cerca de 70 pessoas em 12 grupos
domésticos. Os Kinikinau abrigados atualmente na aldeia Mãe Terra (na TI Cachoeirinha)
somam cerca de 80 pessoas e 20 grupos domésticos, acrescidos das últimas famílias que
deixaram o São João em razão de recentes conflitos (ver ponto 5.3, infra); em Bonito, e que
também reocuparão o Agachi, perfazem um número de 32 pessoas e 08 grupos domésticos.
Portanto, a população que ocupará a TI Kinikinau do Agachi será de pelo menos 182
pessoas com 40 grupos domésticos.
5.2 Origem e consequências dos conflitos Kinikinau-Kadiwéu na aldeia São João
No Memorando nº 043/PIN São João/2003, datado de 24 de abril de 2003 (anexo), o
funcionário da FUNAI na chefia do Posto Indígena, Olivar de Oliveira, relata ao seu superior
hierárquico os “incidentes registrados entre índios Kadiwéu e Kinikinauas (sic)”. Conta ainda
que estes conflitos tiveram início em 1997, com a chegada na aldeia São João do índio
kadiwéu Cipriano Mendes. Desde então um idoso Kinikinau (Leôncio Anastácio, agora
falecido) teve suas posses incendiadas por índios kadiwéu e outras famílias expulsas, com a
do líder kinikinau Ambrósio Góis. Relata ainda que Cipriano ameaçava os kinikinau que
tinham gado na aldeia São João de cobrar arrendamento do pasto. Outros depoentes contam
que Cipriano Mendes (filho do finado Antônio Mendes, liderança importante dos Kadiwéu)
chegou à aldeia São João como “punição” por ele haver se envolvido em vários conflitos com
parentes na aldeia Alves de Barros.
Entretanto, ao que parece a intolerância dos Kadiwéu para com os kinikinau que
habitam a TI Kadiwéu começou bem antes, em 1984, depois de uma apresentação da dança do
“bate-pau” na cidade de Bonito. Tudo leva a crer, nos depoimentos tomados junto aos
kinikinau, que o processo de afirmação da identidade étnica deste povo teria levado os
kadiwéu a se indisporem com seus “parentes” – e tal indisposição veio crescendo. A criação
da Escola Kinikinau em 2006, oficializada pelo Conselho de Educação do Estado do Mato
Grosso do Sul com a denominação Escola Koinukunoen (vocábulo que quer dizer “kinikinau”
na língua deste povo), daria mais munição aos kadiwéu. As lideranças kadiwéu de então,
segundo consta, não se opuseram; mas tão logo (2008) foram substituídas, começaram os
problemas... e a Escola teve sua placa oficial destruída pelos kadiwéu liderados por Cipriano.
Depois destes eventos envolve a Escola, várias fam[ilias Kinikinau mudaram-se, em 2004-
2005, para a aldeia Mãe Terra (TI Cachoeirinha), obtendo ali refúgio.
104
Outro fato que acirrou os conflitos kadiwéu/kinikinau na aldeia São João foram as
Assembleias do Povo Kinikinau a primeira delas realizada em 2014 – a ultima, a 5ª, foi
realizada em novembro de 2018 na aldeia Mãe Terra. Em uma destas assembleias, o
documento final fala em requerer da FUNAI um documento que expressasse o direito
territorial dos Kinikinau na TI Kadiwéu, “como é o Parque do Xingu, com diversas etnias
num mesmo território”. Indagados por qual razão tal reivindicação apareceu no documento,
lideranças kinikinau entrevistados alegaram que “fazia desde 1990 que pediam GT para a
FUNAI e ela não atendia” (nota-se que nas primeiras assembleias do povo Kinikinau os
documentos requeriam da FUNAI a instalação de Grupo Técnico para demarcação de seu
território no Agachi – ver anexos).
A situação de permanente tensão na aldeia São João culminaria em um conflito mais
grave, em setembro de 2018, quando, depois de uma festa em casa de um kinikinau, um índio
desta etnia matou a tiro um jovem kadiwéu. Depois deste evento, as poucas famílias kinikinau
que ficaram no São João são de indivíduos casados com mulheres kadiwéu (seis famílias,
segundo o depoimento do professor kinikinau Inácio Roberto). Mas, como dizem os
kinikinau, não se sabe até quando por lá ficarão.
Frente a estes fatos, a “questão kinikinau” (ou melhor, sua diáspora) ganhou um
caráter de urgência que exige do órgão federal responsável pelos direitos indígenas (a
FUNAI), providências imediatas. Dentre estas, dar andamento ao processo de reconhecimento
do território tradicional do povo Kinikinau no Agachi é a mais premente.
5.3 As áreas necessárias para a reprodução física e cultural do povo Kinikinau
A área aqui delimitada, com cerca de 4 (quatro) mil hectares, é o território tradicional
Kinikinau, por todas as provas e evidências trazidas e documentadas neste Relatório de
Fundamentação e deve ser reconhecida pelo Estado brasileiro, obrigando-se a FUNAI a
proceder os estudos complementares necessários em conformidade com o Decreto 1.775/96.
A área aqui proposta foi aprovada por todos os indivíduos lideres dos grupos domésticos
Kinikinau presentes na 5ªAssembleia do Povo Kinikinau, acontecida de 14 a 16 de novembro
de 2018, na aldeia Mãe Terra (TI Cachoeirinha).
105
PARTE 6 LEVANTAMENTO FUNDIÁRIO
6.1 O processo de expropriação das terras dos Kinikinau no Agachi
Dizia Rondon, ao menos em seus escritos publicados no Rio de Janeiro, que as elites
latifundiárias de Miranda e Aquidauana constituíam uma verdadeira “elite com poder”:
"Nos povoados e vilas a polícia está sempre nas mãos dos próprios fazendeiros,
que são as autoridades, já como juizes de Paz, já como Delegados e
subdelegados. Os soldados são por eles mesmos engajados e desde então
considerados seus próprios camaradas (...). Não pode haver fiscalização contra
esses abusos, porque há verdadeira solidariedade entre os ricos que se revezam
nesse usufruto" (Rondon, 1949 apud Cardoso de Oliveira, 1976: 42).
