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RELEVÂNCIA DOS PROCESSOS JUDICIAIS PARA O ESTUDO E COMPREENSÃO DO CRIME DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA PRATICADA POR FILHOS CONTRA OS PAIS, EM ARACAJU NO SÉCULO XIX (1855-1889) Jeremias Romão de Brito 1 Faculdade Pio Décimo [email protected] PALAVRAS-CHAVE: Processos Judiciais – Violência Doméstica e Educação. INTRODUÇÃO Este trabalho está fundamentado principalmente em dados coletados em fontes de natureza documental. Com o objetivo de formar um banco de dados, a partir do qual eu poderia reunir as informações históricas necessárias para elaboração da minha Dissertação de Mestrado, formei um grupo de pesquisa em agosto de 2006, o qual se estendeu até março de 2007, fazendo o levantamento de 849 processos, 18 são relativos ao crime de violência doméstica em Aracaju na segunda metade do século XIX. Para compreender de que modo a violência doméstica era produzida e reproduzida a partir das relações sociais que se davam entre as pessoas, o trabalho levou em consideração as categorias de habitus, civilização e configuração a partir dos pressupostos de Norbert Elias, do mesmo modo, para compreender as categorias de violência e poder, encontrei em Hannah Arendt o aporte teórico que me permitiu entender como, porque e a partir de que representações sociais, homens e mulheres se envolviam com o crime de violência doméstica em Aracaju na segunda metade do século XIX. Deste modo, procurando apreender no decorrer do tempo, os atos de violência nos quais se envolviam homens e mulheres, dividi o marco temporal em quatro décadas e em cada um delas analisei o perfil dos atores sociais, com o propósito de verificar década após década, se através da educação como processo civilizador, novo habitus, 1 Mestrando em Educação (NPGED/UFS), Psicólogo e Teólogo pela Universidade Metodista de São Paulo; Especialista em Violência Doméstica pela USP; Coordenador do Centro de Práticas em Psicologia e Professor de Sexualidade Humana – Faculdade “Pio Décimo”.

RELEVNCIA DOS PROCESSOS JUDIC4IAIS PARA O ESTUDO E ...entender como, porque e a partir de que representações sociais, homens e mulheres se ... a hermenêutica e a fenomenologia,

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RELEVÂNCIA DOS PROCESSOS JUDICIAIS PARA O ESTUDO E COMPREENSÃO DO CRIME DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA

PRATICADA POR FILHOS CONTRA OS PAIS, EM ARACAJU NO SÉCULO XIX (1855-1889)

Jeremias Romão de Brito1 Faculdade Pio Décimo

[email protected]

PALAVRAS-CHAVE: Processos Judiciais – Violência Doméstica e Educação.

INTRODUÇÃO

Este trabalho está fundamentado principalmente em dados coletados em fontes de

natureza documental.

Com o objetivo de formar um banco de dados, a partir do qual eu poderia reunir as

informações históricas necessárias para elaboração da minha Dissertação de Mestrado,

formei um grupo de pesquisa em agosto de 2006, o qual se estendeu até março de 2007,

fazendo o levantamento de 849 processos, 18 são relativos ao crime de violência

doméstica em Aracaju na segunda metade do século XIX.

Para compreender de que modo a violência doméstica era produzida e reproduzida a

partir das relações sociais que se davam entre as pessoas, o trabalho levou em

consideração as categorias de habitus, civilização e configuração a partir dos

pressupostos de Norbert Elias, do mesmo modo, para compreender as categorias de

violência e poder, encontrei em Hannah Arendt o aporte teórico que me permitiu

entender como, porque e a partir de que representações sociais, homens e mulheres se

envolviam com o crime de violência doméstica em Aracaju na segunda metade do

século XIX.

