Religiosidade Popular: Reisado Em Balsas (MA), Uma Experiencia Do Sagrado

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    Religiosidade popular: Reisado em Balsas (MA), umaexperincia do sagrado

    Raimundo Rajobac*

    Resumo: O trabalho tem como objetivo apresentar uma leitura do Reisadoem Balsas (MA), a partir do que nos prope o mtodo da Fenomenologia daReligio. Procuraremos identificar no Reisado, em sua estrutura e forma de

    expresso, os elementos que justifiquem a dimenso religiosa do serhumano. Para uma melhor observao e descrio desse fenmeno, e de suaforma de expresso, servirmo-nos de uma pesquisa de campo realizada emdezembro de 2005 a janeiro de 2006, o qual comporta os preparativos erealizao da Festa dos Santos Reis, na regio de Balsas (MA).

    Palavras-chave: Religiosidade Popular. Reisado. Experincia Religiosa.Sagrado.

    Abstract: The work aims to present a reading of the Epiphany in Balsas(MA), from which we propose the method of the Phenomenology of

    Religion. We aim to identify the Epiphany, in its structure and form ofexpression, the elements that justify the religious dimension of humanbeings. For better observation and description of this phenomenon, and itsform of expression, availing ourselves of a field survey conducted indecember 2005 and january 2006, which includes the preparation andholding of the Feast of the Holy Kings, in the region of Balsas (MA).

    Key words: Popular Religiosity. Epiphany. Religious Experience. Sacred.

    * RAIMUNDO RAJOBAC Mestre em Educao pela Universidade de Passo Fundo (UPF).

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    Fonte: arquivo do autor

    1. O Reisado em Balsas (MA):estrutura geral

    Como situar a regio na qual acontece oReisado? Conforme Oliveira, a regiode Balsas, no sul do Estado doMaranho, pode ser sociologicamentedefinida como uma regio de fronteira;o espao prprio de encontro entresociedades e culturas desiguais, como associedades indgenas a ocidental-crist

    ou luso-brasileira. Lugar de busca poroportunidades, e por isso, de conflitos,dominao e resistncias. Desse modoespecial, na fronteira enfrenta-se aquesto da alteridade e da particularvisibilidade do outro, aquele que sediferencia como no constitutivo dens: a fronteira tambm um modo deviver. (2003 p. 14). Considerando umprocesso vindo de longas datas, aocupao da regio Sul-Maranhense, sedeu com as conhecidas frentes de

    expanso. Processo que consistiu nodeslocamento de populaes quelevavam consigo, prticas econmico-mercadolgicas1, as quais tinham a suafrente, todo um contexto ocupado pelaspopulaes indgenas. SegundoOliveira,

    a ocupao do alto serto sulmaranhense acontece bem depoisdo povoamento litorneo. Por volta

    de 1730 comeam a chegar colonosque ocupam o territrio de Caxiasat o Tocantins. A Freguesia dePastos Bons, a partir de 1744, servede apoio para a conquista territorial.As condies naturais camposcontnuos cobertos de pastagens,

    1 Conforme Oliveira, nesse contexto, a expansodo capital ainda no tem a caractersticapropriamente capitalista; sua economia baseia-

    se numa rede de trocas, com pequena circulaode dinheiro. (2003, p. 14).

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    rios crregos e ribeires numerosose perenes, clima ameno e saudvel foram o chamariz para o avanodos criadores de gado em direoaos vales dos rios Balsas, Neves eMacap, resultando na instalao deinmeras fazendas [...]. Nestaregio habitavam numerosos povosindgenas que resistiram conquistae ocupao, mas foram vencidos[...]. Nessas condies, forjou-seuma sociedade patriarcal na qual ochefe de famlia, proprietrio degrandes extenses de terras malpoliciadas e com criao extensivade gado, exerce o domnio sobre

    seu territrio e sobre ostrabalhadores a ele direta ouindiretamente ligados. (2003 p. 14).