Rondon, em depoimento dado quando tinha mais de 80 anos de idade, relembra que:
No meio das tremendas dificuldades da construção (das linhas telegráficas,
notamos) de 1900-1906, tive a felicidade de poder acudir sempre aos índios,
refreando, ao mesmo tempo, a insolência dos desalmados chefetes que
infelicitavam aqueles sertões. Assim consegui, neste período, salvar em Ipegue e
Cachoeirinha os últimos pedaços de terra que aos terenas e quiniquinaus
restavam de seus antigos vastíssimos domínios (...). (Viveiros, 1958: 225, grifos
nossos).
Certamente àquela altura da vida Rondon incluiria Francisco e Antônio Leopoldo
Pereira Mendes entre os “chefetes que infelicitavam aqueles sertões”. Mas os deixou em paz
quando, em 1904, realizou para o governo do Mato Grosso a delimitação “dos últimos
pedaços de terra” que sobraram “aos terenas e quiniquinaus” no Ipegue e Cachoeirinha
(supra, p: 31).
Antônio Leopoldo e Francisco Pereira Mendes, gaúchos de origem, se apossaram,
como disse Rondon, de nada menos 58 mil hectares na região do interflúvio Ponadigo-Agachi
com as “posses” (depois “fazendas”), Betemigo (ou Betinigo, com 15.300 hectares),
Ponadigo (12.400 hectares), São João da Barra do Agachi (com 29.575 hectares) e Paraíso
(ou Agachi, com 1.155 hectares). – terras estas ocupadas pelos Kinikinau e Terena. E as
provas deste “apossamento” – para além dos testemunhos dos anciões kinikinau já expostos –
são justamente os processos de “legitimação” (termo apropriado neste contexto) das “posses”
das citadas fazendas69
.
O mais antigo dos processos citados é relativo à posse denominada São João da Barra
do Agachy (processo nº 00/00.87, folha 0146), requerida em 1894 por Francisco Pereira
69
Documentos depositados no Acervo Fundiário, Cadastro de Divisão de Terras, da AGRAER-MS, em Campo
Grande. O número de referência do processo é aquele que se encontra na capa dos respectivos processos.
106
Mendes, por alcunha “Chiquinho de Deus”. O título provisório70
desta posse foi expedido
pelo governo do então Mato Grosso em 24/07/1896 e o definitivo em 1900. O total da área
“apossada” totalizou 29.575 hectares, depois de medida.
Logo na inicial do processo (ps. 16-17) lemos que a fazenda “São João da Barra do
Agachy à margem esquerda do ribeirão Agachy (...) e sem que nenhum dos ditos
confrontantes se apresentasse por si ou por procurador para fazer valer seus direitos, por
despacho de hoje julguei a posse da referida fazenda nas condições legais e determinei que se
expedisse o título provisório (...) sendo que as terras da referida fazenda confinam: ao Norte,
com terras do mesmo declarante tendo por limite o Córrego da Pedra; ao Sul, com um terreno
que foi do Tenente José Francisco Fialho e hoje pertencente ao Coronel Antônio Joaquim
Malheiros, tendo por divisa o Morrinho; ao Nascente, com terras occupadas pelos índios
Kinikináos, em linha reta até a cabeceira do Córrego da Pedra – confinando também por
esse lado com terrenos do dito declarante; ao Poente, pelo Espigão da Bela Vista – com a
fazenda ‘Cachoeirinha’ de propriedade de Manoel Guilherme Garcia, bem como com terras
do Betimigo, igualmente pertencentes ao mesmo declarante”. Assina esta inicial datada de 21
de Março de 1894 o Intendente Geral (da comarca de Miranda) João Augusto da Costa Leite.
Na sequência do processo (p. 20 e ss), são nomeados (pelo escrivão – sic) os peritos
que certificariam e verificariam “cultura effetiva e de morada habitual” do reclamante
(Francisco Pereira Mendes) “nos lugares denominados Agachy, São João da Barra do Agachy
e Betimigo”. Ressalta-se que Francisco Pereira Mendes reclama a comprovação de “cultura
efetiva e morada habitual” para as três “posses” – porém a medição inicial seria efetivada
somente na posse “São João da Barra do Agachy”. As outras posses seriam, depois de
contestadas por vizinhos (detalhes abaixo), demarcadas posteriormente.
Da análise dos limites estabelecidos pelo declarante Francisco Pereira Mendes se
inclui ao Nascente “as terras ocupadas pelos Kinikináos” e ainda “terrenos do dito
declarante”. Estes terrenos seriam da posse “Paraíso ou Agachy”, como se verá adiante.
Nas páginas seguintes (28 a 35), consta do mesmo processo o Termo de Audiência
para aferirem-se as contestações apresentadas à demarcação da posse “São João da Barra do
Agachy” e da posse “Agachy”. Foram contestantes os confrontantes Estevão Alves Corrêa,
Manoel Guilherme Garcia, Manoel Teodoro Fonseca Moraes, Anna Aurora de Arruda Pinto,
Anna Gertrudes de Castro, Maria Dias e o Intendente Geral (do município de Miranda) e
Diretor de Índios. O único contestante a comparecer na audiência foi Estevão Alves Corrêa.
70
E que nada mais era do que a intensão de compra de terras com medidas imprecisas (“duas léguas de testada
por três de fundo”)
107
Nomeados os árbitros pelo juiz comissário, lê-se na página 32: “(...) procederam o exame nas
linhas de Norte a Nascente dos limites da posse Agachy constantes do registro e que forma
contestados pelos confrontantes Tente Coronel Estevão Alves Corrêa, D. Anna Gertrudes de
Castro e Directoria dos Índios Terena” . A seguir são arrolados os quesitos do juiz (p. 33):
“Primeiro – Qual das posses contestadas é mais antiga? Segundo – os limites contestados do
Agachy offende direitos adquiridos? Terceiro – Qual o verdadeiro limite entre o Agachy,
Cutape, Pequi, Ipegue, Nachedache e Bahia Maria do Carmo? Quarto – Que direito assiste aos
Índios Terena nos limites contestados e se estes habitão interruptamente as referidas aldêas?”.
Na sequência (ps. 34-35) lê-se o que aqui importa:
Que limite mais verdadeiro e conhecido hoje entre o Agachy e Cutape, Aldêa Ipegue,
Nachedache e posse Maria do Carmo é a vazante do Nachedache a partir do marco
da Cutape que está no caminho que de Miranda conduz as Aldêas Ipegue e
Nachedache e que está a quarenta metros mais ou menos da passagem do corrego
Nachedache e por esta acima, deixando a esquerda a tapera da aldêa do Nachedache,
seguindo em linha recta que atravessa o córrego Nachedache vai em demanda do
espigão denominado Taquarussú que é o prosseguimento do morrinho que faz o limite
entre(as terras) ocupadas pelos Índios Quiniquináos. Com este limite nem o Cutape e
Pequi e nem as aldêas Ipegue e Nachedache e a posse Maria do Carmo sofrem
prejuízo” (grifos e negrito nossos).