Deste modo, procurando apreender no decorrer do tempo, os atos de violência nos

quais se envolviam homens e mulheres, dividi o marco temporal em quatro décadas e

em cada um delas analisei o perfil dos atores sociais, com o propósito de verificar

década após década, se através da educação como processo civilizador, novo habitus,

1 Mestrando em Educação (NPGED/UFS), Psicólogo e Teólogo pela Universidade Metodista de São Paulo; Especialista em Violência Doméstica pela USP; Coordenador do Centro de Práticas em Psicologia e Professor de Sexualidade Humana – Faculdade “Pio Décimo”.

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2 novas configurações surgiram e se tiveram algum tipo de influência no modo como

homens e mulheres agiam e reagiam diante do crime de violência doméstica.

De acordo com a tabela abaixo assim estão distribuídos por década, Vara Criminal e

Cartório, os 849 processos judiciais encontrados no Arquivo Geral do Poder Judiciário

de Sergipe.

TABELA 01 - Divisão por década dos processos de crime de violência doméstica em

Aracaju durante os anos de 1855-1889.

Década Fundo Nº Processos registrados Nº Processos encontrados AJU/1ª V. Cri. 47 03

AJU/ C. 1° Of. 04 -

AJU/C. 2° Of. 116 -

AJU/C. TJ - -

1855 a 1864

Total 167 03 AJU/1ª V. Cri. 51 04

AJU/ C. 1° Of. 20 -

AJU/C. 2° Of. 85 -

AJU/C. TJ - -

1865 a 1874

Total 156 04 AJU/1ª V. Cri. 122 05

AJU/ C. 1° Of. 17 -

AJU/C. 2° Of. 202 02

AJU/C. TJ - -

1875 a 1884

Total 341 07 AJU/1ª V. Cri. 49 02

AJU/ C. 1° Of. 05 02

AJU/C. 2° Of. 127 -

AJU/C. TJ 04 -

1885 a 1889

Total 185 04 Fonte: ARQUIVO GERAL DO PODER JUDICIÁRIO DE SERGIPE. (Aracaju, SE). Processos Judiciais referentes ao crime de violência doméstica em Aracaju, na segunda metade do século XIX. Aracaju, (1855-1889).

Os Crimes

À medida que o processo de coleta e análise dos dados ia se desenvolvendo, as

evidências iam demonstrando que na segunda metade do século XIX, em Aracaju, os

crimes de violência doméstica, então denominados de ofensas físicas, predominantes,

eram os praticados por homens contra mulheres.

Estas evidências oriundas do meu diálogo permanente com as fontes, tendo como

instrumento para este diálogo, a hermenêutica e a fenomenologia, fizeram com que eu

abandonasse as minhas convicções, revisse os meus pressupostos teóricos e deixasse até

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3 onde me foi possível, porque o pesquisador não é neutro; que as fontes indicassem o

rumo a ser seguido.

Desse modo, dos 18 processos encontrados sobre o crime de violência doméstica,

num universo de 849 processos, a maioria deles era referente ao crime de violência

física, mais especificamente, praticado por homens contra mulheres, conforme

demonstra o gráfico abaixo:

67%

33%

FísicaFísica fatalSexualPsicológica

Gráfico 01 - Natureza dos crimes de violência doméstica em Aracaju na segunda metade do século XIX (1855 a 1864) Fonte: ARQUIVO GERAL DO PODER JUDICIÁRIO DE SERGIPE. (Aracaju, SE). Processos Judiciais referentes ao crime de violência doméstica em Aracaju, na segunda metade do século XIX. Aracaju, (1855-1889).

Desse modo, os tipos de violência encontrados com mais freqüência são, a violência

doméstica de natureza física e a violência doméstica de natureza sexual, ou crime de

ofensa a honra como era chamado este tipo de crime, no final da segunda metade do

século XIX.

