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CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 69, p. 477-492, Set./Dez. 2013 477 Manuel Veiga RELIGIÃO E MÚSICA: variações em busca de um tema Manuel Vicente Ribeiro Veiga Junior * DOSSIÊ E eis que, ante a infinita Criação, O próprio Deus parou, desconcertado e mudo! Num sorriso, inventou o Homo sapiens, então, Para que lhe explicasse aquilo tudo... (Mário Quintana, Espelho mágico, XXVIII, 1975) Música se relaciona com religião de várias maneiras, quer nos sistemas de crença, quer no controle do poder. Ambas são universais da cultura. Como não temos conhecimento dos univer- sais empíricos da própria música, o estudo abrangente de sua associação com o sagrado é um duplo desafio. Concentrando-se no homem e para entendê-lo melhor, optou-se pela busca de origens possivelmente comuns, um processo que não enfatiza os monumentos musicais das religiões propriamente ditas e dos caminhos de salvação, Ocidente e Oriente não esquecidos. A volta ao passado mais remoto, aos milênios em que sons humanamente organizados se articu- laram em símbolos, é o ponto crucial. Os ângulos, as concepções, as revisões e os métodos de abordagem da parca evidência disponível constituem as variações de nosso título. Do ponto de vista etnomusicológico, as questões que ressurgem não são sobre que tipo de música foi feita, nem sobre os processos pelo quais a música foi primeiramente criada, mas as razões, isto é, sua necessidade de existência (suas funções). PALAVRAS-CHAVE: Religião e música. Origens e funções. Modelos. Instrumentos. INTROITUS ET CONFITEOR Pode-se imaginar quão mais difícil é para os teólogos do que para os poetas explicarem por que um ou vários deuses criaram o homem e ele ne- cessita ser salvo. Por quê? Do quê? Para quê? Como? Não menos espinhosa é a dúvida se deu- ses criam o homem, ou se é o homem quem inven- ta Deus, ou deuses, até à sua imagem e semelhan- ça. É possível que conheçamos o homem melhor, por sermos um deles; não tanto o Deus ou os deu- ses, que podem ou devem, se quiserem, estar lon- ge de nós, do outro lado, o do sagrado, o do “intei- ramente outro”, indescritíveis em termos comuns. O homem, entretanto, sente necessidade de reli- gião, de ir além de si próprio para que não arque sozinho com a sustentabilidade do mundo e da vida (e morte) que compartilha aparentemente como outros seres e o sagrado. Também faz música. As variações que se seguem penderão mais para o homem do que para os deuses, mais para o elementar do que para o transcendente, mais para a música do que para a religião, embora buscando vínculos entre elas. Eventualmente, uma busca das origens pode propiciar uma ideia mais depurada da natureza de ambas. O procedimento reverso, inevitavelmente especulativo, pode conter petições de princípio diante da indefinição e da carência de documentação que temos. Implica também a adoção de uma escala evolutiva que nem é linear, já sabemos, tampouco necessariamente procede do mais simples para o mais complexo. Música e religião são ambas universais da cultura. Ter música como um universal reflete a presença, em qualquer cultura, de algo parecido com o que, em nossa opinião, chamamos de músi- ca. Mas não temos uma escala para medir seme- lhanças e diferenças. Há grupos humanos tão des- pojados que não têm instrumentos musicais, mas fazem do corpo instrumento para sua música. Por outro lado, ainda desconhecemos os universais empíricos da própria música, isto é, não temos uma definição do necessário e suficiente para que * Doutor em Etnomusicologia. Professor emérito da Uni- versidade Federal da Bahia - UFBA. Membro da Acade- mia Brasileira de Música. Rua: Basílio da Gama, s/n - Campus Universitário do Canela. Cep: 40110-140. Salvador - Bahia - Brasil. [email protected]

RELIGIÃO E MÚSICA: variações em busca de um tema DOSSIÊ

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Manuel Veiga

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Manuel Vicente Ribeiro Veiga Junior*

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E eis que, ante a infinita Criação,O próprio Deus parou, desconcertado e mudo!Num sorriso, inventou o Homo sapiens, então,

Para que lhe explicasse aquilo tudo...(Mário Quintana, Espelho mágico, XXVIII, 1975)

Música se relaciona com religião de várias maneiras, quer nos sistemas de crença, quer nocontrole do poder. Ambas são universais da cultura. Como não temos conhecimento dos univer-sais empíricos da própria música, o estudo abrangente de sua associação com o sagrado é umduplo desafio. Concentrando-se no homem e para entendê-lo melhor, optou-se pela busca deorigens possivelmente comuns, um processo que não enfatiza os monumentos musicais dasreligiões propriamente ditas e dos caminhos de salvação, Ocidente e Oriente não esquecidos. Avolta ao passado mais remoto, aos milênios em que sons humanamente organizados se articu-laram em símbolos, é o ponto crucial. Os ângulos, as concepções, as revisões e os métodos deabordagem da parca evidência disponível constituem as variações de nosso título. Do ponto devista etnomusicológico, as questões que ressurgem não são sobre que tipo de música foi feita,nem sobre os processos pelo quais a música foi primeiramente criada, mas as razões, isto é, suanecessidade de existência (suas funções).PALAVRAS-CHAVE: Religião e música. Origens e funções. Modelos. Instrumentos.

INTROITUS ET CONFITEOR

Pode-se imaginar quão mais difícil é para osteólogos do que para os poetas explicarem por queum ou vários deuses criaram o homem e ele ne-cessita ser salvo. Por quê? Do quê? Para quê?Como? Não menos espinhosa é a dúvida se deu-ses criam o homem, ou se é o homem quem inven-ta Deus, ou deuses, até à sua imagem e semelhan-ça. É possível que conheçamos o homem melhor,por sermos um deles; não tanto o Deus ou os deu-ses, que podem ou devem, se quiserem, estar lon-ge de nós, do outro lado, o do sagrado, o do “intei-ramente outro”, indescritíveis em termos comuns.O homem, entretanto, sente necessidade de reli-gião, de ir além de si próprio para que não arquesozinho com a sustentabilidade do mundo e davida (e morte) que compartilha aparentemente comooutros seres e o sagrado. Também faz música.

As variações que se seguem penderão maispara o homem do que para os deuses, mais para oelementar do que para o transcendente, mais paraa música do que para a religião, embora buscandovínculos entre elas. Eventualmente, uma busca dasorigens pode propiciar uma ideia mais depuradada natureza de ambas. O procedimento reverso,inevitavelmente especulativo, pode conter petiçõesde princípio diante da indefinição e da carênciade documentação que temos. Implica também aadoção de uma escala evolutiva que nem é linear,já sabemos, tampouco necessariamente procede domais simples para o mais complexo.

Música e religião são ambas universais dacultura. Ter música como um universal reflete apresença, em qualquer cultura, de algo parecidocom o que, em nossa opinião, chamamos de músi-ca. Mas não temos uma escala para medir seme-lhanças e diferenças. Há grupos humanos tão des-pojados que não têm instrumentos musicais, masfazem do corpo instrumento para sua música. Poroutro lado, ainda desconhecemos os universaisempíricos da própria música, isto é, não temosuma definição do necessário e suficiente para que

* Doutor em Etnomusicologia. Professor emérito da Uni-versidade Federal da Bahia - UFBA. Membro da Acade-mia Brasileira de Música.Rua: Basílio da Gama, s/n - Campus Universitário doCanela. Cep: 40110-140. Salvador - Bahia - [email protected]

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um evento que envolva sons, ruídos e pausas sejamúsica, e nada mais do que música. Ainda que selimite o evento musical ao “humanamente organi-zado”, ainda temos de admitir que os recortes po-dem ser bastante variados.