Em outras palavras e interpretando o texto acima: o rumo é sul, a montante do córrego
Nachedache (que corre no sentido sul-norte) em direção ao espigão “Taquarussu” que, sempre
rumo sul, é o prosseguimento do “Morrinho que faz limite entre as terras ocupadas pelos
Índios Quiniquináos”. Recorrendo novamente ao croqui elaborado por Rondon em 1906
(abaixo) entende-se melhor o que diz o texto em comento:
108
Nachedache
D
I
V
I
S
O
R
Taquarussú
109
Se examinarmos esse trecho no Google Earth, vê-se a presença de um divisor de águas
na região marcada no croqui elaborado por Rondon e sua equipe, que separa as vertentes do
Nachedache e Agachi (que correm para o norte e nordeste, respectivamente). Esse espigão é
inclusive contornado hoje pela linha férrea da antiga Estrada de Ferro Noroeste do Brasil.
Na cópia da imagem acima, vê-se o divisor de águas e as cabeceiras dos formadores
do Nachedache (nordeste do divisor), de um braço do Agachi (sul do divisor) e a sul
(correndo para leste) os contribuintes que formam a “vazante da Vereda Grande”. A linha em
amarelo é a divisa da TI Taunay-Ipegue delimitada em 2004. A única elevação que pode ser
chamada de “Morrinho” neste trecho é justamente onde esta o marcador. Não parece haver
dúvidas portanto quanto a região habitada pelo “Quiniquináos” conforme diz o documento em
apreço.
Os autos de medição (de Outubro de 1896, anexo) à época eram lavrados – e
assinados – pelo engenheiro topógrafo contratado pelo posseiro e entregue para registro
protocolar na repartição de terras do Estado federado (já se está na República). O engenheiro
topógrafo responsável, Th. A. Darmaros anota no documento as seguintes confrontações dos
imóveis denominados São João da Barra do Agachy, Agachy e Betemigo:
“Do 2º ao 3º marco com terras devolutas;
Do 3º ao 4º com o Aldeamento dos Quiniquinaos” (p. 85, doc. anexo).
110
Na sua “Caderneta de Campo”, onde são lançadas e numeradas as estações, os
ângulos, o azimute e as distâncias entre as estações, o engenheiro topógrafo anota:
“Estação 18 – Atravessa estrada Aldea
Estação 22 – Roça Índios” (p. 88)
No seu caminhamento com a corrente, o engenheiro anota na estação 16 tratar-se de
um “Pequeno cotovelo: Agachy”, na estação 17 diz que está “beiradiando (sic) o mesmo” e na
estação 23 anota que “Atravessamos Agachy”; na estação 32 relata que “A m. 180 cruza
roça”; na estação 43 “Estrada de Miranda a C.Grande” e na estação 44 “No rumo 89ºN.O. 5
Ranchos” (p. 89, ANEXO, grifo nosso). Em 1896, pois estava assentada e provada a aldeia
dos Kinikinau do Agachi inclusive com uma de suas roças sendo atravessada pela linha
demarcanda.
A posse denominada Bahia Maria do Carmo (processo 00.010, Acervo Fundiário,
Cadastro de Divisão de Terras, da AGRAER-MS – em anexo) teve seu título provisório
recebido em 04/11/1902 e o definitivo expedido em 11/03/1906. Os limites constantes desta
posse são: “ao Norte com a Aldêa do Ipegue, tendo como divisa uma vertente ou perizal que
termina na mesma Bahia; ao Sul com a fazenda do Ponadigo da qual fazia parte e
pertencente a Antônio Leopoldo Pereira Mendes servindo de limite o ribeirão chamado
Ponadigo; ao Nascente com a fazenda medida e demarcada do Pequi de propriedade (...
ilegível) da fazenda do Alinane da qual serve de retiro e pertencente a Felippe Pereira
Mendes, genro da requerente, e ao Poente com a Aldêa do Agachy, tendo por divisa o
espigão da Serrinha” (pgs. 12-13).
No levantamento topográfico realizado para a demarcação da referida posse,
executado por o engenheiro topógrafo Antônio Arellano, está anotado: “8ª estação – D’aqui
continuou-se por levantamento a ‘Serrinha’ que se foi levando pelo costado direito e a curta
distância. Nesta estação terminou os limites das terras do cidadão Francisco Pereira Mendes
e começam as confrontações com as pertencentes aos índios da ‘Aldêa do Agachy’” ( p. 27).
E mais adiante, na página 29, anota que “(...) Nesta estação terminaram as confrontações
com terras da ‘Aldeia do Agachy’ e começam os limites por divisa natural, com terras do
cidadão Antônio Leopoldo Pereira Mendes por ser a mesma divisa o córrego denominado
‘Ponadigo’”. A data anotada pelo engenheiro é a de 5 de Outubro de 1900 – exatos 88 anos da
promulgação da Constituição Federal em vigor.
111
Figura 6 – Terra de ocupação tradicional dos Kinikinau segundo os títulos originais requeridos por posseiros vizinhos
CUTAPE
PEQUI IPEGUE
AGACHY
BAHIA
Mª do
CARMO
“TERRAS DEVOLUTAS”
TERRA DOS KINIKINAU
PONADIGO
Imbauval
112
A Figura 6 acima mostra sob o fundo do croqui elaborado por Rondon e
colaboradores71
do trajeto feito pela Comissão das Linhas Telegráficas no trecho Aquidauana-
Miranda, em 1904. A partir deste croqui desenhou-se, a partir dos limites dados pelos
documentos das posses acima expostos, qual era a área ocupada pelos Kinikinau, de pelo
menos 1810 a 1920 – em que pese a ausência dos marcos do “Morrinho” e do “Córrego da
Pedra” (Preta?). Representa esquematicamente a inserção da terra de ocupação tradicional dos
Kinikinau no Agachi, onde se buscou obedecer aos limites dados e transcritos nos
documentos originais de legitimação das posses São João da Barra do Agachy, Agachy e
Bahia Maria do Carmo e anexados a este Relatório Antropológico de Fundamentação. As
reputadas “terras devolutas” (em vermelho na Figura 5 acima) nos documentos citados foram
posteriormente transformadas no lote “(...) Paraiso ou Agachy, compradas ao Estado pelo
cidadão Francisco Pereira Mendes”72
e demarcadas apenas em Janeiro de 1926 – e notando
que Cardoso de Oliveira afirmava, em consulta a documentos do SPI, que os Kinikinau ainda
habitavam o Agachi em 1925 (ver p. 32 supra).