    A prtica do Reisado2 comum,importante e respeitada pelo povo deBalsas. costume que se inicie oReisado dia 25 de dezembro, dia donascimento de Jesus Cristo,simbolizando desta forma, a sada dostrs Reis Magos ao encontro do MeninoJesus. O Reisado se estende at o dia 6

    de janeiro, dia dedicado aos SantosReis. Durante esse perodo, um grupoliderado pelo pagador da promessa3,sai cidade a dentro, tirando suaesmola4. Por toda a noite, ascantadeiras, cantadores e sanfoneiros,visitam as casas, cantando o hino aSantos Reis, e recebendo a esmola, que oferecida de acordo com adisponibilidade de cada um. Esta a

    2 Conforme, Cascudo: Denominao eruditapara os grupos que cantam e danam na vsperae dia de Reis (06 de janeiro). Em Portugal dizia-se reisada e reiseiros. No Brasil, a denominaoe especificao maior referem-se sempre aosranchos, ternos, grupos que festejam o Natal eReis. O reisado pode ser apenas cantoria comotambm possuir enredo ou srie de pequeninosatos encadeados. (1984, p. 669).3 Por pagador de promessa, deve-se entender apessoa que, ao interceder a Santos Reis, acreditater alcana uma graa.4

    Tirar esmola o nome dado a todo o processode visita realizado em cada casa.

    rotina de todas as noites at que chegueo dia da festa.

    A esmola recebida destinada aopagamento das despesas com os queprestam trabalho, tais como ascantadeiras, cantadores, sanfoneiros, omaterial usado em ornamentaes, etambm as despesas do dia da festa, noqual o pagador da promessa oferece emsua casa uma pequena confraternizao.Trata-se do conhecido caf com bolo,alimentos muito prximos da vida dopovo, e geralmente feitos com produtosda terra. Ao grupo que canta, durante a

    noite nas portas das casas, denomina-seTiradores do Reis. Qual a motivaopara tal atividade? A motivao parte deuma pessoa, grupo ou famlia que faz aSantos Reis sua promessa. Aquiencontramos os critrios de durao dapromessa, sua modalidade e como deveser conduzida. O mais comum que osujeito interceda a Santos Reis em buscade curas, ou superao de determinadasituao. O recebimento da graa

    concedida concorre para o pagamentoda promessa feita aos Santos. Cadaagraciado paga sua promessa de acordocom o que prometeu. Existem pessoasque prometem tirar o Reis5 por toda avida, outras assumem o compromissopor si e tambm por toda a famlia, oque acarreta compromisso por parte dasgeraes posteriores.

    muito comum que se encontre pessoasque tiram o reis por compromisso,tanto aos Santos Reis, como com a me,av, av ou pai j falecidos. Essecompromisso gera continuidade, e fazcom que determinadas famlias faamviver por muito tempo a tradio daFesta dos Santos Reis. Outros pagadoresde promessa delimitam sua promessa deacordo com as possibilidades.Prometem cumprir a promessa por

    5

    Tirar o Reisado implica na realizao de todoo evento que est sendo descrito.

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    tempo determinado: dois, trs, quatroanos e assim por diante. H ainda, osque por falta de recursos, peregrinamsozinhos durante o dia: realizam visitas

    e bnos nas casas das famlias. Apsoferecer sua esmola, comum que odono da casa leve dentro de sua casa, enos demais cmodos, o quadro com aimagem dos Santos Reis. Tambm esteperegrino realiza a festa no dia seis dejaneiro.

    A festa6 (reza) acontece no dia seis dejaneiro, na casa de quem est pagando apromessa. possvel que se encontre,

    por menor que seja a cidade, vriascomemoraes (rezas) no mesmo dia.Nesse dia a preparao bem maior, asimbologia tambm se enriquece. facilmente notada a realizao de umritual. Naquele momento, tira-se oReis, em trs casas antes da casa dopagador da promessa. Acontece umaverdadeira reunio de comunidades,vizinhos, pais, filhos: famlias inteirasse encontram nesse momento. Nesse

    dia, a casa por mais pobre que seja,mostra sua elegncia. O pagador dapromessa usa dos mais diversossmbolos. Ornamentada de formasingela a casa do pagador da promessaadquire um brilho diferente. No centroencontra-se o altar com o quadro dosTrs Reis Magos, e junto a ele, umavariedade enorme de imagens e fotosdos mais diversos santos e santas. frente do altar ficam as rezadeiras7