“O som é uma expressão universal”, diz opsicomusicólogo Houshang Khazrai (1986, p. 145).E continua:

A natureza se exprime, entre outros instrumen-tos, pelo som. O mundo é um universo complexodas ondas rítmicas cujo som constitui uma delas,assumindo o papel da expressão tanto verbal (nocaso do homem) quanto não verbal (no caso dohomem, dos animais e, provavelmente, dos ve-getais, das substâncias probiológicas e elemen-tares ditas não vivas) (1986, p. 145).

Mas “som” apenas não é música, ele bemsabe, abrindo a porta para uma série de comunica-ções sonoras entre animais que, em maior ou me-nor grau, têm características físicas até discutivel-mente assimiláveis às de música, mas que não têma intenção de sê-lo.

Um artigo de Siegfried Nadel, de 1930, ain-da ajuda a esclarecer alguns pontos. Faz-nos verque, na investigação das origens das artes, a músi-ca ocupa um lugar peculiar. Faz-nos também con-siderar que, diante da dificuldade de estabelecer-mos limites claros, ainda assim há um pressupos-to de que podemos trata-la em termos gerais. As-sim, afirmou: “Podemos dizer que o material demúsica é artificial, uma superadição à expressãonatural através do som, e assim não encontradoneste último” (p. 532).1

Também, fora de um contexto, não se podeapurar o que faz música religiosa ser tal. Não pare-ce haver uma essência musical religiosa em si, masapenas correlações. Música tampouco pode sermoral ou imoral, salvo pelas más companhias,principalmente de textos e meneios que não sãodela. Pode ser erótica? A própria questão do tem-po musical é outro enigma. Música é ela própriauma medida do tempo. Tem uma dimensão psico-

lógica capaz de tornar a obra mais excelsa em ruí-do caso nos seja imposta, isto é, deixa de ser mú-sica quando não queremos ouvi-la. Quanto à ques-tão do tempo e de suas formas de concebê-lo oumedi-lo, poderíamos distinguir o tempo mecânicodos relógios, dos ciclos siderais, biológicos e dedegradação de elementos radioativos. O tempomusical, entretanto, parece ser capaz de criar suaspróprias bolhas.

Já neste preâmbulo deve ficar claro que ainterseção (melhor diria, a cooperação ou a conflu-ência) de música com religião é duplamente com-plexa. Seria um quase universal da cultura, embo-ra a afirmação seja ousada e careça de verificação.Os vastos bancos de dados da Human RelationsArea Files (HRAL), ora sediados na Universidadede Yale e compilados desde 1949, são um precio-so recurso para estudos transculturais (cross-cul-tural studies) e arqueológicos que não foram aquiexplorados. Há bancos disponíveis para acesso atextos relacionados às culturas mundiais e à ar-queologia. A lista de assuntos do Outline of Cul-tural Materials (OCM),2 a chave para entrar nessemundo, inclui música e instrumentos musicais,sob o tópico artes, e mais de trinta entradas paracrenças religiosas, práticas religiosas, organizaçãoeclesiástica e morte. Talvez correlações e estatísti-cas possam ser levantadas para a associação entrereligião e música.

Do ponto de vista bibliográfico (enciclopé-dias de música, neste caso), a última edição doMusic Reference and Research Materials (1997)3

destaca das enciclopédias gerais de música aque-las que agrupa para “música sacra”, os “manuaissobre hinologia” (subdivididos por denominaçõesreligiosas, dez, predominantemente cristãs) e os“índices para os hinários”. Vale destacar aEnciclopédie de la musique sacrée editada porJacques Porte (1968-1970), assistido por um largogrupo de autoridades predominantemente france-sas, com longos artigos (não definições de termos)sobre “A expressão do sagrado no Oriente, África,

1 “We can say that the material of music is artificial, asuper addition to natural expression through sound,and so not found in this latter.”

2 A lista é do antropólogo George Murdock e outros.3 Uma bibliografia de bibliografias infelizmente é

descontinuada à vista do enorme crescimento da infor-mação. A quinta e última edição, já está desatualizada.

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América do Sul” (v. 1), “Tradições cristãs dos pri-meiros séculos aos cultos revolucionários” (v. 2),“Tradições cristãs (continuidade e fim), essência,natureza e meios da música cristã” (v. 3) e “Docu-mentos sonoros” (v. 4), aqui comentários e fonodiscos.

Quanto à substancial categoria bibliográficadas histórias da música – embora em boa parteefêmeras – séries de obras históricas mais recen-tes, como as da New Oxford Historyc Music (1954-1990), as da Norton (1940-1966) e da Prentice-Hall(1960-...), The Prentice-Hall History of Music Series,incluem um ou outro volume para músicas de ci-vilizações não ocidentais. Traçar um panoramamundial só é possível através de uma enorme eru-dição e sacrifício de detalhes. Entre os heróis,merecem destaque Curt Sachs, Marius Schneider,Walter Wiora, como veremos adiante e, mais re-centemente, Roland de Candé. Poucos consegui-rão ainda juntar um contexto de história universale de antropologia numa periodização adequada,indo além de cronologias.

DE GUSTIBUS NON EST DISPUTANDUM...

O fato observável nas relações musicais en-tre o homem e o universo, quer nos sistemas decrenças religiosas, quer no controle do poder, é afrequência e a variedade de usos e funçõesassociáveis à música. Nos sistemas de crença, ora-ções, mitos e lendas, augúrios e profecias, cultos erituais, hierarquias sacerdotais ou de funcionári-os, entre outros podem envolver música. No con-trole do poder, músicas de súplica, de cura, depropiciação de caça e de outras atividades de sub-sistência que requeiram assistência do sobrenatu-ral são também necessárias: podem ser invocaçõesdirigidas a espíritos, deuses e bruxas.

Poderíamos inferir uma maior ou menor res-trição ao uso da música nos cultos, entretanto,Zwínglio a vetou. O rigor de Calvino, por exem-plo, homem de formação acadêmica suficiente paraelaborar uma estética coerente, reconhecia-lhe aforça, mas não a incluiria na liturgia, embora não aproibisse de todo em meras práticas devocionais.

Sabe-se da dificuldade que gerou em torno da tra-dução dos salmos para o francês (Clément Marot eThéodore de Bèze o diriam), sendo os salmos umadas fontes principais de textos poéticos para asigrejas cristãs. A consequência desse rigor, em par-ticular a exclusão da polifonia, é a não emergênciade um repertório de música calvinista à altura doque brotaria da igreja luterana e da anglicana nomundo ocidental. Bach seria bem menor sem ocoral luterano como pedestal de grandes obras.

É também previsível que a religião islâmicanão favoreça a música, até mesmo julgando-a im-pura. Por mais difícil que seja para um infiel avali-ar a influência da religião sobre a música do Islã,reconhecendo que não há uma liturgia musical quese compare à das igrejas cristãs, ele não poderianegar que o chamado dos muezins para preces, doalto dos minaretes, ou a recitação do Corão nasmesquitas lhe parecerão associações em que a en-toação vocal dá realce ao texto. Se os própriosislâmicos considerariam isso música é outra histó-ria, já que a clássica música do Irã (não arábica),por exemplo, é de um alto grau de refinamento.Sufis, um ramo místico do Islã, tem música e poe-sia devocionais. Dervixes alcançam o êxtase rodo-piando com música.

Confesso que a experiência de maiortranscendência musical que tive foi produto de umlongo ritual tibetano (budista), em que sons dife-renciais imponderáveis (não são fenômenos acús-ticos externos, mas fisiológicos, produzidos pornossos ouvidos) se sobrepunham a uma recitaçãocultivadamente grave. Não podem ser transcritos,mas a gravação capta os elementos que os produ-zem, e assim o fez meu mestre, Peter Crossley-Holland, a pedido de exilados monges tibetanosdo Nepal, Butão ou Siquim. Etéreos, os sons dife-renciais não apenas pairavam, mas se moviam. Nãohá palavras para descrever música, muito menosde sistemas musicais muito distintos dos nossos,como é esse caso. Se procurasse um símile, falariade luzes em movimento numa aurora boreal. Oefeito é catarse.