Tais terras “devolutas” com “cultura de mandioca, feijão, arroz e milho em pequena
escala; uma casa de morada, alguns outros ranchos” limitava-se então com as terras da
aldeia Terena do Ipegue-Bananal, segundo mostra o croqui feito por Rondon. Parte das terras
apropriadas ilegalmente por Francisco Pereira Mendes no Agachi já foram restituídas aos seus
legítimos detentores, os Terena da Terra Indígena Taunay-Ipegue, mediante Portaria
Declaratória do Ministro da Justiça (Portaria/MJ nº 497, de 29 de Abril de 2016).
Resta claro, pois que as terras dos Kinikinau no Agachi foram alvo de um processo de
expropriação por meio de expedientes cartoriais, intimidação e violência e que os mais velhos
kinikinau relatam (supra, Parte 2). Dado os fatos e documentos aqui expostos, a indagação
necessária (e sua resposta) é aquela posta por Gilmar Ferreira Mendes no já citado Parecer de
1987:
Não obstante, colocam-se algumas questões que podem causar embaraço, sob
o prisma da dogmática jurídica. A primeira indagação diz respeito a validade, ou não,
dos títulos incidentes sobre terras indígenas concedidos antes da promulgação da
Constituição de 1934. Outro ponto controvertido concerne à situação jurídica das
71
Nesse croqui Rondon ou seus colaboradores (o mais provável) trocaram a “aldeia de Kinikinaus” por “Aldeia
de Terenos”, como já foi observado antes. 72
Processo AGRAER nº 00/00.086 (Anexo). É forçoso notar a descrição que faz o topógrafo em seu Memorial:
“Culturas – Existe neste lote cultura de mandioca, feijão, arroz e milho em pequena escala; uma casa de
morada, alguns outros ranchos e diversas cercas de arame (...)” (p. 31). O escrúpulo em dizer que se tratava de
roças e ranchos dos Kinikinau talvez fosse devido a seu total compromisso do topógrafo com o seu contratante
ou , mais provável, por recomendação expressa deste. Ou ainda porque quisesse passar a impressão que os
kinikinau fossem “agregados” do invasor-requerente.
113
terras que, na vigência da Constituição de 1934, eram ocupadas pelos silvícolas e
vieram a ser alienadas a terceiros.
Parece isento de dúvida que os títulos dominiais concedidos antes do advento
da Constituição de 1934 estão abrangidos pela declaração de nulidade que do texto
constitucional dimana. Assim, com a disposição do artigo 129, da Constituição,
opera-se uma peculiar e rara espécie de nulidade, a chamada nulidade superveniente
(Nachträgliche Nìchtigkeit – Werner Flume, Das Rechtsgeschäft, vol. II, Berlim, 1979,
p. 550). Trata-se de um inequívoco exemplo de uma ‘lei de proibição (...)’ que alcança
situação já estabelecida”. (Mendes, 1987: 20 – grifos e negrito nossos).
Este é o caso justamente dos Kinikinau no Agachi: se a posse indígena foi violenta
e/ou intimidativamente desafetada por terceiros antes da promulgação da Constituição de
1934, a situação jurídica resultante é a nulidade dos títulos. Tal entendimento é corroborado
por Tourinho Neto, ministro, a época, do TRF da 4ª Região:
"Os indígenas detêm a posse das terras que ocupam em caráter permanente. Certo.
Todavia, se provado ficar que delas foram expulsos, à força ou não, não se pode
admitir que tenham perdido a posse, quando sequer, como tutelados, podiam agir
judicialmente; quando sequer desistiam de tê-la como própria”.
O Ministro Tourinho Neto não discorre, entretanto, se “tê-la como própria” requereria
dos indígenas, a seu juízo, o embate contínuo e físico com aqueles que os expulsaram. Como
poderia ocorrer ou se dar então a “não desistência” daqueles? Pode-se deduzir que na
concepção do ministro Tourinho Neto – que não confundia posse civil com a indígena, como
fica claro ao longo do inteiro teor do seu voto – “tê-la como própria” poderia ser, sobretudo e
exclusivamente, “possuí-la” em sua história, ou seja, em sua memória – e esta persistência
podendo então significar a sua não-desistência, como buscou-se demonstrar e documentar
neste Relatório.
E igualmente o professor constitucionalista José Afonso da Silva segue essa linha
interpretativa:
Quando a Constituição declara que as terras tradicionalmente ocupadas pelos
índios se destinam à sua posse permanente, isso não significa um pressuposto
do passado como ocupação efetiva, mas, especialmente, uma garantia para o
futuro, no sentido de que essas terras inalienáveis e indisponíveis são
destinadas, para sempre, ao seu habitat. (2015: 16)
Não se compadece com a Constituição essa concepção de que o esbulho não
se refere ao passado, pois enquanto a comunidade usurpada existir os
direitos às suas terras perduram, porque a Constituição, art. 231, § 4°,
declara que são terras inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas,
imprescritíveis (...). Vale dizer, pois, que a comunidade despojada de suas
terras pelos não-índios tem direito a elas retomar a qualquer tempo e isso
deve ser garantido pelo Poder Público, inclusive o Poder Judiciário, que tem
o dever de proteger e fazer respeitar todos os bens dos índios, nos termos do
114
caput do art. 231 da Constituição. (2015: 18)
O termo "marco" tem sentido preciso. Em sentido espacial, marca limite
territorial. Em sentido temporal, como é o caso, marca limites históricos, ou
seja, marca quando se inicia algum fato evolutivo. O documento que marcou
o início do reconhecimento jurídico-formal dos direitos dos índios foi a Carta
Régia de 30 de junho de 1611, promulgada por Fellipe III, que firmou o
princípio de que os índios são senhores de suas terras, "sem lhes poderem ser
tomadas, nem sobre elas se lhes fazer moléstias ou injustiça alguma”. (2015:
23).