    cantadeiras8 e sanfoneiros. Terminada a

    6 Nessa regio comum que o termo festa,seja substitudo por reza. Os dois indicam oencontro celebrativo realizado na casa dopagador da promessa.7 So conhecidas por rezadeiras, as mulheresque tomam como ofcio a realizao das festasde Santos Reis. So como sacerdotisaspopulares, que auxiliam o povo com oraes erealizaes de festas (rezas).8 As cantadeiras so as senhoras que tm

    decorados os hinos de cada santo e santa, e nosperodos das festas surgem do meio do povo

    visita s trs casas prximas da casa dopagador da promessa, chega-se frente aoaltar e entoa-se novamente o hino dosSantos Reis. Segue-se com a orao do

    teo. Cada mistrio intercalado porbenditos que as cantadeiras seencarregam de entoar. Cantam-se osmais variados benditos, e as oraes sopronunciadas de forma to rpida quechegam a dificultar a compreenso: nomeio das oraes algumas palavras oufrases podem ser pronunciadas emlatim.

    Durante a orao do tero o pagador da

    promessa pode colocar-se debaixo doaltar e retira-se ao trmino da orao dotero. O momento seguinte ao terocompe-se de benditos e ladainhas,trata-se de um momento aberto, vriasoutras pessoas que se sentem motivadaspodem entoar seu bendito ou orao.Partindo daqui chega-se ao momento delouvor e bno, em que todos ospresentes fazem reverncia ao altar edeixam tambm sua esmola aos Santos

    Reis. Com o trmino deste momento, asvrias mulheres e pessoas da famlia seencarregam de fazer a partilha do cafcom bolo, o qual compe o conjunto dapromessa feita aos Santos Reis. Todosparticipam da partilha do alimento echega-se dessa forma ao final da festa.

    2. Descrio do fenmeno

    Antes do dia 25 iniciei os contatos comalgumas pessoas que participavam da

    Festa dos Santos Reis. Meu primeirocontato foi com Evangelista Sanfoneiro,que me foi indicado como o msicooficial da festa. Com ele tive asprimeiras informaes sobre as pessoasque possivelmente pagariam a promessanaquele ano. Em seguida fui casa da

    pobre para ajudar nas festas dos santos e santas. muito comum que as rezadeiras sejam asmesmas cantadeiras e vice-versa. Depende

    muito da funo que cada uma est ocupandoem determinada festa.

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    dona Reisado9 para o qual ele tocava.Com ela consegui a programao quemarcava o incio para o dia 25 dedezembro noite e o trmino para o dia

    06 de janeiro. Segundo a responsveltodas as noites seria tirado o reis,menos as noites em que viesse a chuva,visto que este perodo de fortes chuvasna regio sul maranhense.

    As chuvas fortes dos meses dedezembro e janeiro marcamintensamente a experincia dostiradores de reis. Assim nos diz umcantador: Antigamente no serto,

    mesmo debaixo de chuva, atravessandoriacho cheio e molhando os ps, todasas pessoas acompanhavam os SantosReis. Pode-se ainda, realizar umadiferenciao entre o Reisado que asclasses mais pobres realizam, o qualconsiste no modelo acima citado, e oReisado realizado por famlias declasses altas, que consistem em festasparticulares, envolvendo pessoasnotveis da cidade10.

    9 A expresso dono (a) do reisado aproxima-se fortemente expresso o pagador (a) dapromessa, as duas expresses indicam a pessoaque fez a promessa a Santos Reis, e queorganiza toda a festa para o cumprimento de suapromessa.10 Conforme Kaiper, em Balsas, a festa dosdevotos de Santos Reis teve inicio com afundao da cidade onde o chefe dos festejospagava sua promessa durante sete anosconsecutivos em virtudes de graas recebidas,

    por cura de doenas, realizaes de desejos, ousuperao de dificuldades. Apresentava-se deduas formas: uma elitizada onde as moas dacidade vestiam-se a carter, havendo ciganas,mulatas, borboletas, flores, anjos, odaliscas, reismagos e animais vivos. Apresentando-se nosfestejos natalinos, nas residncias sociais(casas de famlias) sob a luz de um petromax(lampio alemo), com bailados e cantosregidos orquestra de Mane Joo, composta desanfona, reco-reco e bambu [...]. A outramaneira de festejar Santos Reis era continua,sendo praticada pelos habitantes da zona rural e