Os crimes de ofensas físicas mais comuns eram: bofetão, que era um tapa dado com

a mão aberta no rosto de uma outra pessoa. Além de ser uma ofensa física, este tipo de

crime representava um ato de superioridade para quem o praticava, demonstrando a

inferioridade, a insignificância da vítima. Um outro tipo de crime nesta categoria de

ofensa física, era o sopapo, um soco, dado no rosto, de baixo para cima. Além desses

crimes as fontes revelaram também que os homens agrediam as mulheres com murros

na cabeça, chute na barriga, neste caso, um escravo, matou sua amásia e o seu filho

ainda no ventre materno. Existiam também os crimes cometidos por cassetada, foiçada,

machadada e baionetada.

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4 Por outro lado, o crime de violência doméstica, de natureza sexual ou ofensa à

honra, está dividido em duas categorias. O crime de defloramento e o crime de estupro.

Nos crimes de violência doméstica de violência doméstica de natureza física,

existem dois que pelas circunstâncias, pelos atores sociais envolvidos, pelo modo como

os operadores do direito recebiam as denúncias, pelas representações sociais que

estavam envolvidos no discurso das vítimas, dos agressores, das testemunhas e os

laudos periciais, merecem ser destacados e analisados separadamente. Trata-se de dois

crimes de violência doméstica de natureza física praticados por dois filhos contra suas

respectivas mães.

No primeiro crime, um filho, ao chegar bêbado em casa, se desentendeu com a mãe,

razão pela qual lhe dera algumas cassetadas.

Quem eram os atores sociais envolvidos neste crime? O que faziam? Que idade

tinham quando o crime foi praticado?

De acordo com os autos do processo,

Aos seis dias do mês de fevereiro do anno de nascimento de nosso Senhor Jesus Christo de mil oitocentos e setenta e um nesta cidade do Aracaju Capital da Província de Sergipe em casa de residência do subdelegado de policia em exercício o cidadão Ramiro Rodrigues da Costa comparecerão dois soldados do corpo de polícia que andavão na patrulha, Scundino José da Costa e João Dias da Silva disendo que havia prendido ao liberto Jorge Soares o disserão que achava espan-/cando sua própria mãe do que produzio ferimentos e por isso com-/duzio a presença deste juiso, sen-/do acompanhado pelos mesmos/ condutores que se achavão policiando2.

Como o agressor foi preço em flagrante imediatamente foi conduzido à presença do

sub-delegado em exercício, que após os procedimentos legais de rotina, encaminhou à

presença do juiz, que ato contínuo passou a interrogá-lo nos seguintes termos, de acordo

com o processo e sua descrição do procedimento do magistrado:

[...] perguntou-lhe qual seo nome, filiação, idade, estado, profissão, naturalidade e se/ sabe ler e escrever. Respondeo chamar-se Jorge Soares de idade/trinta e cinco anos, filho natural de Germana Maria da Conceição/solteiro, vivi de suas agencias, natural de penedo, não sabe ler nem escrever. Perguntado mais o juis se era verdade ter commetido o crime pelo/ qual tinha sido preso Respondeo que chegando da rua/embriagado e travando uma ques/tão com ella pegou em um cassete/e sobre ella cahio e resultou os ferimentos3.

Nos estudos que realizei tendo os processos judiciários como fontes, em relação à

cor da cútis dos atores sociais envolvidos com o crime de violência doméstica em

Aracaju na segunda metade do século XIX, as cores que predominavam eram a alva e a

parda. No caso da cor da cútis do agressor aludido neste processo, embora ela não seja

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5 informada, entende-se que por ele ser liberto, então, havia sido escravo, cuja cor era a

da raça negra.

De acordo com os autos do processo, um dia após a prisão do agressor ocorrida no

dia seis de fevereiro de um mil oitocentos e setenta um, foi ouvida a vítima que

inquirida pelo juiz respondeu às seguintes perguntas:

[...] Qual o seo nome Respondeo chamar-se Germana Maria. Que idade tem Repondeo ter 60 annos pouco mais/ou menos. É solteira ou casada. Respondeo ser solteira. De quem é filha. Respondeo ser filha legítima de/Manoel Necassio e Elena Maira/digo Elena Custódia. De onde é natural. Respondo ser da Província das Ala/goas. De que vive. Respondeo que de seos negócios. Como se tinha passado o fato alegado. Respondeo que botando aveia elle/Jorge entrou a correr, mas apagando-se aluz, sahio e disse que hia queixar-se a justiça que a luz tinha se apagado, mas quando/voltou aconteceo que lhe maltratou / com palavras injuriosas e dahi/ passou a dar-lhe muitas panca/das com um cassete4.

