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Religiosidade e cultura popular

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RELIGIOSIDADE E CULTURA POPULAR: CATOLICISMO, IRMANDADES E TRADIÇÕES EM MOVIMENTO

Revista da Católica, Uberlândia, v. 1, n. 2, p. 119-130, 2009 – catolicaonline.com.br/revistadacatolica 119

RELIGIOSIDADE E CULTURA POPULAR: CATOLICISMO, IRMANDADES E TRADIÇÕES EM MOVIMENTO 1

Mara Regina do Nascimento*

RESUMO Neste estudo estarei tratando de uma pesquisa de doutoramento. Sobre a temática, devo dizer que tanto o conceito de cultura popular como o de religiosidade popular, embora já bastante debatidos entre os historiadores, são ainda merecedores de reflexão e permitem criar novas controvérsias e conversas. Por mexerem com campos de disputas teóricas, políticas, juízos de valor e idealizações são capazes de despertar debates inéditos. A primeira questão abordada será sobre as controvérsias que alguns conceitos trazem, a discussão a respeito deles, e, em seguida sua aplicabilidade numa pesquisa acadêmica. PALAVRAS-CHAVE: Cultura Popular. Religiosidade Popular. Irmandades.

Via de regra, quando falamos de religiosidade, subtraímos desta expressão o atributo

popular, porque naturalmente cremos que religiosidade, ou no plural, religiosidades, é um

vocábulo que se refere, ele próprio, ao que vem do povo, que pode evocar manifestações

ligadas ao sagrado, suas práticas de cura, devoção a santos ou festas de rua, por oposição ao

que é oficial, ao que vem da Igreja. Se falamos, por contrário, em religião, entendemos que

não se trata especificamente do que é popular, mas estaremos falando da hierarquia

eclesiástica, dos dogmas e prescrições de uma instituição. Então, não raro, estabelecemos a

bipolaridade dos opostos: religião e religiosidade.

Já o termo cultura, quando colocado no contexto religioso, dificilmente vem sozinho.

Ele vem acompanhado da sua valoração mais usual: popular. E este casamento parece ser

bem sucedido para nós: religiosidade e cultura popular. Talvez porque julguemos que a

melhor maneira de compreender a cultura popular seja estudar o religioso, as crenças e as

expressões de devoção, sejam elas exteriorizadas ou, ao contrário, contidas.

Acredito mesmo que o estudo das manifestações do religioso permite compreender

economias, políticas, hierarquias e laços sociais em diferentes sociedades e contextos

históricos específicos, entretanto, quando leio ou escuto o termo popular, tenho a tendência

1 Palestra proferida em 20 de novembro de 2009, durante o Ciclo de Palestras “Religiosidade e Cultura Popular”

do Curso de História da Faculdade Católica de Uberlândia. Agradeço às minhas queridas colegas e amigas Ivanilda Junqueira e Dulcina Tereza Bonati Borges pelo gentil convite e à Faculdade Católica de Uberlândia por me receber. * Profa. de História no Instituto de História da Universidade Federal de Uberlândia.

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de interpretá-lo como uma idéia que quer remeter-se a algo original, genuíno, puro e

essencialmente do povo. Embora reconhecendo a utilidade do termo não apenas ao

historiador, mas ao antropólogo, ao cientista social, ou demais campos de especialistas do

humano, é bem verdade que temos extrema dificuldade de defini-lo.

Talvez o problema maior esteja naquilo que o conceito primeiramente evoca: a busca

de uma essencialidade. E como toda a abordagem essencialista traz também a presença de um

sentido de dicotomia. A historiadora Martha Abreu tem uma frase interessante sobre o

popular, ela diz: “cultura popular não se conceitua, enfrenta-se”2. Eu gostaria de acrescentar

que se discute, enfrenta-se e, mais, se contextualiza.

Seria possível saber ou descobrir o que é genuinamente do povo ou popular? O certo é

que quando tratamos de cultura popular é sempre no sentido de um estranhamento, para se

referir a um outro que não somos nós, um campo no qual não estamos incluídos, e os atores

são outros com saberes próprios, específicos, meio enigmáticos até, que gostaríamos de poder

decifrar.