Jurídica e faticamente, como aqui se argumentou, as terras do povo Kinikinau aqui
delimitadas são indígenas – e desde antes da guerra com o Paraguai – e aqueles indígenas têm
o direito à sua reocupação a qualquer tempo e tal reocupação deve ser assegurada e garantida
pelo Poder Público.
6.2 Situação fundiária atual
Inicialmente, o antropólogo responsável por este Relatório consultou os arquivos
públicos no SICAR (Sistema do Cadastro Ambiental Rural - CAR) para a região englobada na
proposta de delimitação aqui apresentada, ali encontrando 07 (sete) imóveis parcialmente
incidentes. Entre estes imóveis aparece uma área cujo(s) interessado(s) não havia(m) lançado
nenhuma informação no CAR até o dia 10/11/2018. Algumas pessoas da região dizem que seu
pretenso proprietário é residente no Paraguai ou mesmo paraguaio de origem. Chamam o
referido imóvel de “Fazenda Inhuma”.
Está ainda englobada/incidente na proposta a área dominial indígena denominada
Nossa Senhora de Fátima (linhas brancas na Figura 7 abaixo), com 88,88 hectares (FUNAI,
2018) e adquirida para indígenas Terena com parte da indenização recebida da GASPOL pela
cessão de parte da TI Pilade Rebuá (zona urbana hoje de Miranda) para passagem do
gasoduto Brasil-Bolívia. Ali reside atualmente uma família extensa Terena oriunda de Pilade
Rebuá. Quando da aprovação pela FUNAI da delimitação aqui proposta, o antropólogo
responsável por este Relatório de Fundamentação sugere que conste do documento técnico
(parecer) os Termos do Acordo de Uso (ou documento equivalente) que deverá ser feito entre
os Kinikinau e os moradores da Nossa Senhora de Fátima quanto às restrições de uso sobre a
gleba.
Segue abaixo (págs. 116 a 122) a relação dos imóveis incidentes com as coordenadas
lançadas no SICAR para efeitos de indenização de boa fé das benfeitorias existentes e para a
nulidade dos seus títulos de domínio.
115
Figura 7 – Proposta de Delimitação da Terra Indígena Kinikinau do Agachi e os imóveis incidentes (SICAR, em 20/05/2018 – cópia A3 anexa ).
116
IMÓVEL Nº 1 – SEM CADASTRAMENTO NO SICAR
IMÓVEL Nº 2
117
IMÓVEL Nº 3
118
IMÓVEL Nº 4 (Provável origem nas posses “São João da Barra do Agachy” e
“Paraíso”)
119
120
IMÓVEL Nº 5
121
IMÓVEL Nº 6:
122
IMÓVEL Nº 7 SEM CADASTRAMENTO NO SICAR
NOTA: o imóvel nº 7 está inserido em uma área não declarada no CAR, possivelmente a
mencionada “Fazenda Inhuma”.
A Terra Indígena Kinikinau do Agachi aqui delimitada possui uma área de cerca de
4.000 (quatro mil) hectares e um perímetro aproximado de 28.000 (vinte e oito mil)
metros.
123
PARTE 7 CONCLUSÃO E DELIMITAÇÃO
Um tal de Gaúcho e seus capangas começaram a visitar nossa aldeia
dizendo que aquelas terras foram todas compradas por ele e que nos
deveríamos desocupa-las, pois se não o fizéssemos o nosso gado começaria
a morrer aos poucos e nos também. O SPI nada fez para impedir essa
situação, quando meus pais o procuraram. Aos poucos a boiada do Gaúcho
foi tomando conta do nosso campo e não era aceita conversa com ele, mas
os capangas nos recebiam com tiros de espingarda e fuzis (Leôncio
Anastácio apud Souza, 2008 in CASTRO, 2010: 304).
Não existe afirmação plena de um povo sem sua base territorial afirma-se na
Apresentação deste Relatório Antropológico de Fundamentação. E aqui se demonstrou que os
Kinikinau são um povo, a despeito de tudo e de todos. Os direitos coletivos de um povo
indígena sobre sua base territorial tradicional são imprescritíveis, diz o Artigo nº 231 da
Constituição vigente – não importando se dela o povo indígena foi desapossada, à força ou
não. O vocábulo povo aqui tem o sentido de uma comunidade que se reconhece com tal e que
preservam o sentimento de solidariedade mútua, além da língua e tradições compartilhadas.
Esse povo indígena, diz a Constituição, é parte do povo brasileiro e conforma com outros
grupos étnicos (afrodescendentes, descendentes de colonizadores e migrantes europeus,
asiáticos e outros) a nação que se chama Brasil.
Mas, dirão, estes outros grupos étnicos não têm ou não precisam de uma base
territorial clara para se afirmarem enquanto tais. Pois é neste ponto que os legisladores e
juristas, portugueses e brasileiros, das mais variadas escolas e posição, inovaram e
constituíram uma nação onde o povo (melhor, povos) originário do lugar a colonizar lhe foi
reconhecido, e depois consagrado, o direito às terras que ocupam. Os momentos históricos da
colonização em que o Estado colonial lhes declarou guerra explícita, o fez tão somente
àqueles povos que se lhes opunha resistência armada, ainda que profundamente desigual.
Mas, vencida a resistência, o Estado colonial (e depois o Império e a ainda a República) os
aceitou como um povo integrado à ordem jurídica do Estado – e que também deveria integrar-
se social e culturalmente, o que é outra história.
Na América do Norte tal não ocorreu, ao contrário: se declarou guerra, por ato do
Congresso, aos povos originários, os tratando assim como outro Estado soberano. Aqui, no
Brasil, a inovação foi de tal grandeza jurídico-política que se permitiu que esses povos
originários possuíssem como usufrutuários perenes, as terras que habitavam, habitaram ou
habitam – e como terras coletivas, parte integrante do território nacional, e mais do que isso,
124
propriedade da União, fato que impõe ao Estado o dever de cuidá-las (demarca-las, assegurar
sua integridade) em nome do povo brasileiro.
Uma inovação sem precedentes no cenário jurídico-político mundial, certamente, e
capaz de fazer inveja aos teóricos do direito, sejam eles alemães ou italianos. Pois nossos
juristas e praticantes do Direito recuperaram uma categoria-chave do direito lusitano (e
brasileiro), o indigenato, para fazê-la a pedra fundamental para estabelecer as relações
jurídico-políticas entre os colonizadores e os povos indígenas que aqui estavam quando da
colonização. Ao fundamentarem esta categoria e a instituírem nas normas e leis nacionais,
nossos juristas e aplicadores do Direito afirmaram que os direitos às terras que ocupam,
ocuparam ou ocupavam os povos originários (indígenas) são anteriores ao estabelecimento do
Estado nacional, que esse direito é congênito, isto é, é herdado e transmitido de geração a
geração.