No caso da igreja católica, não houve um sóperíodo da história da música em que o cantochão

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gregoriano não se fizesse presente. Foi a base dapolifonia, como a cruz foi das catedrais. Talvez aúnica exceção tenha sido o Rococó, em que asmissas de um Mozart foram óperas de anjos. Ain-da assim, os estilos e as formas variaram. Enquan-to a música ritual tibetana parecerá feia a umdesavisado, a beleza pode ser um argumento de féno cristianismo (Chateaubriand, 1802). Sinto nãoter espaço para a música sacra católica, valendo-meda mordacidade de Mendelssohn para consolo:

Há tanta fala sobre música, e ainda assim tãopouco é dito. Acredito que palavras não são sufi-cientes para tal fim, e se achasse que fossem su-ficientes eu finalmente não teria mais nada afazer com música (Carta a Souchay).

Vamos ao relativismo: o contexto e a mani-pulação de uma mesma melodia também altera-vam sua taxonomia musical. Canções até mesmode sentido ambíguo serviram de cantus firmus demissas e canções polifônicas. A melodia de“L´homme armé”, uma delas, é do século 15.4 Aorigem e o significado do texto são obscuros e po-dem ter referência a cruzadas e turcos, a São MiguelArcanjo, ou ao nome de uma taverna popular. Amelodia, pelo contrário, é claramente cinzelada. Alonga lista de compositores que a usaram vai deDufay a Carissimi, passando por Palestrina e ain-da chega a Ernst Widmer. O profano se purificavano processo composicional, ou não se considera-va música e texto inseparáveis na canção:

O homem armado, o homem armado. Deve-setemer o homem armado. Já se advertiu por todaparte que cada um se venha armar de uma cotade malhas de ferro.5

Que tem isso a ver com o tratamento musi-cal polifônico do ordinário da missa? Ajudou-a,entretanto, a ser tratada como um ciclo musicalunificado.

Nos contrafacta, algo semelhante ocorriaquando uma mudança apenas de texto permitiauma canção profana tornar-se coral luterano:“Innsbruck, Ich muss dich lassen”, a saudade dacidade posta acima do consolo de todas as mulhe-res, virou “O Welt, Ich muss dich lassen”, todoespírito. Os exemplos ainda se multiplicavamquando música Tupinambá colhida por Jean deLéry, considerada satânica pelo calvinista, por umasimples harmonização de Gabriel Sagard (entre 1621e 1632) se prestaria à catequese católica dosMicmac, no Canadá (Veiga, 1981, p.242-247).

As paródias também revelam o quanto podese tornar pequena a separação entre música sacra emúsica secular, mesmo distinguindo-se músicalitúrgica (oficialmente prescrita) de música religio-sa (mais livre). Ainda poderíamos cogitar de músi-ca de festejos populares remotamente vinculadosà religião. É o caso dos reisados nordestinos emrelação ao ciclo religioso natalino, por exemplo.Na Bahia, o Senhor do Bonfim tanto faz músicaquanto faz política. Em outro extremo, magníficasobras sacras do Romantismo (Berlioz, Liszt, Verdi)estão totalmente fora de proporção com os servi-ços. Concílios e bulas papais cuidaram de pres-crever o apropriado.6

No caso das religiões afro-brasileiras, outroaspecto da relação entre música e religião tem real-ce. Na realidade, há culturas africanas em quemúsica e participação na música são indispensá-veis em qualquer aspecto e status da vida social.

4 Não era novidade. Os motetos politextuais do séculoXIII já combinavam um cantus firmus litúrgico comvozes adicionais em latim e (ou) francês. São hoje desig-nados pelo incipit de cada texto, na ordem das vozes.Um exemplo: Pucelete – Je languis – Domino. O primei-ro é uma “cantada” em grande estilo a uma mocinhavirgem bonitinha, agradável e deliciosa... O segundo éuma queixa pelo mal do amor, antes matasse... O tercei-ro é o tenor Domino, do “Haec dies” do gradual da missade Páscoa: Haec dies quam fecit Domimus [“Este é o diaque o Senhor fez”], reduzido a uma única sílaba domelisma do gradual. No fim das contas, tudo era amor,cortês ou mais que isso...

5 L´homme armé, l´homme armé. L´homme armé doibton douter. On a fait partout crier que chascun se viegnearmer d´un haubregon de fer. [Cortei algumas repetições].

6 O Motu Próprio “Tra le sollecitudini”(1903) de Pio X (1835-1914), franciscano afeito aos trabalhos pastorais, posteri-ormente santificado, era uma das faces do catolicismooficial. Versa sobre a música sacra, com 29 instruçõesrigorosas agrupadas sob princípios gerais, gêneros, textoslitúrgicos, forma externa das composições sacras, canto-res, órgão e instrumentos (o piano proibido, bandas ex-cluídas das igrejas), extensão, meios principais. Uma dasrecomendações é a de restabelecimento das Scholaecantorum, o que Guilherme de Melo seguiu no ColégioSão Joaquim, em Salvador. É previsível um reflexo namúsica secular pelas restrições, ainda mais a dos recursosde execução. O Motu próprio sobre a música sacra, acres-cido da Constituição apostólica ‘Divini cultus’ sobreliturgia, canto gregoriano e música sacra, de Pio XI (1857-1939), ainda era publicada no Brasil em 1951.

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H.J. Kwabena Nketia, outro de meus mais carosmestres e dos mais iluminados, ele próprio um Akande Gana, nos ensinava que nem ao Ashanti-hene,autoridade suprema e homem idoso, era permitidonão participar da dança, o que era mitigado por umgesto ou aceno que indicasse sua participação. Aquestão do transe é estudada em profundidade peloetnomusicólogo Gilbert Rouget, numa tentativa deesboçar uma teoria geral sobre música e possessão.La musique et la transe é sua obra principal, emsegunda edição revista e ampliada de 1990. A edi-ção anterior (1980) foi premiada pela Academia Fran-cesa. Recebeu uma resenha crítica de AndrasZempléni em L’Homme (1981, p. 105-127).

Rouget distingue o transe do êxtase, embo-ra haja casos, como o de Teresa d’Ávila, em queela passava de um a outro. Rouget elabora duasséries de características diferenciais entre o transee o êxtase: imobilidade, silêncio, isolamento, au-sência de crise, privação sensorial, relembrança, alu-cinação, de um lado (êxtase); movimento, ruído,sociedade, presença de crise, superativação senso-rial, amnésia, normalidade, do outro (transe). Deirealce a “silêncio” e “ruído”, embora esse não sejatermo genericamente adequado para música.

Para o transe, Rouget distingue o induzido doconduzido, o “musicante” (xamãs) do “musicado”(iniciados). As questões que levanta entre músicae possessão são múltiplas. Quando a música atua?Que música? Que ela significa? Quem a faz e emque estado? Quais as relações entre músicos e pos-sessos? Quais entre dança e música? Quais as es-truturas de consciência? Quais as relações com osdeuses e com a cura? O que Rouget conclui doinventário que faz é que as relações entre música etranse são de extrema variedade. Um documentofascinante que ele apresenta é uma carta de umjovem etnomusicólogo de Benin, em visita a Paris,narrando ao amigo Asogba sua experiência de as-sistir a uma ópera. “Com certeza”, disse ele, “asdiferenças são imensas. Não impedem! Sustentoque fundamentalmente uma representação eml’Opéra e uma festa de vodu em Benin são sobmuitos pontos de vista totalmente comparáveis.”(Rouget, 2008, p.434). Rouget, ao que tudo indica,

concordou com ele. Pode-se conversar com deu-ses suando, como ocorre em nosso Candomblé.Pode-se conversar com eles no silêncio ou no unís-sono de uma melodia gregoriana. Talvez o toquedo adarrum seja um tipo de “uníssono” em meioà rica polirritmia e polimetria da música e dançado Candomblé, precipitando o transe.