Muitas vezes esquecemos que, conforme sublinhou Roger Chartier, o “conceito de

cultura popular é uma categoria erudita”3, é uma invenção daqueles que não se sentiam (ou no

tempo presente, se sentem) parte dela, como os intelectuais, os estudiosos ou aqueles que

trabalham nos setores públicos ligados à cultura ou nas mídias. O popular está, sobretudo, nos

discursos institucionais.

Daí a pergunta que deveríamos, como historiadores, invocar sempre: cultura popular

em relação a quem? ao tradicional, ao oficial? Neste caso, cultura popular ou religiosidade

popular seriam instrumentos e práticas de resistência a um modelo opressor de cultura? Mas,

para qual contexto histórico estamos apontando?

E se falarmos de resistência ou disputa de poder em termos foucaultianos? Estaríamos

falando de multiplicidade e hibridismo? Para Michel Foucault, a resistência poderia ser

tomada como ponto de partida ou como uma espécie de “catalisador químico, de forma a

trazer à luz as relações de poder, localizar sua posição, encontrar seus pontos de aplicação e os

métodos usados4.” A resistência compreendida como intrínseca e não externa às relações de

2 ABREU, Martha. Cultura Popular. Um conceito e várias histórias. In: ABREU, Martha e SOIHET, Rachel.(Org.). Ensino de História. Conceitos, Temáticas e Metodologia. Rio de Janeiro: Faperj/Casa da Palavra, 2003, p. 83-102, p. 97. 3 CHARTIER, Roger. ‘Cultura popular’: revisitando um conceito historiográfico. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, vol. 8, n . 16, 1995, pp.179-192, p. 179. 4FOUCAULT, Michel. El sujeto y el poder. Disponível em: <http://www.continents.com/Art10.htm>. Acesso em 17 nov. 2009.

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poder; uma resistência entranhada no tecido social, no cotidiano, no banal. A insubordinação,

o não-acomodamento, a recusa ao ajustamento são algumas de múltiplas formas que a

resistência pode assumir.

Já uma noção tradicional de poder não compreende a resistência desta forma. Para

quem vê a resistência como algo que está fora do poder, também só consegue compreender o

poder como algo que alguém possui e que é disputado por outro que é dele despossuído; se

compreende o poder como uma relação na qual há um dominante e um dominado, na qual um

sujeito pode impor e proibir ações ou práticas a outro sujeito, também compreenderá a

resistência como algo que não participa do tecido deste poder. No entanto, se pensarmos nos

termos da reviravolta que Foucault promoveu com estes conceitos de resistência/poder,

passamos a compreender o poder como uma espécie de rede, exercido a partir de múltiplos

pontos que, simultaneamente, também produzem resistências. Esta dinâmica pode acentuar,

então, um caráter também produtivo e positivo do poder e não apenas disciplinador e

castrador. E nos remete a pensar por onde se infiltra o poder, como ele se manifesta e as

inúmeras respostas que incita. Assim posto, a subversão é feita a partir da norma, ocorre no

seu próprio interior. A resistência se dará em lugares múltiplos e de forma nem sempre

intencional e consciente: é preciso prestar atenção aos detalhes, às práticas, às palavras,

“coisas” aparentemente banais ou pouco importantes.

Então, que terreno é este o do popular? Não seria aquele traçado, construído nos

discursos da Igreja, do Direito, da Política, da Pedagogia desde o século XIX, quando o termo

é forjado? Ao falar de popular estaremos, portanto, nos referindo às representações do oficial,

do tradicional e as formas que ele pode tomar. Não estaríamos pois falando, em verdade, do

poder, quando desejamos falar de seu contrário?

Não esqueçamos ainda que as identidades evocadas por esse conceito de cultura

popular remetem-nos a uma idéia de memória e esta é freqüentemente utilizada no sentido de

relembrar uma experiência do passado. Mas a memória é ela própria o resultado do diálogo

entre três fenômenos sociais importantes: em primeiro, de uma tradição socialmente

estabelecida e compreendida como tal, em segundo, de uma identidade construída de fora,

fornecida por outrem, e em terceiro, pelo agenciamento do sujeito - no sentido de um agente

histórico que não é passivo mas que produz, interfere e busca incessantemente a sua

autorrealização.

Neste sentido, a tradição é construída a partir de uma memória que parte da

experiência vivenciada, uma tradição que se reatualiza constantemente. Daí uma noção mais

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rica para cultura, que é a do fluxo, da fluidez, da dinâmica cambiante. E, ainda, a de que “o

popular não é um monopólio dos populares”, como escreveu Martha Abreu5.