A posse indígena, já disseram tantos juízes e Ministros dos Tribunais, não se confunde
com a posse civil, nos termos em que as leis e normas regulam a posse de bens entre
indivíduos. É uma posse coletiva, congruentemente inalienável nestes termos – pois deve ser
preservada para as gerações futuras enquanto bem de uma coletividade, um povo indígena. O
fundamento da posse civil é poder dispor do bem; a legislação indigenista, baseada no
indigenato, afirma justamente o contrário – e as Constituições republicanas a partir de 193473
,
todas elas, culminando com a de 1988 consagram esse princípio.
Essa a intenção dos legisladores desde a Constituição de 1934. Entretanto, se a
Constituição anterior, de 1891, a primeira da República, nada diz sobre o regime jurídico das
terras indígenas, isto não quer dizer que os Estados federados poderiam dispor delas a seu bel
prazer – como o fez o Estado do Mato Grosso com as terras dos Kinikinau. A Lei de Terras de
1850 (Lei nº 601) do Império e seu Regulamento nº 1.318 de 1854 continuaram sendo
aplicadas naquilo que não confrontavam o marco constitucional. Tanto é assim que muitas das
Constituições dos Estados federados as copiaram74
. O Parecer do então Procurador da
73 “Será respeitada a posse de terras de silvícolas que nelas se achem permanentemente localizados, sendo-
lhes, no entanto, vedado aliená-las". Artigo 129 da CF.
74 "Quando foi proclamada a República e o domínio das terras devolutas passou aos Estados, estes já estavam
afeiçoados ao processo das legitimações segundo as normas vigentes para toda a nação (amparadas na lei nº
601), de modo que a legislação de terras de cada unidade da federação passou a ser modelada na lei federal,
transplantando desta os princípios dominantes a respeito do assunto" (Linhares de Lacerda, Tratado das Terras
do Brasil, Editora Alba, vol. IV, São Paulo, 1962: 451). E outro autor diz a este respeito: “A Lei de 1850 foi
aceita e adotada, entretanto, com modificações maiores ou menores, pela quase totalidade dos Estados, atentas
as raízes que já lançara no nosso meio, e (dela) bem se pode dizer que simplesmente se multiplicou por tantos
atos legislativos, quantos os Estados que a reuniram ao seu regime administrativo" (Cirne Lima, Pequena
125
República Gilmar Ferreira Mendes (em anexo), comentado na Parte 2 é definitivo sobre esta
questão.
Os documentos dos processos originais de legitimação das posses São João da Barra
do Agachy, Agachy, Bahia Maria do Carmo e Paraíso, antes analisados, testemunham e
provam que os Kinikinau estavam aldeados em lugar certo e conhecido desde pelo menos
1896 (quando da demarcação da posse São João da Barra do Agachy), de sorte que o “Diretor
de Índios” (que, como se lê no documento citado, agia como procurador dos índios naqueles
processos – como determinava o Regulamento das Missões de 1845 e que em 1896 ainda era
observado, tal como a Lei de Terras e seu Regulamento de 1854) deveria indicar e propor ao
“Diretor Geral das Terras Públicas” a reserva daquelas terras “para o aldeamento dos
Kinikinau” – aliás, como se diz ,“aldeamento dos Kinikinau”, em vários trechos dos citados
processos de legitimação das posses citadas. Mas, viu-se, não foi isso o que ocorreu, já que o
Diretor de Índios era ao mesmo tempo o Intendente da vila de Miranda e como tal, como dizia
Cândido Rondon, ligado aos “chefetes que infelicitavam aqueles sertões”. Assim, mesmo que
os Kinikinau, à época, tivessem deixado as terras do seu aldeamento no Agachi por livre e
espontânea vontade (o que, como acima demonstrado, não foi o caso), estas terras deveriam
ter revertido por ato de ofício ao patrimônio da União, como determinava o Regulamento
1.318 de 1854 e que a legislação do Estado do Mato Grosso previa75
.
As omissões do Estado – sejam elas da parte do Mato Grosso ou da União, do Diretor
Geral das Terras Públicas do Império ou do SPI – são, no caso dos Kinikinau, claras e óbvias,
como aqui demonstrado. E em qualquer tempo tais omissões podem e devem ser reparadas e
assim se manifestaram juízes federais em casos semelhantes:
Portanto, não merece prosperar a alegação dos autores, no sentido de que o
Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação da Terra Indígena
Cachoeirinha foi elaborado indevida e excessivamente com base em relatos orais
feitos por índios Terena. Com efeito, a História documentada demonstra que
esses índios habitavam, pacificamente, a região da denominada Terra Indígena
Cachoeirinha, desde o século XVIII, e que somente dela se retiraram, para fugir
do conflito armado estabelecido pela Tríplice Aliança, com o Paraguai; e que, ao
tentarem retornar para essas terras, após tal conflito, foram impedidos de
recuperá-las, pelas pessoas que delas haviam se apossado, aproveitando-se da
ausência dos índios e valendo-se de títulos concedidos irregularmente pelo
Estado. Enfim, essa documentação demonstra que os índios foram retirados à
História Territorial Brasileira, ESAF, 1988: 72).
75 No caso específico do Mato Grosso, a legislação estadual (Lei nº 20, de 09/11/1892; Regulamento nº 38 de
15/02/1893 e Decreto nº 75 de 04/08/1897), seguiu, no tocante as terras ocupadas pelos índios, os termos do
Regulamento de 1854.
126
força, dos espaços que tradicionalmente ocupavam, e depois confinados em
minúsculas ou pequenas reservas, onde vivem até os dias atuais; mas que em
várias ocasiões manifestaram a intenção de retomá-los. É a tradicionalidade
reconhecida retroativamente, de que falou o Egrégio Pretório Excelso.