    da periferia. Com cantoria e ladainhasrecolhendo esmolas para uma celebrao de

    Estando a par da programao, chegueibem antes do horrio marcado, emborao horrio para eles no fosse o maisimportante. A dona da casa conhecida

    pelo nome de Maria da Conceio,pessoa muito conhecida na cidade pelofato de h muito tempo realizar a festados Santos Reis. O momento inicial sempre em sua casa, e de l o gruporeunido sai para determinada parte dacidade. sobre a casa da dona doReisado que me deterei a descrever porum momento. A casa localiza-se nocentro da cidade bem prxima catedral. a conhecida casa no

    aberto, uma cobertura de palha jestragada pelo tempo, sustentada porforquilhas no muito altas, queapoiavam uma armao feita comcaibros de madeira rolia no trabalhadanas madeireiras, usadas na forma comoso extradas das matas. O espaocentral da casa era bastante amplo,sendo que o lado esquerdo da salaservia como depsito para sacos decarvo. Na forquilha central quesustentava o cume da casa, encontrava-se amarrado um cachorro de cor escura,que se confundia com a noite e a faltade energia.

    Do lado direito do barraco estavamarmadas duas redes, numa se encontravao marido doente, e na outra um cantadorque esperava o incio do Reisado. Eraum senhor j de idade que tiravareis11, um dos que ia compor o grupo

    pra tirar a esmola12. Quando pergunteiquem ele era apresentou-se

    partilha com o famoso caf com bolo branco.(1999 p. 39)11 Cantador de hinos aos Santos Reis. Soconhecidos como tiradores de reis, termotambm usado para indicar as rezadeiras ecantadeiras.12 Termo usado pra identificar o ritual realizadonas casas das famlias durante a noite. A esmola

    refere-se quantia em dinheiro ou alimento quea famlia oferece aos Santos Reis.

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    destemidamente, no me disse o nome,mas orgulhava-se em dizer que eracantador e tirador de reis e divino; e quetambm tocava pfano, um instrumento

    tpico do nordeste, em muitosmomentos usado na festa de SantosReis. Acrescentou ainda que h mais de20 anos cantava nas festas dos SantosReis e do Divino. A sala, em que nosencontrvamos, era grande e dava paraobservar todos os movimentos da rua aolado. O piso at certa parte era de chobatido, e chegando para a parte norte dacasa, iniciava-se uma parte de cimentoj corrodo pelo tempo. Neste ponto

    erguiam-se paredes no muito altas: nochegavam a tocar a cobertura de palha.

    No alto da casa uma plida lmpadaservia pra iluminar todos os cmodos dacasa, os que se somavam quatro. Outrocmodo lateral com pequenasdimenses servia como cozinha. Nafrente da sala aberta encontravam-se osrestos de um caminho-caamba velho,o qual ajudava a manter a privacidade

    da casa. Do lado de fora um poste dailuminao pblica e um orelho queconferiam um toque urbano e modernoa uma cultura tipicamente sertaneja.Encontrava-se ali uma famlia comorganizao tpica do serto, vivendo nomeio de uma cidade que cresce edesenvolve fortemente uma culturaurbana. Dona Maria da Conceio e suafamlia somam-se ao grupo dos queviveram o xodo rural. A tradio do

    Reisado iniciou com seu pai e sposteriormente ela se responsabilizouem manter viva a tradio em suafamlia.

    O Reisado tirado por dona Maria daConceio e por muitas outras famliasdas cidades do sul do Maranho, nodeve ser confundido com o mesmoReisado que geralmente se tem emmente por conta da mdia e divulgaes

    folclricas. Existem outros Estados

    nordestinos, onde o Reisado bastanteexpressivo, tanto no que diz respeito religiosidade popular, como tambm smanifestaes folclricas. A prtica de

    Reisado que delimitei como objeto deinvestigao para este trabalho, no seexpressa to fortemente a nvelfolclrico, muito embora, umainvestigao nessa perspectiva nodeixe de encontrar elementos denatureza folclrica como o caso do Boide Reisado, muito conhecido no sul domaranho.