A esse propósito, se nos detivermos com atenção na relação estabelecida entre a

Igreja católica e a comunidade de fiéis, em diferentes momentos da história do Brasil,

ficaremos um tanto confusos em estabelecer o ponto de partida da enunciação do poder, tanto

religioso, como o da cultura. Como alertou o historiador Fernando Londoño, ao se referir à

formação da paróquia ao longo da história do Brasil:

“bispos e arcebispos trabalharam com mais ou menos vontade no fortalecimento da paróquia. Porém, como uma das instituições-chave, ela nunca foi descartada da vida da Igreja. Foi, sim, alvo de reformulações e redefinições de sentido e função. Contudo, junto com a paróquia e em muitos casos prescindindo desta, ou atuando nela com maior influência, esteve sempre presente a comunidade dos cristãos e os seus traços são claros: a comunidade é composta por leigos atuantes que se sentem particularmente Igreja e incumbidos de representá-la, mesmo que sejam desconhecidos. O dogma e a norma não fazem parte de suas maiores preocupações. [...] Seus interesses são diferentes dos da hierarquia. Suas demandas são mais imediatas. De forma às vezes, clara, ou de outras, matizada, a paroquia assim composta tem mantido relação de conflito e tensão com a Igreja hierárquica”6.

Então, quem comanda a paróquia?

Frente a isso, gostaria de centralizar minha fala em fragmentos da pesquisa que realizei na

cidade de Porto Alegre, focalizando mais de perto o catolicismo dos séculos XVIII e XIX, a

atuação das irmandades religiosas e a devoção aos santos católicos7.

Para esclarecer, as irmandades religiosas eram associações de leigos católicos que

tiveram capital importância no Brasil Colonial e Imperial. Estas cumpriam papel fundamental

na promoção da fé católica, por meio das festas em torno dos santos de devoção, e também

eram agentes atuantes na construção de capelas e igrejas, no cuidado com a liturgia que

envolvia os enterros, além de exercerem também a função de ajuda a gentes em penúria

econômica ou de saúde. Eram, enfim, expressão máxima de um catolicismo que se dava por

meio do associativismo.

Os períodos do setecentos e oitocentos marcam um tipo particular de catolicismo

cujas práticas de devoção caracterizavam-se, entre outros atributos, pelas missas pomposas,

5 ABREU. Cultura Popular. Um conceito e várias histórias. Op. cit., p. 94. 6 LONDOÑO, Fernando Torres (Org). Paróquia e comunidade no Brasil: perspectiva histórica. São Paulo: Paulus, 1997, p.6. 7 NASCIMENTO, Mara Regina do. Irmandades Leigas em Porto Alegre. Práticas funerárias e experiência urbana. Séculos XVIII e XIX. Tese de Doutoramento, UFRGS, 2006.

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pelas procissões repletas de alegorias, por funerais magnificentes e muitas festas de rua. As

pompas da liturgia católica cumpriam um papel muito preciso: o de dar visibilidade á

monarquia, afirmar a religiosidade como simbolo da afirmação da força dos governantes,

principalmente da figura do monarca, e perpetuar a associação do poder religioso com o poder

político. Instâncias de poder estas que, como se sabe, eram indissociáveis.

Entravam em cena nesta sociedade do chamado Antigo Regime, com sua “ordem

social rigidamente estratificada, na qual cada um deveria contentar-se com o lugar que lhe era

reservado8” as irmandades religiosas. Nas festas públicas, como nas outras celebrações

religiosas, a comunidade de livres ou a de escravos – agregados em irmandades -

acompanhavam o que pretendiam todo o conjunto dos grupos sociais daquelas centúrias,

“maravilhar as pessoas, causar assombro, defender uma posição social9”.

Alguns documentos que pesquisei, como os Compromissos (regimentos) das irmandades,

aprovados pela Mesa de Consciência e Ordens, e os Livros de Receita e Despesa das

irmandades, onde eram registrados os gastos com festas, mostram as inúmeras vezes em que

os irmãos dilapidavam suas economias com objetivos de reiterarem esta ostentação e pompa

das procissões, tanto das associações mais ricas de brancos, como as dos estratos sociais mais

baixos, como as associações de pardos ou de negros.