Demonstrado o caráter originário da presença dos índios nas terras do imóvel de
que se trata, bem como que a retirada deles do imóvel não foi voluntária, e, bem
assim, que subsiste, nos mesmos, o intento da retomada, prevalecem os direitos
constitucionalmente a eles assegurados, de forma que, em tal situação, o título de
propriedade dos autores não deve prevalecer (...). A atual Constituição Federal
declarou que as terras tradicionalmente ocupadas por índios pertencem à União
(artigo 231) e a eles são afetadas; e o Egrégio Pretório Excelso decidiu que essas
posses, mesmo perdidas involuntariamente antes de 05 de outubro de 1988,
devem ser como tal reconhecidas. O Direito é obra do legislador e, quando for o
caso, deve ser aplicado pelo julgador. É o que estou fazendo em relação às terras
objeto do litígio travado neste processo. Porque colmatada pelos normativos de
regência, e extraída da minha livre apreciação, tenho que esta decisão preenche
os requisitos de juridicidade e de justiça. Deram-me os fatos e estou dando o que
me parece ser o Direito. Diante do exposto, revogo as decisões de fls. 1589-1596
e 1795, e julgo improcedente o pedido material desta ação. Dou por resolvido o
mérito do dissídio posto, nos termos do artigo 269, inciso I, do CPC (...). Campo
Grande, 18 de maio de 2015 - Renato Toniasso, Juiz Federal Titular em Decisão
no Processo nº 0012329-62.2003.403.6000.
Improsperável argumento de que caberia o reconhecimento de um “direito
adquirido” dos autores para não penalizá-los pelos equívocos do Estado ou do
SPI na condução da ocupação da região. Inconcebível legitimar, sob o prisma da
Carta Magna vigente, a transferência viciada desde sua origem que se operou,
em detrimento do direito primário dos índios. Ao Judiciário cabe a reparação das
injustiças que ao longo do tempo se acumularam até desembocar nesta demanda.
– Quanto ao cabimento da conceituação jurídica das terras da região do Buriti
como tradicionalmente ocupadas pelos Terena, o conhecido Alvará Régio de
abril de 1680, estendido posteriormente, em 1758, a todo o Brasil, reconheceu
como originário o direito dos índios às próprias terras, fonte primária e
congênita da posse. Posteriormente, a Lei nº 601, de 18 de setembro de 1850,
conceituou as chamadas terras devolutas e deixou claro que entre elas não se
incluíam aquelas ‘concessões do Governo’. A transferência destas últimas aos
Estados pela Constituição de 1891 (artigo 64) manteve sob domínio da União
aquelas pertencentes aos indígenas. Consequentemente, as alienações feitas a
particulares pelo Estado do Mato Grosso das terras Terena como se fossem
devolutas não têm legitimidade, bem assim os títulos acostados aos autos e a
cadeia dominial derivada, independentemente da boa fé dos adquirentes.
ACÓRDÃO – Votos dos Desembargadores Federais André Nabarrete e
Ramza Tartuce - EMBARGOS IINFRINGENTES nº0003866-
05.2001.4.03.6000/MS 2001.60.00.003866-3 MS.
127
Portanto, o direito dos Kinikinau de reocuparem suas terras tradicionais é, assim nos
parece, líquido e certo, como aqui se demonstrou. E para que esta reocupação se torne factível
os Kinikinau devem contar com o concurso do Estado, tanto no que respeita o Executivo
(FUNAI) quanto o Ministério Público Federal, dado que a proteção do patrimônio da União e
a defesa dos interesses e direitos indígenas são deveres daqueles entes da República
consignados na Carta Magna de 1988.
DELIMITAÇÃO
A delimitação aqui proposta não restitui a totalidade do território tradicional Kinikinau no
Agachi. E isto porque tal a tarefa está além da capacidade da equipe responsável por este
Relatório já que recompor, com algum grau de certeza, a área de ocupação dos Kinikinau no
Agachi por meio das coordenadas, rumos e azimutes lançadas nos processos originais é tarefa
para especialistas em topografia – porém, não impossível, com tecnologias hoje disponíveis.
De toda forma a proposta apresentada partiu dos limites dados nos processos examinados.
Vale ainda salientar que se respeitou a situação atual da região e da vistoria realizada por
membros do povo Kinikinau no Agachi junto com a equipe técnica que elaborou este
RELATÓRIO, para o reconhecimento do lugar, em termos de disponibilidade dos recursos
naturais necessários para sua habitação permanente, para o desenvolvimento das suas
atividades produtivas, aquelas imprescindíveis à preservação do meio ambiente e, por fim,
àquelas necessárias reprodução física e cultura dos Kinikinau segundo seus usos, costumes e
tradições.
Outro ponto fundamental é relativo às necessárias medidas de proteção àquelas terras
que foram proteladas tanto pelo Estado do Mato Grosso (que as reconhecia desde pelo menos
1896, como visto), o SPI (a partir de 1920, pelo menos – conforme o Documento 9 supra) e
posteriormente pela FUNAI. Segundo entrevista em vídeo76
, Ambrósio de Góis, falecido em
2012, neto de Pedro Marques (vide genealogia nos anexos) conta que a luta dos Kinikinau
para reaverem a posse no Agachi junto a FUNAI teria início em 1984, com justamente seu
avô Pedro Marques, reivindicando-a junto à administração do órgão por meio de documento.
Ambrósio de Góis, na entrevista, citou um documento que enviou para a FUNAI em 2003,
salientando que estava de partida para Brasília para indagar dos dirigentes do órgão a ausência
de resposta à carta que enviara.
76 Este vídeo se encontra em poder do filho de Ambrósio de Góis, Elias, que disponibilizou cópia para a equipe
responsável por este RELATÓRIO.
128
A FUNAI não apresenta em sua página na internet (www.funai.gov.br) a categoria das
“terras reivindicadas”, mas se sabe que internamente ao órgão a equipe técnica do
departamento responsável (Coordenação Geral de Identificação e Delimitação – CGID, ligada
à Diretoria de Proteção Territorial - DPT) trabalha com esta categoria. Pelo que se conhece
dos procedimentos daquela divisão da FUNAI (CGID), a norma seria nomear um técnico do
quadro funcional da FUNAI para realizar estudos preliminares, procedimento denominado
“qualificação da reivindicação”, que indicariam a viabilidade antropológica, administrativa e
jurídica da reivindicação indígena. A Terra Indígena Agachi do povo Kinikinau está autuada
como tal, área reivindicada, no processo SEI nº 08620.127534/2015-8177
. Mas este
procedimento interno não está previsto ou normatizado no Decreto 1.775/96 do Ministro da
Justiça; este Decreto estabelece que é necessário, como visto na Apresentação deste
documento, a fundamentação antropológica por antropólogo qualificado – e quanto a isso, a
qualificação do antropólogo, não pode restar dúvidas posto que todos os Relatórios de
Identificação elaborados por o antropólogo que assina o presente Relatório foram aprovados
pela FUNAI e pelo Ministro da Justiça.