Neste processo, de acordo com os autos, o sub-delegado, o escrivão de polícia e o

juiz foram até a residência da ofendida pra que ela pudesse dar o seu depoimento, o que

poderá significar falta de condições físicas e psicológicas para se locomover até a sub-

delegacia, em função das cassetadas que recebera do filho.

Assim, ao notificar o agressor sobre a decisão da justiça de mantê-lo preso, o

escrivão informou o endereço onde o agressor e a vítima residiam. Deste modo, de

acordo com os dados contidos no processo, o escrivão relata a fala do sub-delegado, na

qual o endereço da vítima e do agressor foi citado. De acordo com o texto, o escrivão

informou que,

O cidadão Ramiro Rodrigues da Costa subdelegado em exercício. Neste/termo na forma da lei. Faço saber a Jorge Suares/ que se acha a disposição deste/juízo pelo crime occasionado, na pessoa de sua mãe Germana/Maria da Conceição no dia 6/ do corrente em sua casa na rua/ direita da Matris desta cidade/ pelo qual crime tem a polícia/ de prosseguir nos termos da lei./ Do que deve ficar ciente5.

Ao tomar conhecimento do endereço dos atores sociais envolvidos com o crime de

violência doméstica em Aracaju na segunda metade do século XIX, neste processo, dois

fatos me chamaram atenção. Primeiro, a vítima e o agressor eram pessoas inseridas no

mercado de trabalho de então, ela vivia “de seos negócios” ele vivia “de suas agências”,

de acordo com os autos do processo. Neste sentido, as evidências de que mãe e filho

eram pessoas com relativo poder aquisitivo, tornam-se mais fortes, com a revelação do

local onde moravam e este é o segundo fato que destaco neste processo.

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6 Neste sentido, na segunda metade do século XIX, Aracaju, a cidade menina, como

era chamada, estava em franco desenvolvimento, e morar na rua Direita da Matriz

poderia ser evidência de prosperidade.

Neste sentido, as figuras a seguir mostram como era Aracaju no século XIX.

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9 Percebe-se através das figuras, que a cidade do Aracaju estava em construção, as

ruas, os prédios, as palmeiras ainda pequenas, o estilo das casas, as praças e jardins

atestam isso.

Em 1859, portanto, 4 anos após a transferência da capital de São Cristóvão para o

povoado de Santo Antônio do Aracaju, o médico e viajante alemão Ave L’ Allement, no

“livro viagem pelo Norte do Brasil”, referindo-se ao progresso da construção da jovem

cidade afirma,

Tem aspecto sumamente agradável. Tudo é bonito e novo na margem (do rio) embora muito provisório. A residência do Presidente, a Câmara Provincial dos Deputados, um quartel, uma igreja e até uma loja maçônica – tudo ostenta na sua pequenês e exigüidade de espaço, primorosa e bonita aparência. Por toda parte se trabalha, por toda parte se constrói, se cria6.

Em 1889, quando houve a queda do Segundo Império, a cidade do Aracaju, então

com 34 anos, dava mostras do ritmo do seu progresso.

Neste sentido, descrevendo o acelerado desenvolvimento da cidade menina, Maria

Thetis Nunes escreve,

Tem 5 praças, uma grande matriz e mais uma igreja, 13 edifícios públicos entre os quais o Palácio do Governo, a Assembléia Provincial, o Atheneu, Tesouraria Geral e Provincial, Alfândega, Hospital de Caridade, os quartéis de linha e policia, arsenal de menores, cadeia vasta, bem construída e bem elegante, tem uma fundição de ferro, uma fábrica de sabão montada a vapor, e uma fábrica de tecidos em construção. Tem iluminação pública, espaçosas e bem alinhadas ruas com os nomes das localidades do interior e uma elegante e pitoresca vista7.