Autoridades coloniais, civis e eclesiásticas, não se opunham, pelo menos até

meados do século XVIII, a essas manifestações festivas dos leigos. Ao contrário:

“incentivavam tais festas e emulavam o espírito penitente dos ‘homens pretos’ e suas

instituições como uma ‘razão de Estado’.10” As festas organizadas pelas irmandades do

Rosário, por exemplo, pela suntuosidade e luxo, se constituíam de espetáculos que atraíam

multidões nas diversas capitanias da América portuguesa ou províncias do Império.

Em meados século XIX, acontecerá uma mudança. O oficial, marcado pelas

manifestações exteriorizadas da fé, por meio das músicas ruidosas, do apelo aos sentidos, da

encenação nas ruas, ostentação e luxo nas procissões será lenta e constantemente criticado e

coibido pelas autoridades urbanas, tomando lugar ao que hoje denominamos de popular. O

oficial, portanto, ao se reatualizar, vira profano. Tais manifestações serão alvo de condenação

8 CHAHON, Sergio. A Igreja privatizada: intenções inconfessáveis e heranças do catolicismo colonial. Entrevista concedida à revista eletrônica www. prometeu.com.br/missas.asp, em 24 out. 2001, acesso em 23 maio 2005. 9 SILVA, Luiz Geraldo. "Da festa barroca à intolerância ilustrada. Irmandades católicas e religiosidade negra na América portuguesa (1750-1815)". http://www.georgetown.edu/sfs/programs/clas/Brazil/LuizGeraldoSilva.pdf Acesso em 8 abril 2005. 10 SILVA. Da festa barroca à intolerância ilustrada. Op. cit., p. 7.

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por parte da Igreja e também do poder temporal, ao longo dos séculos XVIII e XIX. E surge,

ou se afirmará, uma nova devoção, incentivada pela hierarquia eclesiástica, caracterizada pela

interiorização da devoção, gestos contidos, corpos obedientes, procissões ordeiras, cultos com

base no evangelho, liturgia baseada no apresso pelo íntimo.

Os marcos construtivos, como as capelas e templos simples e precários passaram

a ser vistas pelo clero, como expressões de um tempo em que a religiosidade se dava por

meio de práticas quase pagãs, impuras. Era uma visão da Igreja que se pretendia reformadora,

romanizada, ultramontana por oposição à Igreja dos tempos do Padroado Régio, do período

colonial, que se fez, quase na sua totalidade, por meio do empreendimento dos fiéis leigos. A

documentação deste período (meados do século XIX) como as portarias e cartas pastorais

emitidas por bispos é rica no que diz respeito à necessidade de se reformarem as igrejas ou de

se construírem novas matrizes, melhor equipadas do que aquelas construídas pelas

irmandades religiosas, que passam a ser negativamente caracterizadas como “precárias”.

É importante relembrar que o Padroado Real constituía-se na supremacia do

poder régio sobre os assuntos religiosos. As ações, as crenças e a devoção de todos os fiéis

eram assuntos circunscritos à vontade Real. Seguindo à risca uma tradição que se iniciara ao

longo dos séculos XV e XVI os reis de Portugal, por meio da Ordem de Cristo, criada por D.

Dinis no século XIV, tornaram-se os verdadeiros mentores e reguladores da vida religiosa em

todas as suas possessões territoriais, tanto no Reino, como em suas colônias americanas e

africanas.

Segundo João Fagundes Hauck, a missão dos integrantes do clero de reger a

Igreja era quase nula diante da interferência do poder civil. A estes ficavam reservadas

funções “menores” nos assuntos religiosos do império, como a manutenção da disciplina do

clero e a obediência dos fiéis, escapando-lhes aquelas atribuições “maiores”, como a

nomeação de párocos, controle das devoções e manifestações religiosas, construção de

templos e fundação de associações e irmandades11.

É possível, então, interpretar as estratégias da Igreja do oitocentos de “depurar” a

religiosidade dos fiéis como uma resposta à reforma interna que ela própria vinha

empreendendo desde o século XVI, por meio das resoluções tomadas no Concílio de Trento

(1548-1563).