Etnomusicólogos e antropólogos falam deuniversalismo (algo a ver com a busca de leis ge-rais, a tendência nomotética), mas falam tambémde relativismo cultural (a tendência idiossincráticaoposta: o certo é o que o outro diz que é, não o quepenso ou observo com meus olhos, de fora); falamtambém de perspectivismo (uma multinaturalidadeque assume, para um mesmo fato ou objeto, inter-pretações diversas da mesma coisa).

DE DIVISIONE NATURAE

Distinguem-se caminhos de salvação (pre-dominantemente orientais) de religiões propriamen-te ditas, como as abraâmicas. Essas, entre outras,estabelecem comunidades das quais se deve per-tencer para que se alcance (ou não) a salvação, en-quanto as primeiras cuidam de escapar do cicloda vida por se alcançar uma liberação final, ouchegar a um nirvana onde se deixe finalmente deser. “Ser ou não ser”, sempre a questão. “Relegere”(observar cuidadosamente) e “religare” (ligar nova-mente) podem estar na etimologia latina de nossotermo religião. Porque mínima, uma definição deFriedrich Schleiermacher (1768-1834) pode seradequada ao recuo no tempo pretendido: “A reli-gião é um sentimento ou uma sensação de absolu-ta dependência” (apud Gardner; Hellern; Notaker2005, p. 19).

Ora, para que um sentimento ou sensaçãode dependência se tornem conscientes, mesmo emseu estado mínimo, o pressuposto é que o ser vivojá tenha consciência de estar vivo. Já é ele e algooutro que não ele. Nenhum sentido no mundo éinato, ou anterior, mas o que deriva da experiên-cia. O Homo sapiens, assim, terá despertado deum estado arcaico (de sono profundo, por analo-

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gia) em sua complexa evolução para estruturas deconsciência em que, gradativa e cumulativamente,desenvolve um ego que o separa e afasta da nature-za.7 Essa separação geradora de tensões não é apenasvirtual. Estamos tratando com fenômenospsicofilogenéticos que são físicos e biológicos, alémde mentais, geradores de necessidades. Não é justoatribuir a “abelhudês” de Eva (ou Evas?) a um acaso.Mas o pecado capital que continuou cometendo, oquerer-saber, metaforicamente, nos tirou do Éden.

Religião e ciência compartilham virtudes nabusca de uma última causa; a ciência, mais recen-te, para escapar de uma cadeia interminável decausas e efeitos a que esteve condenada por umpensamento linear newtoniano. Vistas de longepelos músicos, mais uma vez, as fronteiras entre oespiritual e o material se esmaecem. Se tomarmosum acarajé a esmo, para decompor seus elementosconstitutivos, um pão de queijo mineiro, ou umjenipapo (que daríamos a Eva se houvesse uma ver-são tropical do mito do Gênesis), iríamos dos mate-riais de que são feitos às tecnologias que os produ-zem e sem as quais não chegariam à nossa mesa, atésignificados tais como a de oferendas a Exu (acarajé),pintura corporal de índios amazônicos (jenipapo)ou gulodice exportável para gordinhos incuráveis(pãezinhos congeláveis), respectivamente.

Milan Kundera, tcheco de nacionalidadecassada e livros proibidos, apoia uma iluminaçãopoli-histórica da existência em seus romances, parao que precisa dominar a técnica das elipses, a arteda condensação, senão cai na armadilha da dura-ção interminável. Indagado sobre as sete partes deuma de suas obras, que poderiam ter sido sete ro-mances diferentes, de tamanho razoável, explicouque, se as tivesse feito menos elíticas, teria perdi-do o mais importante: não teria sido capaz de cap-tar, num só livro, a “complexidade da existênciahumana no mundo moderno”. O “moderno” édispensável.

Há, assim, uma escala de visões comple-mentares de foco variável. O olhar do cientista éaguçado pela necessidade de resolver problemas.

O do humanista pode ser mais abrangente e ape-nas buscar configurações, sem compromisso comprogresso e resoluções. Ambos, entretanto, estãolimitados pelos próprios sentidos e circunstânci-as que os cercam.

A audição e suas extensões, assim como apercepção musical que ocorre no tempo e requermemória, merecem mais atenção.8 Os subsistemasque pensamos como música são construções e pro-jeções do sentido da audição, mas não só, comoesquematizaremos mais adiante. Esse sentido tembases biológicas evolutivas, psicológicas, sociais eculturais. Ouvidos não têm pálpebras, deu-se contaQuignard. Ouve o bebê desde o quarto mês noventre da mãe (ontogenia, filogenia); ouvimos mes-mo quando dormimos; ouvem até os surdos à suamaneira (Helen Keller, implantes de cóclea, ouvi-do interior, musicofilia). Fruto da mesma faina queoutros sentidos do homem compartilham para fazê-lo sobreviver, a audição tem, portanto, peculiari-dades. Assim também a fala, com a qual partilha,muitas vezes, do aparelho fonador.

É possível tratar de música e de tradiçõesmusicais de modo restritivo, ainda que impelidospelo que retratem em si dos homens e mulheres queas geraram. Encontraríamos continuidade da mudan-ça e apenas potenciais reflexos de valores, estruturase funções distintos, sem exame dos vínculos. Asustentabilidade de repertórios, ainda que importemuito, é realmente secundária e até caprichosa...

Se do homem é de que tratamos, entretanto,passamos à complexidade imensa de sistemas den-tro de sistemas, dentro de sistemas, música em todasua variedade no tempo e no espaço, apenas umdesses sistemas interligados e interdependentes. Omodelo cibernético que se segue é uma simplifica-ção (Figura 1) reproduzida de L.L Langness compequenas alterações (2005, p. 261). A ideia é a deum sistema fechado, em que tudo afeta tudo porum complexo sistema de feedbacks, pelo qual um

7 As estruturas de consciência propostas por Jean Gebserinfluenciam este trabalho.

8 Inclua-se uma negligenciada e necessária higiene auditi-va: a surdez decorrente de poluição sonora e de audiçãocontinuada de sons e ruídos acima do limite de seguran-ça (85 Db) já atinge um terço da população brasileira(dados desatualizados, de 2002). Além de não saberemdisso, as vítimas não encontraram apoio oficial, umavez que nosso país ainda não considera surdez comoproblema de saúde pública.

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controle é estabelecido. Poder-se-ia pensar tambémdo universo como um organismo à maneira da hi-pótese de Gaia, embora controversa, do ponto devista da ecologia profunda.

Singularizando a música, colocando-a nocentro, o seguinte modelo inspirado em Foucault(1995, p. 372-384), detalha três interfaces corres-pondentes às “ciências” que, a seu ver, percorremas regiões epistemológicas de domínio das ciênci-as humanas (Figura 2):

A Antropologia tem mantido com altos e bai-xos, repúdios e resgates, pelo menos cinco concei-tos-chave: as ideias de evolução, de cultura, de es-trutura, de função e de relativismo (Perry, 2003),mas não o tipo de evolução linear e o determinismo,

típicos dos primeiros evolucionistas e difusionistas.Tampouco o relativismo cultural pode ser aceitosem limites diante de situações de vida ou morte.A lista de disfunções, por sua vez, não é apenas

brasileira, mas se manifesta nas mais diver-sas partes do mundo, no passado e no pre-sente.9 Há indicações de que fomos cani-bais em nosso passado, como também nos-sos parentes geneticamente mais próximos,os chimpanzés.

Não nos adiantaria muito olhar aquipara um céu de mais de quatro e meio bi-lhões de anos, ainda mais considerando quea luz das estrelas e astros que nos chega, talas distâncias siderais percorridas, pode virde corpos que nem mais existem. Tudo aca-ba, inclusive as civilizações. Deixando empaz astronomia e astrofísica, temos aindade aplicar redutores no retrocesso à escalados hominídeos que nos antecederam, nabusca do Homo musicus e, quiçá, do Homohumanus. Esqueçamos Lucy, com seus

possíveis milhões de anos (quatro?), sem ignorartampouco a labuta dos paleontólogos e arqueólo-gos. Seria insensato, entretanto, não recuarmos aosmilênios mais recentes (setenta a cinquenta?), emque nossos ancestrais diretos aprenderam a organi-zar sons humanamente e articulá-los em símbolos.