    A prtica de Reisado a qual me detive,

    nasce de uma experincia individual emrelao ao sagrado, a qual se expande epassa a envolver toda a comunidade.Mas como isso acontece? Surge doapelo ao divino, um pedido feito poruma pessoa, ou comunidade. Tendoalcanado a graa, concedida pelosSantos Reis, o intercessor, por coernciae fidelidade, deve pagar sua promessa.Casos como esses, podem acontecerenvolvendo vrios santos, o critrio a

    devoo e experincia religiosa de cadapessoa. No caso da promessa feita aosSantos Reis, uma das maneirastradicionais de pag-la, tirando aesmola e realizando a festa no dia 06de janeiro, dia que no calendriocatlico dedicado aos Santos Reis.

    Dona Maria da Conceio acompanhoupor muito tempo o Reisado que antesera tirado por seu pai. A morte do pai,fez com que ela desse continuidade aoReisado. Por que voc resolveu retomara prtica do Reisado? promessa:essa sua resposta. Dona Maria daConceio adoeceu de lastrina, o quelhe causou grande sofrimento; sua meao ver a situao da filha apegou-se aosSantos Reis, e prometeu realizar a festados por toda a vida. Para ela no fcilmanter a promessa, assim nos diz: no fcil manter, s se vai mesmo porque

    promessa, mas com muita

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    dificuldade, mas o que importa pagara promessa, e que o Reis seja bemcantado. Essa prtica foi com o tempocriando uma estrutura prpria e aos

    poucos exigindo despesas por parte dopagador da promessa. Diz a dona doReisado: J pensei em no fazer umaque outra vez, mas no tenho coragem[...] a gente se sente mal [...] umaobrigao, foi promessa, tenho quepagar.

    O caso de dona Ubaldina no de tododiferente. Trata-se de uma senhoraproveniente do serto, que agora se

    acomoda na periferia da cidade deBalsas. Apegou-se aos Santos Reis e foiatendida. Segundo ela, toda acomunidade onde ela morava, estavaprestes a perder a lavoura por falta dechuva. Foi o apego a Santos Reis quetrouxe melhoras e boas chuvas paratodo aquele povo. Por esse motivo,tirou a esmola por muito tempo,parou, e depois retornou sua prtica. Omotivo que a fez retornar, foi a

    necessidade de um novo pedido aSantos Reis, agora, por motivo desade: posso dizer que estou melhor doque estava [...] estive muito ruim deumas rachaduras nos ps, mas graas aSantos Reis, melhorei. Em suapromessa, dona Ubaldina prometeutirar a esmola durante trs dias a cadaano.

    A casa de dona Ubaldina demonstravazelo e devoo a vrios santos. Podiam-se observar nas paredes da sala centralas mais variadas imagens de santos.Preenchiam as paredes de modo aindicar no canto esquerdo da sala, umapequena mesa que servia de altar, sobreeste se acrescentavam flores e velas. Osvrios tipos de santos misturavam-seentre imagens, quadros, cartazes,calendrios e fotos das mais diferentespocas. Estava montado ali um espao

    sagrado e tambm os traos de sua

    experincia religiosa. Dona Ubaldinaprocedia de modo diferente ao tirar suaesmola. Visto que no tinha comoarcar com as despesas que a estrutura da

    festa exigia, ela tirava sua esmolasozinha. Realizava uma peregrinaopelas casas da cidade durante o dia.Como smbolo, leva junto o quadro coma imagem dos Santos Reis. Passando decasa em casa, oferecia a visita dosSantos Reis. O morador que aceitava avisita recebia o quadro, levava-o dentrode sua casa, abenoava os cmodos dacasa e, no fim ritual, oferecia a esmola aquem estava pagando a promessa.

    3. Aspectos simblicos

    Enquanto aos aspectos simblicos,poderamos dizer que o Reisado carregaem si uma forte simbologia. O cantoentoado durante as visitas s casas e nodia da festa fortemente simblico,sendo que pode mudar a estruturaharmnica, a entonao, e tambm osversos de acordo com cada regio. Asvozes das cantadeiras, sobrepondo-se

    em intervalos harmnicos de teras,acompanhadas pela sanfona, pfano ourabeca, adquirem tambm certapeculiaridade. Quando ouvidos, alertamas famlias para a chegada dos SantosReis.