No que toca mais de perto o controle da vivência religiosa entre os fiéis leigos, a

11 HAUCK, João Fagundes et al. História da Igreja no Brasil. Segunda época. A Igreja no Brasil no século XIX. Tomo II/2, Petrópolis: Vozes/ Paulinas, 1985, p. 81.

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citada reforma católica objetivava uma ação pedagógica voltada a mitigar dos corações e

mentes destes as práticas que aos olhos do poder eclesiástico fossem impuras ou marcadas

pela superstição. A chamada “depuração” da fé e dos costumes está ligada às intenções

empreendidas pela Igreja pós-reforma para combater o chamado catolicismo não oficial, ou

popular, originário de um passado que pode ser localizado, em termos cronológicos, na Idade

Média ocidental. Este catolicismo, a que estou chamando de não oficial, constituía-se por

aquelas práticas religiosas que, apesar das estratégias de controle, conseguiam fugir do poder

da hierarquia eclesiástica e burlar a rigidez de seus dogmas.

Não apenas as festas ou procissões ruidosas, mas, igualmente, a adoração aos

santos estava entre aqueles cultos populares medievais contra a qual objetavam os

reformadores já desde o século XVI. O culto aos santos era considerado uma sobrevivência de

práticas pagãs. Assim como as peças de milagres ou mistérios e os sermões populares foram

tratados como condenáveis, também a idolatria foi associada à superstição. O ponto crucial da

reforma da cultura leiga, parece ter sido, conforme assinalou Peter Burke, a separação entre o

sagrado e o profano. Nas palavras do autor, “a reforma da cultura popular era mais do que um

episódio na longa guerra entre os devotos e os não-devotos, mas acompanhava uma

importante alteração na mentalidade ou sensibilidade religiosa”12 cristã.

Ao usar o termo “popular” a intenção do aludido autor é a de dar nome às práticas

católicas e leigas que se colocavam como transgressoras da religião dita oficial, mas que não

eram, ao mesmo tempo, transformadoras radicais da ordem vigente. Havia, na convivência

entre os reformadores e a população leiga, uma relação dúbia de concessão (por parte dos

primeiros) e oposição sem rebeldia ou enfrentamento (pelo lado da segunda). Com efeito,

considerando a vivência leiga do catolicismo no Brasil – colonial ou imperial – seria

arriscado, senão inadequado, traçar uma linha divisória entre a o que pertencia à ‘elite’ e o que

era originalmente do ‘povo’ nas questões acerca das crenças e dos comportamentos diante da

liturgia católica. Muitos autores, a começar por Gilberto Freyre, empenharam-se justamente

em revelar esta convivência híbrida entre os diferentes segmentos sociais da população da

América portuguesa, no que toca ao comparecimento às festas, à relação de intimidade com

os santos e até na displicência para com as lições de catequese13.

Ficou célebre, a esse respeito, a associação que estabeleceu o citado autor entre

12 BURKE, Peter. Cultura Popular na Idade Moderna. Europa, 1500-1800. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 235. 13 FREYRE, Gilberto. Casa-Grande e Senzala. Rio de Janeiro:Record, 1992.

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a operacionalização efetiva da colonização do território brasileiro pelos portugueses e a

transgressão à ortodoxia católica. A relação direta, pessoal e íntima do crente com os santos

de devoção era uma prática combatida frontalmente pelas diretrizes tridentinas, mas na

América lusa constituía-se em um tipo de culto que superava em importância a doutrina e a

prática sacramentais.

Enquanto o catolicismo definido por Trento propunha uma religião mais

subjetiva, livre das superstições pagãs, o catolicismo vigente na experiência cotidiana dos

fiéis leigos reportava-se a uma religiosidade mágica, onde os santos se constituíam de

entidades com poderes próprios sobrenaturais e imanentes, capazes de curar doenças, efetivar

relacionamentos amorosos, ou trazer sorte e realizar milagres. Só para citar um exemplo bem

concreto entre nós da devoção a um santo com forte ligação às antigas práticas pagãs, mas que

foi moldado e apropriado pela Igreja Católica e pela comunidade de fiéis ao longo do tempo,

temos São João. Segundo Martha Abreu, as festas juninas não possuem uma origem nacional,

foram trazidas pelos portugueses e aqui comemoradas desde os tempos coloniais14. Tais festas

eram (e em certa medida ainda são) marcadas por todo o tipo de fogos: fogueiras, foguetes,

rojões, busca-pé, bombas, girassóis, porque, segundo consta a tradição (sempre impregnada

de paganismo), que Santa Isabel teria acendido uma fogueira ao lado de um mastro para

anunciar o nascimento de São João Batista. Até meados do século XX (na década de 1950), as

festas juninas eram as festas do calendário cristão mais marcadas por superstições, ligadas aos

pedidos de casamento para as moças solteiras, ou na ideia de que as brasas da fogueira eram

bentas ou ainda na crença de que São João poderia descer à Terra para brincar o seu dia e tudo

pegaria fogo. Por isso, “São João está dormindo, não acorda não”!