Esse é o ponto crucial da humanidade.Embora ainda haja controvérsia

entre os especialistas, a evidência fóssiltem crescido a cada ano, mas sem muitadivergência sobre o curso geral dos even-tos (Langness, 2005, p. 248-249). O vo-lume de cérebro esteve envolvido, masnão mais explica artefatos como depen-dência disso. Isto é, a relação entre tama-nho do cérebro como distintivo para oshumanos e sua cultura foi abalada: a ca-pacidade de “proto-humanos” bípedes,

9 Senicídio ou geronticídio, sacrifícios humanos, suicí-dio, suicídio cultural, sati (prática de sacrificar viúva napira funerária do marido), eutanásia involuntária e vo-luntária, suicídio assistido, assassinatos, genocídio, vio-lência e guerra, o que faz insistir um conceito de saúdecultural, cujos parâmetros de avaliação seriam os mes-mos da saúde mental.

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eretos, de cérebro relativamente pequeno fazeremartefatos ficou comprovada claramente e recuoucentenas de milhares senão milhões de anos antesdo que anteriormente se pensava. Não se podesaber exatamente quando o fogo foi primeiro usa-do, ou uma verdadeira linguagem, ou quem con-cebeu a primeira cerimônia funerária, ou o que seja,mas há pouca dúvida de que, por alguma razão,uma grande irrupção de criatividade e atividadeinovadora ocorreu entre 40 ou 50.000 anos atrás,o que pode ter sido o resultado de uma mudançamenor, mas significativa, no cérebro humano.Aparentemente, as relações biológicas e culturaisdo homem, cujas formas e comportamentos de ori-gem haviam evoluído juntos, lentamente, lado alado, se alteraram: a evolução fundamental na mu-dança do corpo cessou, enquanto a evoluçãocomportamental (cultural) se acelerou dramaticamen-te. Alguns recuam esses sinais até 60.000 anos atrás(Blainer, 2012, p.12) e pelos 30.000 anos seguintes.Estudiosos da Pré-História e arqueólogos referem-se a esse despertar da humanidade como “O Gran-de Salto à Frente” ou “A Explosão Cultural”. Sejaque nome se dê, ele é ainda um grande enigma.

USOS E FUNÇÕES

Um breve comentário sobre questões deusos e funções de música cabe aqui. Preocupadoscom o belo, é relativamente fácil esquecer a utili-dade e a necessidade das artes em sua concepção;mais ainda no caso de música, fenômeno no tem-po, fundamentalmente não representacional. Que-remos saber não somente o que música é, mas oque faz para as pessoas, como os acarajés, ospãezinhos mineiros e os jenipapos.

Teorias de cultura caducam, mas não desa-parecem de todo. Malinowski (1884-1942) desta-cou “descanso” (relaxation) como uma de suas setenecessidades biológicas básicas individuais. Delasistemas de jogo e repouso derivam como respostasdiretas, isto é, organizadas, coletivas. Uma necessi-dade instrumental de renovação de pessoal lhecorresponde, atendida pela educação, como respos-

ta.10 Tudo isso está no bojo de necessidades maisamplas de natureza simbólica e integrativa, tais comotransmissão de experiência por meio de princípiosprecisos e consistentes (conhecimento), meios decontrole intelectual, emocional e pragmático do des-tino e do acaso (mágica, religião) e ritmo comunitá-rio de recreação, exercício e repouso (arte, esportes,jogos, cerimonial). Designou essas três categoriascomo “Sistemas de Pensamento e Fé”.

Uma das críticas ao esquema funcional des-crito acima (apud Langness, 2005, p. 97-103) nãoé apenas ao caráter estático da explicação de algoque muda, no funcionalismo psicológico, dito tam-bém “puro”, e a constatação de disfunções. Umadas limitações severas do esquema é limitar as ar-tes à recreação. Divertimento é um dos casos emque uso e função podem se achatar numa indigni-dade só.11

Alan P. Merriam (1923-1980) foi o primeiro aabordar usos e funções na antropologia da música,fazendo, em adição, uma distinção entre eles. Emsua obra clássica, explica que “‘uso’ [...] se refere àsituação em que música é empregada em atos hu-manos, enquanto ‘função’ diz respeito às razões paraseu emprego e particularmente à finalidade maisampla que serve.” (Merriam, 1964, p. 210).

A quantidade de usos é enorme. A de fun-

10 Mais uma vez a perspicácia de um poeta diz tudo e dizmelhor. “O Poema da necessidade” de Drummond, dacoletânea Sentimentos do Mundo, resume: “É precisocasar João / é preciso suportar Antônio, / é preciso odiarMelquíades, / é preciso substituir nós todos. // É precisosalvar o país, / é preciso crer em Deus / é preciso pagar asdívidas / é preciso comprar um rádio, / é preciso esquecerfulana. // É preciso estudar volapuque, / é preciso estarsempre bêbado, / é preciso ler Baudelaire, é preciso co-lher as flores / de que rezam vários autores. // É precisoviver com os homens, / é preciso não assassiná-los, / épreciso ter mãos pálidas / e anunciar o FIM DO MUNDO.(Meus realces. Entendo “comprar um rádio” como ouvirmúsica e notícias).

11 Theodor Adorno (1903-1969), partindo de uma vivênciade música radical e séria (foi aluno de Alban Berg e de E.Steurmann) comenta: “O aceite de que esta função [úni-ca de música] seria justo a do entretenimento não basta.Caberia ainda perguntar como alguém que não sabe ab-solutamente o que é, seja sob a ótica da consciência, sejado ponto de vista do inconsciente, pode simplesmenteser entretido? O que quer dizer afinal de contas entrete-nimento?” (2011, p.113; 1976, p.39). Mesclei a traduçãoda edição americana com a brasileira, para tornar a passa-gem mais legível. Adorno repetidamente expressou suapreocupação com a indústria cultural e seus efeitos. Nãogostava do termo “música de massa”, para que não pare-cesse uma criação autônoma das massas, em vez de umaimposição dos poderes dominantes.

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ções, Merriam prefere associar à questão dos uni-versais em música, adotando o quarto dos sentidosde função dados por Siegfried. F. Nadel12 como “aeficácia específica de qualquer elemento pelo qualele preenche os requisitos de uma situação, isto é,responde a uma finalidade objetivamente definida;isto é a equação de função com finalidade[...]” (apudMerriam, 1964, p. 218). Merriam passa, então, acaracterizar dez funções: expressão emocional, gozoestético, entretenimento, comunicação, representa-ção simbólica, resposta física, reforço da conformi-dade a normas sociais, validação de instituições erituais religiosos, contribuição para a continuidadee estabilidade da cultura, contribuição à integraçãoda sociedade (1964, p. 223-227).