    O canto se organiza em forma deresponsrio, um grupo entoa o primeiroverso, e os demais respondem comoutro verso. Assim diz uma

    cantadeira: a cantiga como se fosseum repente, um louvor; cada um louvade um jeito, um diz um verso e outro jresponde de outro jeito, e assim vamosseguindo. O canto tambm pode mudara composio dos versos e a entonaomeldica, de acordo com a regio ougrupo, e embora haja liberdade naforma de cantar, com o tempo e asrepeties, a letra do hino vai secristalizando e tomando um formato

    comum.

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    O que acontece quando se chega portada casa onde vai ser "tirada a esmola?A visita nas primeiras casas aconteceainda cedo da noite, e a maioria das

    vezes os proprietrios encontram-seacordados. Nesse momento realiza-seum ritual onde se supe que a famliaesteja dormindo. Por esse motivo osproprietrios entram em suas casas,apagam as luzes e esperam o ritual. Ohino segue-se de passos que oproprietrio no interior da casa, trata deacompanhar respeitosamente. Aconteceum dilogo entre os cantadores e asfamlias. Durante toda a noite repete-se

    esse ritual.Ao parar na porta da casa, a primeiraatitude a do sanfoneiro. Ele d oacorde inicial e introduz o canto. Aprxima iniciativa de um dos cantoresque inicia o canto. Acontece entre eles,uma alternncia, o que faz o papel depuxador13, em uma casa, deixa esselugar a outro do grupo na casa seguinte.Quando se d por encerrado o momento

    em determinada casa, comum, que oproprietrio da mesma, em respeito aSantos Reis, acompanhe o grupo aomenos trs casas a frente. Os quepermanecem a noite inteira so umpequeno grupo, formado pelo pagadorda promessa, tocadores, tiradores dereis e mais algum que tenha secomprometido com a organizao.Assim, se observa aumentos ediminuies no grupo que acompanha o

    Reisado durante a noite.

    4. Dia 6 de janeiro, o dia da festa de

    Santos Reis

    13 Por puxador, deve-se entender o papel dosolista, o que responsvel por manter o

    canto, enquanto os outros respondem em umsegundo verso.

    O dia da festa dos Santos Reis pode serdescrito como um encontro decomunidades. Nesse dia iniciam cedo ostrabalhos em preparao da festa que

    acontece no inicio da noite. Toda afamlia do pagador da promessa, emuitos outros voluntrios e devotos deSantos Reis envolvem-se na preparao.Vrias outras famlias tambm sedispem em ajudar na organizao.Ainda durante o dia acontece apreparao dos alimentos que seroservidos no final da festa. Realiza-setambm a ornamentao do ambiente.Nesse dia a simbologia mais

    expressiva: as cidades iluminam-se comfogos que cada pagador da promessase preocupa em queimar, avisando oinicio da celebrao. As frentes dascasas onde se realizam as celebraesrenem um grande numero de pessoas,em diversos pontos da cidade. Paramanter maior proximidade e realizaruma melhor observao, escolhi trsfestas para realizar minha visita. Foramelas: a que aconteceu na casa de DonaUbaldina, localizada no bairro Cajueiro;na casa de Dona Maria da Conceio,localizada no centro da cidade; e na casada Dona Nazar, localizada no bairroNazar.

    A quem primeiro visitei foi a festarealizada na casa de Dona Ubaldina.Cheguei ao local ainda cedo, um poucoantes das 19h00. Notava-se j adistncia, o grupo de pessoas que se

    aglomeravam frente da casa de DonaUbaldina. O altar central localizava-se frente da casa e junto a ele um variadouniverso simblico. Era possvel senotar os mais diferentes santos e santas,em imagens e fotos. Um pequenopedao de lona florido foi anexado parede pondo em destaque o espaosagrado. Flores e velas perfumavam,embelezavam e iluminavam o modestoaltar. Um bico de luz improvisado sobre

    o altar ajudava a destacar o local da

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    festa. Iniciou-se logo a orao do tero.Prximos ao altar se posicionavam adona da promessa, sua irm, e umajovem que se encarregava de conduzir o

    momento de orao. O restante dosparticipantes colocavam-se nosarredores, todos eles voltados para oaltar e aos dirigentes. Organizados dessaforma, seguiram com a orao do teroe com o entoar dos benditos nosintervalos de cada mistrio. O olharcompenetrado, e as reverncias dosparticipantes, o ato de tirar o chapu dealguns senhores, e o pedido de silnciodas senhoras a algumas crianas,

    mostravam o respeito e a seriedade comque vivenciavam o momento.