Os santos tem, na religiosidade brasileira, importância capital: eles demarcam

territórios, identificam profissões, nomeiam escolas, ruas, logradouros públicos e sobretudo

serviram (e ainda servem) de instrumento de agrupamento étnico. A antropóloga portuguesa

Graça Índias Cordeiro diz: os santos representam a cidade, seu imaginário, sua memória, sua

história, dão origem às festas – estas são operadores simbólicos que desempenham papel

fundamental nos processos de identificação urbana15.

Os santos da Igreja Católica sempre vem acompanhados de alguma causa ou

benefício que são capazes de fornecer ao crente: podem ser como Nossa Senhora das Dores,

14ABREU. Cultura Popular. Um conceito e várias histórias. Op. cit., p. 97. 15 CORDEIRO, Graça Índias. Uma certa ideia de cidade: popular, bairrista, pitoresca. Disponível em: http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/artigo8491.pdf. Acesso em 8 out. 2009.

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que é desatadora de nós, ou como Santo Expedito, que é o das causas impossíveis, entre

outros. Tais heranças da superstições “pagãs”, em que os santos assumem, em determinadas

circunstâncias, papel mais importante que a própria figura do sacerdote e da prática

sacramental, apesar de não enquadrarem-se nos parâmetros oficiais, não foram concebidas

pela Igreja como uma oposição radical. Este catolicismo, regido por uma sólida e antiga

tradição, acabou incorporando os significantes do catolicismo oficial e empreendeu-lhe novos

significados. Assim, santos tradicionais no universo da sociedade medieval, como Santo

Antônio, São José, Santa Bárbara ou São Benedito, por exemplo, ganharam a companhia de

novas devoções incentivadas pela Reforma e reforçadas no século XIX, como o Sagrado

Coração de Jesus, São Geraldo de Magella, Santo Afonso, Nossa Senhora Auxiliadora, Santa

Teresa d’Ávila, entre outros surgidos na Europa Moderna.

Neste processo de aculturação entre santos tradicionais e modernos, não se deve

perder de vista que, quando há a eleição coletiva de um santo padroeiro, o que determinados

grupos buscam é, em verdade, o acesso ao sagrado, numa prática que remonta à época da

circulação e da veneração das relíquias e a relíquia se constitui de um aspecto do

antropoformismo cristão, em que se cultua o corpo do santo16. A maior parte dos cultos a

determinados santos são justificados por histórias com caráter mágico, ligados a descobertas

ao acaso por pessoas simples e leigas. Uma estátua, ou um pequeno objeto, é

miraculosamente encontrado num canto do solo, numa fonte de água cristalina, numa poça

também cristalina, enfim. De imediato nem o padre, nem a Igreja intervêm na descoberta, que

passa a ser uma constatação predominantemente leiga frente à instituição eclesiástica, mas

que pertence, nas palavras do historiador Alphonse Dupront, a “um povo fiel que se dá a si

mesmo, antes da disciplina eclesiástica, o objeto sacro de que tem necessidade.”17

A hagiolatria parte, portanto, em inúmeros casos desta expressão religiosa, e, ao

mesmo tempo, mágica, vinda da população de leigos para a qual a Igreja adapta-se e, com

frequência, não impõe empecilhos. Um desses casos, por exemplo, é do surgimento entre os

negros escravos do Brasil da popularidade ao culto à Nossa Senhora do Rosário, sobre a qual

não há consenso entre os historiadores brasileiros acerca de sua origem como orago preferido

dos cativos.