Nettl responde a Merriam com algumas in-quietações (1983, p. 149-153). Considerando aamplitude e a diversidade das funções, sugereagrupá-las. Representação simbólica, conformida-de às normas, continuidade, estabilidade eintegração cultural poderiam ser reunidas na afir-mativa de que “música funciona como expressãosimbólica dos principais valores, padrões ou te-mas de uma cultura” (p. 150). Num procedimentocomparativo que tentou entre seis culturas distin-tas, com as quais tinha tido convivência, excluiu“comunicação”, pela dificuldade de avaliação, econstatou a presença das nove demais funções emgraus distintos, que aferiu subjetivamente de 1 a 5(p. 162). Passou, então, a propor dois modelos te-óricos dos quais nos interessa o que ele chama de“A pirâmide” (p. 157-161). Nesse modelo, colocaos usos na base e procede como “um contínuoque move dos mais absolutamente pé-na-terra efactuais aos mais vitalmente interpretativos e as-sim talvez não comprováveis” (p. 157). O topo dapirâmide é uma abstração na qual os membros deuma determinada cultura poderiam divergir entre sie do observador de fora: problemas epistemológicosdo êmico/ético (Cf. Harris, 1999, p. 31-48). Nãoobstante, a “confissão” de Nettl (p. 159) não é fru-to de uma postura superficial: “A função de músi-

ca na sociedade humana, o que ela faz em últimainstância”, diz ele,

é controlar o relacionamento da humanidade como sobrenatural, mediando entre pessoas e outrosseres, e dar suporte à integridade de grupos soci-ais individuais. Faz isso expressando os valorescentrais da cultura de forma abstrata.

Apesar das substanciais atualizações e revi-sões que Nettl faz na edição recente de sua importan-te obra (2005), o capítulo correspondente ao anteriorsobre usos e funções elimina o quadro comparativodas funções, mas se enriquece e se torna mais clarosem mudar a concepção dos dois modelos.

Retornemos a Siegfried F. Nadel (1903-1956), que conseguiu ser músico, filósofo, psicó-logo e antropólogo. Seu artigo “The Origins ofMusic” mereceu ser traduzido por Theodore Baker(1851-1934), pioneiro autor do primeiro grandetrabalho sobre música de índios da América doNorte. Diz Nadel:

Achamos evidência especial em apoio à opiniãode que música foi um produto do propósito dohomem de criar para seu próprio uso uma lin-guagem mágica peculiar de invocação e exorcis-mo” (1930, p.542, meu realce).13

Nadel não diz de que “evidência especial”se trata, mesmo que a impressão de um forte vín-culo entre religião e música seja amplamente com-partilhado. Quanto a não ser natural, mas um pro-duto intencional do homem, o que é provável, cabelembrar que uma recombinação de elementos quejá existam é a base da maioria das inovações. Nadelafirma também que “Arte não permanece para sem-pre limitada pelo culto. A partir destas manifesta-ções mais antigas ela cresce para um novo estado,independente; faz para si mesma novas leis parasua própria vida” (1930, p. 543, meu realce).14 Tam-bém é possível, mas a independência total é uma

12 É o mesmo autor cujo artigo de 1930 eu cito, mas nãotive acesso à obra referida por Merriam: S. F. Nadel, Thefoundation of social anthropology (1951).

13 “We find special evidence in support of the opinionthat music was a product of man’s purpose to create forhis own use a ‘peculiar’ magic language of invocationand exorcism”

14 “Art does not remain forever bounded by the cult. Outof these earliest manifestations it grows into a new,independent estate; it makes unto itself new laws for itsown life”

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ilusão. Nem instrumentos musicais são puramen-te objetos, mas, antes, produtos da confluência dedois tipos de fluxos. De um lado estão crenças(sempre envolvidas na origem dos instrumentos)e simbolismos, com reflexos sociais e desenvolvi-mento histórico. De outro lado, em direção opos-ta, música, técnica (determinantes corporais) e, fi-nalmente, execuções que convergem no instrumen-to musical propriamente dito. Por isso mesmo, aorganologia não despreza um único detalhe des-sas interfaces, por serem significativas e donde asdescrições e classificações procedem.

A música, evidentemente, tem dificuldadesmuito maiores do que as artes visuais nos regis-tros arqueológicos. Mesmo no esplendor da pin-tura rupestre, em Trois Frères (Ariège), tornadafamosa pelos estudos e pela tenacidade do AbadeHenri Breuil, uma representação de um serhumanoide (rara, apenas duas), semi-humano,semianimal, é descrita como “um ‘feiticeiro’ da Ida-de da Pedra Tardia tocando arco musical”. É tam-bém a interpretação do musicólogo francês JacquesChailley (1985, p. 1), que lhe atribui 15.000 anos.Para outros, estaria tocando um instrumento tubularde sopro. Na realidade, não dá para dizer, emboraa diferença de classificação seja enorme. São ape-nas 30 cm de altura dessa figura, que tem cabeçade bisão, pernas humanas e braços teriomórficoscom mãos como pezinhos. Parece dançar, avan-çando por trás de animais também híbridos: umcervo de patas talvez de palmípede e um bisão comos quartos traseiros de cervídeo fêmea, e que revi-ra a cabeça como se olhasse para o feiticeiro. Mui-to detalhe para muita dúvida. O que desperta al-guma certeza é a de relação do instrumento comum ritual de mágica.

A flauta mais antiga já descoberta pode sera assim chamada “flauta de Divje Babe”, encontra-da na caverna eslovena Divje Babe I, embora issoseja controvertido. É um fragmento do fêmur deum urso de caverna, datado de cerca de 43.000anos. No entanto, se é um instrumento musicalou simplesmente um osso mastigado por um car-nívoro tem sido um debate aberto. Em 2012, duasflautas que haviam sido descobertas na caverna de

Geißenklösterle (Suábia), receberam um novo exa-me de datação de carbono de alta resolução, pro-duzindo uma idade de 42.000 para 43.000 anos.15

Um dos velhos artefatos tido, sem dúvida,como um instrumento sonoro (não necessariamen-te musical) é uma flauta ou apito, datada de apro-ximadamente 30.000 anos, relacionada aos Cro-Magnon, no sítio arqueológico de Dolni Vestonici,na República Tcheca. Roland de Candé (2001, p.44-45) ilustra quatro outros da mesma categoriaorganológica (aerofones): uma flauta de osso doperigordiano superior (Pair-non-Pair) e dois api-tos, ambos magdalenianos de Roc de Marcamp(Gorgogne). O quarto é um aerofone livre, umzumbidor, também da época magdaleniana, de LaRoche de Birol.16 Embora haja um complexo defatores a ser considerado, a conclusão que se podetirar é a da possibilidade de existência de músicano paleolítico superior, há pelo menos 40.000 anos,bem antes da revolução neolítica.

Não se pode concordar com a afirmação queNadel faz em continuação à citação anterior:

Semelhantemente, também, ela [a arte] deve cres-cer numa linha direta e ininterrupta da lei quedetermina os primeiros inícios de arte, os princí-pios que se aplicam à totalidade da arteevolucionária, à arte como a apreendemos hoje(1930, p. 543, meu realce).

Mesmo que, em 1930, Nadel já se distanci-asse dos preconceitos etnocêntricos de um WaldoS. Pratt (1857-1939), algo ainda resta aí. Pratt foi afigura que institucionalizou a disciplina deMusicologia para os falantes de língua inglesa, em15 O verbete “Paleolythic flutes” da Wikipedia tem duas

excelentes reproduções das duas flautas. A simetria dosdois (?) furos restantes da flauta Divje Babe não pareceindicar ação de feras. Acesso em 25.06.2013, no endere-ço http://en.wikipedia.org/wiki/Paleolithic_flutes.

16 Os zumbidores são aerofones livres. Produzem sompela ativação do ar circundante, isto é, não contido emum tubo ou vaso globular, como nos instrumentos desopro propriamente ditos. Nesse caso, um rombo (nãoraro com formato de peixe) revolve em torno de si erodeia no ar atado à mão do executante por uma linhaou fibra. São antiquíssimos, do ponto de vista da difu-são, com uma configuração que os assinala geografica-mente dispersos pelo mundo, já sem indícios de contatoque o tempo apagou. Não raro estão associados a ritos deiniciação de jovens rapazes e são tabus para as mulheres.Como também ocorre, o caráter ritual se degrada e ins-trumentos de tal antiguidade aparecem como brinque-dos de criança, como nosso berra-boi.