MEMORIAL DESCRITIVO
id Name X Y
1 Delimitação Kinikinau do
Agachi
-56,138298 -20,315654
2 Delimitação Kinikinau do
Agachi
-56,136005 -20,315348
3 Delimitação Kinikinau do
Agachi
-56,133858 -20,314526
4 Delimitação Kinikinau do
Agachi
-56,132114 -20,314457
5 Delimitação Kinikinau do
Agachi
-56,129316 -20,312884
6 Delimitação Kinikinau do
Agachi
-56,126545 -20,311925
7 Delimitação Kinikinau do
Agachi
-56,12259 -20,311927
77
Ofício nº 908/2018/DPT-FUNAI
129
8 Delimitação Kinikinau do
Agachi
-56,119411 -20,311957
9 Delimitação Kinikinau do
Agachi
-56,116816 -20,311194
10 Delimitação Kinikinau do
Agachi
-56,113243 -20,30972
11 Delimitação Kinikinau do
Agachi
-56,108526 -20,310734
12 Delimitação Kinikinau do
Agachi
-56,104318 -20,311065
13 Delimitação Kinikinau do
Agachi
-56,101737 -20,31217
14 Delimitação Kinikinau do
Agachi
-56,100898 -20,312406
15 Delimitação Kinikinau do
Agachi
-56,098201 -20,312619
16 Delimitação Kinikinau do
Agachi
-56,095804 -20,314297
17 Delimitação Kinikinau do
Agachi
-56,095898 -20,314696
18 Delimitação Kinikinau do
Agachi
-56,09594 -20,316095
19 Delimitação Kinikinau do
Agachi
-56,096565 -20,319782
20 Delimitação Kinikinau do
Agachi
-56,100424 -20,329864
21 Delimitação Kinikinau do
Agachi
-56,103213 -20,335075
22 Delimitação Kinikinau do
Agachi
-56,104318 -20,336988
23 Delimitação Kinikinau do
Agachi
-56,10553 -20,344406
24 Delimitação Kinikinau do -56,102641 -20,350961
130
Agachi
25 Delimitação Kinikinau do
Agachi
-56,10243 -20,351747
26 Delimitação Kinikinau do
Agachi
-56,097924 -20,354304
27 Delimitação Kinikinau do
Agachi
-56,097306 -20,355936
28 Delimitação Kinikinau do
Agachi
-56,094195 -20,359834
29 Delimitação Kinikinau do
Agachi
-56,092823 -20,363182
30 Delimitação Kinikinau do
Agachi
-56,093763 -20,367469
31 Delimitação Kinikinau do
Agachi
-56,095712 -20,372856
32 Delimitação Kinikinau do
Agachi
-56,096316 -20,378086
33 Delimitação Kinikinau do
Agachi
-56,096275 -20,382648
34 Delimitação Kinikinau do
Agachi
-56,098056 -20,384527
35 Delimitação Kinikinau do
Agachi
-56,099667 -20,384751
36 Delimitação Kinikinau do
Agachi
-56,105675 -20,38211
37 Delimitação Kinikinau do
Agachi
-56,111232 -20,384273
38 Delimitação Kinikinau do
Agachi
-56,115441 -20,386026
39 Delimitação Kinikinau do
Agachi
-56,121266 -20,385459
40 Delimitação Kinikinau do
Agachi
-56,125457 -20,384326
131
41 Delimitação Kinikinau do
Agachi
-56,129423 -20,382396
42 Delimitação Kinikinau do
Agachi
-56,133866 -20,38285
43 Delimitação Kinikinau do
Agachi
-56,138134 -20,384229
44 Delimitação Kinikinau do
Agachi
-56,139085 -20,383264
45 Delimitação Kinikinau do
Agachi
-56,139556 -20,378494
46 Delimitação Kinikinau do
Agachi
-56,140612 -20,373574
47 Delimitação Kinikinau do
Agachi
-56,142715 -20,373149
48 Delimitação Kinikinau do
Agachi
-56,148158 -20,372761
49 Delimitação Kinikinau do
Agachi
-56,152033 -20,371855
50 Delimitação Kinikinau do
Agachi
-56,151337 -20,369359
51 Delimitação Kinikinau do
Agachi
-56,147408 -20,365724
52 Delimitação Kinikinau do
Agachi
-56,146366 -20,360677
53 Delimitação Kinikinau do
Agachi
-56,148958 -20,359948
54 Delimitação Kinikinau do
Agachi
-56,153374 -20,352408
55 Delimitação Kinikinau do
Agachi
-56,153055 -20,350942
56 Delimitação Kinikinau do
Agachi
-56,151912 -20,347117
57 Delimitação Kinikinau do -56,15259 -20,345542
132
Agachi
58 Delimitação Kinikinau do
Agachi
-56,152516 -20,344069
59 Delimitação Kinikinau do
Agachi
-56,14883 -20,339338
60 Delimitação Kinikinau do
Agachi
-56,14424 -20,334565
61 Delimitação Kinikinau do
Agachi
-56,141411 -20,329552
62 Delimitação Kinikinau do
Agachi
-56,139552 -20,327167
63 Delimitação Kinikinau do
Agachi
-56,138655 -20,324661
64 Delimitação Kinikinau do
Agachi
-56,138538 -20,322285
65 Delimitação Kinikinau do
Agachi
-56,140696 -20,320482
66 Delimitação Kinikinau do
Agachi
-56,139553 -20,316623
67 Delimitação Kinikinau do
Agachi
-56,139255 -20,316028
133
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RELAÇÃO DOS ANEXOS
1. Processo de legitimação da Posse “São João da Barra do Agachy, Agachy e Betimigo”
2. Processo de legitimação da Posse “Bahia Maria do Carmo”
3. Processo de legitimação da Posse “Paraíso ou Agachy”
4. Genealogias dos troncos familiais Kinikinau
5. Documentos de lideres Kinikinau enviados à FUNAI
6. Parecer Procurador GILMAR FEREIRA MENDES
7. Parecer Prof. Dr. JOSÉ AFONSO DA SILVA, sobre o “Marco Temporal”.
GILBERTO AZANHA
Antropólogo