Têm-se, em relação a outros santos, também a mesma origem duvidosa, várias hipóteses em

16 DUPRONT, Alphonse. A religião: antropologia religiosa. In: LE GOFF, Jacques e NORA, Pierre. História: novas abordagens. Rio de Janeiro: Francisco Alves Editora, 1995, p.83-105, p. 94. 17 DUPRONT. A religião: antropologia religiosa. Op. cit., p. 90.

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aberto e um passado um tanto mítico, mágico e popular18. A hagiolatria, ou a escolha coletiva

para a devoção a um santo, é componente tão fundamental e constituinte da natureza de povos

ou grupos que se torna impossível separá-lo do caráter e da visão de mundo destes. O orago é

um símbolo sagrado e, como tal, funciona para, conforme afirma o antropólogo Clifford

Geertz, “sintetizar o ethos de um povo – o tom, o caráter e a qualidade da sua vida, seu estilo

e disposições morais e estéticos – e sua visão de mundo – o quadro que fazem do que são as

coisas na sua simples atualidade, suas ideias mais abrangentes sobre ordem.”19 Assim, em

decorrência desta natureza constitutiva que o santo eleito possui para um grupo ou uma nação,

pela sua força simbólica enquanto representante dos seus anseios e necessidades, a hierarquia

eclesiástica manteve, no caso brasileiro, um controle relativamente frouxo sobre esta eleição,

incentivando-a mesmo, na medida em que se prestava inclusive para difundir o cristianismo

entre os leigos. Apesar de o culto aos santos não enquadrar-se perfeitamente aos intentos

tridentinos de purificação dos atos religiosos e das tentativas de separar religião e magia ao

longo dos séculos XVIII e XIX, a Igreja reformadora fez vista grossa a esses arranjos por

demais populares e pouco oficiais.

Assim, podemos inferir que as práticas culturais, as crenças e as vivências

religiosas extrapolam as fronteiras sociais e inviabilizam a dicotomia religião oficial versus

religião popular, ou cultura erudita versus popular. Se, conforme nos propõe Chartier20, os

objetos culturais são na prática usados ou “apropriados” por diferentes grupos sociais, sejam

nobres, clérigos, artesãos, trabalhadores rurais ou urbanos para suas próprias finalidades,

então o objeto cultural em si perde importância e a ênfase passa a dar-se nos modos

específicos pelos quais este objeto é produzido e consumido no cotidiano, sofrendo

constantemente criação, atualização, bricolage e novos significados.

Para concluir, quero evocar aqui Marcovaldo, um personagem de um livro de

contos de Italo Calvino, cuja característica mais peculiar é a forma pela qual ele olha e

percebe o mundo. Marcovaldo olha sempre para onde os outros nunca olham, percebe as

coisas pequenas, no meio dos apelos visuais das grande cidades: na palavras de Calvino:

18 Anderson Oliveira e Luis Mott chegam a conclusões semelhantes sobre Santa Efigênia e Santo Elesbão. A este respeito ver: OLIVEIRA. Devoção e Caridade. Irmandades religiosas no Rio de Janeiro imperial. (1840-1889). Niterói, UFF, Dissertação de Mestrado, 1995, p.129-137; MOTT, Luis. Rosa Egipcíaca. Uma santa africana no Brasil. Rio de Janeiro: Bertrand do Brasil, 1993, p. 242-243. 19 GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Editora Guanabara Koogan, 1989, p. 103-104. 20 CHARTIER, Roger.“Textos, impressões, Leitura”. In: HUNT, Lynn. A nova história cultural. São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 211-238, p. 233.

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RELIGIOSIDADE E CULTURA POPULAR: CATOLICISMO, IRMANDADES E TRADIÇÕES EM MOVIMENTO

Revista da Católica, Uberlândia, v. 1, n. 2, p. 119-130, 2009 – catolicaonline.com.br/revistadacatolica 129

Esse Marcovaldo tinha um olho pouco adequado para a vida na cidade: avisos, semáforos, vitrines, letreiros luminosos, cartazes, por mas estudados que fossem para atrair a atenção, jamais detinham o seu olhar, que parecia perder-se nas areias do deserto. Já uma folha amarelando num ramo, uma pena que se deixasse prender numa telha, não lhe escapavam nunca: não havia mosca no dorso de um cavalo, buraco de cupim em uma mesa, casca de figo se desfazendo na calçada que Marcovaldo não observasse e comentasse, descobrindo nas mudanças da estação, seus desejos mais íntimos e as misérias de sua existência21.