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1915. Não lhe faltaram seriedade e erudição. Na obraenciclopédica que publicou como um guia para oestudo de história da música, em edição revista con-temporânea do artigo de Nadel (a edição princeps éde 1907), trata de música antiga como não civilizada;música indiana e chinesa, entre outras, como“semicivilizadas”, mesmo incluindo ilustrações dericos instrumentos dessas e de outras civilizações(Pratt, 1930).17 Vai longe demais, num evolucionismounilinear e num determinismo que caducaram, alémdo evidente etnocentrismo.

Como estamos buscando critérios para ir àsorigens, a obra magna de Henri Gebser (1905-1973)pode ajudar nas conjecturas sobre o tempo e nasarticulações. Poucos terão reunido subsídios de tan-tas disciplinas quanto ele (Quadro 1). Na ausênciade datações científicas precisas, as estruturas quepropõe podem ajudar a superar os vazios da docu-mentação pré-histórica. As tabelas sinópticas, apre-sentadas ao final de sua obra principal, The Ever-Present Origin, contêm dezessete colunas distintas,seis delas subdivididas de dois a sete tópicos (Gebser,1985). A seleção que segue é de Georg Feurstein(1987, p. 20) à qual acrescentei uma das colunas dooriginal relacionada às formas de expressão. As tra-

duções correm por minha conta.

O texto do grande pensador e historiadorda cultura é de leitura difícil, crivado de neolo-

gismos sutis e de etimologias. O esforço deveser creditado a H. J. Koellreutter, que nos falavadele, malgrado o desconforto que nos causava.As estruturas de consciência de Gebser, cumu-lativas, tidas como mutações, parecem-me reso-luções temporárias e sucessivas do polinômiográfica e simplificadamente esboçado (Figura 1): [natureza+homem] [tecnologia] [sis-temas sociopolítico-econômicos] [culturais(música, artes, linguagens) e (ideológicos)][detalhamento, muitos outros]. Nas estruturas deconsciência em que terá sido possível a emergênciade sentimentos religiosos, música e fala são as cor-respondentes ao mágico e ao mítico, um processoque terá levado milhares de anos, a par do desen-volvimento não linear do cérebro e do sistemaneural, assim como das estruturas constitutivas doaparelho fonador.

AS ORIGENS SEMPRE PRESENTES

Durante muitas décadas o problema das ori-gens de música foi deixado para a futuraEtnomusicologia, então basicamente MusicologiaComparativa, germânica. A base desse legado vemdas primeiras teorias culturais historicistas daAntropologia: o evolucionismo e o difusionismo.

Diferiam fundamentalmente sobre a criatividade dohomem, ilimitada para os primeiros, pouca paraos últimos. De um lado (evolucionista), invenção

17 “Similarly, too, it [art] must grow, in a plain and unbrokenline out of the law that determine the first beginnings ofart, the principles which apply to the entirety ofevolutionary art, to art as we apprehend it today.”

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repetida e independente: a ideia de que o mesmoaspecto cultural evolvesse da mesma maneira emmais de uma cultura (evolução paralela). Do pontode vista oposto (difusionista), esses mesmos as-pectos são inventados apenas uma vez e num sólugar, e daí se difundem em ciclos culturais (nãoáreas culturais que precisam ser contíguas e teremevidência de contato histórico). Dos primeiros vema noção dos “primitivos” como nossos antepassa-dos vivos. Deixados sozinhos, repetirão tudo, talqual como nós fizemos, para alcançarem nosso altograu de civilização... A criança pode também serestudada como um primórdio desse adulto. Já osdifusionistas estudavam a distribuição espacial detraços e complexos culturais, emanados de umcentro e difundidos como se fossem ondas con-cêntricas de um grande lago que um distúrbio pro-vocasse, mas que teriam de se ajustar às barreirasgeográficas encontradas. Do estudo dessas configu-rações, ora mais compactas, ora mais dispersas, a“hipótese idade-área” permitia a conversão de espa-ço em tempo, à falta de testemunhos arqueológicosconcretos. Essas duas teorias foram importantes paraa história dos instrumentos musicais, bem como in-fluíram nos sistemas de classificação organológica.

O chamado “método comparativo” assumianão raro uma conotação de generalização precipi-tada e audaciosa: um procedimento pelo qual di-versas classes de fenômenos, considerados com-paráveis sob vários critérios, são examinados paradeterminar semelhanças, diferenças e suas causas.O que emerge da Segunda Guerra Mundial como“Etnomusicologia” (no início dos 50) passou a cri-ticar severamente esse método, pondo em questãoo nível em que comparações musicais eram cabí-veis; certamente não o de superfície. Por outro lado,desistia das generalizações.

O problema das origens da música exigiaum conhecimento diversificado e amplo das cul-turas musicais do mundo, o que se esperava deseus estudiosos. Entre eles, destacou-se Curt Sachs(1881-1959). Suas publicações envolveram histó-ria mundial da dança (1937), história dos instru-mentos musicais e organologia (1940), ascensão demúsica no Mundo Antigo (1943), estudo compa-

rativo entre as artes (1946), ritmo e tempo (1953),as nascentes de música (1965). Essa última, TheWellsprings of Music (publicação póstuma por JaapKunst, com quem dialogava), é aquela em que suaerudição convive exaustivamente com a crítica aocomparativismo. Fala de “tumbling strains” e de“stepwise melodies”, para as músicas mais remo-tas, de estilos logogênicos e patogênicos, pathos eethos. Sempre respeitado, alguns de seus livros,entretanto, passaram a ser tidos com reserva pelosetnomusicólogos mais jovens.

Sachs não esteve sozinho na sua empreita-da de chegar a uma visão abrangente da história damúsica e buscar origens. Marius Schneider (1903-1982), assistente de Erich Von Hornbostel noBerliner Phonogramm-Archiv, chegou a ser seudiretor.18 Fez transcrições para fins comparativosde mais de mil gravações fonográficas, em grandeparte não publicadas. Walter Wiora (1906-1997)foi outro seguidor. Tentou também juntar leste eoeste e ampliar a escala do tempo, indo aoPaleolítico para as origens. Sua obra principal, TheFour Ages of Music (1965), esboça idades da músi-ca em escala mundial, numa periodização originale espartana (pouco mais de duzentas páginas).  Oprimeiro capítulo parte da pré-história, com a cul-tura de caçadores e coletores da Idade da Pedra, àbusca de rituais religiosos e examina as caracterís-ticas da música “elementar”. Dá também exemplosdo que essa música pode ter sido, pela análisecomparativa de música de povos isolados da atua-lidade. Ter uma ideia do que essas músicas remo-tas poderiam ter sido pode satisfazer nossa curio-sidade, mas não é o problema principal.

Bruno Nettl, com seu admirável bom senso,continua incluindo as origens de música entre seustrinta e um problemas ainda sem solução, a despei-to da aparente desistência dos etnomusicólogos detratarem deles. Ele saiu de voga por várias déca-das, após os cuidadosos estudos de Curt Sachs,Walter Wiora e Marius Schneider e suas aplica-18 Hoje, esse arquivo, parcialmente destruído na Segunda

Guerra e posteriormente reconstituído, é parte do depar-tamento de etnomusicologia do museu etnológico deBerlim, a mais importante instituição do mundo onderegistros etnomusicológicos, como sons e músicas tradi-cionais de todo o mundo, são coletados e armazenados.

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ções do controverso método. Nossos antepassa-dos vivos, povos “naturais” (Veddas de Sri Lanka,povos da Micronésia, pigmoides das terras altasda Nova Guiné, pigmeus do Congo, bosquímanos,lapões, certos povos indígenas da América do Nortee do Sul), à sua revelia ou não, já nos haviam ditoo que puderam.