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12 De acordo com os autos do processo, todas as cinco testemunhas depuseram a

favor da vítima, incluindo-se entre elas um dos policiais que efetivaram a prisão.

Além dos soldados de polícia, secundino José da Costa e João Dias da Silva que

presenciaram o crime e prenderam o agressor, a senhora Elena Maria de Jesus, ao

prestar seu depoimento afirmou que,

[...] estando sentada em uma das noites neste mes por nove a des horas em sua porta e depois chegando o reo acontece que aparece que aparece um seo companheiro e este entrando um gracêjo com elle é quando o réo corre atrás, mas não podendo pegar volta, e encontrando sua mãe sentada na porta ella dissera que elle entrasse dizendo ao mesmo tempo que mal empregado era elle ser forro e nessas alterações lança mão de um cassete dando lhe algumas cassetadas das quais resultarão ferimentos que a deixou em estado de não se mover8.

Após ter ouvido os depoimentos das cinco testemunhas e ter feito o interrogatório

do agressor por três vezes, o juiz apresentou ao corpo de jurados nove quesitos.

De acordo com os autos do processo os quesitos e suas respectivas respostas são:

1° O réo Jorge Suares no dia 6 de fevereiro do corrente anno commeteo ferimentos na pessoa de sua mãe Germana Maria? Sim por unanimidade de votos. [...]. 2° O réo commeteo o facto criminoso com a circunstância da superioridade em sexo? Sim por unanimidade de votos. [...] 3° O réo commeteo o facto criminoso com a circunstancia de ser descendente? Sim por unanimidade de votos. [...]. 4° O réo commeteo o facto com superioridade em armas? Sim por unanimidade. [...]. 5° O réo tem circunstancias atenuantes em seu favor? Sim por unanimidades de votos. [...]. 6° O réo commeteo o facto criminoso em estado de embriagez? Sim por unanimidade de votos. [...]. 7° Assim praticando o réo teve já projectado o crime antes da embriaguez? Não por unanimidade de votos. [...]. 8° Assim praticando procurou o réo a embriaguez para cometer o crime? Não por unanimidade de votos. [...]. 9° O réo tem por costume embriagar-se e commeteo o crime? Não por unanimidade de votos. [...]9.

Deste modo, ao final do juri e levando em consideração as respostas dadas para cada

quesito, de acordo com o processo, o juiz condena o agressor nos seguintes termos:

Em vista da decisão do jury julgamento o réo Jorge Soares incurso no grao médio do art. 201 do cód. criminal condenno a 6 mezes e 15 dias de prisão simples e a multa correspondente a metade do tempo, bem como nas custas. Designo a cadeia desta cidade para cumprir a pena. Sala das sessões do Jury na cidade de Aracajú em 10 de agosto de 1871. Juiz de direito interiono, José Fiel10.

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13 Apesar do agressor ter sido condenado a uma pena de 6 meses e 15 dias, o que lhe

permitiria ficar na cadeia no máximo até 15 de março de 1872, os autos do processo

revelaram que,

Jorge Soares tendo cumprido a sentença do tribunal do Jury que o condenou a 6 meses e 15 dias de prisão simples e a multa correspondente a metade do tempo, vem pedir a V. Sa. se serve mandar passar mandado de soltura em favor do suplicante11.

Deste modo, há evidencias de que o agressor tenha permanecido mais tempo na

cadeia, pois o mandado de soltura somente foi expedido no dia 9 de junho 1872.