Uma noite, diante de um enorme neon que anunciava uma marca de conhaque,

Marcovaldo procurava, nos dois segundos em que o letreiro piscava, enxergar a lua e as

estrelas. Nosso personagem não se deixava cegar, não se entorpecia, pela excessiva luz que

lhe chegava nos olhos. Ao contrário, procurava ver a cidade, o céu, a silhueta as pessoas, nos

momentos, rápidos momentos, em que a luz apagada permitia.

Cegos que ficamos, por vezes, na busca das origens ou originalidades dos

fenômenos culturais e religiosos, amparados na enganosa expressão de “resgate”, perdemos

de vista aquilo que de mais valioso há: o banal, o cotidiano, os indícios dos processos pelos

quais passam tais fenômenos ou manifestações e as transformações que vão adquirindo ao

longo do tempo, as adaptações. Não para lamentar o que ficou para trás, mas para perceber,

conhecer, reconhecer o que, para além da luz excessiva, está nos interregnos e ganha novos

sentidos.

REFERÊNCIAS

ABREU, Martha. Cultura Popular. Um conceito e várias histórias. In: ABREU, Martha e SOIHET, Rachel.(Org.). Ensino de História. Conceitos, Temáticas e Metodologia. Rio de Janeiro: Faperj/Casa da Palavra, 2003, p. 83-102, p. 97. BURKE, Peter. Cultura Popular na Idade Moderna. Europa, 1500-1800. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 235. CALVINO, Italo. Marcovaldo ou as estações na cidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. CHAHON, Sergio. A Igreja privatizada: intenções inconfessáveis e heranças do catolicismo colonial. Entrevista concedida à revista eletrônica www. prometeu.com.br/missas.asp, em 24 out. 2001, acesso em 23 maio 2005.

21 CALVINO, Italo. Marcovaldo ou as estações na cidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p. 7.

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Revista da Católica, Uberlândia, v. 1, n. 2, p. 119-130, 2009 – catolicaonline.com.br/revistadacatolica 130

CHARTIER, Roger. Cultura popular: revisitando um conceito historiográfico. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, vol. 8, n . 16, 1995, p.179-192, p. 179. CHARTIER, Roger. Textos, impressões, Leitura. In: HUNT, Lynn. A nova história cultural. São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 211-238, p. 233. CORDEIRO, Graça Índias. Uma certa ideia de cidade: popular, bairrista, pitoresca. Disponível em: http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/artigo8491.pdf. Acesso em 8 out. 2009. DUPRONT, Alphonse. A religião: antropologia religiosa. In: LE GOFF, Jacques e NORA, Pierre. História: novas abordagens. Rio de Janeiro: Francisco Alves Editora, 1995, p.83-105, p. 94. FOUCAULT, Michel. El sujeto y el poder. Disponível em: <http://www.continents.com/Art10.htm>. Acesso em 17 nov. 2009. FREYRE, Gilberto. Casa-Grande e Senzala. Rio de Janeiro: Record, 1992. GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro, Editora Guanabara Koogan, 1989. HAUCK, João Fagundes et al. História da Igreja no Brasil. Segunda época. A Igreja no Brasil no século XIX. Tomo II/2, Petrópolis: Vozes/ Paulinas, 1985. LONDOÑO, Fernando Torres (Org). Paróquia e comunidade no Brasil: perspectiva histórica. São Paulo: Paulus, 1997. NASCIMENTO, Mara Regina do. Irmandades Leigas em Porto Alegre. Práticas funerárias e experiência urbana. Séculos XVIII e XIX. Tese de Doutoramento, UFRGS, 2006. OLIVEIRA. Devoção e Caridade. Irmandades religiosas no Rio de Janeiro imperial. (1840-1889). Niterói, UFF, Dissertação de Mestrado, 1995, p.129-137; MOTT, Luis. Rosa Egipcíaca. Uma santa africana no Brasil. Rio de Janeiro, Bertrand do Brasil, 1993, p. 242-243. SILVA, Luiz Geraldo. Da festa barroca à intolerância ilustrada. Irmandades católicas e religiosidade negra na América portuguesa (1750-1815). http://www.georgetown.edu/sfs/programs/clas/Brazil/LuizGeraldoSilva.pdf Acesso em 8 abril 2005.