Esses estudos foram precedidos de especu-lações de Rousseau, Herder, Darwin, HerbertSpencer, Richard Wagner, Carl Buecher, Karl Stumpf.O interesse retorna agora por via de novos psicólo-gos, etólogos e de biomusicólogos. A Biomusicologiacomparece, em seus vários ramos, como musicologiaevolucionária (estudo das origens de música, “mú-sica” de animais, pressões evolutivas sublinhandoevolução musical, evolução de música e evoluçãohumana), neuromusicologia (áreas do cérebro en-volvidas no processamento de música, processosneurais e cognitivos desse processamento,ontogenia da capacidade e habilidade musicais) ebiomusicologia aplicada (usos terapêuticos). Per-manecem os estudos comparativos dos usos e fun-ções de música, da consideração das vantagens ecustos do fazer musical, e da busca dos aspectosuniversais dos sistemas musicais e do comporta-mento musical. Em suma: fazem de tudo para de-sagradar os devotos sacerdotes da grande música,inclusive insinuar a possibilidade de que uma dasrazões para a existência de música tenha sido eseja assustar rivais ou aterrorizar hordas inimigas.Adeus abençoada harmonia...19

Nas pegadas de Hornbostel, Nettl faz umasignificativa cirurgia na questão das origens, divi-dindo-a em três quesitos: 1. Por que música se ori-ginou? 2. Qual foi, de fato, o processo pelo qual músicafoi posta pela primeira vez em existência? 3. Qual foia natureza dos produtos musicais originais, ou pri-meiros, ou mais antigos? A necessidade de música,o primeiro quesito, é, a meu ver, o fundamentalpara explicar sua sobrevivência até os dias de hoje.

Para que música, se ela não serve para nada?Nos duzentos mil anos em que o Homo

sapiens evoluiu (poderia ser muito mais), seriapossível que as origens fossem múltiplas, mas nãomuitas. A única conclusão a que parece se ter che-gado é que o desenvolvimento do aparelho auditi-vo e fonador que música compartilha com a falateria sido para a defesa, sendo o uso para músicaum subproduto. Isso pode explicar distinçõesimportantes entre as duas linguagens. A espécieimbuída de musicofilia (Sacks, 2007, p.10-11),capacidade neural da espécie, talvez não seja aúnica (a Etologia tem de nos convencer disso). Emescala restrita, a etnografia de um determinado gru-po tenta elucidar o que ele atribui como origem desua música. Ajuda a entender melhor os indiví-duos pelos repertórios de que participam, mesmoque sejam respostas parciais à questão do “por-quê” da música.

ALLELUIA E MISERERE

Big birth! Big bang! Teorias sobre a origemda vida e do universo. Especular é preciso. Pó dopó, infinitésima partícula e maravilha num uni-verso enigmático, alegria e dor, o homem inventoumúsica para dialogar com deuses e encontrar dig-nidade. Erra muitas vezes. As variações que com-põe são ora sublimes, ora ignóbeis. Religião, lín-gua, música são coevas, são capacidades de orga-nizar e de agregar. Também desorganizam e desa-gregam. Violência e guerra permanecem por todaparte. Quaisquer que sejam as variações, o temaserá sustentabilidade e paz.

Nas humanas, ciências ou narrativas, a in-venção de um Homo musicus lhes pode ser útil, adespeito do auditivo não estar privilegiado nas ci-vilizações recentes. “Um rosto de areia na orla domar”, disse Foucault (1995, p. 404), o homem in-ventado por intelectuais pode estar com o fim pró-ximo (também por ser barulhento, ouvir e não es-cutar, vale acrescentar). Não importa muito, se osseus sósias dos milênios, de trajetórias tão difí-ceis, tiverem sucessores melhores. Uma “bolsa

19 Sugiro o site “Comparative Musicology” (http://www.compmus.org/key_issues.php Acesso em: 25 jun.2013), para um quadro atual de análise comparativa paramusicologia sobre cinco “key issues” ou grandes áreas:Classificação, e, daí, Universais e Migrações; EvoluçãoBiológica e, daí, convergência de todas para EvoluçãoCultural. As cinco se interconectam.

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de substâncias químicas [que] nervosamente ad-quiriu vida” (Bryson, 2005, p. 299) também a criou,mas eis que ora fazem tudo para exterminá-la.Einstein e Freud se corresponderam sobre a guerra,sem solução. Talvez teólogos e musicólogos, com aajuda de cientistas e humanistas, entre esperanço-sos e céticos, juntos, consigam explicar a deusesatônitos o que fizeram ou andam fazendo. Assimseja, sem blasfêmia.

Recebido para publicação em 27 de junho de 2013Aceito em 02 de setembro de 2013

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RELIGION AND MUSIC: variations in searchof a theme

Manuel Vicente Ribeiro Veiga Junior

Music relates to religion in a variety of ways,both in the belief systems or in the control ofpower. Both are culture universals. As we do notknow music´s own empirical universals, thecomprehensive study of its association with thesacred is a double challenge. Concentrating on manand to understand him better, the search for originsheld in common is an option. Though it is aprocess that de-emphasizes the musicalmonuments of religions proper and of the ways ofsalvation, Western and Eastern achievements willnot be overlooked. Back to the remote past, themillennia that articulated humanly organizedsounds into symbols are of a crucial importance.The angles, ideas, revisions, methods of approachto the lack of available evidence are the variationsof our title. From an ethnomusicologicalperspective, the issues that have been brought backto life are neither about what kind of music wasmade, nor about the processes by which musicwas first created, but the reasons, i.e. the need forits existence (functions).

KEYWORDS: Religion and music. Origins andfunctions. Models. Instruments.

RELIGION ET MUSIQUE: variations à larecherche d’un thème

Manuel Vicente Ribeiro Veiga Junior

Musique se rapporte à la religion dans unevariété d´aspects, soit dans les systèmes de croyance,soit dans le contrôle du pouvoir. Tous les deux sontdes universaux de la culture. N´ayant pasconnaissance des propres universaux empiriquesde la musique, l’étude approfondie de sonassociation avec le sacré est un double défi. En seconcentrant sur l’homme et pour mieux lecomprendre, on a pris l ́ option, pour la recherchedes origines possiblement communes, un procèsqui ne met pas en emphase les monumentsmusicaux des religions proprement dites et desmoyens de salut, les réalisations occidentales etorientales ne sont pas oubliées. Le retour vers lepassé lointain, au cours de millénnaires où des sonshumainement organisés sont articulés en symbolesest d ́ une importance cruciale. Les angles, les idées,les révisions, les méthodes d ́ approche à l ́ absencede données probantes disponibles sont lesvariations de notre titre. Du point de vueethnomusicologique, les questions qui aujourd´huireviennent à la vie ne sont guère quel genre demusique a été fait, ni les processus par lequel lamusique a été crée, mais les motifs, c´est-à- dire lanécessité de son existence (fonctions).

MOTS-CLÉS: Religion et musique. Origines etfonctions. Modèles. Instruments.

Manuel Vicente Ribeiro Veiga Junior - Ph.D em Música (Etnomusicologia), Universidade da Califórnia(UCLA); BS e MS (Piano), Juilliard School of Music, New York. Professor emérito da UniversidadeFederal da Bahia (UFBA), colaborador na Pós-Graduação em Música. Membro da Academia Brasileirade Música e da Academia de Ciências da Bahia. Experiência na área de Artes, ênfase em Música,principalmente nas subáreas das ciências musicais (etnomusicologia, musicologia histórica), análisemusical e música aplicada. Publicações recentes: Etnomusicologia brasileira e ética: a escuta ao índio,Ética e Ciência, Academia de Ciências da Bahia, p. 119-175, 2013; Sustentabilidade e música: umavisão enviesada, Música e Cultura (Associação Brasileira de Etnomusicologia), v. 8, n. 1, p.19-33, 2013;Musicologia brasileira: revisita a Guilherme de Melo, Atas do I Colóquio/Encontro Nordestino deMusicologia Histórica (PPGMUS – UFBA), p. 1- 24, 2012; Uma mesa-redonda do Primeiro Encontro daABET em Belém. Música e Cultura (Associação Brasileira de Etnomusicologia), v. 6, p. 10-16, 2011.