    A festa seguinte acontecia no centro dacidade. O local da festa era a casa deDona Maria da Conceio. A casa antesdescrita em sua condio austera, contaagora com pequenas mudanas.Algumas paredes pintadas, sacos decarvo mudados de lugar, piso reparado,tudo isso realizado dentro das condies

    dos proprietrios, e na expectativa parareceber os devotos dos Santos Reis. Nacasa de dona Maria da Conceio, onmero de participantes era bem maisexpressivo do que na festaanteriormente descrita. Um grupoheterogneo, formado por crianas,jovens e adultos, fazia-se presente. Afesta iniciou como manda o ritual. Trscasas vizinhas foram visitadas peloscantadores at que se chegasse ao local

    da festa. Um pequeno grupoacompanhou os tiradores de reis,enquanto a grande maioria permaneceuno local da festa. O altar com o quadrodos Trs Reis Magos ocupava lugarcentral.

    Vrias cadeiras foram espalhadas pelasala para acomodar os participantes.Luzes fortes iluminavam o altar, emuitos ouros santos, em esttuas,

    cartazes e fotos, dividiam aquele espao

    com os Trs Reis Magos. Flores epalmas completavam a ornamentao.As muitas velas tambm se destacavam.Barbantes com bandeirolas davam o

    brilho ao teto coberto com palha. Vriasoutras pessoas colocavam-se nosarredores, pois nem todos conseguiamse aproximar do altar. O sanfoneirojunto com as rezadeiras localizavam-seem frente ao altar. Eram eles osresponsveis pela conduo da oraodo tero e dos vrios outros momentosque se sucedem no culto. Neste casoespecfico, dona Maria da Conceio, adona da casa, e pagadora da promessa,

    colocou-se sob o altar durante toda aorao do tero. Seguindo-se a estemomento foram entoados vriosbenditos, e rezadas vrias ladainhas,introduzindo assim, o momento dereverncia e ofertrio. Muitos dos queestavam presentes deslocavam-se at afrente do altar prestavam sua revernciae faziam sua oferta em dinheiro. Jovens,adultos e pais que orientavam seusfilhos a fazerem o mesmo. Todosmostravam um zeloso respeito pelosSantos Reis. Este momento marca otrmino do culto. O momento seguintefoi o da partilha. O conhecido caf combolo. Vrias pessoas da famlia eparticipantes dispunham-se a servir oalimento. As bandejas cheias de bolo, eas vrias garrafas com caf, rodavam asala num clima alegre e descontrado.

    Por fim, chegamos terceira festa. Esta,

    realizada no bairro de Nazar na casa dedona Nazar. Aqui o nmero depessoas, principalmente de crianas erabem mais expressivo que nas outrasduas festas. O altar estava localizado nacalada, os dirigentes e a dona dapromessa, encontravam-se na parte debaixo juntamente com os outrosparticipantes. Sobre o altar os maisvariados smbolos e imagens religiosas,muitas flores e velas. Alm das velas

    colocadas sobre o altar, muitas outras

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    eram colocadas por alguns devotos nosarredores do local do culto. As mulheresque estavam prximas ao altarencarregavam-se em dirigir a orao do

    tero e tambm de entoar ladainhas ebenditos. Foi aberto um momento paraquem quisesse oferecer seu louvor, comalgum bendito ou ladainha. O momentoseguinte foi reservado para revernciase ofertrio. Grande parte dosparticipantes dirigiu-se em fila at oaltar e faziam suas oraes, ofertavamsua esmola, e retornavam a seus lugares.Esse momento apontava para oencerramento da celebrao, que viria a

    culminar com a partilha do caf combolo.

    5. Reisado em Balsas: experincia

    vivida e manifestao da dimenso

    religiosa do homem

    Ao tomar a religio como objeto deestudo, Rudolf Otto introduziu umanovidade metodolgica. Tal novidadeconsistiu na apropriao dasexperincias religiosas a partir do

    mtodo fenomenolgico. O quepretendeu Otto foi descrever ofenmeno religioso acuradamente talcomo ele aparece na conscincia. Para oterico, somente por esse caminhopoderamos interpretar e identificar emcada experincia religiosa particularelementos comuns a outrasexperincias, o que nos levaria identificao de elementos comuns sdiversas religies; os quais segundoOtto compe a essncia da religio, aqual se apoia numa relao constanteentre o ser humano e a realidadetranscendente.