Assim, não encontrei no processo nada que me pudesse esclarecer se o agressor

ficou realmente mais do que o tempo estipulado na sentença proferida pelo juiz, ou

então, saiu no tempo correto, no entanto o pedido de soltura foi apresentado

tardiamente, restando ainda a dúvida se a multa relativa à metade do tempo, estaria se

referindo ao acréscimo de cinqüenta por cento do tempo à pena estipulada pelo juiz, o

que levaria a se cumprir na data do pedido do mandado de soltura.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Embora os autos do processo não façam alusão ao exame do corpo de delito e

consequentemente não haja laudo pericial, os dados coletados na pesquisa de natureza

documental revelam as circunstancias nas quais o crime foi praticado, deixando também

evidente sua gravidade e extensão.

O depoimento da vítima, aliado aos das testemunhas e levando-se em consideração

também o discurso do próprio agressor, foram sem dúvida, relevantes, para que o juiz o

condenasse.

Há nesse processo, como em outros tantos que foram pesquisados, o uso do artifício

legal das atenuantes, com o objetivo de suavizar a pena e até mesmo, evitar que o

agressor fosse condenado. Penso que um dos valores históricos desse processo, são os

detalhes que nele são descritos, como é o caso da mãe ofendida fisicamente, desejar que

o filho que a havia espancado, continuasse sendo escravo, dando a entender que ele era

liberto. Por outro lado, os depoimentos das testemunhas, especialmente os das

testemunhas oculares, descreveram com detalhes o que filho disse para mãe antes de

espancá-la com um cassete, descrevendo também o comportamento da mãe e sua

preocupação com o filho embriagado.

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14 Historicamente, os processos judiciais são relevantes para a compreensão do

modo de ser, pensar e agir da sociedade patriarcalista na segunda metade do século XIX

em Aracaju.

No caso desse processo, sua relevância para se compreender a relação parental, em

Aracaju na segunda metade do século XIX, notadamente, a relação entre pais e filhos, é

indiscutível.

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15 NOTAS

2 Processo Judicial do século XIX, encontrado no Arquivo Geral do Poder Judiciário de Sergipe,

Aju 1ª V. Cri., Cx. 01 – 2579.

3 Processo Judicial do século XIX, encontrado no Arquivo Geral do Poder Judiciário de Sergipe,

Aju 1ª V. Cri., Cx. 01 – 2579.

4 Processo Judicial do século XIX, encontrado no Arquivo Geral do Poder Judiciário de Sergipe,

Aju 1ª V. Cri., Cx. 01 – 2579.

5 Processo Judicial do século XIX, encontrado no Arquivo Geral do Poder Judiciário de Sergipe,

Aju 1ª V. Cri., Cx. 01 – 2579.

6 L’ Allement, Ave, In, Viagem pelo Nordeste do Brasil, pud, Nunes, Maria Thetis. Sergipe

Provincial II, 2006. p. 148.

7 LIMA JÚNIOR, Francisco Antônio de Carvalho. Notícia Histórica da Província de Sergipe. O

Guarany, Ano V, 19.10.1883, Apud, NUNES, Maria Thetis, p. 239.

8 Processo Judicial do século XIX, encontrado no Arquivo Geral do Poder Judiciário de Sergipe,

Aju 1ª V. Cri., Cx. 01 – 2579.

9 Processo Judicial do século XIX, encontrado no Arquivo Geral do Poder Judiciário de Sergipe,

Aju 1ª V. Cri., Cx. 01 – 2579.

10 Processo Judicial do século XIX, encontrado no Arquivo Geral do Poder Judiciário de

Sergipe, Aju 1ª V. Cri., Cx. 01 – 2579.

11 Processo Judicial do século XIX, encontrado no Arquivo Geral do Poder Judiciário de

Sergipe, Aju 1ª V. Cri., Cx. 01 – 2579.

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16 REFERÊNCIAS

L’ Allement, Ave, In, Viagem pelo Nordeste do Brasil, pud, Nunes, Maria Thetis.

Sergipe Provincial II, 2006.

LIMA JÚNIOR, Francisco Antônio de Carvalho. Notícia Histórica da Província de

Sergipe. O Guarany, Ano V, 19.10.1883, Apud, NUNES, Maria Thetis.