    Nessa perspectiva o Reisado possuidor de uma estrutura prpria,revela autonomia, possui um rito,carrega consigo uma teologia; compeum imaginrio comum, serve-se deelementos simblicos, e acima de tudo,

    proporciona uma experincia religiosa.

    Como experincia e manifestaoreligiosa, localizada dentro de umdeterminado contexto e cultura,expressa elementos antropolgicos

    comuns s vrias religies, que por suavez, possibilitam a observao do queh de mais marcante na vida dahumanidade: a dimenso religiosa.

    Assim, como nos dia Beninc,ontologicamente, a dimenso religiosacompe a estrutura do ser humano.Pressupor, por isso, a dimensoreligiosa, significa acreditar que o serhumano radicalmente religioso, no

    sentido de raiz e fundamento. Adimenso religiosa seria, ento, umfundamento da estrutura do ser humanoe, ao mesmo tempo, uma busca, umatentativa de compreenso dosfenmenos religiosos. No entanto, aexistncia de fenmenos religiosos nosinduz a investigar a estrutura do serhumano a fim de compreender o queseja o religioso, ou seja, a dimensoreligiosa. (2003, p.307). Rudolf Otto

    procura, mesmo que por meio analgicoe descritivo, princpios prprios dainvestigao fenomenolgica, captar oque se encontra na categoria numinosa.Dessa forma, prope um desvelamento,e, por conseguinte, a chegada ao objetonuminoso, provocador da experienciareligiosa. Assim, e na categorianuminosa que se encontra a noofundamental da dimenso religiosa doser humano. na relao entre o

    numinoso e a criatura, que se encontra avivncia primeira e o sentimentoreligioso, expressando o que prpriode sua essncia.

    O numinoso, o sagrado, otranscendente, so o essencialmenteoutro em constante relao com osujeito. A prtica do Reisado em Balsas(MA), tomada do ponto de vista dainvestigao fenomenolgica,

    possibilita-nos, portanto, a observao

  • 8/7/2019 Religiosidade Popular: Reisado Em Balsas (MA), Uma Experiencia Do Sagrado

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    emprica de uma experincia religiosa,e, por conseguinte, a observao do serreligioso. O que Otto denominou desentimento religioso. Nesse sentido, o

    Reisado em Balsas (MA) encontra-secarregado de elementos herdados datradio portuguesa e da teologiacatlica tradicional. No deixa tambm,de ter grande expressividade folclrica ecultural, como o caso do Boi deReisado14. Contudo, mas que isso, oReisado em Balsas (MA), umaexperincia religiosa possuidora de umaforte carga simblica. Trata-se de umfenmeno que nos possibilita observar

    uma experincia do divino15, umarelao com o transcendente, dimensoque se encontra no centro de todareligio. como experincia vivida, queo Reisado em Balsas (MA) nospossibilita avaliar a predisposio dohomem para o religioso. Predisposioque surge em Otto, e para aFenomenologia da Religio, como fontee princpios a priori da condiohumana. Dessa forma, o Reisado emBalsas (MA), conduz a uma experinciafundamental existente exclusivamenteno domnio do religioso, que da relaoentre e o homem o transcendente faz

    14 O Boi de Reisado, originrio dos municpiosde Boqueiro do Piau e Boa Hora, soconstitudos pelo boi remanescente doBumba-Meu-Boi , pelos caretas, cantadores etocadores remanescentes do Reisado , todospersonagens tradicionais. uma mistura

    baseada numa melodia quase nica, com versosimprovisados e a "lodaa" dos caretas. A"lodaa" um linguajar prprio dessamanifestao folclrica, no qual os caretascriam palavras novas.15 (Cf. ESPIN, 2000, p. 154) Por experinciado divino, entendo o encontro entre um ser (ougrupo) humano e algum que fortementesentido, indubitavelmente experimentado comoprximo e bom, e que (embora de maneirasucinta) d sentido e satisfao vida desse ser(ou grupo) humano. Esse tipo de experinciaest, ao que parece disponvel para muitas

    pessoas e no para algumas especialmentesensveis.

    surgir o que Otto identificou comoMysterium Tremendum et Fascinans.

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